Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02B297
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: ARAUJO DE BARROS
Descritores: SUCESSÃO LEGITIMÁRIA
DESERDAÇÃO
Nº do Documento: SJ200210030002977
Data do Acordão: 10/03/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 784/01
Data: 06/21/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário : A deserdação, sendo um acto que deve ser declarado em testamento - ou negócio similar (art.º 2166, n.º 1, do CC), destina-se, tão só, a produzir efeitos post mortem, abrangendo apenas os bens constantes da herança do de cujus (aqui incluídos os negócios anteriores que possam prejudicar a legítima dos herdeiros legitimários).
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


A e mulher B demandaram, no Tribunal de Lagos, C e marido D, pedindo que sejam declaradas nulos o contrato de compra e venda celebrado por escritura pública, em 7 de Outubro de 1993, através do qual o pai do autor marido vendeu à ré mulher o prédio urbano sito no Tonel, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o nº ..., o contrato-promessa de compra e venda, datado de 2 de Dezembro de 1993, através do qual o pai do autor marido prometeu vender à ré mulher o prédio urbano sito no Tonel, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o nº 903, o contrato escrito através do qual o pai do autor marido vendeu à ré mulher o recheio existente nos dois referidos prédios, bem como a venda de um veículo Renault, modelo Clio, por serem simulados todos os referidos negócios jurídicos, pedindo ainda a declaração de nulidade dos negócios dissimulados (doações do pai do autor marido à ré mulher), por ofenderem disposições de ordem pública, bem como o cancelamento dos registos a favor da ré mulher que tenham sido feitos.

Subsidiariamente, pediram a redução dos negócios dissimulados na medida em que tal se mostre necessário para não ofender a legítima do autor marido.

Alegaram, no essencial que nunca foi propósito do pai do autor e da ré mulher realizarem quaisquer negócios onerosos, mas meras doações e promessa de doação, que ambos levaram a efeito em virtude de o pai do autor, que se suicidou em 16 de Dezembro de 1993, pretender deserdar o autor, apesar de este ser o seu único e universal herdeiro.

Ainda antes da citação dos réus, vieram os autores apresentar um articulado superveniente, dizendo que a ré, já depois do falecimento do pai do autor, descontou, por intermédio de cheque, as importâncias de 200.000$00, 3.289.995$00 e 78.400$00 da conta do falecido no Banco - - - - - - , factos de que os autores só tomaram conhecimento depois da instauração da acção, e que consubstanciam nova doação feita para deserdar o autor.

Contestaram os réus no sentido da improcedência da acção, salientando, além do mais, que foi propósito do pai do autor e da ré mulher a realização dos negócios nos precisos termos em que o foram, e que, existindo à data da morte do pai do autor 5.000 contos em dinheiro, tiveram o seguinte destino, em cumprimento da sua vontade: 620.000$00 foram remetidos à senhora que viveu com ele, 4.254.995$00 foram entregues ao Carlos que vive na Austrália e 200.000$00 foram destinados às despesas de funeral. Em relação aos três cheques mencionados no articulado superveniente, vieram os réus esclarecer que o de 3.289.995$00 foi entregue ao Carlos que reside na Austrália, o de 200.000$00 destinou-se ao pagamento das despesas relacionadas com o funeral e o de 78.400$00, que correspondia à reforma do falecido, foi depositado na conta da ré, conforme instrução expressa do pai do autor.

Proferido despacho saneador, condensados e instruídos os autos, e após julgamento, com decisão acerca da matéria de facto controvertida, foi proferida sentença que absolveu os réus dos pedidos contra eles formulados.

Inconformados, apelaram os autores, sem êxito embora, já que o Tribunal da Relação de Évora, em acórdão de 21 de Julho de 2001, julgou improcedente o recurso, confirmando a sentença recorrida.

Interpuseram, então, os autores recurso de revista, pretendendo seja declarada a nulidade do acórdão em crise, por omissão de pronúncia, ou, quando assim se não entenda, seja decretada a nulidade de todos os actos praticados pelo pai do autor concernentes à alienação total do seu património, antes de morrer, com todas as consequências legais.

Contra-alegando pugnam os recorridos pela confirmação da decisão impugnada.

Pronunciando-se acerca da nulidade invocada pelos recorrentes, entendeu o Tribunal da Relação que tal nulidade não ocorre.

Verificados os pressupostos de validade e de regularidade da instância, corridos os vistos, cumpre decidir.
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Sendo, em princípio, pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que se delimitam as questões a apreciar no âmbito do recurso (arts. 690º, nº 1 e 684º, nº 3, do C.Proc.Civil) enunciam-se as conclusões que os recorrentes formularam:

1. O autor era filho de Marcial Nogueira dos Santos.

2. O pai do autor suicidou-se no dia 16 de Dezembro de 1993, sem testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, deixando como único e universal herdeiro o autor.

3. O pai do autor não lhe quis deixar qualquer herança (sentença da 1ª instância, nessa parte não impugnada).

4. E, por isso, fez questão de se desfazer de todos os bens antes de morrer (mesma sentença, com igual aceitação).

5. O próprio pai do autor, em carta datada da véspera do suicídio, a este dirigida, lhe enuncia, em tom sarcástico, que não tem que se preocupar com a herança, pois nada lhe deixa: casas, recheio, carro, etc., já têm outro dono.

6. Aliás, o pai do autor tinha o propósito de o deserdar, propósito por ele mesmo manifestado a várias pessoas e em diversas ocasiões.

7. Propósito que concretizou de forma absoluta, pois se desfez de todos os seus bens.

8. A lei determina que certas pessoas sejam chamadas a receber os bens do de cujus. Na sucessão necessária, trata-se de normas injuntivas que se sobrepõem à vontade privada: são normas legais que impõem um destino aos bens do de cujus - art. 2156º CC.

9. Só em determinadas circunstâncias anómalas a lei permite que a vontade do de cujus possa dispor livremente dos bens apesar de haver sucessores necessários: são os casos de deserdação - art. 2166º CC.

10. In casu, não se verificava nenhuma dessas circunstâncias anómalas, o que impedia o pai do autor de o deserdar através de testamento, único meio que a lei lhe possibilitava para obter tal desidrato.

11. Daí que, em fraude à lei, com manifesto afastamento das normas injuntivas do direito sucessório, normas de interesse e ordem pública (arts. 2156º e 2166º CC) recorreu aquele ao expediente de se desfazer de todos os bens, vendendo-os ou doando-os, nas vésperas da morte, o que tudo planeou, executou e comunicou, com cruel ânimo.

12. Dentro dessa actuação estão os factos provados, que aqui se dão por reproduzidos.

13. Esses actos estão feridos de nulidade absoluta, por alcance do preceito do art. 294º CC.

14. O Tribunal da Relação julgou, contrariamente a este ponto de vista, que o pai do autor não estava impedido de alienar o seu património a quem bem entendesse.

15. Discordamos frontalmente, pois isso era permitir a inutilização de normas que visam em primeira linha a defesa do interesse público pela vontade privada do de cujus, e, in casu, por má fé, por maldade, apenas para prejudicar o filho, uma vez que para ele, que ia suicidar-se, aproveitar-lhe não podia.

16. Era considerar legal o ludíbrio das disposições legais que protegem a legítima dos filhos.

17. Se o direito é exercido com o único propósito de causar dano a outrem, tal exercício anormal constitui um abuso de direito que, pela sua ilicitude, não pode ser permitido.

18. Se o direito é exercido, em determinado caso, de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante a sua consequência é o titular do direito ser tratado como se o não tivesse.

19. Aliás, o STJ até pode conhecer da questão do abuso do direito quando não levantada nas instâncias, oficiosamente, uma vez que se trata de questão de direito e de interesse e ordem pública.

20. E embora o direito não seja a moral, mas dela não deva andar dissociado, sempre se dirá que, para além da ilicitude propriamente dita, da sua motivação, a conduta do pai do autor é, in casu, intoleravelmente ofensiva do nosso sentido ético-jurídico, insuportavelmente injusta para a consciência jurídica dominante na comunidade social.

21. Ora, desde que a lei o permita, ou melhor, o não proíba, parece que a atitude a seguir deverá ser a da eticização do direito.

22. O que provado ficou nas alíneas F), G), H), I), L), M) e N) da especificação inculca que a ré, grande beneficiária da conduta do pai do autor, não foi estranha ao ilícito propósito desta.

23. Opõe-nos ao acórdão recorrido, de harmonia com o que foi explanado nesta alegação, a natureza do conceito de deserdação, dos factos que devem integrá-lo e sobretudo o que referido foi na conclusão 14.

24. Sobretudo nas conclusões 12ª e seguintes da sua alegação para o Tribunal da Relação, os autores tinham defendido, com desenvolvimento, a tese da nulidade dos actos praticados pelo pai do autor, por violação dos arts. 2156º e 2166º CC.

25. Aquele tribunal, porém, ocupou-se apenas da simulação dos negócios - o que já não estava em causa - e não se pronunciou sobre a questão fulcral que lhe foi colocada nas conclusões 12ª e seguintes.

26. Entendemos, assim, que se verificou a nulidade da al. d) do nº 1 do art. 668º do CPC, que aqui se argui para todos os legais efeitos.

27. A não se ter como existente a omissão de pronúncia, o acórdão recorrido violou os arts. 2156º, 2166º, 294º e 334º do Código Civil e o art. 460º do CPC, por erro de interpretação e aplicação (ou má aplicação) e errada subsunção dos factos ao direito.
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São os seguintes os factos tidos como assentes pelas instâncias:

a) - o autor é filho de Marcial Nogueira dos Santos;

b) - o pai do autor suicidou-se, por enforcamento, no dia 16 de Dezembro de 1993, sem testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, deixando como único e universal herdeiro o autor;

c) - no dia 1 de Setembro de 1993, o referido pai do autor, Marcial Nogueira dos Santos, habilitara-se como único herdeiro e sucessor de sua mulher, falecida em 26 de Agosto de 1991;

d) - uma das testemunhas dessa escritura de habilitação foi a ré C ;

e) - em 14 de Setembro de 1993, o pai do autor requereu a inscrição, em seu nome, na Conservatória do Registo Predial de Lagos, de dois imóveis que obteve por sucessão de sua mulher e que melhor se identificam nas alíneas f) e h);

f) - por escritura de 7 de Outubro de 1993, lavrada no Cartório Notarial de Vila do Bispo, o pai do autor declarou vender à ré, pelo preço de 2.500 contos, que disse já ter recebido, livre de ónus ou hipoteca, o prédio urbano de rés do chão, destinado a habitação, com a área coberta de sessenta metros e cinquenta decímetros quadrados, sito no Tonel, freguesia de Sagres, do concelho de Vila do Bispo, inscrito na respectiva matriz sob o art. 781º, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o nº 902, Sagres, e a ré declarou que aceitava esse contrato;

g) - em 7 de Outubro de 1993, por contrato escrito, o pai do autor declara que, pelo preço de 140.000$00, vende à ré todo o recheio existente nos seus prédios urbanos supra e infra identificados.

h) - por contrato datado de 2 de Dezembro de 1993, o pai do autor prometeu vender à ré, e esta comprar-lhe, livre de quaisquer ónus ou encargos, hipoteca ou arrendamento, o prédio urbano, de rés do chão, destinado a habitação, composto por duas divisões, kitchenette, casa de banho, garagem e logradouro, sito na Rua do Tonel, freguesia de Sagres, concelho de Vila do Bispo, inscrito na respectiva matriz sob o art. 1748º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos, sob o nº 903, Sagres, pelo preço de um milhão e quinhentos mil escudos; declarou neste contrato já ter recebido a totalidade do preço ajustado;

i) - com data de 15 de Dezembro de 1993, o pai do autor assinou o requerimento-declaração para registo de propriedade, onde figura como vendedor e a ré como compradora, do veículo ligeiro de passageiros da marca Renault, modelo Clio, do ano de 1990;

j) - em 20 de Dezembro de 1993, a réC retirou da conta à ordem do falecido pai do autor, Marcial Nogueira dos Santos, nº 730-51121948/01, na filial do Banco - - - - - -, em Vila do Bispo, por transferência para a sua conta na Caixa Geral de Depósitos, através do depósito do cheque nº 54456838, datado de 16/12/93, dia da morte do emitente, 200.000$00;

k) - no mesmo dia, 20/12/93, a ré retirou da referida conta, também por transferência, para uma sua conta da Caixa Geral de Depósitos, através do depósito do cheque nº 54456842, igualmente datado do dia da morte do pai do autor, 3.289.995$00;

l) - ainda no mesmo dia, a ré retirou da dita conta, igualmente por transferência para uma sua conta na Caixa Geral de Depósitos, através do depósito do cheque nº 54456841, também datado do dia da morte do pai do autor, 78.400$00;

m) - todos os cheques supra mencionados foram depositados para cobrança, após a morte do titular da conta, o que a ré sabia;

n) - havia relações de grande estima entre o pai do autor e a ré; eram vizinhos; todos os dias se falavam e conviviam; ele tratava-a por sobrinha e ela a ele por tio;

o) - o imóvel referido em f) valia à data da escritura aí mencionada, 4.800.000$00;

p) - o imóvel referido em h) valia 2.400.000$00 à data do contrato aí mencionado;

q) - o recheio existente no imóvel referido em f) era constituído: na sala comum, por uma mesa redonda em madeira; seis cadeiras com almofadas em napa; um candeeiro de tecto com quatro lâmpadas; um aparelho de televisão, a cores; um dente de marfim com um metro de comprimento; diversos livros encadernados; dois pássaros trabalhados, em marfim, uma estátua com 5 macacos, trabalhados, em marfim, quatro pratos, com pedestal, em loiça; uma mesa pintada, de estilo oriental, de porcelana chinesa, quatro pratos de porcelana em estampa diversa, com pedestal, um aparelho de jantar, em porcelana; um aparelho de chá, em porcelana; um aparelho de café, em porcelana; um conjunto de copos, em cristal; um maple de três lugares; duas poltronas; um candeeiro de canto, em osso; vários objectos, em porcelana chinesa, uma antena de televisão, externa, tudo no valor total de, pelo menos, 77.000$00; na cozinha existia um frigorífico, um fogão, um fogareiro eléctrico, um jogo completo de panelas, vários armários, um jogo de talheres, um conjunto de copos, uma torradeira, uma batedeira, um liquidificador, um esquentador a gás, uma mesa pequena, oito bancos para a mesa, no valor total de 36.000$00; em um dos quartos o recheio era de duas camas de solteiro, em madeira, um guarda-roupa, com roupas das camas, uma mesa de cabeceira; no outro quarto uma cama de casal em madeira, duas mesas de cabeceira, dois candeeiros de cabeceira, uma cómoda com espelho, uma banqueta com almofada, dois tapetes, tudo no valor de 39.700$00; no sótão o recheio era constituído pelos seguintes móveis: uma arca de cânfora contendo seis dentes de marfim, de um metro cada um, trabalhados, um jogo de xadrez em marfim e pau preto, desmontado, um jogo de damas em marfim e pau preto, desmontado, um faqueiro completo em prata, um aparelho de jantar, em loiça chinesa, um aparelho de chá, em loiça chinesa, um aparelho de café, em loiça chinesa, uma mala contendo diversos livros escolares e objectos, uma arca de cânfora, contendo roupas de cama, de mesa e de banho, no valor de, pelo menos, 34.500$00;

r) - o recheio existente no imóvel referido em h) era constituído, na sala/cozinha por uma mesa em madeira, quatro cadeiras com almofadas, em napa, um fogão, um frigorífico, um esquentador, um guarda loiça, um jogo de pratos em porcelana, um jogo de copos simples, um jogo de panelas simples, um jogo de talheres, sendo o valor destes móveis de 30.800$00; no quarto do mesmo imóvel tal recheio era constituído por duas camas de solteiro, de madeira, dois candeeiros de cabeceira, duas mesas de cabeceira, uma cómoda, sendo o valor destes móveis de 21.500$00;

s) - o automóvel mencionado em i) valia 700.000$00;

t) - o pai do autor tinha o propósito de o deserdar, propósito manifestado pelo pai do autor a várias pessoas e em diversas ocasiões;

u) - a ré, em 1993, era empregada de balcão num quiosque em Lagos e auferia mensalmente 81.067$00;

v) - o réu é empregado num parque de campismo;

w) - os autores só tiveram conhecimento dos factos referidos nas alíneas i), j), k) e l) em 25 de Maio de 1994, através dos extractos da conta do pai do autor e das fotocópias dos respectivos cheques, que acompanharam a comunicação do Banco - - - - - - - datada do mesmo dia;

x) - o maple e as duas poltronas referidas na alínea q) são de napa e não de cabedal;

y) - o pai do autor, após a morte da sua mulher, Vitelinda do Carmo Carvalho, vendeu a um familiar seu, que vive no norte do país, todo o ouro que ela lhe tinha deixado;

z) - à data da morte do pai do autor existiam cerca de 5.000 contos em dinheiro;

aa) - foram remetidos à senhora que viveu com ele, D. Guilhermina, 120.000$00;

ab) - tendo sido entregues ao Carlos que se encontra a viver na Austrália, 4.254.995$00;

ac) - foram destinados às despesas do funeral 169.500$00;

ad) - os réus socorreram-se da ajuda de um familiar que lhes proporcionou algum dinheiro para as compras que a ré mulher fez ao falecido;

ae) - o cheque de 3.289.995$00 mencionado em k) foi entregue ao Carlos, que reside na Austrália, a pedido do falecido;
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Invocam, antes de mais, os recorrentes a nulidade, por omissão de pronúncia, do acórdão recorrido (nº 1, al. d), do art. 668º do C.Proc.Civil), na medida em que, tendo-se apenas ocupado da nulidade, por simulação, dos negócios celebrados - o que já não estava em causa - não se pronunciou acerca das questões colocadas nas conclusões 12ª e seguintes das alegações por eles apresentadas.

Referindo-se à arguição dessa nulidade afirma o tribunal recorrido que a mesma não ocorre, tanto quanto é certo que a fls. 18 da decisão impugnada"vem dito que não é este o meio próprio para conhecer da eventual ofensa da legítima do autor marido" (fls. 387).

Estabelece aquele art. 668º, nº 1, al. d), que é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (regime aplicável à 2ª instância por força do art. 716º, nº 1, do citado diploma).

A referida nulidade, como é sabido,"está directamente relacionada com o comando do que se contém no nº 2 do art. 660º, servindo de cominação ao seu desrespeito".(1)

Assim, porque, em conformidade com aquele art. 660º, nº 2, o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, não podendo ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras, desde que na decisão se omita a pronúncia, isto é, se não aprecie questão que alguma das partes trouxe perante o tribunal ou de que oficiosamente este devesse conhecer, ocorre a nulidade prevista no citado art. 668º, nº 1, al. d).

Em ordem a decidir da existência da arguida nulidade impõe-se analisar as diversas posições e a estratégia dos autores ao longo da acção.

Inicialmente, na petição, invocando a simulação relativa dos diferentes negócios jurídicos celebrados entre o falecido pai do autor marido e a ré " e alegando que os negócios dissimulados tiveram como único fim deserdar aquele autor, assim ofendendo normas de ordem pública, pretende a declaração de nulidade, quer dos negócios simulados, quer dos dissimulados.

E, subsidiariamente, prevenindo a improcedência dessa pretensão, peticionam a redução dos negócios realizados na medida em que for necessário para não ofenderem a legítima do mesmo autor.

Logo a seguir, em articulado superveniente, vieram os autores denunciar a existência de outro negócio de doação do pai do autor à ré, com o fim de o deserdar, que, em seu entender, deverá ter o mesmo tratamento que se requereu no pedido principal.

Julgada improcedente a acção, e já em sede de recurso de apelação, sem deixarem de insistir na tese da simulação e do conluio entre o pai do autor e a ré para o prejudicarem, vêm acrescentar que o comportamento do pai daquele, intencional e doloso, se destinou a defraudar os preceitos dos arts. 2156º e 2166º do C.Civil, para o efeito adoptando o expediente de, através de formas jurídicas em si lícitas, conseguir o resultado que a lei proíbe - deserdar o único descendente e herdeiro - comportamento esse intoleravelmente ofensivo do nosso sentimento ético-jurídico e insuportavelmente injusto para a consciência jurídica dominante na comunidade social e, por isso, manifestamente em fraude à lei.

Desde sempre, portanto, apesar da diferente qualificação das invalidades assacadas aos negócios impugnados através da acção, o acento tónico (e único) da posição dos autores se situou na existência de negócios de alienação do património pelo pai do autor, a título gratuito, celebrados em conluio com a ré, com o assentimento e vontade desta, e com a intenção de prejudicar (deserdar) o autor marido.

Ora, esta questão, vista por qualquer dos ângulos utilizados, não deixou de ser apreciada pelo acórdão recorrido. Naturalmente fazendo incidir a maior parte da fundamentação sobre a inicialmente pretendida (e mantida) simulação. Mas sem esquecer os demais aspectos do problema, quer quando refere que se não demonstrou a gratuitidade dos negócios (fls. 351) nem o alegado conluio (fls. 351 e 352), quer ainda quando afirma que"o pai do autor não estava impedido de alienar o seu património a quem bem entendesse" (fls. 352), apontando claramente para a improcedência da invocada deserdação.

A que acresce ainda o facto de se mencionar expressamente no citado acórdão - analisando aí a impossibilidade de apreciar a redução dos negócios celebrados quanto aos dinheiros levantados e entregues a terceiros - que o meio próprio para tal é o processo de inventário e não a acção instaurada (fls. 352).

Desta forma, podemos concluir que não enferma o acórdão recorrido da nulidade, por omissão de pronúncia, que lhe foi imputada.
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Aliás, mesmo no âmbito do mérito das pretensões dos recorrentes, há que reconhecer a bondade do acórdão em crise.

Em primeiro lugar, nele está amplamente demonstrada e justificada - e nem os recorrentes o põem em causa - a improcedência da pretensão de nulidade dos negócios celebrados com fundamento na simulação: inexistem, de facto, quer o acordo simulatório, quer a divergência entre a vontade das partes e as declarações emitidas.

Depois, e quanto à deserdação, que "vem a ser o acto em que o testador priva da legítima os seus herdeiros legitimários" (2) comporta esta duas características essenciais que in casu não se não verificam, impedindo a qualificação pretendida pelos recorrentes: é, desde logo, um acto que deve ser declarado em testamento - ou negócio similar (art. 2166º, nº 1, do C.Civil) e destina-se, tão só, a produzir efeitos post mortem, abrangendo apenas os bens constantes da herança do de cujus (aqui incluídos os negócios anteriores que possam prejudicar a legítima dos herdeiros legitimários).

É bom de ver que, no caso em apreço, além de não ter sido feita pelo pai do autor marido qualquer declaração de deserdação deste (é irrelevante o facto de aquele haver manifestado a várias pessoas a intenção de o deserdar), também os negócios jurídicos celebrados entre o pai do autor e a ré revestem a natureza de onerosos, envolvendo, em contrapartida da alienação ou transmissão dos bens objecto dos contratos, uma correspondente deslocação patrimonial a seu favor, em concreto o preço pago pela referida ré (e que, conforme dos autos se vê, não é muito diferente do valor dos bens alienados).

Poderá, no entanto, configurar-se, como sustentam os recorrentes, que os referidos negócios forma celebrados em fraude à lei, isto é, encarados como negócios que"procuram contornar ou circunvir uma proibição legal, tentando chegar ao mesmo resultado por caminhos diversos dos que a lei designadamente previu e proibiu" (3) .

É óbvia a conclusão negativa. De facto, se os negócios celebrados permitiram a entrada no património do pai do autor marido de montantes pecuniários correspondentes (ainda que não in totum, mas com a natureza de comutatividade contratual) aos bens alienados, não se pode inferir que, através deles, o pai do recorrente quis concretizar, por outro caminho legalmente admitido, a sua deserdação - note-se, aliás, que à data da morte daquele existiam cerca de 5.000.000$00 em dinheiro.

E é neste contexto que se insere a afirmação do acórdão recorrido de que, em princípio, porque proprietário dos bens até à data da sua morte, o pai do recorrente podia deles podia dispor como entendesse, na medida em que não tivesse a provada intenção de afastar o autor da legítima a que teria direito. Sendo assim certo que também se não pode descortinar qualquer abuso da sua parte, já que, como proprietário dos bens tinha o direito (com a restrição já aludida) de lhes dar o destino que quisesse.

Quando muito, poderia defender-se tal solução relativamente às quantias em dinheiro levantadas da conta do pai do autor e distribuídas por diversas pessoas, como dos autos se vê. Só que, nesse caso, deveria o autor ter demandado todas as pessoas beneficiadas com tais quantias, de acordo com as instruções do seu pai, o que não fez, limitando-se a demandar a ré, que afinal delas não beneficiou (ou se beneficiou foi em pequena parte).

Aliás, se o levantamento dessa quantias e a sua distribuição pudesse ofender a legítima do recorrente - caso de inoficiosodade - haveria, como se diz na decisão em crise, que recorrer ao processo de inventário para se operarem as eventuais reduções e não à acção sub judice que não constitui o meio próprio para a obtenção desse desiderato.

Improcedem, deste modo, as pretensões dos recorrentes.

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Pelo exposto, decide-se:

a) - julgar improcedente o recurso de revista interposto pelos autores A e mulher B;

b) - confirmar inteiramente o acórdão recorrido;

c) - condenar os recorrentes nas custas da revista.

Lisboa, 3 de Outubro de 2002.

Araújo de Barros ( Relator)

Oliveira Barros

Diogo Fernandes
________________________________________________
(1) Rodrigues Bastos, in"Notas ao Código de Processo Civil", vol. III, Lisboa, 1972, pag. 247.
(2) Pereira Coelho, in"Direito das Sucessões", Lições policopiadas, Coimbra, 1958, pag. 167.
(3) Manuel de Andrade, in"Teoria Geral da Relação Jurídica", vol. II, Reimpresssão, Coimbra, 1992, pag. 337.