Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
38/14.0TBPCR.G1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: DIREITO DE PROPRIEDADE
ÁGUAS SUBTERRÂNEAS
INFILTRAÇÕES
SUBSOLO
PRÉDIO CONFINANTE
FORO ADMINISTRATIVO
NASCENTE
ÁGUAS PÚBLICAS
ÁGUAS PARTICULARES
BEM IMÓVEL
RELAÇÕES DE VIZINHANÇA
Data do Acordão: 06/01/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS - DIREITOS REAIS / DIREITO DE PROPRIEDADE / PROPRIEDADE DAS ÁGUAS.
Doutrina:
- Cândido de Pinho, As Águas no Código Civil, Livraria Almedina, 1985, 107 a 115.
- Guilherme Moreira, As Águas no Direito Civil Português, Livro I, Propriedade das Águas, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1960, 553 a 578.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, vol. III, Coimbra Editora, 1987, 324.
- Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 77.º, 406.
- Tavarela Lobo, Manual de Direito das Águas, Coimbra Editora, 1990, Vol. II, 71 a 77.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 204.º, N.º 1, AL. B), 334.º, 1305.º, 1344.º, N.º 1, 1348.º, 1349.º, 1360.º, 1386.º, N.º 1, AL. B), 1390.º N.ºS 1 E 2, 1394.º, N.º 2, 1396.º.
DECRETO-LEI N.º 226-A/2007, DE 31 DE MAIO: - ARTIGO 41.º, N.º 2.
LEI N.º 58/2005, DE 29 DE DEZEMBRO (LEI DA ÁGUA), QUE TRANSPÔS PARA O ORDENAMENTO JURÍDICO NACIONAL A DIRECTIVA N.º 2000/60/CE, DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, DE 23 DE OUTUBRO (DIRECTIVA QUADRO DA ÁGUA).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 25/05/82, BMJ 317/262, DE 19/03/2002 (PROC. Nº 02B421), E DE 13/01/2005 (PROC. Nº 04B4274), OS DOIS ÚLTIMOS ACESSÍVEIS EM WWW.DGSI.PT/JSTJ.
Sumário :
I - É reconhecido ao proprietário do solo o direito de proceder livremente à captação de águas subterrâneas, qualificadas pela lei como coisas imóveis (arts. 1305.º, 1344.º, n.º 1, 1386.º, n.º 1, al. b), e 204.º, n.º 1, al. b), todos do CC).

II - Consagra o art. 1394.º, n.º 2, do CC o princípio geral de livre exploração de águas subterrâneas ao estabelecer que a diminuição do caudal de qualquer água pública ou particular, em consequência da exploração de água subterrânea, não viola os direitos de terceiro, excepto se a captação se fizer por meio de infiltrações provocadas não naturais.

III - Esta última limitação só existe em relação às águas artificiais, i.e., as que, devido à intervenção do homem, foram artificialmente infiltradas no prédio por desvio de alguma corrente, nascente ou veio subterrâneo de prédio vizinho, por envolverem utilização e fruição indevida de elementos do solo que se situam para além dos materialmente incluídos no prédio.

IV - Revelando a matéria fáctica dada como provada que a redução do caudal dos poços existentes no prédio dos autores resultou do abaixamento do nível freático provocado pela abertura dos poços no prédio dos réus (situado num plano inferior e contíguo àquele), sem que, porém, essa captação de água, no subsolo do terreno destes últimos, tenha envolvido qualquer desvio de corrente, nascente ou veio do prédio vizinho, é de concluir que os réus se limitaram a exercer o direito de explorar águas subterrâneas no seu prédio, sem que, com essa actuação, tenham lesado direitos dos autores.

V - Neste âmbito, não cabe ao tribunal sindicar o cumprimento pelos réus das exigências administrativas aplicáveis à captação de águas no que diz respeito, nomeadamente, à observância ou inobservância dos requisitos a que estão sujeitos a pesquisa e a execução de poço ou furo, pertencendo antes tal competência, para assegurar e vigiar o cumprimento das referidas exigências, às autoridades administrativas.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I. Relatório:

AA e mulher BB instauraram a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra CC e mulher DD pedindo que:

a) se declarasse que os autores são proprietários e legítimos possuidores do prédio identificado em 1 º da p.i, condenando-se os réus a reconhecê-los como tal;

b) se declarasse que os autores são proprietários e legítimos possuidores das águas captadas no prédio identificado em 1º, condenando-se os réus a reconhecê-los como tal;

c) se declarasse que os réus são donos e legítimos possuidores do prédio rústico identificado em 25º da p.i;

d) fossem os RR condenados a taparem, de forma definitiva, os dois poços ilegais construídos no prédio de que são proprietários, a suas expensas.

Subsidiariamente, pediram, para o caso de não serem restituídas totalmente as águas captadas no prédio dos autores com a tapagem definitiva dos referidos poços dos réus, que:

a) os réus fossem condenados a taparem de forma definitiva os poços, licenciados ou não, que distem menos de 100 metros do novo poço que os autores poderão ter de perfurar, a suas expensas.

b) os réus fossem condenados a pagarem todas as despesas que resultarem das obras com a nova captação de água no prédio dos autores, relegando-se para liquidação a determinação do valor dada a incerteza quanto à necessidade da nova captação de água e montante das despesas.

  Para fundamentarem o pedido alegaram, em síntese, que procedem, há mais de 20 anos, à captação de águas subterrâneas, utilizando-as, designadamente, para rega agrícola e outros fins no prédio urbano com logradouro de que são donos, que confronta com um prédio dos réus, no qual estes realizaram, em 2012, obras de captação de água que reduziram o caudal disponível da captação dos autores.

      Contestaram os réus por impugnação.

    Procedeu-se a julgamento, após o que foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:

1. Pelo exposto, o Tribunal decide julgar a acção procedente e, em consequência, decide:

a) declarar que os Autores são proprietários e legítimos possuidores do prédio identificado no artigo 1º da p.i, condenando-se os RR. a reconhecê-los como tal;

b) declarar que os AA são proprietários e legítimos possuidores das águas captadas no prédio identificado no artigo 1 º da p.i., que foram objeto de licenciamento, condenando-se os RR. a reconhecê-los como tal;

c) declarar que os RR. são donos e legítimos possuidores do prédio rústico identificado no artigo 25º da p.i;

d) condenar os RR a proceder ao rebaixamento do poço AP1 (dos autores), em 1,50 metro, no prazo de 60 dias após o trânsito em julgado da presente decisão.

2. Custas a cargo dos RR.”


Inconformados, apelaram os réus.

O Tribunal da Relação de Guimarães julgou a apelação procedente e revogou, parcialmente, a decisão recorrida, absolvendo os réus do pedido quanto ao decidido em 1. al. d) e 2 da sentença recorrida.

           

Irresignados, recorreram os autores de revista.

     Na alegação apresentada deduziram, no que ora releva, as seguintes conclusões:

      «18 - Decorre do n.° 2 do artigo 1394° do Código Civil, "sem prejuízo do disposto no artigo 1396°, a diminuição do caudal de qualquer água pública ou particular, em consequência da exploração de água subterrânea, não constitui violação de direitos de terceiro, excepto se a captação se fizer por meio de infiltrações provocadas e não naturais."

19 - Salvo melhor e douta opinião, e nesse sentido vai a decisão de 1ª Instância a conduta dos ora Recorridos deve ser considerada Ilícita, porquanto estamos claramente face a um desvio de águas por infiltrações provocadas e não naturais, enquadrando-se assim a sua conduta na excepção à regra da liberdade exploratória do proprietário, consignada na parte final do n.° 2 do citado preceito legal.

20 - Encontra-se provado nos autos a relação de causalidade entre a diminuição e posterior falta de água e as obras de captação levadas a efeito no prédio contíguo aos dos Recorrentes - factos provados pontos 1.11, 1.12, 1.15, 1.16, 1.17, 1.18, 1.19, 1.20, 1.21 e1.22.

21 - Mais se provou que foram as perfurações levadas a efeito no prédio dos Recorridos que retiraram água do aquífero que também serve o poço dos Recorrentes, rebaixando artificialmente o nível freático local com a ajuda de drenos existentes no terreno - factos provados ponto 1.21.

22 - Demonstrado o nexo de causalidade entre as perfurações e diminuição do caudal de água dos Recorrentes, em consonância com a prova de que tal desvio de água ocorreu por rebaixamento artificial do nível freático local com a ajuda de drenos existentes no terreno, provada está, salvo melhor e douta opinião, a ilicitude da conduta dos RR.

23 - O Tribunal de 1ª Instância fundou a sua convicção, para além da posição assumida pelas partes nos autos, no relatório pericial constante dos autos e nos esclarecimentos prestados pelos Srs. peritos em sede de Audiência para tentativa de conciliação, exarados em acta.

25 - Tudo o atrás vertido devidamente ponderado, salvo melhor e douta opinião, deveria ser interpretado, como bem o fez a 1ª Instância de que a conduta dos ora Recorridos é ilícita, até por força, do douto Acórdão desse Supremo Tribunal de 19-03-2002 (in www.dgsi.pt) a que alude a douta Sentença de 1ª Instância.

26 - A entender-se, como entendeu o Venerando Tribunal da Relação que não estamos face a uma conduta ilícita, uma vez que, "o certo é que as alterações dos veios ou lençóis de freáticos existentes no prédio dos autores, não afectam o direito de propriedade às águas subterrâneas destes, porquanto não se consubstanciaram numa infiltração provocada. Na verdade, os réus apenas se limitaram a perfurar dentro do perímetro do seu prédio, não ultrapassando a linha vertical, pelo que não afectaram qualquer veio freático de prédio vizinho, que alimentasse o lençol existente no prédio dos autores, ou por ele passasse na direcção de outro."

27 - Sempre se colocaria, e por se tratar de facto alegado (28°, 29°, 30°, 37°, 38° da Petição inicial) e provado - (facto provado 1.9, 1.12, 1.18) a questão de a actuação ser ilícita por violação das exigências administrativas aplicáveis, designadamente o decreto-lei 226-A/2007, de 31 de Maio com as devidas alterações.

28 - Isto porque, decorre do artigo 41°, n.° 2, al. d) do citado diploma legal, "é observado o afastamento mínimo de 100 metros entre as captações de diferentes utilizadores de uma mesma massa de água subterrânea, podendo, quando tecnicamente fundamentado a ARH definir um limite diferente."

29 - Resultado provado nos autos que as perfurações efectuadas pelos ora Recorridos distam a cerca de 13 e 30 metros do poço já existente e devidamente licenciado para o efeito dos ora Recorrentes.

30 - Pelo que, a conduta dos ora Recorridos é também ela ilícita por violação das exigências administrativas aplicáveis, designadamente o decreto-lei 226-A/2007, de 31 de Maio com as devidas alterações, facto que não permite desde logo afastar a conduta ilícita, mesmo que, estivéssemos perante a conduta lícita, nos termos do artigo 1394° do Código Civil, o que não é, salvo melhor e douta opinião o caso dos autos».

Finalizaram, pedindo a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por outro que, julgando a acção procedente, condene o réu nos pedidos formulados na petição inicial.


O réu contra-alegou, defendendo a confirmação do acórdão recorrido.

       Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


       II. Fundamentos:

       De facto:

      Vêm provados os seguintes factos:

1. Os AA são donos e legítimos possuidores de um prédio misto, sito no lugar de …, freguesia de …, concelho de Paredes de Coura, denominado Casa de M…, com a área total de terreno de 1939 metros quadrados, composto de rés-do-chão, sótão, garagem - habitação e rossios - que confronta a norte com EE, do sul e poente com Levada, e do nascente com Estrada Nacional, inscrito a favor do A. marido, nas matrizes prediais urbanas da freguesia de …, sob os artigos 2...8 e 2...4 e matriz predial rústica sob o artigo 692º, e descrito a favor do mesmo na Conservatória do Registo Predial de Paredes de Coura, sob o n. 004…/01…2.

2. O confrontante EE é pai da ré mulher, sendo que esta e o réu marido são os actuais proprietários do referido prédio vizinho ao dos Autores.

3. Para irrigar os rossios e terreno de cultivo do prédio identificado em 1.1., os Autores fizeram há mais de 20 anos, muito antes da construção do prédio dos RR e das perfurações infra descritas realizadas também por estes últimos, duas perfurações neste prédio para captarem um veio de água subterrâneo, que revestiram com anilhas de cimento, tapadas por um tampo amovível também ele de cimento.

4. Tais obras de captura de água subterrânea denominada poços, têm respectivamente: o poço principal (denominado AP1 no relatório pericial) profundidade de 3,5 metros e o outro poço (AP2) profundidade de 1,5m, e está situado o primeiro nas seguintes coordenadas: latitude 41.903802, longitude 8.554986, destinando-se maioritariamente a fins de rega para agricultura.

5. O referido poço AP1 dista cerca de 9 metros da estrema que confina com o prédio dos RR.

6. Os autores utilizaram sempre tais águas para irrigação da terra que envolve a casa deles onde estão implantadas várias árvores de fruto, uma área de relva, e uma área de quintal com horta, e um terreno de cultivo de vários produtos agrícolas.

7. Os autores também utilizam essas águas para nomeadamente lavarem roupas, automóveis, e outros objectos que se possam lavar no exterior.

8. Os autores praticam os actos supra descritos há mais de 10, 15 e 20 anos, à vista de todas as pessoas, sem oposição de quem quer que seja, de forma ininterrupta, na firme convicção de que são os legítimos proprietários das referidas águas subterrâneas captadas e de que não lesam direitos de terceiros.

9. Os autores registaram a sua captação de águas subterrâneas no ano de 2010, junto da Agência Portuguesa do Ambiente, ARH Norte, ao qual foi atribuído o n.º de processo 14…7 (documentos n.ºs 2,3 e 4 juntos com a p.i.).

10. O prédio dos RR é contíguo ao prédio dos autores pelo lado norte deste prédio e tem uma quota inferior à do prédio destes de cerca de 1,80 metros, diferença medida junto ao anexo dos Autores.

11. No final do mês de Agosto de 2012, os réus perfuraram o seu referido prédio a cerca de 3 metros do prédio dos AA, criando um poço que, após rebaixamento da cota de terreno, juntamente com a execução de um sistema de drenagem em descarga permanente por acção da gravidade, baixa artificialmente o nível freático na captação do poço dos AA.

12. A referida perfuração - poço - no prédio dos réus (denominada de RP2 no relatório pericial) foi anilhada e aposta uma tampa que está enterrada e que dista a cerca de 3 metros da estrema poente do prédio dos AA, pelo que dista a cerca de 12 metros do poço dos AA.

13. O terreno dos RR está num plano inferior ao dos autores, sendo que o referido poço dos RR (RP2) relativamente ao poço dos AA (AP1) segue uma direcção noroeste - sudeste.

14. O terreno do prédio dos AA é formado por decomposição das rochas graníticas que lhe dão origem, sendo que no local existe um aquífero em solo granítico que alberga o aquífero superficial dito livre, onde estão localizadas todas as captações identificadas na peritagem e que alimenta as mesmas, sendo que o fluxo subterrâneo de água neste local escoa segundo uma direcção SE-NW e de sul para norte.

15. As águas captadas pelos autores são pouco profundas, sendo que a criação de uma outra perfuração em plano inferior e a cerca de 12 metros do poço (AP1 dos AA) é passível de provocar um abaixamento do nível freático, alterando localmente a direcção do fluxo subterrâneo, criando um conflito hidráulico com as captações já existente na área contemplada.

16. O poço RP2 dos RR baixa artificialmente o nível freático na captação do poço dos AA.

17. Nos finais de Setembro de 2012, os RR abriram outra perfuração no seu terreno, em frente ao poço já referido que abriram a 3 metros da estrema do prédio dos AA.

18. Este segundo poço dos RR (denominado de RP1 no relatório pericial) situa-se a uma distância de cerca de 30 metros do poço AP1 existente no prédio dos AA e localiza-se relativamente a este segundo uma direcção NW - SE.

19. Este segundo poço (RP1) localiza-se em frente ao primeiro poço dos RR (RP2), na direcção oeste, captando a mesma massa de água subterrânea que é captada pelo poço dos AA, sendo que tal situação implica o desvio da água que promove o rebaixamento do nível freático reduzindo a altura de água no poço dos AA.

20. Os dois poços dos RR comunicam entre si através de cano soterrado.

21. As captações dos RR retiram água do aquífero que também serve o poço dos requerentes, rebaixando o nível freático local com ajuda dos drenas existentes no terreno, existindo uma relação de causalidade entre a diminuição do volume de água do poço dos AA e as obras de perfuração existentes no prédio dos AA.

22. O desvio da corrente ou veio subterrâneo captado no prédio dos autores através dos poços perfurados no prédio dos RR tem carácter definitivo.

23. Para além das duas perfurações efectuadas nos terrenos dos RR supra mencionadas existem pelo menos, mais duas: um poço denominado RP3 no relatório pericial e um outro localizado na extrema sul do prédio do R. que se encontra distante da zona de conflito em análise.

24. A reposição do caudal disponível nas captações de água dos AA, existente no seu prédio consegue-se, em alternativa à solução proposta a fls. 12 do relatório pericial (fls. 168 dos autos), através do rebaixamento do poço AP1 (dos autores), em 1,50 metro, (solução que reporia a situação do caudal disponível em termos de capacidade de armazenamento deste poço dos AA, existente antes da realização das obras por parte dos Réus, uma vez que foram estas obras que provocaram a diminuição do referido caudal),estimando que o custo desta solução ascenderá a cerca de 2.000,00 €.


De direito:

Das conclusões da alegação de recurso, delimitadoras do seu objecto, emerge como questão essencial a decidir saber se a captação de águas realizada pelos réus em terreno de que são proprietários, contíguo ao prédio dos autores, é ilícita à luz do disposto no artigo 1394º do Código Civil.

As Instâncias divergiram na resposta a esta questão.

A 1ª instância, considerou ilícita a captação de águas realizada pelos réus no seu terreno e, julgando a acção inteiramente procedente, condenou os réus, ora recorridos, «a proceder ao rebaixamento do poço AP1 (dos autores), em 1,50 metro, no prazo de 60 dias após o trânsito em julgado da sentença».

O Tribunal de recurso revogou aquele segmento condenatório da sentença, por considerar a actuação dos réus conforme com o regime legal de captação de águas subterrâneas.

Como é sabido, o artigo 1305º do Código Civil descreve o conteúdo do direito de propriedade como o direito de o proprietário gozar de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dento dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas.

No tocante aos bens imóveis, o artigo 1344º nº 1 do Código Civil consagra a ideia da inexistência de limites materiais ao direito de propriedade, para além dos relativos às suas estremas horizontais, traduzida na expressão «qui dominus est soli, dominus est usque ad coelum et usque ad inferus». Na verdade, dipõe aquele preceito que “a propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico.

Este direito, que permite ao seu titular exigir que terceiros se abstenham de invadir a sua esfera jurídica, quer usando ou fruindo a coisa contra a sua vontade, quer praticando actos que perturbem o seu exercício, sofre, no âmbito do direito privado, as restrições que decorrem das relações de vizinhança, podendo citar-se, a título de exemplo, as constantes dos artigos 1348º, 1349º e 1360º do Código Civil.

No que diz respeito às águas existentes em prédios particulares, qualificadas pela lei como coisas imóveis, (artigos 204º nº 1 b) e 1386º nº 1 al. b) do Código Civil), reconhece-se ao proprietário do solo o direito de proceder livremente à captação de águas subterrâneas.

Concretizando o direito conferido ao proprietário de abrir no seu prédio minas ou poços e fazer escavações (citado artigo 1348º), consagrou o artigo 1394º do Código Civil, no seu nº 2, o princípio geral da livre exploração de águas subterrâneas ao estabelecer que a diminuição do caudal de qualquer água pública ou particular, em consequência da exploração de água subterrânea, não viola os direitos de terceiro,excepto se a captação se fizer por meio de infiltrações provocadas não naturais.

De forma lapidar se escreceu na Revista de Legislação e Jurisprudência Ano 77º, pág, 406, a propósito da limitação em causa, já existente no domínio da lei anterior: “Claro que as águas subterrâneas não aparecem no sub-solo por geração espontânea. São também produto de infiltrações, que pouco a pouco se vão localizando para formarem os veios subterrâneos. Mas uma coisa são as infiltrações naturais, outra as infiltrações provocadas por obra do homem, dando-se a aparência de naturais a águas doutra proveniênciae que apenas foram coadas por alguns metros de terra. Estas, e porque não são produto de infiltrações naturais, não perdem a natureza que tinham, mormente quando o seu aproveitamento implicar absorção de águas doutra proveniência, sujeitas a outro regime, e afectando-se direitos de terceiro”.

Também  Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, vol. III, Coimbra Editora, 1987, pág. 324), procurando esclarecer o sentido normativo do segmento final do nº 2 do artigo 1394º, escreveram que “As águas visadas com a faculdade geral conferida ao proprietário são as dos veios que naturalmente atravessam o prédio, as que nele se acham estagnadas ou armazenadas, ou as que nele se infiltraram naturalmente – não as que no prédio foram artificialmente infiltradas, por desvio de alguma corrente, alguma nascente ou veio subterrâneo de prédio vizinho”.

Esta tem sido a posição da doutrina, amplamente citada no acórdão recorrido (Tavarela Lobo, Manual de Direito das Águas, Coimbra Editora, 1990, Vol. II, pag. 71 a 77, Guilherme Moreira, As Águas no Direito Civil Português, Livro I, Propriedade das Águas, 2ª edição, Coimbra Editora, 1960, pag. 553 a 578, Cândido de Pinho, As Águas no Código Civil, Livraria Almedina, 1985, pag. 107 a 115), e também da jurisprudência, da qual destacamos os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25/05/82, BMJ 317/262, de 19/03/2002 (proc. nº 02B421), e de 13/01/2005 (proc. nº 04B4274), os dois últimos acessíveis em www.dgsi.pt/jstj.

À luz do disposto no artigo 1394º é, por conseguinte, lícita a captação de águas subterrâneas, seja por meio de poços ordinários ou artesianos, seja por meio de minas ou quaisquer escavações, a não ser que afecte os direitos que terceiro haja adquirido por justo título (nº 1) situação que se verifica quando ocorre a desintegração das águas do domínio do prédio e a aquisição do direito às mesmas por terceiro, com base em qualquer meio legítimo de adquirir a propriedade de coisas imóveis ou de constituir servidões (nº 1 do artigo 1390º do Código Civil) – ou que a captação seja feita por meio de infiltrações provocadas não naturais (nº 2).

Esta última limitação só existe, porém, em relação às águas artificiais, devidas a intervenção do homem, por contraposição às águas naturais, que estão na origem da formação de bolsas e veios. Só a exploração de águas resultantes do desvio artificial que se encontrem ou passem em prédio vizinho está afastada do princípio da livre exploração das águas por envolver utilização e fruição indevida de elementos do solo que se situam para além dos materialmente incluídos no respectivo prédio.

Volvendo ao caso concreto, importa considerar a seguinte facticidade provada:

3. Para irrigar os rossios e terreno de cultivo do prédio identificado em 1.1., os Autores fizeram há mais de 20 anos, muito antes da construção do prédio dos RR e das perfurações infra descritas realizadas também por estes últimos, duas perfurações neste prédio para captarem um veio de água subterrâneo, que revestiram com anilhas de cimento, tapadas por um tampo amovível também ele de cimento.

4. Tais obras de captura de água subterrânea denominada poços, têm respectivamente: o poço principal (denominado AP1 no relatório pericial) profundidade de 3,5 metros e o outro poço (AP2) profundidade de 1,5m.

10. O prédio dos RR é contíguo ao prédio dos AA pelo lado norte deste prédio e tem uma quota inferior à do prédio destes de cerca de 1,80 metros, diferença medida junto ao anexo dos Autores.

11. No final do mês de Agosto de 2012, os RR perfuraram o seu referido prédio a cerca de 3 metros do prédio dos AA, criando um poço que, após rebaixamento da cota de terreno, juntamente com a execução de um sistema de drenagem em descarga permanente por acção da gravidade, baixa o nível freático na captação do poço dos AA.

12. A referida perfuração - poço - no prédio dos RR (denominada de RP2 no relatório pericial) foi anilhada e aposta uma tampa que está enterrada e que dista a cerca de 3 metros da estrema poente do prédio dos AA, pelo que dista a cerca de 12 metros do poço dos requerentes.

13. O terreno dos RR está num plano inferior ao dos AA, sendo que o referido poço dos RR (RP2) relativamente ao poço dos AA (AP1) segue uma direcção noroeste - sudeste.

14. O terreno do prédio dos AA é formado por decomposição das rochas graníticas que lhe dão origem, sendo que no local existe um aquífero em solo granítico que alberga o aquífero superficial dito livre, onde estão localizadas todas as captações identificadas na peritagem e que alimenta as mesmas, sendo que o fluxo subterrâneo de água neste local escoa segundo uma direcção SE-NW e de sul para norte.

15. As águas captadas pelos AA são pouco profundas, sendo que a criação de uma outra perfuração em plano inferior e a cerca de 12 metros do poço (AP1 dos AA) é passível de provocar um abaixamento do nível freático, alterando localmente a direcção do fluxo subterrâneo, criando um conflito hidráulico com as captações já existente na área contemplada.

16. O poço RP2 dos RR baixa o nível freático na captação do poço dos requerentes.

17. Nos finais de Setembro de 2012, os RR abriram outra perfuração no seu terreno, em frente ao poço já referido que abriram a 3 metros da estrema do prédio dos AA.

18. Este segundo poço dos RR (denominado de RP1 no relatório pericial) situa-se a uma distância de cerca de 30 metros do poço AP1 existente no prédio dos requerentes e localiza-se relativamente a este segundo uma direcção NW - SE.

19. Este segundo poço (RP1) localiza-se em frente ao primeiro poço dos RR (RP2), na direcção oeste, captando a mesma massa de água subterrânea que é captada pelo poço dos AA, sendo que tal situação implica o desvio da água que promove o rebaixamento do nível freático reduzindo a altura de água no poço dos AA.

20. Os dois poços dos RR comunicam entre si através de cano soterrado.

21. As captações dos RR retiram água do aquífero que também serve o poço dos AA, rebaixando artificialmente o nível freático local com ajuda dos drenos existentes no terreno, existindo uma relação de causalidade entre a diminuição do volume de água do poço dos AA e as obras de perfuração existentes no prédio dos requeridos.

22. O desvio da corrente ou veio subterrâneo captado no prédio dos requerentes através dos poços perfurados no prédio dos RR tem carácter definitivo.

23. Para além das duas perfurações efectuadas nos terrenos dos RR supram mencionadas existem pelo menos, mais duas: um poço denominado RP3 no relatório pericial e um outro localizado na extrema sul do prédio do R. que se encontra distante da zona de conflito em análise.

24. A reposição do caudal disponível nas captações de água dos AA, existente no seu prédio consegue-se, em alternativa à solução proposta a fls. 12 do relatório pericial (fls. 168 dos autos), através do rebaixamento do poço AP1 (dos autores), em 1,50 metro, (solução que reporia a situação do caudal disponível em termos de capacidade de armazenamento deste poço dos AA, existente antes da realização das obras por parte dos Réus, uma vez que foram estas obras que provocaram a diminuição do referido caudal),estimando que o custo desta solução ascenderá a cerca de 2.000,00 €.

Perante esta facticidade, acompanhamos o acórdão recorrido quando nele se afirma que, em consequência da abertura de dois dos poços, os poços situados no prédio dos autores ficaram com um nível de captação de água inferior à que tinham antes das perfurações levadas a cabo pelos réus, como resulta das respostas aos pontos de facto 15, 16, 18, 19, 20, 21, 22 elencados. “O certo é que as alterações nos veios ou lençóis freáticos existentes no prédio dos réus, mesmo atingindo o nível de água nos poços situados no prédio dos autores, não afectam o direito de propriedade às águas subterrâneas destes, porquanto não se consubstanciaram numa infiltração provocada. Na verdade, os réus apenas se limitaram a perfurar dentro do perímetro do seu prédio, não ultrapassando a linha vertical, pelo que não afetaram qualquer veio freático de prédio vizinho, que alimentasse o lençol existente no prédio dos autores, ou por ele passasse na direcção de outro”.

Efectivamente, aqueles factos revelam que o prédio dos réus é contíguo ao prédio dos autores pelo lado norte deste último e que o fluxo subterrâneo de água no local escoa segundo uma direcção SE-NW e de sul para norte, ou seja, no sentido do prédio dos réus, que tem uma cota inferior à do prédio dos autores, ficando, por isso, num plano inferior.

A redução do caudal dos poços existentes no prédio dos autores resultou do abaixamento do nível freático provocado pela abertura dos poços no prédio dos réus. Porém, esta captação de águas no subsolo do terreno dos réus não envolveu, ao contrário do que é defendido pelos autores, qualquer desvio de corrente, nascente ou veio do prédio vizinho pertencente aos autores, uma vez que as águas subterrâneas em questão resultam de infiltração natural no próprio terreno dos réus.

Com efeito, resulta dos factos provados (pontos de facto 14, 15 e 21) que o terreno do prédio dos autores é formado por decomposição das rochas graníticas que lhe dão origem, sendo que no local existe um aquífero em solo granítico que alberga o aquífero superficial dito livre, onde estão localizadas todas as captações identificadas na peritagem e que alimenta as mesmas, nestas se incluindo as efectuadas pelos autores e pelos réus. As captações dos réus retiram água do aquífero que também serve o poço dos autores.

Donde as águas captadas quer pelos autores, quer pelos réus, dentro do perímetro dos respectivos prédios, provêm do mesmo aquífero, o qual extravasa os limites materiais, na perpendicular, de cada um dos prédios.

O desvio a que se referem os factos provados mais não é do que uma maior afluência do fluxo de água, naturalmente infiltrada no subsolo do prédio dos réus, tal como no dos autores, proporcionada pela sua morfologia e facilitada, após a abertura dos poços para capatação de águas no prédio dos réus, por efeito da cota mais baixa e da orientação do fluxo aquífero que abrange os dois prédios contíguos. Isso mesmo resulta da peritagem realizada nos autos.

Esta situação não se confunde com a infiltração artificial ou provocada por intervenção, directa ou indirecta, dos réus com a finalidade de conduzirem artificialmente ou captarem sub-repticiamente águas de um aquífero que apenas existisse no subsolo do terreno dos autores. Acresce que o sistema de drenagem instalado pelos réus nasce do primeiro poço que abriram para o segundo e não na zona confinante dos dois prédios em causa, aparentando ser uma medida de gestão das águas captadas, sem embargo de provocar uma diminuição no caudal de captação dos autores.

No caso em apreço, os autores provaram que a abertura dos poços pelos réus causaram uma diminuição do caudal do seu poço derivada do facto de o prédio daqueles se situar num nível inferior ao seu.

Não provaram, contudo, nem sequer alegaram, que os réus tivessem provocado o desvio para o seu terreno, que é contíguo, das águas que se encontram ou transitam pelo prédio dos autores. E só nessa situação estaria vedado aos réus o direito de explorar livremente as águas subterrâneas do seu prédio, posto que se não verifica que sobre estas recaia direito de terceiro adquirido por justo título.

O princípio da livre exploração das águas subterrâneas, de harmonia com o estabelecido no mencionado artigo 1394º, apenas tem como limites as restrições ao aproveitamento das águas estabelecidas no artigo 1396º e o abuso de direito consagrado no artigo 334º, todos do Código Civil. E os autos não dispõem de elementos fácticos que o demonstram.

Consideramos, assim, que os réus, com a sua actuação, exerceram o direito de explorar águas subterrâneas no seu prédio ao abrigo do disposto no artigo 1394º do C. Civil, o que fizeram sem lesar direitos de terceiro validamente constituídos.

Resta referir que não cumpre sindicar nestes autos o cumprimento pelos réus das exigências administrativas aplicáveis à captação de águas no que diz respeito, nomeadamente, à observância ou inobservância dos  requisitos a que estão sujeitos a pesquisa e a execução de poço ou furo previstas no nº 2 do artigo 41º do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de Maio, diploma que veio reformular o regime de utilização dos recursos hídricos na sequência da Lei n.º 58/2005, de 29 de Dezembro (Lei da Água), que transpôs para o ordenamento jurídico nacional a Directiva n.º 2000/60/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Outubro (Directiva Quadro da Água), e estabeleceu as bases para a gestão sustentável das águas e o quadro institucional para o respectivo sector, assente no princípio da região hidrográfica como unidade principal de planeamento e gestão, tal como imposto pela mencionada directiva.

E tal aplica-se, concretamente, à exigência de um afastamento mínimo de 100m entre as captações de diferentes utilizadores de uma mesma massa de água subterrânea, limite que, quando tecnicamente fundamentado, pode ser diferentemente definido pela administração hidrográfica territorialmente competente, abreviadamente designada por ARH, cabendo às autoridades administrativas competentes assegurar e vigiar o cumprimento desta e das demais exigências prescritas neste âmbito.


III. Decisão:

Nesta conformidade, acorda-se no Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.


Lisboa, 1 de Junho de 2017


Fernanda Isabel Pereira (Relatora)

Olindo Geraldes

Nunes Ribeiro