Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
156/16.0JAAVR.P1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: EDUARDO LOUREIRO
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
PENA DE PRISÃO
CULPA
INCONSTITUCIONALIDADE
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 10/27/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I - Acusado por crime de violação p. e p. pelo art. 164.º, n.º 1, al. a), do CP, na redacção da Lei n.º 59/2007, de 15-03, foi o arguido absolvido em 1ª instância por falência de prova.
II - Em recurso, o tribunal da Relação alterou a matéria de facto e condenou o arguido pela autoria material de crime de coacção sexual p. e p. pelo art. 163.º, n.º 1, do CP na pena de quatro anos de prisão, tudo conforme peticionado pelo recorrente Ministério Público.
III - De tal acórdão interpôs o arguido recurso para o STJ.
IV - Limitou-o, licitamente – art. 402.º, n.º 1 e 403.º, n.º 1 e 2, al. c), do CPP –, ao segmento da culpabilidade – art. 368.º, do CPP e 424.º n.os 1 e 2, do CPP –, apontando a existência de erro notório na apreciação da prova – art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP – e a comissão da nulidade prevista no art. 379.º, n.º 1, al. d), do CPP – esta, por preterição da comunicação prevista no art. 358.º, n.os 3 e 1, do CPP –, e pediu a reposição da decisão de facto proferida em 1ª instância e o decretamento, como aí, da sua absolvição.
V - O acórdão do TC n.º 595/2018, in DR-I de 11-12-2018, declarou a «inconstitucionalidade [com força obrigatória geral] da norma que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovadoramente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos, constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, por violação do artigo 32.º, n.º 1, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2 da Constituição»
VI - Aparentemente irrestrita, mas presente a fundamentação do aresto, tem tal declaração de ser interpretada no sentido de só se referir ao segmento do acórdão do Tribunal da Relação que dispõe sobre a determinação da sanção – art. 369.º e 424.º, n.os 1 e 2, do CPP –, que não também ao que decide sobre a culpabilidade.
VII - Limitada, como referido, a impugnação à questão da culpabilidade e inexistente, nessa parte, obstáculo de constitucionalidade, não é o recurso admissível, por irrecorribilidade, não tomando o STJ conhecimento do seu objecto, nos termos das disposições conjugadas dos art. 399.º, 400.º n.º 1, al. e), 432.º, n.º 1, al. b), 420.º, n.º 1, al. b) e 414.º, n.os 2 e 3, do CPP.
Decisão Texto Integral:



Autos de Recurso Penal
Proc. n.º 156/16.0JAAVR.P1.S1
5ª Secção

acórdão
Acordam em conferência os juízes na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:

I. relatório.
1. Julgado no PCC n.º 156/16……… pelo Tribunal Colectivo do Juiz …. do Juízo Central Criminal ………, foi o arguido AA absolvido por acórdão de 20.10.2020 da prática de um crime de violação p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.os 14º n.º 1, 26º n.º 1 e 164º n.º 1 al.ª a) do Código Penal (CP) [1] por que vinha acusado pelo Ministério Público.

2. Discordante, o Ministério Público recorreu, de facto e de direito, para o Tribunal da Relação …… (TR…).
Apontou a viciação da decisão de facto por erro notório na apreciação da prova previsto no art.º 410º n.º 2 al.ª c) do Código de Processo Penal (CPP) [2].
E pronunciou-se pela alteração da matéria de facto e pela condenação do arguido no contexto do crime de coacção sexual p. e p. pelo art.º 164º n.º 1 do CP [3].

3. O TR…, em acórdão de 24.2.2021, começando por julgar procedente a arguição do erro-vício do erro notório na apreciação da prova, alterou a decisão de facto mediante o aditamento ao provado dos factos que a seguir vão destacados a sublinhado, anteriormente tidos como não provados:
«1. No dia 01-04-2016, cerca das 21h00, BB, acompanhada da sua mãe CC e da sua irmã DD, dirigiram-se ao estabelecimento comercial de diversão noturna, denominado ……., sito …….., para assistirem a participarem no evento de "karaoke" que ali iria ter lugar.
2. A BB, permaneceu no local durante algumas horas, convivendo com os amigos.
3. No local mencionado em 1., encontrava-se o arguido AA que a ofendida havia conhecido na tarde desse mesmo dia, na casa do seu avô materno, e com o qual havia trocado apenas algumas palavras.
4. No referido espaço, a ofendida não trocou qualquer palavra ou interagiu com o arguido.
5. Por volta das 02h30, o evento do "Karaoke" que estava a decorrer, no referido estabelecimento, terminou, pelo que a BB, cerca das 02h35, resolveu abandonar o local e regressar a sua casa, sita em …… .Com tal intento saiu, dirigiu-se junto da sua bicicleta e iniciou o percurso até á sua residência.
6. Quando a ofendida se aproximou da Ponte …….., pelas 03h20, ao iniciar a travessia da ponte, foi abordada pelo arguido AA que lhe surgiu no caminho mesmo à sua frente, e afirmou "temos umas contas a ajustar".
7. O arguido AA agarrou em ambas as mãos da ofendida e prendeu-lhas atrás das costas, com as próprias mãos, enrolando uma corda á volta dos pulsos da ofendida, e deu-lhe um nó, para evitar que a mesma fugisse.
8. Mantendo a ofendida com ambas as mãos atadas, arrastou-a até a um local com vegetação.
9. No referido local, o arguido manteve a ofendida deitada no chão, com os pulsos amarrados, levantou-lhe a camisola e contra a vontade da ofendida, começou a lamber-lhe os seios e a sugar-lhe os mamilos, ao mesmo tempo que a ofendida gritava por socorro e se debatia contra o arguido, tendo o arguido apertado o pescoço da ofendida e puxado os seus cabelos.
10. Quando terminou tais práticas sexuais, contra a vontade da ofendida, o arguido desatou o nó da corda que prendia os pulsos da ofendida, tendo esta alcançado a sua bicicleta, fugindo, de imediato, do local e do alcance do arguido.
11. No dia 02-04-2016, cerca das 19h45m, a BB apresentava as seguintes lesões, que lhe determinaram um período de doença de 5 dias.
A) - Ao nível da superfície corporal em geral:
I - Tórax - escoriação na metade distal da face posterior do hemitórax direito, medindo 1cmX0,8cm,
II -Abdómen - várias escoriações dispersas pelas regiões umbilical e inguinal direita, algumas transversais e outras obliquas, a maior com 5,5cmX1cm; várias escoriações lineares e obliquas na porção distal do epigastro ocupando uma área com 4cmX3,5cm; várias escoriações abrangendo o hipocôndrio e flanco direitos, algumas parcelas entre si e outras obliquas, ocupando uma área de 31cmX11cm, sugestivas de lesões de arrastamento;
III - Membro superior direito - equimose avermelhada no bordo medial do terço distal do antebraço, medindo 1cmX0,5cm;
IV - Região lombo-sagrada - várias escoriações na região sagrada transversais, ocupando uma área com 9cmX3cm, mediando a maior 3cmX0,2cm;
V - Região nadegueira - várias escoriações na metade superior da nádega direita, transversais, a maior com 6,5cmX0,7cm;
B) - Ao nível da região anal e peri-anal - Marisca às 12 horas - achado de etiologia multifatorial, de caráter não recente.
C) - Ao nível da região genital e peri-genital - Membrana himenial carnuda e flácida de cor rosa pálido e de forma anular, com altura máxima de 6mm às 3 e 6 horas, visualizando-se duas soluções de continuidade traumáticas completas às 3 e 6 horas, de bordos coaptáveis, não sangrentas, ou seja, de características não recentes. Presença de duas pequenas zonas vermelhas de aspeto hemorrágico, a maior com 2mm a nível da vertente vaginal da membrana himenial, entre as três e as 6 horas.
12. As lesões descritas no ponto 11- A), I), II), III), IV) e V) foram consequência de conduta levada a cabo pelo arguido.
13. O arguido AA, ao levar a cabo a conduta descrita, com o recurso à força física e contra a vontade da vítima, aproveitando-se da diminuída capacidade em que esta se encontrava para se opor ou resistir aos seus comportamentos em virtude de estar por si manietada, agiu com o intuito concretizado de limitar a liberdade daquela e subjugá-la à sua vontade, colocando-a na impossibilidade de fugir pelo uso da força, tudo com vista a satisfazer os seus instintos sexuais e libidinosos, o que representou.
14. Sabia o arguido AA, conhecedor do carácter sexual da sua conduta que, ao atuar da forma descrita, com recurso à força física, mais se aproveitando da diminuída capacidade em que a vítima se encontrava, circunstância que igualmente conhecia, ofendia a dignidade e liberdade de autodeterminação sexual de BB.
15. Agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e criminalmente punida.
16. O arguido respondeu e foi condenado: a) em 22-10-2003 (decisão transitada em julgado em 06-11-2003), pela prática, em 18-12-2002, de crime de abuso sexual de criança, no âmbito do processo comum coletivo nº 659/02……, tendo-lhe sido aplicada pena de 3 (três) anos e 8 (oito) meses de prisão; b) em 18-05-2004 (decisão transitada em julgado em 02-11-2004), pela prática, em 07-07-1999, de crime de coação sexual, no âmbito do processo comum coletivo nº 329/99……., tendo-lhe sido aplicada medida de segurança de internamento, pelo período mínimo de 3 (três) anos; c) em 21-12-2012 (decisão transitada em julgado em 06-02-2013), pela prática, em 16-05-2012, de crime de furto qualificado na forma tentada, no âmbito do processo comum singular nº 17/12……, tendo-lhe sido aplicada pena de 6 (seis) meses de prisão, suspensa por 1 (um) ano, suspensão que veio a ser revogada, tendo o arguido cumprido a correspondente pena de prisão efetiva; d) em 20-03-2014 (decisão transitada em julgado em 28-04-2014), pela prática, em 01-03-2014, de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, no âmbito do processo sumário nº 134/14……., tendo-lhe sido aplicada pena de multa e pena de proibição de conduzir veículos motorizados, sendo que, a pena de multa foi convertida em prisão subsidiária, que o arguido cumpriu; e) em 03-12-2015 (decisão transitada em julgado em 15-01-2016), pela prática, em 01-11-2015, de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, no âmbito do processo sumário nº 805/15……., tendo-lhe sido aplicada pena de 3 (três) meses de prisão, suspensa por 1 (um) ano e pena de proibição de conduzir veículos motorizados, penas essas que foram declaradas extintas, aquela nos termos do artigo 57º do Código Penal e esta, pelo cumprimento; f) em 12-06-2015 (decisão transitada em julgado em 29-02-2016), pela prática, em 28-04-2013, de crime de violação, no âmbito do processo comum singular nº 136/13………, tendo-lhe sido aplicada pena de 5 (cinco) anos de prisão; g) em 19-12-2016 (decisão transitada em julgado em 09-02-2017), pela prática, em 14-01-2016, de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, no âmbito do processo comum singular nº 22/16……, tendo-lhe sido aplicada pena de 7 (sete) meses de prisão, suspensa por 1 (um) ano e pena de proibição de conduzir veículos motorizados, penas essas que foram declaradas extintas, aquela nos termos do artigo 57º do Código Penal e esta, pelo cumprimento [[4]].
17. O desenvolvimento psicossocial do arguido decorreu no agregado de origem, numa prol de 6, caracterizado como disfuncional, marcado por carências económicas e pela problemática etílica dos progenitores. O progenitor desenvolvia atividades ligadas à pesca, sazonalmente na pesca de arrasto e na recolha de lenha, a progenitora surda-muda, dedicava-se às lides domésticas de forma pouco responsável. Este contexto de precariedade verificava-se também nas condições de habitabilidade, residindo o agregado nuns anexos de tijolos desprovidas das necessárias condições de higiene e segurança, sem eletricidade e água da rede pública [[5]].
18. O arguido abandonou o sistema de ensino pelos 16 anos de idade, tendo unicamente completado o 1º ciclo do sistema de ensino, tendo apresentado acentuadas dificuldades de aprendizagem, contudo posteriormente integrou duas formações profissionais, uma de jardinagem e outra de soldadura, todavia as experiências laborais decorrentes destas formações revelaram-se incipientes. Laborou no setor das pescas, com o apoio do seu padrinho, o qual sempre se mostrou um elemento organizador do arguido, não só enquanto empregador, mas também na supervisão e orientação das suas rotinas [[6].
19. No período que antecedeu a sua reclusão, o arguido integrava o seu agregado familiar de origem, constituído pelo seu progenitor e 3 irmãos, sendo que a progenitora se encontrava internada num lar de idosos. O referido agregado reside numa habitação térrea, anexos de tijolo, sem WC, sem condições de habitabilidade e conforto, sem eletricidade, sem água potável, sem condições de higiene, sita na morada constante nos autos. A nível económico nenhum dos elementos do agregado desenvolvia atividade laboral regular, acabando o arguido por ser aquele que mais contribuía, o qual se encontrava a laborar de forma irregular no setor da pesca, atividade que desenvolvia principalmente no verão, auferindo um rendimento mensal equivalente ao salário mínimo nacional. Após o período estival, dedicava-se à apanha de míscaros que comercializava junto à estrada, bem como exercia de forma pontual atividade laboral no setor da construção civil, sempre que era solicitado. Encontrando-se maioritariamente desocupado, no seu tempo livre, convivia maioritariamente com indivíduos referenciados por comportamentos desviantes. A situação económica do agregado familiar é percecionada como desequilibrada, subsistindo à base da pensão do progenitor, da pensão de invalidez do irmão no valor de €250 e expedientes que apareçam. O referido agregado, manifesta intenção de apoiar e acolher o arguido, quer em saídas jurisdicionais, quer me liberdade condicional. No meio vicinal do agregado familiar, o arguido é conhecido bem como a atual situação jurídico penal, contudo não são referenciados sentimentos de rejeição [[7]].
20. O arguido deu entrada, inicialmente, no Estabelecimento Prisional ……. em 07.06.2016, transferido definitivamente para o Estabelecimento Prisional …… em 18.07.2016, à ordem do processo 136/13……. .
Possui vários registos disciplinares, designadamente punido em 01.06.2017 por agressão contra recluso e em 02-08-2017 por apreensão de telemóvel e estupefaciente [[8]].».

E, subsumindo, como pretendido pelo Ministério Público, a conduta do Recorrente na previsão do crime de coacção sexual p. e p. pelo art.º 163º n.º 1 do CP, na redacção da Lei n.º 59/2007, de 15.3, condenou-o na pena de 4 anos de prisão, tudo conforme melhor descrito no dispositivo, que segue transcrito:  
«Pelo exposto, acordam os juízes da …. Secção Criminal do Tribunal da Relação ……. em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, como consequência do reconhecimento da verificação do vício decisório previsto no art.º 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP (erro notório na apreciação da prova), determinam:
a) A alteração da decisão recorrida em matéria de facto, procedendo-se ao aditamento da matéria factual atrás mencionada ao elenco dos factos provados;
b) A condenação do arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de coação sexual, p. e p. pelo art.º 163.º, n.º 1 do Código Penal (na redação em vigor à data dos factos), na pena de 4 anos de prisão efetiva.


Sem custas do presente recurso (cfr. o art.º 513.º, n.º 1, do CPP, a contrario sensu).».
 
4. Inconformado ora o arguido AA – doravante, Recorrente –, recorre desse acórdão – doravante, Acórdão Recorrido –, para este Supremo Tribunal de Justiça (STJ), extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões e rematando com o seguinte pedido:
«A - Uma vez elencadas as razões pelas quais deve o presente Recurso ser admitido nos arts. 1.º a 13.º, deixa-se arguida a inconstitucionalidade do disposto dos arts. 400.º, n.º 1, al. e) e 423.º, n.º 1, al. b), do CPP, no que obsta à não admissibilidade de recurso de acórdãos proferidos pela Relação quando seja aplicada pena de prisão não superior a 5 anos, conforme douta Jurisprudência assim o assente, mormente nos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 412.2015 e 595.2018.
B - Por consubstanciarem uma clara violação do direito ao recurso e garantias do direito de defesa, consagrados nos preceitos dos art. 32.º, n.º 1, conjugado com o art. 18.º, n.º 2, ambos da CRP, revela-se imperioso concluir pela inconstitucionalidade das normas supra e, deste modo, admitir o presente Recurso, possibilitando que o arguido exerça os seus direitos e reaja a uma condenação.
C - Permitimo-nos versar o presente Recurso para o digníssimo Supremo Tribunal de Justiça nos termos do disposto no art. 434.º ex vi 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, atendendo ao erro notório na apreciação da prova pelo Tribunal a quo, seguindo por ordem de raciocínio lógico a estrutura da resposta ao recurso interposto pelo Ministério Público da douta decisão da 1.ª Instância, pelo que nos iremos cingir a quatro pontos: I. A súbita alteração da qualificação jurídica; II. A douta decisão de 1.ª Instância; III. Incongruência da prova testemunhal; IV. Análise da superfície corporal da alegada vítima; V. Quanto à prova pericial relativa às amostras biológicas
D - No que tange à súbita alteração da qualificação jurídica, importa esclarecer que o arguido vinha acusado, desde 18 de outubro de 2020, de um crime de violação, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos arts. 14.º, n.º 1, 26.º e 164.º, n.º 1, al. a), todos do CP, do qual foi absolvido pelos digníssimos juízes do Coletivo de 1.ª instância.
E - O Ministério Público interpôs Recurso no qual apelou à reapreciação dos mesmos factos, ora julgados, todavia, agora tipificados enquanto crime de coação sexual, previsto e punido no art. 163.º, n.º 1, do CP, o que suscitou uma alteração da qualificação jurídica do tipo de crime pelo qual o arguido vinha acusado, que não ocorreu no decurso da audiência, conforme a letra da lei o estabelece, no art. 358.º, n.º 1 e 3, do CPP, mas sim em data posterior à sua absolvição.
F - Toda a matéria factual para a boa decisão da causa já havia sido sabiamente analisada e decidida pelo douto Tribunal de 1.ª instância que, se sequer considerasse que tais factos deveriam ser consolidados noutro enquadramento jurídico, mormente aqui, num crime de coação sexual, poderia tê-lo suscitado em sede de audiência – se tal não sucedeu em data própria, impera a questão: porquê agora que os factos já foram julgados?
G - A alteração da qualificação jurídica, conforme previsto no art. 358.º, n.º 1 e 3, do CPP, tem lugar em sede de audiência e não posteriormente a uma decisão absolutória (ou condenatória), na qual os factos jurídicos já foram julgados pelo que estamos perante uma causa de nulidade da decisão de 2.ª instância, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. b), do CPP e conforme Jurisprudência elencada no ponto 30.º da allegatio do presente Recurso, que condena o arguido por crime diverso daquele por que vinha acusado, que se deixa desde já arguida, para e com os advindos efeitos legais.
H - É evidente a clara violação de princípios basilares do Direito Constitucional Penal – o princípio ne bis in idem e o princípio do contraditório – consagrados no art. 29.º, n.º 5 e 32.º, n.º 5, da CRP, respetivamente, este primeiro que visa não apenas impedir que um sujeito processual possa ser julgado mais do que uma vez pelos mesmos factos jurídicos, como também a preservar outro princípio de extrema importância que lhe está associado – o princípio da segurança jurídica – por via do qual, e através de douta decisão de 1.ª instância, se repercutiu na esfera jurídica do arguido a garantia de uma cabal certeza e tranquilidade jurídicas.
I - Sucede que, a interposição do Recurso pelo Ministério Público camuflou uma alteração da qualificação jurídica intempestiva pois se esta se pretendia deveria ter tido lugar em sede própria de audiência, ex vi art. 358.º, n.º 3, do CPP, posto isto, o que se encontra realmente em causa é de uma análise aos mesmos factos com uma qualificação diversa, sob o pretexto de erro notório na apreciação da prova.
J - Por douta decisão do digníssimo Coletivo, datada de 20 de outubro de 2020, foi o arguido absolvido da prática de um crime de violação, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, n.º 1 e 164.º, n.º 1, al. a), todos do CP, da qual importa salientar os factos não provados que sustentam a decisão absolutória, descritos no ponto 44.º da allegatio do presente Recurso.
K - Apenas com a descrição dos factos não provados em sede de julgamento se compreende a pertinência da douta absolvição já que integram, substancialmente, a totalidade dos atos e comportamentos capazes de subsumir tanto a prática do crime de violação, como a de coação sexual e, como tal, não é de todo despiciendo que o Tribunal a quo atenda a estes factos como não provados, por diversas razões, das quais: a incongruência da prova testemunhal, os resultados da análise da superfície corporal da alegada vítima e as conclusões da prova pericial face às amostras biológicas recolhidas.
L - Quanto à incongruência da prova testemunhal, não obstante o especial valor com que o douto Coletivo apreciou o testemunho de BB, quando conjugado com a prova produzida, revelou-se incapaz de sustentar a realidade factual que alega, avolumando as dúvidas do Tribunal a quo sobre a verificação dos factos, já que pese embora a dificuldade inerente ao relato de factos como os que vêm vertidos na acusação, a alegada vítima não evidenciou qualquer problema físico ou intelectual que justificasse a imprecisão do seu discurso.
M - Tanto para o digníssimo Coletivo, como para qualquer Homem Médio, se vislumbra incompreensível a contradição relativa à verdade que se alega no que respeita a factos de relevo, mesmo perante um evento traumático, dir-se-á: especialmente perante um evento traumático, dada a natureza e violência do crime em causa e das regras de experiência comum assume-se, naturalmente, a normalidade de lapsos de memória das vítimas, todavia, no caso concreto, BB relata com precisão diversos factos, mas, contrariamente ao que seria de esperar, quanto àqueles de importância fulcral, contradiz-se ou não se recorda.
N - Quando questionada sobre uma possível ameaça do arguido com qualquer objeto, nomeadamente, com uma navalha, garantiu que não, facto esse que evidenciou decorrido um ano da alegada violação, da mesma forma que negou a alegada relação anal, anteriormente afirmada e, de igual modo, não se recordava se à data da alegada violação vestia calças ou saias o que, convenhamos, dada a natureza do evento delituoso em questão, não se refere a um simples pormenor pois consubstancia um indicador de relevo, atendendo ao grau de dificuldade para imobilizar e despir a vítima em simultâneo, principalmente perante alguém que se debate, o que de acordo com o testemunho de BB terá sucedido.
O - No que concerne à restante prova testemunhal, preconizada por pessoas que não presenciaram os factos, mas estiveram com BB antes e depois do lapso de tempo mencionado na acusação, também estes depoimentos não suportam a matéria consagrada na acusação (até a desmente!) e, neste sentido, importa atender às transcrições das declarações, depoimentos e à própria fundamentação da douta absolvição do arguido (que as destaca), elencadas nos pontos 64.º a 67.º da allegatio do presente Recurso.
P - Perante toda a controvérsia testemunhal o Coletivo, alicerçado em critérios lógicos e conjugando as demais provas produzidas, não extinguiu as suas dúvidas quanto aos contornos factuais qualificativos e, salvo melhor opinião, são precisamente estes que emergem no âmbito da apreciação da prova e que estão a ser colocados em causa no recurso interposto pelo Ministério Público, que obstou à reapreciação do processo pela Relação.
Q - Importa questionar: como poderá o Tribunal dissipar as suas dúvidas se a própria vítima duvida do que lhe tenha acontecido? Mas, mais importante ainda: como poderá o Tribunal, atender à certeza da prática de um crime de coação sexual quando falham os pressupostos para o mesmo? Isto porque, se a alegada vítima não sabe se foi ameaçada com uma navalha, não sabe se foi intimidada com duas bofetadas, não sabe foi forçada a relações anais, como poderá o Tribunal da Relação, sequer, sustentar as suas convicções de que esta foi, efetivamente, constrangida por outrem a praticar ato sexual de relevo?
R - No que obsta às lesões corporais apresentadas pela alegada vítima, até os próprios relatórios periciais se encontram longe de dissipar as dúvidas sobre os acontecimentos descritos na acusação, aquando da questão, em sede de julgamento, se havia sentido as urtigas no momento em que estava deitada, BB disse que sim e, como aliás é do senso comum, plantas como as urtigas provocam uma reação dermatológica severa e bem visível, lesão da qual não constavam sequer vestígios compatíveis no corpo de BB.
S - Seguindo o mesmo raciocínio, surge a mesma dúvida quanto à ausência de marcas nos punhos de BB, resultantes da corda com que diz ter permanecido atada todo o tempo, como poderá ter sido coagida quando não apresenta nenhum corte ou arranhão, consequência de estar deitada com o arguido por cima dela, por duas vezes consecutivas, mantendo movimentos pélvicos copulares, conforme alega.
T - Por fim, quanto à prova pericial relativa às amostras biológicas, de acordo com a informação proveniente do relatório de criminalística biológica, apenas se encontraram vestígios de ADN do arguido na mama direita, da limpeza do soutien e as manchas analisadas nas camisolas de BB, contudo, esses vestígios de ADN consistem unicamente em vestígios salivares, como tal, nas zonas peri-anal, anal, fundo do colo do útero, vaginal e vestibular/vulvar e cuecas os peritos não detetaram qualquer vestígio biológico do arguido.
U - Sucede que BB indicou veementemente que o arguido não usou preservativo sendo, por isso, de esperar que existissem evidências biológicas que sustentassem esta versão, mas não existem e, salvo o devido respeito, também aqui o próprio Ministério Público, se revela alheio à experiência comum do normal acontecer pois, a existir ejaculação, mais ainda seria impreterivelmente obrigatória a menção a vestígios biológicos no exame pericial, o que, mais uma vez, não sucedeu.
V - Tal como refere o Coletivo para justificar a douta absolvição do arguido, não obstante “a prova pericial aponta[r] para que tenha existido contacto entre a vítima e o arguido, ao nível do peito e roupas relativas a essa zona, mas desconhece-se que tipo de contacto foi e em que circunstâncias ocorreu.”, e aqui ressalve-se que, ainda que tivesse existido algum tipo de contacto entre a alegada vítima e o arguido, conforme refere o Coletivo, desconhece-se as circunstâncias em que tivesse acontecido, como tal, mesmo no que tange ao crime de coação sexual, desconhecem-se as circunstâncias.
W - O que nos leva a questionar: os relatórios periciais indicam a existência de algum tipo de violência? Existe alguma prova da prática forçada de um ato sexual de relevo? Há sinais ou marcas corporais na alegada vítima que indiquem que esta foi constrangida? Parece-nos evidente que não, o que torna a condenação do arguido em 2.ª instância pelo crime de coação sexual tanto de despropositada como de infundada, por falta de provas que a sustentem.
X - Por todas as razões aludidas, observa-se a inexistência de fundamento que potencie tal condenação, devendo o douto Tribunal fazer jus à justiça mui bem elencada na decisão do Tribunal de 1.ª Instância e, no mesmo seguimento, absolver o arguido do crime de coação sexual.

NESTES TERMOS E MELHORES DE DIREITO, que os Sábios Conselheiros doutamente suprirão, requer-se – mui respeitosamente, desde já, que V. Exas. considerem validamente interposto o presente recurso com a procedência das apontadas inconstitucionalidades, para e com os necessários e advindos efeitos legais.
Requer-se ainda – mui respeitosamente, que se faça a acostumada justiça, por via da qual deverá o presente recurso proceder – por provado, absolvendo o arguido do crime de coação sexual, p.p. no art. 163.º, n.º 1, do Código Penal, e mantendo-se a douta decisão de 1.ª instância para e com os advindos efeitos legais.
[…].».

5. O recurso foi admitido por douto despacho de 12.4.2021 para subir imediatamente, nos autos e com efeito suspensivos, nos termos dos disposições conjugadas dos art.os 406º n.º 1, 407º n.º 2, 408º n.º 1 e 400º n.º 1 al.ª e) do Código de Processo Penal (CPP) [9].

6. O Ministério Público no Tribunal da Relação …… respondeu ao recurso, rematando o Senhor Procurador-Geral Adjunto a contramotivação com as seguintes conclusões:
«1 - O arguido AA, foi acusado da prática de um crime de violação, p. e p. pelo art.º 164º, n.º1, alínea a), do CP, sendo-lhe imputada uma factualidade complexa, na qual, além do mais, se incluem, designadamente, os seguintes factos - o arguido manteve a ofendida deitada no chão, com os pulsos amarrados e retirou-lhe as botas, as calças que trazia vestidas, levantou-lhe a camisola e contra a vontade da ofendida, começou a lamber-lhe os seios e a sugar-lhe os mamilos, (…);
2        - No Acórdão, de 1.ª instância, de 20.10.2020, foi deliberado absolver o arguido AA, da prática de um crime de violação, por que vinha acusado;
3 - Deste acórdão interpôs recurso o Ministério Público referindo, em conclusão, designadamente, que; A prova pericial resultante da recolha do ADN, encontra-se acompanhada nesta parte pelos demais exames periciais de natureza médico-legal quanto às lesões corporais, consonante com o auto de diligência externa de exame ao local e reportagem fotográfica subsequente (…) Não resultam dúvidas (…) que o arguido manteve contactos íntimos de caráter sexual com a vitima, usando de força física e nas circunstâncias descritas em que a abordou, tendo-lhe pelo menos levantado a camisola que aquela então trazia vestido, lambendo-lhe os seios e mamilos (…);Nunca tendo o Tribunal apreciado ou se referido à tipificação da conduta daquele como crime de coação sexual, nem cumprido o disposto no art.º 358, nº 1 e nº 3 do CPP do CPP, foi violado aquele dispositivo legal e os art.º 410, nº 2, alínea c) e 127 do CPP ao não integrar esse comportamento imputado ao arguido no crime da coação sexual, pp. art.º 163, nº 1 do CP e pelo qual deve ser condenado, (…).
4 - No Tribunal da Relação ……, no Acórdão de 24.02.2021, foi, designadamente, deliberado; - Assim, e como justamente é salientado pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, “tudo considerado, não poderia o Tribunal deixar de dar como assente a parte da versão dos factos narrados pela queixosa, que não é posta em causa pelos factos que os demais intervenientes processuais trouxeram à audiência, em especial o arguido 13, e é confirmada pelo resultado do relatório pericial de criminalística biológica de fls. 380/382.”. (…) Assim, ao elenco dos factos provados são aditados os seguintes; 7. O arguido AA agarrou em ambas as mãos da ofendida e prendeu-lhas atrás das costas, com as próprias mãos, enrolando uma corda á volta dos pulsos da ofendida, e deu-lhe um nó, para evitar que a mesma fugisse. 8. Mantendo a ofendida com ambas as mãos atadas, arrastou-a até a um local com vegetação. 9. No referido local, o arguido manteve a ofendida deitada no chão, com os pulsos amarrados, levantou-lhe a camisola e contra a vontade da ofendida, começou a lamber-lhe os seios e a sugar-lhe os mamilos, ao mesmo tempo que a ofendida gritava por socorro e se debatia contra o arguido, tendo o arguido apertado o pescoço da ofendida e puxado os seus cabelos.
5 - Para a escolha e determinação da medida da pena foi ponderado; - a intensidade do dolo e a elevada ilicitude do facto, atendendo ao modo de execução do crime em apreço (sendo já significativo o grau de violência empregue pelo arguido para constranger a vítima), o que se repercute negativamente ao nível da culpa do arguido e das exigências de prevenção especial de socialização e geral de integração; e - a circunstância de o arguido apresentar antecedentes criminais pela prática de diversos crimes, tendo sido previamente condenado pela prática de três crimes sexuais (tratando-se, um deles, de um crime de violação) em penas de prisão, revelando, também por esta via, uma personalidade gravemente desconforme à pressuposta num “homem fiel ao direito”, incrementando o juízo de censura que lhe deve ser dirigido pelo tribunal e exacerbando as necessidades preventivas.
6        – Foi deliberado: - acordam os juízes da …. Secção Criminal do Tribunal da Relação …… em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, como consequência do reconhecimento da verificação do vício decisório previsto no art.º 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP (erro notório na apreciação da prova), determinam:
a) A alteração da decisão recorrida em matéria de facto, procedendo-se ao aditamento da matéria factual atrás mencionada ao elenco dos factos provados;
b) A condenação do arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de coação sexual, p. e p. pelo art.º 163.º, n.º 1 do Código Penal (na redação em vigor à data dos factos), na pena de 4 anos de prisão efectiva;
7 – No seu recurso o arguido apenas suscita as seguintes questões; - Da incongruência da prova testemunhal; - Da análise da superfície corporal da alegada vítima; e, - Da prova pericial relativa às amostras biológicas;
8 - A M.ª Desembargadora, no seu despacho de 12 de abril de 2021, admitiu o recurso do arguido, mas apenas na parte relativa à escolha e à determinação da medida concreta da pena de prisão;
9 – Com a entrada em vigor da Lei 59/98, de 25/08, e como decorre da exposição dos motivos da mesma, estabeleceu-se um regime que visa assegurar um efetivo duplo grau de jurisdição em matéria de facto, tendo sido escolhida a seguinte via: Por um lado, restituir ao STJ “a sua função de Tribunal que conhece apenas de direito, com exceções em que se inclui a do recurso interposto do tribunal do júri”. Por outro lado, garantir “um recurso efetivo em matéria de facto”, cuja apreciação é atribuída aos Tribunais da Relação, dentro dos seus poderes de cognição ampla (facto e direito).
10 - Atingido os segundos graus de jurisdição ficam esgotados os meios de apreciação da matéria de facto legalmente previstos
11 - Ora, nunca o arguido ora recorrente evidencia qualquer vício que resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, pelo contrário, o arguido, na sua motivação e conclusões, o que questiona são as concretas provas produzidas em julgamento, em primeira instância, e a decisão proferida, em recurso, em segunda instância, que alterou a decisão proferida em primeira instância sobre a matéria de facto e condenou o arguido nos termos acima referidos.
12 - Com o recurso, interposto pelo Ministério Público, sobre a matéria de facto e de direito, da decisão de primeira instancia, para o Tribunal da Relação …….., foi garantido ao arguido o direito de resposta e de defesa, assegurado, por um lado, o indispensável contraditório, e, por outro lado, um efetivo duplo grau de jurisdição, em matéria de facto.
13 - Nem pode o arguido invocar uma súbita alteração da qualificação jurídica, porque a qualificação dos factos descritos na acusação, como integrando a prática de um crime de violação, abrangiam também a prática do crime de coação sexual, só não tendo havido incriminação autónoma por este crime devido à relação de concurso aparente (especialidade) existente entre ambos.
14 - Tendo sido já facultada, ao arguido, a possibilidade de contra-alegar, na resposta ao recurso interposto pelo Ministério Público, na 1.ª instância, mostra-se assegurado, quer o indispensável contraditório quer o duplo grau de jurisdição;
15 - A Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) não contempla expressamente o direito ao recurso entre as garantias de devesa do arguido. Embora o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) preveja o seu art.° 14.°, n° 5, que “qualquer pessoa declarada culpada de crime terá o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença em conformidade com a lei”.
16 - A desconformidade entre a CEDH e o PIDCP vem a originar, em 1984, o Protocolo Adicional (PA n.º 7), (da CEDH), em cujo art.º 2.º se dispõe: 1 - Qualquer pessoa declarada culpada de uma infração penal por um tribunal tem o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade ou a condenação. O exercício deste direito, bem como os fundamentos pelos quais ele pode ser exercido, são regulados pela lei; e, 2 - Este direito pode ser objeto de exceções em relação a infrações menores, definidas nos termos da lei, ou quando o interessado tenha sido julgado em primeira instância pela mais alta jurisdição ou declarado culpado e condenado no seguimento de recurso contra a sua absolvição.
17 - O Tribunal Constitucional no acórdão, com força obrigatória geral, n.º 595/2018, afasta-se de um absoluto e completo duplo grau de jurisdição. Aliás, “a jurisprudência de Estrasburgo vai nesse sentido: o Estado goza de um largo poder de apreciação para consagrar as modalidades do exercício daquele direito, o que implica a possibilidade de o limitar, por exemplo, às questões de direito, ou de o condicionar a uma autorização, desde que essa limitação vise um objetivo legítimo e não atinja a sua essência. (…) Admitir-se-ia assim apenas a revisão de direito”;
18 - Pelo que, no recurso, apenas deverá ser apreciada a questão da escolha e da determinação da medida concreta da pena, devendo ser rejeitada o recurso do arguido sobre a matéria de facto considerada como provada;
19 – A factualidade considerada como provada no Acórdão do Tribunal da Relação …….. é reveladora da que o arguido é detentor de uma personalidade fortemente desconforme com os valores jurídico penais, essenciais, numa sociedade livre e democrática.
20 - Na revisão do CP de 1995 os crimes sexuais deixaram de ser crimes contra os fundamentos ético-sociais da vida social para passarem a ser crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual da vítima, ou seja, do poder de disposição do corpo pela pessoa, como salienta Figueiredo Dias, “aqui, é especificamente, uma livre e própria conformação da vida (na esfera sexual) que se intenta proteger”;
21 - Pondera o Tribunal que, relativamente à danosidade social dos crimes sexuais, que; “a sociedade alimenta crispação, reclamando pena exacerbada contra o abusador sexual, não só para afirmação da eficácia da norma penal violada, enquanto prevenção geral positiva, mas ainda em nome da intimidação de potenciais delinquentes, enquanto prevenção geral negativa”, considerando, por isso, como adequada à acentuada culpa do arguido e necessária para responder às elevadíssimas exigências de prevenção especial de socialização e geral de integração a pena de 4 anos de prisão.
22 - Pondera, por outro lado, que; a gravidade do crime de coação sexual cometido na pessoa da ofendida, o comportamento anterior do arguido traduzido em diversas condenações pela prática de outros crimes sexuais e a revelada ausência de autocensura evidenciam a manifesta impossibilidade de formulação de um juízo de prognose favorável relativamente ao seu comportamento futuro, coincidente com a opção pela aplicação de uma pena de substituição. E, que, a comunidade dificilmente compreenderia que alguém que pratica factos da natureza e gravidade dos que o arguido praticou, revelando uma personalidade violenta e avessa à observância das normas jurídico-penais (incrementando, por isso, o juízo de perigosidade associado à sua personalidade e, consequentemente, de prognose desfavorável relativamente ao seu comportamento futuro), fosse punido com uma pena diversa da pena de prisão, afigurando-se previsível a total ausência de capacidade intimidatória e dissuasora das medidas alternativas previstas na lei.
23 - Mostra-se que a pena imposta é já o mínimo, ainda suficiente, mas necessário e indispensável, para acautelar as fortes exigências de prevenção e assegurar a reintegração do arguido na sociedade.

Deverá, pois, ser confirmado o douto Acórdão ora recorrido.».

7. No momento previsto no art.º 416º n.º 1 do CPP, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta neste STJ emitiu o douto parecer que, expurgado do relatório, segue transcrito:
«B - Apreciação.
O Supremo Tribunal de Justiça apenas tem competência para o reexame da matéria de direito face ao disposto no art. 434º, do Cod. Proc. Penal, mas pode oficiosamente sindicar e alterar a matéria de facto, caso se verifiquem os vícios elencados no art. 410º, nº 2, do Cod. Proc. Penal, tendo ainda competência para conhecer oficiosamente de outras questões, como sejam, as nulidades do acórdão do Tribunal da Relação (arts. 379º, nº 1, e 425º, nº 4, ambos do Cod. Proc. Penal) e outras nulidades que deva conhecer (art. 410º, nº 3, do Cod. Proc. Penal), como sejam as proibições de prova, desde que não sejam objecto de dupla conforme, nem de irrecorribilidade.

No caso, estamos perante a reversão de uma decisão absolutória em 1ª Instância para uma decisão condenatória em pena de prisão efectiva pelo Tribunal da Relação, que não afasta a competência do Supremo Tribunal de Justiça para a sua apreciação, mesmo que limitada ao reexame da matéria de direito, nem afasta a possibilidade de conhecer de eventuais erros de vício do art. 410º, nº 2, do Cod. Proc. Penal, bem como outros vícios de conhecimento oficioso, de forma a acautelar as garantias de defesa do arguido num terceiro grau de jurisdição.

E, como fundamento para a admissibilidade do presente recurso foi invocado o Ac. nº 595/2018 do Tribunal Constitucional, que apenas julgou inconstitucional a impossibilidade de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça quando o arguido se vê confrontado com uma condenação no Tribunal da Relação, após ter sido absolvido pela 1ª Instância, não tendo julgado inconstitucional a norma que cinge o seu poder cognitivo ao reexame de direito.

Estamos perante uma condenação em pena de prisão efectiva por decisão do Tribunal da 2ª Instância, e da qual foi interposto o presente recurso, apelando o recorrente AA a um novo reexame e análise das provas existentes nos autos, que vão para além da competência do Supremo Tribunal de Justiça.

Assim, o recorrente AA alega a existência do erro notório de apreciação da prova, do art. 410º, nº 2, al. c), do Cod. Proc. Penal, requerendo um reexame de facto, e um reexame de direito por via de tal vício, e alega que a alteração da qualificação jurídica, prevista no art. 358º, nº 1, e nº 3, do Cod. Proc. Penal, deveria ter tido lugar em sede de audiência de julgamento, e não após a prolação de uma decisão absolutória (ou condenatória), na qual os factos jurídicos já foram julgados, entendendo que a decisão recorrida é nula, nos termos do art. 379º, nº 1, al. b), do Cod. Proc. Penal, ao condená4o por crime diverso daquele por que vinha acusado;

Temos por assente que oficiosamente o Supremo Tribunal de Justiça pode conhecer de todos os vícios elencados no art. 410º, nº 2, do Cod. Proc. Penal, face ao decidido no Ac. do STJ nº 7/95, que fixou jurisprudência no sentido de que: “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.°, n.° 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”, como também temnos popr assente que é seu dever conhecer oficiosamente de eventuais nulidades que inquinem o acórdão do Tribunal da Relação, face ao disposto no art. 379º, conjugado com o art. 425º, nº 4, ambos do Cod. Proc. Penal.

No caso, após uma análise do texto do acórdão recorrido, relativamente à respectiva fundamentação, e no que diz respeito à matéria dada como provada e não provada, não se vislumbra que o mesmo padeça do invocado vício do erro notório na apreciação da prova, entendendo-se que o recorrente AA apenas questionou a forma como foram avaliadas as concretas provas produzidas em julgamento em 1ª Instância, e que determinaram a alteração da matéria de facto dada como provada e não provada em 2ª Instância.

Ora, "I - O erro notório na apreciação da prova, vício da decisão previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Porém, o vício, terá de constar do teor da própria decisão de facto, não da motivação dessa decisão, ou da fundamentação de direito (...)” - cfr. sumário do Ac. STJ de 02-02-2011, in Proc. nº 308/08.7ECLSB.S1, acessível em www.dgsi.pt.

Entende-se que o acórdão recorrido explicou a razão pela qual deu como provada a factualidade acima indicada, como procedeu ao reexame de toda a prova produzida, e que o levou a proceder a um julgamento da matéria de facto dissonante daquele que a 1ª Instância tinha realizado, ao dar como provados factos anteriormente dados como não provados, e que vieram a determinar a condenação do recorrente AA pela prática do crime de coacção sexual.

Assim, o Tribunal da Relação ……. procedeu a uma nova análise de todo o material probatório e formou uma nova convicção, que divergiu daquela que foi formulada pelo Tribunal de 1ª Instância, tendo, contudo, esclarecido qual o percurso lógico que seguiu ao considerar provados factos que a 1ª Instância considerou que não o estavam.

Porém, entende-se que o Tribunal da Relação ……, ao alterar a matéria de facto dada como provada, e ao alterar a respectiva qualificação jurídico-penal, deveria ter dado cumprimento ao disposto no art. 358º, nº 1, e nº 3, do Cod. Proc. Penal.

Questionamos o entendimento do Tribunal da Relação ……. quando defende que a convolação do crime de violação para o crime de coação sexual, não necessita da prévia comunicação da respectiva alteração da qualificação jurídica, nos termos previstos no art. 358º, nº 1, e nº 3 do Cod. Proc. Penal, não obstante, se estar perante o mesmo bem jurídico, e os factos relevantes para a integração do crime punido menos gravemente já integrarem o objecto do processo.

E, em abono deste nosso entendimento, citamos parte do sumário do Ac. STJ de 06/02/2014, in Proc. nº 411/12.9JAFIM.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt, onde se lê que: “I - O CPP, na redacção que lhe foi introduzida pela Lei 59/98, de 25-08, ao ser aditado ao art. 358.º, o actual n.º 3, pondo termo a posições doutrinais e jurisprudenciais divergentes assumidas desde o início da sua vigência, consagrou a solução da livre qualificação jurídica dos factos pelo tribunal do julgamento, com reserva da obrigatoriedade de prévia comunicação ao arguido da alteração da qualificação jurídica e da concessão, a requerimento daquele, do tempo necessário à preparação da defesa, ressalvando os casos em que a alteração decorra de alegação feita pela defesa. E com a publicação da Lei 48/07, de 29-08, através de aditamento ao art. 424.º (n.º 3), alargou a possibilidade de a alteração da qualificação jurídica poder ser feita no tribunal de recurso (bem como de a alteração poder incidir sobre os factos descritos na decisão em recurso, desde que não substancial), alteração que, obviamente, no caso de ser desconhecida do arguido, terá de lhe ser comunicada para que o mesmo, querendo, possa sobre ela se pronunciar (...)” (negrito e sublinhado nossos).

Ora, o art. 358º do Cod. Proc. Penal, encontra-se inserido no capítulo que define as regras e os princípios que regulam a actividade da produção de prova, sendo que o mecanismo da alteração da qualificação jurídica do nº 3, do art. 358º, do Cod. Proc. Penal, foi previsto e tem aplicação já após a fase da discussão da causa, e da produção de prova.

Assim, apesar de se estar perante crimes contra a liberdade sexual, entende-se que o Tribunal da Relação ……., ao proceder à alteração da qualificação jurídica penal da conduta do recorrente AA, face à alteração da matéria de facto a que procedeu nos termos do art. 431º do Cod. Proc. Penal, deveria ter accionado o disposto no art. 358º, nº 1, e nº 3, deste diploma legal.

Refira-se que o recorrente AA ao responder ao recurso interposto pelo MP, da decisão proferida em 1ª Instância, não se pronunciou sobre uma eventual convolação da sua conduta, integrando-a na prática de um crime de coacção sexual, p. p. pelo art. 163º, nº 1, do Cod. Penal, ao contrário do que é referido no despacho de admissão do presente recurso, quando aí se refere que o mesmo teve oportunidade de se pronunciar na resposta ao recurso interposto pelo MP quanto à matéria relacionada com a sua culpabilidade - cfr. despacho de 12/04/2021.

Ora, esta omissão não pode ser suprida por este Supremo Tribunal de Justiça, por respeitar a matéria subtraída à sua competência, entendendo-se que deverá ser proferida uma nova decisão por parte do tribunal recorrido, tendo em vista o suprimento desta formalidade legal.

Face ao exposto, somos de parecer que a decisão recorrida deverá ser objecto de uma nova reformulação, não obstante o recurso apenas ter sido admitido relativamente à questão da escolha e da determinação da medida da pena (art. 414º, nº 3 do Cod. Proc. Penal), e caso assim não se entenda, consideramos que o recurso interposto pelo recorrente AA não merece provimento.
[…]».

8. Notificado do parecer – art.º 417º n.º 2 do CPP – o Recorrente nada disse.

9. Colhidos os vistos, de acordo com o exame preliminar, foram os autos presentes a conferência.

10. Cumpre, assim, apreciar e decidir.

II. Fundamentação.

A. Âmbito-objecto do recurso.
11. O objecto e o âmbito dos recursos são os fixados pelas conclusões da respectiva motivação – art.º 412º n.º 1, in fine, do CPP –, sem prejuízo do conhecimento das questões oficiosas [10].

Tribunal de revista, de sua natureza, o Supremo Tribunal de Justiça conhece apenas da matéria de direito – art.º 434 º do CPP.
Não obstante, deparando-se com vícios da decisão de facto enquadráveis no art.º 410º n.º 2 do CPP ou com nulidade não sanada – n.º 3 da mesma norma – que inviabilizem a cabal e esgotante aplicação do direito, pode, por sua iniciativa, sindicá-los.

12. Nas conclusões da sua motivação, o Recorrente suscita as questões da admissibilidade do recurso perante o disposto no art.º 400º n.º 1 al.ª e); do erro na fixação dos factos em razão de erro notório na apreciação da provaincongruência da prova testemunhal»; «análise da superfície corporal da alegada vítima»; «prova pericial relativa às amostras biológicas») previsto no art.º 410º n.º 1 al.ª c); e da nulidade do acórdão, nos termos do art.º 379º n.º 1 al.ª b), por condenação por crime diverso do constante da acusação com preterição das formalidades previstas no art.º 358º n.os 1 e 3.

O Senhor Procurador-Geral Adjunto no TR…. desenvolve a sua contramotivação em torno das mesmas questões.
Rebate o argumentário do Recorrente, dizendo que o recurso só foi admitido quanto à questão da escolha e medida concreta da pena e que deve ser rejeitado na parte em que se dirige contra a decisão de facto.
Relativamente à escolha e medida concreta da pena, sustenta que deve ser confirmada a decisão da 2ª instância.

A Senhora Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal de Justiça pronuncia-se pela improcedência do recurso quanto às arguições em matéria de facto.
Reconhece, porém, a comissão da nulidade prevista nos art.os 379 n.º 1 al.ª b) e 358º n.º 1 e 3, opinando pela anulação do Acórdão Recorrido e devolução do procedimento ao TR…. para adequado suprimento.
 Nada assim se entendendo, então é pela improcedência total do recurso.

13. No recorte das peças de recurso, as questões que vêm suscitadas são, desse modo e por ordem de precedência lógica, as (i) da recorribilidade do Acórdão Recorrido e, ou, do âmbito do recurso admitido; (ii) da nulidade prevista nos art.º 379º n.º 1 al.ª b) e 358º n.os 1 e 3; (iii) do erro-vício da decisão de facto do erro notório na apreciação da prova; e (iv) da escolha e medida concreta da pena, as três primeiras suscitadas pelo Recorrente, a quarta pelo Ministério Público no TR…. na contramotivação.
Questões que serão objecto de apreciação nos passos que seguem, sem prejuízo do que a regra da prejudicialidade dos art.os 608º n.º 2 do CPC e 4º impuser e com a advertência, já, que, não colocada pelo arguido e não sendo de conhecimento oficioso, a da escolha e medida concreta da pena só será abordada se a solução dada a pontos precedentes o reclamar.

Assim:

B. Apreciação.

a. Questão prévia – da admissibilidade do recurso e do âmbito do recurso admitido.
14. Acusado por crime de violação p. e p. pelo art.º 164º n.º 1 al.ª a) do CP – na redacção da Lei n.º 59/2007, de 15.3, que era vigente à data dos factos –, foi o Recorrente absolvido da sua prática em acórdão do Tribunal Colectivo de …….. por falência de prova dos dados de factos que, no libelo, mais proximamente sustentavam a respectiva tipicidade objectiva e subjectiva.
Interposto recurso pelo Ministério Público para o TR…., pronunciando-se pela alteração da decisão de facto com base em erro notório na apreciação da prova – art.º 410º n.º 1 al.ª c) –, e pela condenação no contexto do crime de coacção sexual p. e p. pelo art.º 163º n.º 1 do CP [11], a tudo deu o Acórdão Recorrido provimento, reconhecendo a existência daquele vício no acórdão de 1ª instância, alterando, em seu suprimento, a decisão de facto nos termos referidos em 3. supra e, observando o procedimento recomendado no AFJ n.º 4/2016 [12], proferindo condenação em pena 4 anos de prisão pela prática do apontado crime.

Irresignado, move, ora, o Recorrente o presente recurso, sustentando preventivamente que, não obstante condenado no TR…. em pena de prisão não excedente a cinco anos, a restrição interpretativa do art.º 400º n.º 1 al.ª e) decorrente do AcTConst n.º 595/2018 – que declarou a «inconstitucionalidade [com força obrigatória geral] da norma que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovadoramente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos, constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, por violação do artigo 32.º, n.º 1, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2 da Constituição» – lhe viabiliza a impugnação para este STJ sem quaisquer limitações.
Entendimento, porém, algo diferente tem o Senhor Procurador-Geral Adjunto que respondeu ao recurso, para quem a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral decretada pelo AcTConst n.º 595/2018 só incide sobre a dimensão interpretativa do art.º 400º n.º 1 al.ª e) que veda o recurso quanto ao segmento da decisão que trata da questão da escolha e da medida concreta da pena, que não da que cuida da questão da culpabilidade.
Mais: para este magistrado o douto despacho de Senhora Desembargadora do TR…. que admitiu o recurso tem precisamente aquele restrito alcance.
E por isso que conclui que o âmbito-objecto da impugnação neste STJ está circunscrito àquela questão da escolha e da medida concreta da pena, devendo ser recusado o conhecimento de tudo o mais, mormente, as acusações que o Recorrente endereça à decisão de facto.

15. Veja-se se assim é e se assim pode ser.
Para o que se começará, para mais fácil enquadramento da discussão, por transcrever o despacho do TR…. de admissão do recurso.
E prevenindo-se, já, que fazendo vencimento a tese do Senhor Procurador-Geral, então não se tomará conhecimento do objecto do recurso na sua totalidade, por não só não ser possível apreciar a questão de culpabilidade – nem, obviamente, as subquestões em que se possa desagregar, como as do erro notório na apreciação da prova e da nulidade do acórdão prevista nos art.os 379º n.º 1 al.ª d) e 358º n.os 3 e 1 que o Recorrente acusa –, como por não haver que apreciar a questão da escolha e medida concreta da pena que, como já dito, não oficiosa, nem vem suscitada pelo Recorrente, como competia, nem, nesse cenário, nela se podem projectar consequências que cumpra ex officio (re)ponderar.

16. Por despacho, então, de 12.4.2021, proferiu a Senhora Desembargadora Relatora, decisão do seguinte teor sobre o requerimento de interposição de recurso do Recorrente:
«O art.º 400.º do CPP estatui na al. e) do seu n.º 1 que não é admissível recurso de acórdãos proferidos em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos. São dois, portanto, os segmentos distintos que fixam a irrecorribilidade: (i) de decisões das relações que apliquem pena não privativa da liberdade; (ii) de decisões que apliquem pena de prisão não superior a 5 anos.
No presente caso, o arguido foi absolvido, na primeira instância, do crime de violação por que se encontrava acusado, tendo sido condenado por este Tribunal da Relação, após alteração da matéria de facto, pela prática de um crime de coação sexual, na pena de 4 anos de prisão efetiva.
A situação agora em apreço enquadra-se na hipótese que deu origem à declaração de inconstitucionalidade lavrada inicialmente do acórdão do TC 429/2016 e que, com força obrigatória geral, veio a ser sufragada no acórdão 595/2018. Aí colocava-se a questão da irrecorribilidade relativamente ao segundo segmento acima mencionado: do acórdão da Relação que, inovatoriamente, face à decisão de absolvição proferida em primeira instância, condenasse o arguido a pena de prisão efetiva não superior a 5 anos.
Reconheceu-se neste aresto do TC que “[...] apesar de o duplo grau de jurisdição facultar ao arguido a possibilidade de contra-alegar no âmbito do recurso interposto da sentença absolutória, esta faculdade não lhe assegura a possibilidade de sindicar o processo decisório subjacente à escolha e à determinação da medida concreta da pena de prisão que será aplicada no futuro e a consequente reapreciação dos respetivos fundamentos. Na verdade, o arguido vê-se confrontado com uma pena de privação de liberdade cujo fundamento e medida não tem oportunidade de questionar em sede alguma. Neste caso, os critérios judiciais de determinação, em concreto, da medida adequada da pena escapam a qualquer controlo.
Desta forma, além de deixar livre de qualquer controlo parte da decisão condenatória, a norma em apreciação implica uma intensa e grave restrição ou compressão do direito ao recurso, uma vez que resulta totalmente excluído da sua proteção o poder de recorrer de uma parte da decisão, precisamente aquela que acarreta o maior potencial de lesão dos direitos fundamentais do arguido [...]”.
Deste modo, e uma que o Tribunal Constitucional declarou, com força obrigatória geral, “a inconstitucionalidade da norma que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovadoramente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos, constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, por violação do artigo 32.º, n.º 1, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2 da Constituição”, admito o presente recurso para o Supremo Tribunal de Justiça [13] .
O recurso sobe imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo (artigos 406.º, n.º 1, 407.º, n.º 2, a) e 408.º, n.º 1, a), todos do CPP).
[…].».

Isto dito:

17. Culminando a reforma do sistema de recursos iniciada com a Lei n.º 59/98, de 25.8, a Lei n.º 20/2013, de 21.2, conferiu ao, entre outros, art.º 400º n.º 1 al.ª e) a redacção [14] de que «Não é admissível recurso: […] De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos». Redacção esta que, na sua articulação com as normas dos art.os 399º – «É permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei.» – e 432º n.º 1 al.ª b) – «Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça: […] De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º.» – apoiou o entendimento, nos primeiros tempos indisputado, da irrecorribilidade do acórdão de Tribunal da Relação que, revertendo decisão absolutória de 1ª instância, condena em pena de prisão não superior a 5 anos.
Como se sabe, porém, dos antecedentes do AcTConst n.º 595/2018, este estádio das coisas veio a ser questionado no AcTConst n.º 412/2015, 29.9 – que, em recurso de fiscalização concreta, julgou «inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP, resultante da revisão introduzida no Código de Processo Penal pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovatoriamente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos, por violação do direito ao recurso enquanto garantia de defesa em processo criminal (artigo 32.º, n.º 1 da constituição)» – e, depois,  no AcTConst n.º 429/2016, de 13.7 – que, chamado em plenário (art.º 79º-D n.º 1 da LTC), a dirimir o conflito entre aquele AcTConst n.º 412/2015 e o AcTConst n.º 163/2015 [15], decidiu «Julgar inconstitucional a norma que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovatoriamente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos, constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, por violação do direito ao recurso enquanto garantia de defesa em processo criminal, consagrado no artigo 32.º, n.º 1 da Constituição.».
E, proferidas mais duas decisões sumárias no mesmo sentido, redundou, tudo, no citado a AcTConst n.º 595/2018 que, em recurso movido pelo Ministério Público ao abrigo dos art.º 281º n.º 3 da CRP e 82º da LTC, declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral daquela dimensão interpretativa do art.º 400º n.º 1 al.ª e),  por infracção ao art.º 32º n.º 1 da CRP, conjugado com o art.º 18º n.º 2 do mesmo diploma.

Ora, é a propósito deste aresto que o Senhor Procurador-Geral Adjunto …… diz – isso, se bem se alcança o sentido das sua palavras… – que, apesar de aparentemente irrestrita no enunciado do dispositivo – «Pelo exposto, o Tribunal Constitucional declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovadoramente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos, constante do artigo 400.°, n.° 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.° 20/2013, de 21 de fevereiro, por violação do artigo 32.°, n.° 1, conjugado com o artigo 18.°, n.° 2 da Constituição.», na sua exacta formulação –, a declaração de inconstitucionalidade, afinal, só recai sobre a dimensão normativa que respeita à  irrecorribilidade do segmento condenatório relativo à escolha e à determinação da medida concreta da pena que, quanto ao relativo à culpabilidade, o concreto desenho do sistema de recurso, mesmo não admitindo segundo grau de impugnação, ainda assim assegura satisfatoriamente a garantia constitucional do direito de defesa e respeita a ideia, também constitucional, da proporcionalidade.
E, como igualmente já sublinhado, ainda diz mais aquele magistrado, diz que foi nesse sentido que foi proferido o despacho de admissão do recurso, ora, transcrito em 15. supra, e que, por tudo, se deve entender que o âmbito do presente recurso se restringe ao segmento do Acórdão Recorrido que cuidou da questão da escolha e da determinação da medida concreta da pena, que não também do que tratou das questões da culpabilidade que, assim, não devem ser conhecidas.  

18. Ora, antecipando conclusões, esclarece já este tribunal que concorda com aquele ilustre Magistrado, não tanto quanto ao âmbito do recurso concretamente delimitado no douto despacho da Senhora Desembargadora – sendo uma interpretação possível dele, a ideia da admissão do recurso apenas quanto à questão da pena não resulta inequívoca dos respectivos termos –, antes sim quanto ao alcance da declaração de inconstitucionalidade do AcTConst n.º 595/2018.
Com efeito:

19. O que sejam, no complexo da decisão judicial, as questões da culpabilidade e da escolha e determinação da medida concreta da pena di-lo a própria lei nos art.os 368º e 369º, respectivamente:
A primeira, a culpabilidade, compreende o apuramento dos factos relevantes para a decisão e a aferição dos pressupostos, objectivos e subjectivos, da condenação, isto é, a resposta às perguntas sobre se o arguido praticou o crime ou nele participou; se actuou com culpa; se se verifica causa que exclua a ilicitude ou a culpa; se se verificam quaisquer outros pressupostos de que a lei faça depender a punibilidade do agente ou da aplicação de um medida de segurança; e se se verificam os pressupostos de que depende o arbitramento de indemnização civil.
A segunda, a da escolha e da determinação da medida concreta da pena, respeita à eleição da espécie da pena aplicanda entre as que as normas de punição põem à disposição do julgador, à definição do seu quantum e, admitindo-as a lei, à sua eventual substituição ou dispensa.

De outro lado:
Tendencialmente incidente sobre toda a decisão, pode o recurso ser limitado a segmentos específicos dela, se – art.os 402º n.º 1 e 403º – cindíveis por forma a viabilizar uma apreciação e decisão  autónomas.
O que, precisa e designadamente, pode acontecer com relação ao segmentos da culpabilidade e da determinação da sanção, aliás, por estatuição expressa do art.º 403º n.º 2 al.ª c) que dispõe que «é, nomeadamente, autónoma a parte da decisão que se referir: […] Em caso de unidade criminosa, à questão da culpabilidade, relativamente àquela que se referir à questão da determinação da sanção».
E cindível, e limitável, o recurso a segmentos específicos e autónomos da decisão, será relativamente a cada um deles que se aferirão os pressupostos da recorribilidade respectiva. Inclusivamente, já se verá, os que relevam da eventual, desconformidade com o parâmetro jusfundamental.

Isto dito e centrando atenções sobre o AcTConst n.º 595/2018 em vista de perscrutar o sentido e alcance da declaração de inconstitucionalidade nele proferida:
20. Rematado, então, pelo inciso «o Tribunal Constitucional declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovadoramente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos, constante do artigo 400.°, n.° 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.° 20/2013, de 21 de fevereiro, por violação do artigo 32.°, n.° 1, conjugado com o artigo 18.°, n.° 2 da Constituição», assentou-o o AcTConst n.º 595/2018, no mais decisivo, na seguintes premissas fundamentadoras:
«b) Delimitação da questão objeto de fiscalização
5. O pedido de declaração de inconstitucionalidade incide sobre a norma que estabelece «a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovadoramente face à absolvição ocorrida em 1ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos», resultante do artigo 400.°, n.° 1, alínea e), do Código de Processo Penal (CPP), na redação da Lei n.° 20/2013, de 21 de fevereiro.
Trata-se de uma das dimensões normativas interpretativamente extraíveis do preceito em causa. Efetivamente, este preceito tem a seguinte redação:
«Artigo 400.°
Decisões que não admitem recurso
1 - Não é admissível recurso:
(...)
e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos;
[…]
A norma em causa no presente processo possui, pois, dois elementos caracterizadores: (i) a existência de uma decisão absolutória da primeira instância que é revertida pela decisão do Tribunal da Relação e (ii) essa reversão resultar na condenação em pena de prisão efetiva. Tendo em conta a natureza do recurso previsto no artigo 82.° da LTC e o princípio do pedido (artigo 79.°-C da LTC), essa dimensão normativa contida na alínea e) do n.° 1 do artigo 400.° do CPP é, portanto, a única sobre a qual importa emitir um juízo com vista à declaração de inconstitucionalidade, e não qualquer outra, nomeadamente decorrente do mesmo preceito legal.
[…].
c) Enquadramento histórico-legislativo da questão objeto de fiscalização
[…].
9.        As diferentes alterações ao CPP em 2013, globalmente consideradas, visaram, segundo a exposição de motivos da Proposta de Lei n.° 77/XII (que deu origem a esta reforma), promover o equilíbrio «entre, por um lado, a necessidade da celeridade e eficácia no combate ao crime e defesa da sociedade e, por outro, a garantia dos direitos de defesa do arguido». Especificamente no que toca ao direito ao recurso, justificou-se a opção legislativa com a intenção de preservar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça «para os casos de maior gravidade». Havia uma preocupação com a «crescente massificação do acesso à jurisdição do tribunal situado no topo da hierarquia judiciária, que deveria estar reservado para o conhecimento e decisão das causas criminais mais graves (...) Por razões diversas, de preservação da fisionomia e da capacidade orientadora da jurisprudência dos tribunais supremos – a que acrescem outras mais prosaicas (mas não menos cogentes) de combate à morosidade processual – tem-se entendido ser conveniente adotar medidas que, ressalvando o direito a uma tutela jurisdicional efetiva e às garantias de defesa, permitam a redução do número de recursos, em especial a restrição de acesso à jurisdição do Supremo Tribunal de Justiça» […].
[…].
e) Enquadramento constitucional: o Acórdão n.° 429/2016
[…].
í) Análise da questão de constitucionalidade
17. Como se deixou já amplamente referido, enquanto expressão autónoma que é das garantias de defesa do arguido, o n.° 1 do artigo 32.° da Constituição impõe ao legislador que, no âmbito do espaço de conformação que lhe é reconhecido na definição dos graus de recurso, adote soluções que, para além de justificadas por valores relevantes e dignos de proteção, não limitem de forma desrazoável, arbitrária ou desproporcionada as possibilidades de recorrer, nem atinjam «o conteúdo essencial das garantias de defesa» do arguido. Trata-se de algo que o Tribunal Constitucional tem insistentemente afirmado: […].
Ora, a limitação do direito ao recurso imposta no artigo 400.°, n.° 1, alínea e), do CPP vem sendo justificada pelo legislador com o intuito de assegurar a celeridade processual e uma eficiente organização do sistema de administração da justiça, designadamente através da racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, cuja intervenção se considera dever ser limitada aos casos de maior merecimento penal. Entende o legislador que a garantia constitucional do direito ao recurso – corolário da garantia de acesso ao direito e aos tribunais – deve conjugar-se também com um desígnio de celeridade associado à presunção de inocência e à descoberta da verdade material. Este intuito insere-se no contexto de revisão da lei processual penal iniciado em 2007, pela Lei n.° 48/2007, de 29 de agosto, […], que introduziu uma nova disciplina do julgamento de recurso com o propósito expresso de «restringir o recurso de segundo grau perante o Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior merecimento penal» (cfr. exposição de motivos da Proposta de Lei n.° 109/X, que deu origem à referida Lei n.° 48/2007). O mesmo desiderato viria a ser prosseguido também com a revisão empreendida pela Lei n.° 20/2013, em que foi dada a atual redação ao artigo 400.°, n.° 1, alínea e), do CPP.
A restrição do recurso de segundo grau perante o Supremo Tribunal de Justiça adotada pelo legislador encontra, portanto, justificação em interesses de celeridade e eficiência da administração da justiça penal, dignos de proteção à luz do texto constitucional. […].

18. Não se duvida da razoabilidade formal que o fundamento para a limitação dos graus de recurso encontra na pretensão de salvaguardar o acesso ao tribunal que ocupa o topo da hierarquia na organização judiciária dos tribunais criminais, reservando-o para os casos de maior merecimento penal, bem como nos valores constitucionalmente protegidos da eficácia e a celeridade da administração da justiça. No entanto, a verdade é que no confronto do grau de compressão do direito de recurso enquanto garantia de defesa do arguido decorrente da norma em análise, com os ganhos por ela adquiridos para os fins de celeridade e racionalidade do sistema de recursos, em especial na componente de limitação do acesso à mais alta instância (Supremo Tribunal de Justiça), a proibição de recurso contida na norma em análise sempre deverá ser considerada uma concretização insuficiente das garantias de defesa do arguido consubstanciadas no direito ao recurso.
Acompanha-se, pois, a conclusão do Acórdão n.° 429/2016 no sentido da inconstitucionalidade da norma em apreciação. […].

19. Na verdade, para se aferir sobre a respetiva conformidade constitucional importa determinar em que medida a norma sub judicio afeta as garantias de defesa do arguido. Neste plano, na linha do que acima se deixou consignado a respeito da relação existente entre direito ao recurso e duplo grau de jurisdição, é imprescindível verificar se a norma permite a apreciação do caso por dois tribunais de grau distinto, para depois determinar se corresponde a uma tutela suficiente das garantias de defesa constitucionalmente consagradas.
Logo no primeiro momento, da verificação de um duplo grau de jurisdição, é de identificar um problema. Como se sublinha no Acórdão n.° 429/2016, ponto 19:
"Nos casos em que existe uma absolvição da primeira instância revogada por decisão condenatória em pena de prisão da segunda instância, não é assegurada no julgamento do recurso uma reapreciação das consequências jurídicas do crime. Trata-se, pelo contrário, de uma decisão inovadora com consequências fundamentais na posição jurídica do arguido, designadamente na sua liberdade, relativamente à qual é negado o acesso a uma reapreciação por um tribunal superior.
Na verdade, uma situação em que a uma absolvição de primeira instância sucede a condenação em pena de prisão, no tribunal de recurso, implica necessariamente o surgimento de uma parte da decisão que se apresenta como integralmente nova: o processo decisório concernente à determinação da medida da pena a aplicar. A decisão que define a pena de prisão é proferida pelo Tribunal da Relação sem que anteriormente, designadamente em primeira instância, haja qualquer apreciação sobre a pena a impor ao arguido. O arguido vê-se confrontado com uma pena de privação de liberdade cujo fundamento e medida não tem oportunidade de questionar em sede alguma. Existem, portanto, nesta situação, dimensões do juízo condenatório que não são objeto de reapreciação. Pelo menos quanto a estas matérias, existe uma apreciação pela primeira vez apenas na instância de recurso, sem que exista a previsão legal de um segundo grau de jurisdição.
Neste contexto, aceitar a irrecorribilidade da decisão condenatória, em situações como a configurada pela norma em apreciação, seria admitir que o direito fundamental ao recurso, enquanto expressão das garantias de defesa do arguido, consagradas no artigo 32.°, n.° 1 da Constituição, não garante sequer a reapreciação por uma segunda instância da decisão que define a pena de prisão efetiva. Esta seria, assim, uma decisão do juiz que se apresentaria como livre de qualquer controlo".

É de realçar, a este propósito, que na norma em apreciação apenas se encontram abrangidos casos em que o tribunal de 2.ª instância procede ele mesmo à determinação da sanção – "condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos" –, não reenviando o processo para o tribunal de 1.ª instância. Essa é, aliás, a regra interpretativamente estabelecida pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.° 4/2016 […].
Nestas circunstâncias, a irrecorribilidade do acórdão do tribunal de 2.ª instância tem como consequência que a tão relevante matéria da determinação da espécie e medida da pena seja apreciada uma única vez – pelo tribunal de recurso – e escape, assim, ao controlo de uma segunda instância […]. Nessa parte, não se encontra garantindo, na verdade, um duplo grau de jurisdição.

20. Ora, o apuramento da proporcionalidade de uma qualquer restrição ao direito ao recurso não pode alhear-se, desde logo, do tipo de intervenção do tribunal superior que assegura o duplo grau de jurisdição. Do ponto de vista das garantias de defesa do arguido, quanto maior for o conteúdo inovatório da decisão condenatória do tribunal de 2.ª instância, tanto mais insustentável será a sua irrecorribilidade.
No caso da norma em apreciação, o tribunal de 2.ª instância não procede a uma reapreciação de matéria já apreciada pelo tribunal de 1.ª instância, mas sim a uma apreciação ex novo: pronunciando-se o tribunal a quo pela absolvição do arguido, não chega, naturalmente, a apreciar a matéria da sanção, que pressupõe uma decisão positiva quanto à questão da culpabilidade (cfr. artigos 368.° e 369.° do CPP). Essa parte da decisão da 2.a instância é, por definição, inovatória. Desta forma, não é assegurada no julgamento do recurso uma reapreciação das consequências jurídicas do crime.
Sendo de há muito dado adquirido na dogmática das consequências jurídicas do crime que a determinação judicial da pena concreta constitui "estruturalmente aplicação do direito", […] não se afigura sustentável uma ausência absoluta de controlo do processo decisório de escolha e determinação da medida da pena de prisão, como se concluiu no Acórdão n.° 429/16, ponto 19.

21. Mais decisivo para a questão de constitucionalidade que importa aqui resolver, em todo o caso, é que tal ausência de controlo compromete excessivamente as garantias de defesa do arguido constitucionalmente consagradas.
Desde logo, importa notar que uma tal solução não se apresenta como inevitável para alcançar os fins prosseguidos. Dentro da discricionariedade deixada ao legislador para definir o regime processual de recursos, são, com efeito, diversificadas as soluções configuráveis no sistema de recursos em processo penal com vista à harmonização do interesse na otimização dos recursos e o célere funcionamento da justiça com os direitos de defesa do arguido, designadamente o direito de recorrer de uma condenação em pena privativa da liberdade […]. Ponto é que a racionalização do acesso ao Supremo não seja alcançada à custa da negação da possibilidade de exercício do direito ao recurso, enquanto direito fundamental de defesa do arguido, designadamente quando está em causa o valor da sua liberdade.
Para além disso, esse sacrifício do direito ao recurso não é compensado pela possibilidade de contra-alegar no âmbito do recurso interposto pelo Ministério Público ou assistente da decisão absolutória da 1.ª instância ou através da garantia do contraditório. Nestes casos de reversão no tribunal de recurso de uma absolvição em condenação as consequências jurídicas do crime só são definidas no julgamento do recurso. Assim, apesar de o duplo grau de jurisdição facultar ao arguido a possibilidade de contra-alegar no âmbito do recurso interposto da sentença absolutória, esta faculdade não lhe assegura a possibilidade de sindicar o processo decisório subjacente à escolha e à determinação da medida concreta da pena de prisão que será aplicada no futuro e a consequente reapreciação dos respetivos fundamentos. Na verdade, o arguido vê-se confrontado com uma pena de privação de liberdade cujo fundamento e medida não tem oportunidade de questionar em sede alguma. Neste caso, os critérios judiciais de determinação, em concreto, da medida adequada da pena escapam a qualquer controlo.
Desta forma, além de deixar livre de qualquer controlo parte da decisão condenatória, a norma em apreciação implica uma intensa e grave restrição ou compressão do direito ao recurso, uma vez que resulta totalmente excluído da sua proteção o poder de recorrer de uma parte da decisão, precisamente aquela que acarreta o maior potencial de lesão dos direitos fundamentais do arguido.
[…].
2.3. […].
Diferentemente da condenação em pena de multa, no caso de condenação em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos definida pelo Tribunal da Relação, "a dimensão inovatória da decisão proferida por aquele Tribunal inclui, para além da determinação da medida concreta da pena aplicada, outros dois momentos, igualmente compreendidos no processo decisório pressuposto pelo estabelecimento das consequências jurídicas do crime: um momento anterior, caracterizado pelo afastamento da pena de multa alternativa, sempre que esta se encontrar prevista no tipo legal aplicável; e um momento posterior, coincidente com a opção de não substituir a pena de prisão fixada em medida não superior a cinco anos por qualquer uma das penas de substituição previstas no Código Penal e aplicáveis ao caso. Tendo em conta a especial amplitude do juízo cuja revisibilidade é nestes casos excluída e, em particular, o facto de nela irem justamente implicadas ambas as operações jurídicas que, a montante e a jusante, conduziram a uma decisão de privação da liberdade, compreende-se que a mera possibilidade de influenciar o processo decisório que, em caso de revogação da decisão absolutória proferida em primeira instância, o Tribunal da Relação terá de levar a cabo para estabelecer as consequências jurídicas do crime, corresponda a uma concretização insuficiente ou deficitária das garantias de defesa do arguido incluídas no direito ao recurso" (cfr. Acórdão n.° 672/2017, ponto 14).
[…].
Em contraste com a execução coativa das penas não detentivas, a execução da pena de prisão efetiva não pode ser condicionada por qualquer decisão adicional. Não existe qualquer outro meio de defesa ao dispor do condenado para impedir, atenuar ou sequer adiar a execução da prisão efetiva em que é definitivamente condenado. Por conseguinte, a ausência de possibilidade de recurso implica a imediata restrição forçada da sua liberdade o que demonstra o imperativo de se reconhecer ao condenado o direito ao recurso enquanto valor garantístico próprio – e único! – no quadro das garantias de defesa constitucionalmente asseguradas ao arguido.
[…].
2.4.
[…].
Diante destas circunstâncias, a compressão do conteúdo do direito ao recurso traduzida na impossibilidade de impugnar as consequências jurídicas do crime impostas na primeira decisão condenatória quando estas se saldam na imposição de uma pena de prisão representa um sacrifício dos direitos fundamentais do arguido de tal ordem que não encontra já fundamento suficiente no propósito em si legítimo de racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça.
Deste modo, ainda que, no contexto em questão, a Constituição não atribua ao direito ao recurso uma proteção absoluta, negar ao arguido a possibilidade de se defender – ex post facto – desta decisão constitui uma afetação de tal modo relevante da posição da defesa que sempre exigiria, como contrapeso valorativo, a justificação num interesse público de relevo equivalente.

25. Em suma, ao negar o acesso a uma reapreciação por um tribunal superior (no caso o Supremo Tribunal de Justiça) a norma atinge o direito ao recurso de forma excessivamente gravosa porquanto de consequências fundamentais na posição jurídica do arguido, designadamente na sua liberdade. É, por isso, inconstitucional por violar o artigo 32.°, n.° 1, conjugado com o artigo 18.°, n.° 2 da Constituição.
[…].» [16].

21. Ora a simples transcrição, intencionalmente (mais) alongada, do AcTConst 595/2018 que se acaba de efectuar praticamente responde, por si só, à questão que se quer esclarecer do alcance da declaração de inconstitucionalidade nele proferida, se respeitante indistintamente – e, porventura, cumulativamente – aos segmentos da decisão de 2ª instância da culpabilidade e da determinação da sanção ou se, apenas, a este último.
E responde – e, salvo o devido respeito por diferente visão das coisas, responde muito claramente! – , no sentido de se referenciar apenas ao segmento da determinação de sanção que é muito evidente no raciocínio que os Senhores Conselheiros do Tribunal Constitucional desenvolvem que, quanto à questão culpabilidade, a faculdade de contra-alegar e de exercer, em geral, o contraditório no recurso interposto pelo Ministério Público, ou pelo assistente, não só realiza satisfatoriamente a ideia do segundo grau de recurso como não representa compressão desnecessária, desproporcionada, injustificada e inadmissível do direito ao recurso enquanto garantia de defesa com assento constitucional.
De resto, quase que se diria que, na economia do acórdão, a culpabilidade é questão praticamente ausente, girando toda a sua fundamentação em torno da questão da determinação da sanção:
É a propósito desta que se sublinha que o arguido é confrontado como uma parte da decisão que se apresenta como integralmente nova, cujo sentido e conteúdo não tem possibilidade de influenciar ex ante e que, na tese da irrecorribilidade, não pode sindicar ex post.
É, também, a propósito desta que se releva que, se irrecorrível, essa parte se apresentaria como um acto lesivo do direito fundamental à liberdade do arguido proferido numa única instância e sem qualquer tipo de controlo, e por isso que com inevitável e intolerável, prejuízo para a garantia (mínima) do direito ao recurso consagrado no art.º 32º n.º 1 da CR do duplo grau de jurisdição, da reapreciação por (pelo menos) um (outro) tribunal de grau superior das consequência jurídicas do crime:
É, ainda, a propósito desta, que se enfatiza que a interpretação pela irrecorribilidade comprime excessivamente, se não neutraliza, o próprio direito ao recurso enquanto garantia de defesa em nome de um interesse que, não obstante atendível – o da racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, tributário dos interesses da celeridade e da eficácia na administração da justiça –, não pode, na circunstância, justificar à luz da ideia da proporcionalidade do art.º 18º n.º 2 da CRP um sacrifício dessa ordem, porquanto de consequências fundamentais na posição jurídica do arguido, designadamente na sua liberdade.
  
Insiste-se:
O que no concerto interpretativo do art.º 400º n.º 1 al.ª e) preocupou os Senhores Conselheiros que, por maioria, apoiaram a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, não foi a circunstância de um acórdão de Tribunal da Relação proferir, em recurso, uma decisão condenatória sobre absolvição por, designadamente, ter visto factos provados, incriminalidade e pressupostos, em geral, de responsabilidade delitual onde, antes, o tribunal subalterno os não descortinara e, ainda assim, não ser o acto passível de reexame por um terceiro grau de jurisdição.
O que os preocupou, isso sim, foi que, sempre que esse acto se traduza na imposição de uma pena privativa de liberdade, mesmo que em medida não excedente a cinco anos, o condenado, que já antes não tinha tido oportunidade de, na normalidade das situações, discutir e representar os seus argumentos em vista de serem ponderados pelo decisor nos momentos de escolher e de determinar a medida concreta da pena, fique, do mesmo modo, impedido de o fazer depois da condenação por via de recurso ordinário, não obstante a novidade da decisão, não obstante o gravame que ela representa para o seu direito (fundamental) à liberdade e não obstante o interesse da racionalização do acesso ao STJ que a irrecorribilidade serve, não poder, na sua ponderação relativa, justificar tamanho sacrifício dos direitos de defesa.

22. Mas se tudo como precede, então tem o Senhor Procurador-Geral Adjunto ….. inteira razão quando sustenta que a declaração de inconstitucionalidade do AcTConst n.º 595/2018 tem de ser interpretada restritivamente, tem de ser entendida no sentido de apenas censurar a irrecorribilidade que se refira ao segmento do acórdão do Tribunal da Relação que cuide, directa e especificamente, da questão da escolha e da medida da pena, em nada bulindo com a ideia da irrecorribilidade relativa ao segmento que tenha tratado da questão da culpabilidade.     
De resto, constituindo os actos sentenciais verdadeiros actos jurídicos e aplicando-se-lhe, nos termos do art.º 295º do Código Civil, as regras interpretativas dos negócios jurídicos firmadas no art.º 236º a 239º do mesmo diploma, presente o texto e o contexto do acórdão sempre referido, esse é, em boa verdade, o sentido e alcance que o declaratário normal suposto por aquele art.º 236º [17], colocado na posição do declaratório real, razoavelmente atribuiria à declaração de inconstitucionalidade [18].
Sentido e alcance que, como já anunciado, este tribunal acolhe, por isso que interpretando a sempre referida declaração de inconstitucionalidade como incidente, apenas, sobre a ideia da irrecorribilidade da parte do acórdão condenatório relativa à determinação da sanção que não também da relativa à questão da culpabilidade.

23. Ora, isenta, assim, da censura constitucional declarada pelo AcTConst n.º 595/2018 a dimensão normativa do art.º 400º n.º 1 al.ª e) que veda o recurso do segmento decisório relativo à culpabilidade do acórdão de Tribunal da Relação que, em recurso, condena, ainda que sobre absolvição, em pena de prisão não superior a 5 anos, já se verá que o recurso interposto, não obstante recebido, no TR…., não pode ter seguimento.
Com efeito:

24. Nos termos do art.º 399º, só «é permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei».
De acordo com art.º 432.º n.º 1 al.ª b), recorre-se para o STJ de decisões que não sejam irrecorríveis, proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do art.º 400.º.
Segundo o art.º 400.º n.º 1 al. e), «não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos», salvo se sobre decisão de absolvição da 1ª instância e em pena de prisão efectiva, isso conforme restrição interpretativa imposta pela declaração de inconstitucionalidade proferida pelo AcTConst n.º 595/2018.
Tal declaração de inconstitucionalidade, porém e como se viu, só alcança o segmento do acórdão que cuida da escolha dessa pena e da determinação da sua medida concreta, que não também o da culpabilidade.

Limitável e restringível o seu âmbito à questão da culpabilidade nos termos dos art.os 402º n.º 1 e 403º n.º 2 al.ª d), e efectivamente limitado e restringido pelo Recorrente o recurso a essa matéria, sucede, então, que cai o Acórdão Recorrido sob a alçada da irrecorribilidade prevista no art.º 400º n.º 1 al.ª e), que condenou o Acórdão Recorrido, em recurso, em pena de prisão não excedente a 5 anos de duração.
Irrecorribilidade que é causa de rejeição/não conhecimento do recurso, nos termos dos art.os 420º n.º 1 al.ª b) e 414º n.º 2.
E irrecorribilidade a cujo reconhecimento em nada obsta a circunstância de o recurso ter sido admitido no tribunal a quo, que não se trata de decisão que vincule o tribunal ad quem – art.º 414º n.º 3.

25. Visto, então, tudo o que precede, confirma-se que o recurso não pode ter seguimento, por irrecorribilidade do acto recorrido.
E tal irrecorribilidade impõe a imediata e total extinção da instância recursória, que todas as outras questões que o Recorrente suscita – a do erro notório na apreciação da prova e a da nulidade prevista nos art.º 379º n.º 1 al.ª b) e 358º n.os 1 e 3 – respeitam à questão, mais geral, e irrecorrível, da culpabilidade.
E sendo que, como também (repetidamente) prevenido, não é autorizado o conhecimento da questão da escolha e da medida concreta da pena que o Senhor Procurador-Geral Adjunto …. traz à discussão na resposta ao recurso, não só porque não vem suscitada pelo Recorrente e não é de conhecimento oficioso, como porque, não se chegando a entrar na discussão do mérito do Acórdão Recorrido, nenhumas «consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida» há a retirar da decisão nos termos do art.º 403º n.º 3.

26. Razões por que, umas e outras e com atenção ao disposto nos art.os 399º, 402º n.º 1, 403º n.os 1, 2 al.ª d) e 3, 400º n.º 1 al.ª e), 414º n.os 2 e 3, 420º n.º 1 al.ª b) e 432º n.º 2 al.ª b), rejeitável o recurso, aqui se decide não tomar conhecimento do seu objecto.

b. Consideração final.
27. Como acaba de se ver, a decisão vai no sentido de se não conhecer o objecto do recurso.
Não obstante, não se deixa de dizer que, mesmo que não operassem os obstáculos de forma que se anotaram, a impugnação nunca estaria em condições de proceder.
Com efeito e muito sumariamente:

(a). A impugnação da decisão de facto.
28. Insurge-se o Recorrente contra a decisão de facto concretizada na 2ª instância, querendo que se reponha o decidido pelo Tribunal Colectivo, sendo em consequência absolvido como ali tinha sido.
Diz que o Acórdão Recorrido incorreu, nessa parte, em erro notório na apreciação da prova nos termos previstos no art.º 410º n.º 2 al.ª c).

Sem entrar na análise do mérito da alegação – ainda assim, não se deixa de dizer que, ao invocar como parâmetro para julgamento a documentação de alguma da prova oralmente produzida em audiência de julgamento e alguns outros dados externos ao Acórdão Recorrido, o Recorrente ultrapassa irremediavelmente os limites compreensivos do art.º 410º n.º 2 (que, como se sabe, apenas autoriza o manuseamento do que conste do texto do acórdão, em si ou na sua conjugação com as regras de experiência naturalística e da vida), e coloca-se no campo, absolutamente defeso em recurso de revista, da impugnação ampla em matéria de facto prevista no art.º 412º n.os 3, 4 e 6 –, mesmo sem se entrar na análise do mérito, dizia-se, não se deixará de anotar que a questão de facto está, tendencialmente, arredada do perímetro de cognição do STJ por força do disposto no art.º 434º, que apenas pode sindicar, mas por sua iniciativa, a existência de erros-vícios da decisão de facto previstos no art.º 410º n.º 2, de nulidade não sanada – art.º 410º n.º 3 – e, em geral, de violação de normas de direito probatório material.

Nada disso acontecendo in casu, o ciclo da decisão sobre a matéria de facto encerrou-se no Tribunal da Relação, como é entendimento pacífico neste STJ, constituindo o Acórdão Recorrido a última palavra no assunto.
O que, mesmo que o recurso pudesse prosseguir, sempre implicaria que a questão do erro notório na apreciação da prova arguida pelo Recorrente viesse a ser julgada manifestamente improcedente.

29. Acusa também o Recorrente o Acórdão Recorrido de ter incorrido na nulidade prevista no art.º 379º n.º 1 al.ª b) e 358º n.os 3 e 1, por, acusado por crime de violação p. e p. pelo art.º 164º n.º 1 al.ª a) do CP, ter sido condenado por crime de coacção sexual p. e p. pelo art.º 163º do CP, sem que o tribunal tivesse efectuado a comunicação prevista nos n.os 3 e 1 do art.º 358º, concedendo-lhe oportunidade de contraditório.
Mas também por aí não lhe assistiria razão, e por vários motivos.
Na verdade:

É um facto que o Tribunal da Relação condenou o Recorrente no contexto do crime de coacção sexual sem que tivesse observado o disposto no art.º 358º n.os 3 e 1 ou, talvez mais rigorosamente, no art.º 424º n.º 3.
Mas não tinha de o fazer, se não porque, como justificou com a lição do Ac STJ de 28.5.2008 - Proc. n.º 08P1129 [19], «a convolação do crime de violação para o crime de coação sexual – estando em causa o mesmo bem jurídico e pressupondo que os factos relevantes para a integração do crime menos gravemente punido já integravam o objeto do processo, como sucede no presente caso – prescinde da prévia comunicação da alteração da qualificação jurídica, nos termos previstos no art.º 358.º, n.ºs 1 e 3 do CPP» [20], seguramente porque «[o] n.º 3 do art. 424.º do CPP apenas deve ser cumprido quando a alteração da qualificação jurídica feita no acórdão do tribunal da relação não for conhecida do arguido, o que não acontece quando a questão foi suscitada pelo MP no recurso que interpôs do acórdão do tribunal de 1.ª instância» – e no caso, e como visto, foi-o – «relativamente à qual o arguido teve oportunidade de se pronunciar em devido tempo».

De resto, mesmo que devesse ter sido accionado o art.º 424º n.º 3 referido, a omissão não teria tido a consequência da nulidade do Acórdão Recorrido que o Recorrente lhe assaca – que seria a decorrente da conjugação daquela norma com as dos art.os 379º n.º 1 al.ª b) e 425º n.º 4 –, mas tão só a de simples irregularidade nos termos do art.º 123º n.º 1, contudo já sanada.
É que, o que constitui aquela nulidade não é a mera alteração da qualificação jurídica dos factos sem prévia comunicação ao arguido, mas sim a condenação «por factos diversos dos descritos na acusação […], fora dos casos e das condições previstas nos art.os 358º e 359º».
E o que, in casu, aconteceu foi que o Recorrente foi condenado por factos constantes da acusação, embora apenas por parte deles, que quanto aos restantes falhou a prova.
E tais factos, integrando na acusação o complexo que suportava indiciariamente a tipicidade objectiva e subjectiva do crime de violação, autonomizaram-se no crivo da prova, passando a corporizar, objectiva e subjectivamente, (somente) o crime matricial da coacção sexual que estava consumido no de violação.
Motivo por que, o que houve foi uma condenação em menos factos – mas ainda assim, criminalmente relevantes – que não em factos diversos, substancial ou não substancialmente, na definição do art.º 1.º al.ª f).
E, nessa circunstância, a não comunicação prévia ao Recorrente da alteração da incriminação – suposto que devida, insiste-se –, não vindo qualificada em lado algum como nulidade – como, aliás, sempre obrigaria o art.º 118º n.º 1 –, constitui simples irregularidade que haveria de ter sido arguida por ele nos três dias seguintes à sua primeira notificação subsequente no processo, que, no caso, foi a da notificação, na pessoa do seu defensor, do Acórdão Recorrido, efectuada por comunicação electrónica de 24.2.2021, presumivelmente recebida no dia 1.3 seguinte, segunda-feira – cfr. art.º 113º n.os 10, 11 e 12.
Mas sucede que a questão da falta de comunicação da alteração só a suscitou o arguido no recurso que interpôs e que aqui se julga, o que aconteceu em 26.3.2021, muito para além, portanto, do termo final dos três dias referidos – a 4.3.2021 –, ainda que majorados pela tolerância prevista nos art.os 107º n.º 5 e 107º-A e 139º n.º 5 , este do CPC – a 9.3.2021 [21].
E tudo assim com a consequência de a, eventual, irregularidade sempre se encontrar inapelavelmente sanada.  

30. Embora apenas suscitada pelo Senhor Procurador-Geral Adjunto no TR…. na contramotivação e no sentido da confirmação da medida concreta da pena prisão de 4 anos imposta ao arguido, somente aqui cumpre dizer que, ainda que recorrível, em toda a sua extensão, o Acórdão Recorrido fosse, motivo algum haveria para mitigar a sanção imposta ao Recorrente.
E as razões respectivas são as que constam do próprio acórdão, com o realce que lhes empresta o Senhor Procurador, que nada haveria a censurar quer ao momento da incriminação, quer ao da escolha da pena, quer ao da determinação da sua medida quer, finalmente, ao da sua (não) substituição, que tudo colhe apoio nos factos assentes e nas normas dos art.º 164º n.º 1, 40º, 70º, 71º e 50º do CP.

III. decisão.
31. Termos em que acordam os juízes desta 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em:
Rejeitável o recurso, por irrecorribilidade/inadmissibilidade legal, não tomar conhecimento do seu objecto, na sua totalidade, com a atenção ao conjugadamente disposto nos art.os 399º, 400º n.º 1 al.ª e), 432º n.º 1 al.ª b), 420º n.º 1 al.ª b) e 414º n.os 2 e 3, todos do CPP.
Condenar o Recorrente em taxa de justiça, que se fixa em 5 UC's, nos termos do art.º 8º n.º 9 e Tabela III anexa do RCP, e na soma pecuniária de 3 UC´s, nos termos previsto no art.º 420º n.º 3 do CPP.


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Digitado e revisto pelo relator (art.º 94º n.º 2 do CPP).

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Supremo Tribunal de Justiça, em 28.10.2021.



Eduardo Almeida Loureiro (Relator)

António Gama

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[1] O último, na redacção da Lei n.º 59/2007, de 15.3.
[2] Diploma a que pertencerão todos os preceitos que ao diante se citarem sem menção de origem.
[3] Na redacção da Lei n.º 59/2007, de 15.3.
[4] N.º 5 do provado, na decisão de 1ª instância.
[5] N.º 6 do provado, na decisão de 1ª instância.
[6] N.º 7 do provado, na decisão de 1ª instância.
[7] N.º 8 do provado, na decisão de 1ª instância.
[8] N.º 9 do provado, na decisão de 1ª instância.
[9] Diploma a que pertencerão os preceitos que ao diante se citarem sem indicação de origem.
[10] Cfr. Ac. do Plenário das Secções do STJ, de 19.10.1995, in D.R. I-A, de 28.12.1995.
[11] Na redacção da sempre referida Lei n.º 59/2007, de 15.3.
[12] In DR, I de 22.2.2016, segundo o qual «Em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal.»
[13] «Importando salientar que a exigência de garantia do duplo grau de jurisdição apenas fica afetada, como justamente salienta o TC no referido acórdão n.º 595/2018, relativamente à questão da escolha e determinação da medida da pena, uma vez que quanto à matéria relacionada com a culpabilidade o arguido teve oportunidade de se pronunciar na resposta ao recurso interposto pelo MP» – nota n.º 1 no original.
[14] Aliás, a (ainda) actual.
[15] Que não vira desconformidade constitucional na interpretação pela irrecorribilidade.
[16] Sublinhados e destacados negrito acrescentados ao texto original.
[17] Isto é, um declaratário normal «não só na capacidade de entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência, para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante» – Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código Civil Anotado", I, 4ª ed., p. 223.
[18] «O alcance decisivo da declaração será aquele que em abstracto lhe atribuiria um declaratário razoável, medianamente inteligente, diligente e sagaz, colocado na posição concreta do declaratário real, em face das circunstâncias que este efectivamente conheceu e das outras que podia ter conhecido, maxime dos termos da declaração, dos interesses em jogo e seu mais razoável tratamento, da finalidade prosseguida pelo declarante, das circunstâncias concomitantes, dos usos da prática e da lei» – Calvão da Silva, in "Estudos de Direito Comercial", 1996, pp. 102 e ss. e 217.
[19] In www.dgsi.pt.
[20] E outros arestos podia ter convocado, v. g., o AcSTJ 13.11.2013 - Proc. n.º 34/11.0GAFND.S1, in SASTJ, segundo o qual sofrendo o crime com «a nova qualificação jurídica uma atenuação da sua gravidade mantendo a respectiva natureza» não se «suscita qualquer questão em relação à qual» o Recorrente tenha de se defender, «por essa razão não hav[endo] que accionar o mecanismo previsto no n.º 3 do art.º 358º do CPP».
[21] Prazos a que, nos termos do art.º 6º-B n.os 5 al.as a) e d) da Lei n.º 1-A/2020, de 19.3, na versão da Lei n.º 4-B/2021, de 1.2, se não aplica o regime suspensivo do respectivo n.º 1.