Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
24405/16.6T8SNT.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
ARRENDAMENTO PARA COMÉRCIO OU INDÚSTRIA
OBJETO IMPOSSÍVEL
REQUISITOS
LICENÇA DE UTILIZAÇÃO
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
OMISSÃO DE FORMALIDADES
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
PRIVAÇÃO DO USO
INDEMNIZAÇÃO
TRANSAÇÃO JUDICIAL
SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA
TRÂNSITO EM JULGADO
LEGITIMIDADE ADJETIVA
Data do Acordão: 05/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Sumário :
I – A impossibilidade jurídica a que se reporta o art.º 280.º n.º1 do CCiv (“é nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível”) prende-se com a oposição ontológica, do conteúdo (cláusulas) ou do objecto mediato, com o direito.

II – Se, à data em que celebraram transacção judicial, na qual celebraram promessa de arrendamento, ambas as partes se encontravam cientes da inexistência de licença de utilização do imóvel para os fins pretendidos e a própria Ré desenvolveu diligências para a obtenção da licença de utilização dos espaços, também ambas as partes contribuíram culposamente para a omissão das formalidades legais necessárias à celebração do contrato definitivo, podendo a culpa de ambas ser graduada em igual medida.

III – No quadro da transacção celebrada, a Ré justificava o gozo do imóvel com base no direito dos Autores, isto é, com base no gozo que os Autores lhe proporcionavam (art.ºs 1022.º e 1023.º do CCiv), pelo que não provava direito, real ou pessoal, capaz de opor à restituição do bem (art.º 1311.º do CCiv).

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


                  

Razão do Recurso

AA e mulher BB, CC, DD e ..., intentaram a presente acção, com processo declarativo e forma comum, contra Casa de Hóspedes Casal do Olival, Ld.ª, pedindo:

- que se reconheça que a Ré quebrou o compromisso constante do acordo judicial referido na p.i.;

- que se condene a Ré a reconhecer que violou o princípio da boa fé ao recusar-se a celebrar o contrato definitivo;

- que se condene a Ré a reconhecer o direito de propriedade dos Autores, relativamente ao imóvel a que se referem os autos e a entregá-lo, de imediato, livre e desocupado;

- se condene a Ré a pagar aos autores, a título de indemnização, a quantia de € 2 500,00/mês, desde a data da citação até efetiva restituição do imóvel.

Subsidiariamente pediram:

- se declare formalizado o contrato de arrendamento, com as cláusulas constantes da transação judicialmente homologada;

- se declare a resolução do contrato, condenando a Ré a entregar o imóvel livre e devoluto, assim como a pagar as rendas vencidas e que se vencerem.

Para tanto, alegaram que são proprietários de um prédio urbano, o qual, por escrito particular, datado de 1 de Janeiro de 1994, celebrado entre os Autores e o anterior proprietário, foi objecto de um contrato promessa de arrendamento, pela renda estipulada de 310 000$00, e se destinou ao exercício da indústria hoteleira, casa de hóspedes, pensão, residencial, lar de idosos e lar de estudantes, sendo que o contrato definitivo nunca chegou a ser celebrado.

Em acção judicial que correu termos no Tribunal ..., foi celebrado termo de transacção entre os então autores e a Ré Casa de Hóspedes Casal do Olival, no qual se comprometeram a celebrar um novo contrato de arrendamento relativo ao imóvel até ao dia 30-04-2015, pelo prazo de 5 anos e pela renda mensal de € 2500,00.

Após a celebração de tal acordo, no Tribunal, os Autores foram confrontados com sucessivas exigências da Ré, de introdução de novas cláusulas e alterações de outras, nomeadamente de data de início e duração do contrato.

Os Autores não aceitaram a alteração do prazo do contrato e, em 12 de Abril de 2016, remeteram à mandatária da Ré a última versão do contato, sendo que desde então, até ao presente, a Ré e o seu legal representante se remeteram ao silêncio.

Cansados, os Autores deram por encerradas as negociações, e requereram a notificação judicial avulsa da Ré, notificando-a para comparecer na sede da Associação Lisbonense de Proprietários, no dia 29-6-2016, para se proceder à assinatura do contrato. Porém, o legal representante da Ré não compareceu à assinatura do contrato e enviaram ao Autor uma carta referindo “o impedimento legal derivado da falta de licença de utilização e certificado energético, requisitos a cargo dos senhorios”, referência infundada.

De qualquer modo, independentemente de não ter assinado o contrato, a Ré liquidou as rendas referentes aos meses de Maio, Junho, Julho, Agosto e Setembro de 2015, o que parece significar que a Ré aceitou as condições principais do contrato, aceitando tal clausulado.

Porém, a Ré não pagou a renda de Outubro de 2015, nem as posteriores, no valor de € 2500,00 cada, o que constitui fundamento legal de resolução do contrato.

A Ré contestou e deduziu pedido reconvencional. Alegou que o contrato-promessa vigorou até à instauração da acção, pelo que os senhorios, mensalmente, passaram um recibo das rendas, sendo que à data da  instauração da acção, todas as rendas estavam pagas.

Por outro lado, relativamente à essencialidade da licença e do certificado energético os mesmos eram absolutamente indispensáveis sob pena de nulidade do contrato. O acordo alcançado em termos de transação não pode vincular à outorga de um contrato em violação da lei. A Ré ignorava que o edifício não tinha licença de utilização.

Em reconvenção, pede se condenem os Autores a pagar-lhe a título de indemnização pela impossibilidade do exercício de actividade no locado, resultante da falta de licença, à razão de € 2 000/mês, contados desde o 1.º mês do contrato, até à obtenção da licença de utilização do locado pelos Autores, a liquidar em execução de sentença. Pede ainda que os Autores sejam condenados a reconhecerem o direito de retenção da Ré sobre o locado.


As Decisões Judiciais

A sentença proferida em 1.ª instância julgou a acção procedente e a reconvenção improcedente e, consequentemente:

(a) Condenou a Ré a reconhecer o direito de propriedade dos Autores e habilitados sobre o prédio, constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., ..., ..., descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o n.º868 e inscrito na matriz predial urbana da freguesia ... e ... sob oartigo 559.;

(b) condenou a Ré a reconhecer o incumprimento definitivo do contrato promessa de arrendamento, celebrado através de transacção judicialmente homologada;

(c) condenou a Ré a entregar aos Autores, livre e desocupado de pessoas e bens o imóvel descrito em a);

(d) condenou a Ré no pagamento aos Autores, a título de indemnização, da quantia de € 2 500,00 por cada mês de ocupação do imóvel, desde a citação até efectiva restituição do mesmo aos Autores.

Absolveu os Autores/reconvindos do pedido contra eles deduzido pela Ré.

Tendo a Ré interposto recurso de apelação, a sentença proferida foi confirmada na Relação, embora com diferente fundamentação, isto é, por via da nulidade do contrato promessa de arrendamento e da inexistência do contrato prometido e da subsequente não existência de qualquer título que legitimasse a ocupação do imóvel por parte da Ré, devendo esta restituir o imóvel aos seus legítimos proprietários.


A Revista 

Ainda inconformada, a Ré interpõe recurso de revista.

Formula as seguintes conclusões de recurso:

1ª - O presente Recurso é interposto de Acórdão da Relação de Lisboa, no qual o Tribunal “a quo” confirma a Sentença proferida em 1ª Instância, referindo que «Chegamos, assim, à mesma conclusão que a sentença recorrida, embora com fundamento diverso», nos seguintes termos;

a) «Face à nulidade do contrato promessa de arrendamento e à inexistência desse contrato prometido, não existe qualquer título que legitime a ocupação do imóvel por parte da Ré (ora Recorrente), que deverá restituir o imóvel aos seus legítimos proprietários (os ora Recorridos)»;

b) «…não merece qualquer reparo a decisão de condenar a Ré ao pagamento de indemnização pela ocupação do imóvel até à efectiva entrega, em quantia equivalente àquela que as partes acordaram ser a renda devida”;

c) Relativamente ao pedido de lucros cessantes pela impossibilidade de utilização do imóvel prometido arrendar, decorre do supra exposto a sua improcedência. Na verdade, não havendo culpa de nenhuma das partes pela não obtenção da licença de utilização e sendo certo que a Ré sabia da sua inexistência quando celebrou o contrato promessa de arrendamento, nunca poderia exigir dos Autores indemnização a esse título»;

d) «Por outro lado, (…) da prova produzida não resultou que, não obstante a impossibilidade legal, a Ré de facto não tenha dado utilização ao local. Pode até não ter utilizado para os fins que pretendia, mas resultou provado que o locado é a habitação familiar do legal representante da Ré…»

2ª -A Sentença proferida em 1ª Instância julgou improcedente o pedido reconvencional e condenou a Ré, ora Recorrente, a:

a) Entregar aos Autores livre e desocupado de pessoas e bens o prédio descrito na CRP ... sob o nº 868, identificado nos autos;

b) No pagamento aos Autores, a título de indemnização, da quantia de € 2 500,00€ por cada mês de ocupação do imóvel, desde a citação até efectiva restituição do mesmo aos Autores;

3ª - O fundamento jurídico que determinou tal Sentença foi o seguinte:

- O Tribunal da 1ª instância condenou a Ré a reconhecer “o incumprimento definitivo do contrato promessa de arrendamento, celebrado através de transacção homologada”.

4ª - Ou seja: a 1ª Instância considerou que, no caso dos autos, aplicável o regime jurídico do incumprimento definitivo de contratos promessa, imputando tal incumprimento à Recorrente, baseando a condenação de entrega e pagamento que determinou no aludido incumprimento que considerou culposo, em desfavor daquela.

5ª - Por sua vez, o Douto Acórdão recorrido, manteve a condenação de entrega e pagamento atrás referidas; porém, o fundamento jurídico que aplicou foi completamente distinto, a saber:

a) Considerou que o “contrato promessa” em análise nos autos (a transacção judicial qualificada pela 1ª Instância como contrato promessa), não deve merecer tal qualificação jurídica, não devendo ser aplicado o regime escolhido pela 1ª Instância, nos seguintes termos:

- «I. Um denominado contrato-promessa onde logo se estabeleçam as cláusulas do contrato prometido, antecipando-se os efeitos próprios deste que logo passam a verificar-se, não merece a qualificaçao de contrato-promessa, mas, antes, a que juridicamente cabe ao contrato definitivo – o supostamente prometido»;

b) A seguir, decidiu nos seguintes termos:

- «II. A extrema dificuldade em obter uma licença de utilização para actividade comercial, inviabilizando a realização do contrato de arrendamento, deverá ser equiparada à impossibilidade legal de celebrar o mesmo. Assim, nos termos do disposto no artº 280º do C. Civil, será nulo o contrato promessa de arrendamento quando não seja possível obter a licença de utilização para fim diverso daquele para a qual se destinava o prédio a arrendar.».

6ª - Apesar de manter a condenação determinada pela 1ª Instância, ao Tribunal da Relação assentou-a num regime jurídico completamente distinto: o regime da Nulidade (e não o regime do incumprimento, como feito pela 1ª Instância), conforme, aliás, é referido no próprio Acórdão, o que determina a admissibilidade do presente recurso de revista, sendo manifesto não se verificarem, in casu, os pressupostos legais de dupla conforme.

6ª- A – No caso dos autos estamos perante uma questão de particular relevância social e verifica-se manifesta ilegitimidade passiva processual: a condenação determina a entrega de casa de morada de família de pessoas que nunca foram chamadas ao processo – nos termos e para os efeitos do artº 672º, nº 1 b) do CPC.

7ª – Efectivamente, encontra-se pacificamente assente nos autos, ab initio, que “o legal representante da Ré vive no prédio com a sua família, fazendo do mesmo sua habitação”, sendo que o Tribunal “a quo” profere uma decisão que determina entrega de um prédio que integra casa de morada de família de uma agregado familiar sem os chamar aos autos as pessoas afectadas pela sua decisão(!) (questão que assume particular delicadeza e perigo para a integridade do domicílio de terceiros, que não foram chamados aos autos).

8ª - Verifica-se, por, in casu, uma ilegitimidade passiva, que deverá ser imediatamente declarada oficiosamente pelo Tribunal – sob pena de serem violadas as normas constitucionais que protegem o domicílio, o artº 20º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa: ficaria uma família sujeita a ser despejada da sua casa de morada de família num processo no qual não foi parte… manifestamente inaceitável, à luz dos mais elementares princípios de direito que integram a nossa ordem jurídica.

9ª - Além do mais, esta utilização do prédio em causa nos autos apenas como “casa de morada de família” deverá ser também levada em consideração para efeitos de fixação de valores a pagar pela Recorrente aos Recorridos, o que não se verificou in casu, tendo o Douto Acórdão recorrido:

a) Por um lado, declarado nulo o contrato firmado entre as partes, em virtude de não se ter obtido licença de utilização para estabelecimento comercial;

b) Por outro, fixado uma contrapartida mensal a pagar pela Recorrente aos Recorridos, que correspondia à determinada contratualmente pelas partes em caso de arrendamento de estabelecimento comercial.

10ª - A questão exposta nas anteriores conclusões 6ª a 9ª releva para efeitos conhecimento do recurso (imediata conhecimento da ilegitimidade arguida), mas também da sua admissibilidade do presente recurso, nos termos e para os efeitos do artº 672º, nº 1, b) do CPC, além de determinar o efeitos suspensivo do presente recurso, que expressamente se requer, para evitar o perigo de determinar o despejo de “uma família” que jamais foi chamada aos presentes autos e se encontra na posse do prédio, integrando-o como sua casa de morada de família.

11ª – O Douto Acórdão recorrido errou ao aplicar o regime da nulidade ao contrato promessa que integra a transação referida nos autos, o que integra violação manifesta do artº 410º do C. Civil e dos artºs 1.031º e 1.032º do C. Civil, bem como errada aplicação ao caso do artº 280º do C. Civil, face a norma específica do nº 3 do artº 410º do mesmo Código.

12ª – No caso dos autos é clara a existência de título que legitima a posse da Recorrente: contrato promessa de arrendamento, que não se encontra inquinado de nulidade, nos termos do artº 410º do C. Civil + obrigação dos Recorridos obterem a licença em falta para outorga de contrato prometido.

13ª - O Douto Acórdão recorrido deixou claro que a Recorrente não tem qualquer culpa na falta de licença e, não ficando provado qualquer uso por parte desta do prédio, para além do realizado por pessoas jurídicas distintas que nem sequer se encontram nos autos (o agregado familiar do legal representante), falham todos os pressupostos legais para a condenar no pagamento de quaisquer quantias, muito menos as que as partes estipularam seriam as devidas em caso de exploração de estabelecimento – encontrando-se a decisão condenatória, por isso, além do mais, inquinado de abuso de direito.

14ª – Os Recorridos são responsáveis pelo pagamento à Recorrente de lucros cessantes: em face da obrigação de obtenção do licenciamento para a actividade que contrataram, que, até hoje, não conseguiram obter, apesar de legalmente obrigados (artºs 1.31º e 1.032º do C Civil).

15ª - O Douto Acórdão recorrido julgou nos seguintes termos:

«I. Um denominado contrato-promessa onde logo se estabeleçam as cláusulas do contrato prometido, antecipando-se os efeitos próprios deste que logo passam a verificar-se, não merece a qualificação de contrato-promessa, mas, antes, a que juridicamente cabe ao contrato definitivo – o supostamente prometido»;

«II. A extrema dificuldade em obter uma licença de utilização para actividade comercial, inviabilizando a realização do contrato de arrendamento, deverá ser equiparada à impossibilidade legal de celebrar o mesmo. Assim, nos termos do disposto no artº 280º do C. Civil, será nulo o contrato promessa de arrendamento quando não seja possível obter a licença de utilização para fim diverso daquele para a qual se destinava o prédio a arrendar».

16ª – Porém, segundo as mais elementares regras de experiência comum, na generalidade dos casos, por razões de certeza e confiança jurídica, o contrato-promessa prevê os direitos e obrigações que hão-de reger o contrato definitivo: os contraentes têm todo o interesse em não se vincular a “promessas em branco”, mas sim a fixarem os elementos essenciais do negócio prometido.

17ª – E, justamente para prever este tipo de situações, correntes, a lei fixa um regime jurídico específico para o contrato promessa, consagrado no artº 410º do C. Civil.

18ª - Note-se que a lei, no nº 3 do artº 410º do C. Civil, consagra uma nulidade atípica, justamente para efeitos de arguição de nulidade no caso de falta de licença de utilização:

- “ No caso de promessa respeitante à celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício, ou fracção autónoma dele, já construído, em construção ou a construir, o documento referido no número anterior deve conter o reconhecimento presencial das assinaturas do promitente ou promitentes e a certificação, pela entidade que realiza aquele reconhecimento, da existência da respectiva licença de utilização ou de construção; contudo, o contraente que promete transmitir ou constituir o direito só pode invocar a omissão destes requisitos quando a mesma tenha sido culposamente causada pela outra parte”.

19ª - Ou seja, nos termos legais, a nulidade de um contrato-promessa derivada de falta de licença de utilização, só pode ser invocada por uma parte quando foi culposamente causada pela outra.

20ª - No caso em análise, fazendo tábua rasa deste regime, o Tribunal “a quo” considera que a “extrema dificuldade” em conseguir uma licença de utilização para o fim prometido em contrato promessa determina, ipso facto, uma nulidade, nos termos do artº 280º do C. Civil.

21ª - Note-se que dificuldade (mesmo extrema, apesar de não se alcançar o enquadramento jurídico do conceito de “dificuldade extrema” de cumprimento de contrato promessa), não corresponde a impossibilidade.

22ª - A aplicação da norma do artº 280º do C. Civil ao caso é, assim, objectivamente, errada, e o Douto Acórdão recorrido erra manifestamente ao não aplicar ao caso a norma do artº 410º do C. Civil.

23ª - O próprio Tribunal “ a quo” refere que a falta de licença não é imputável à Recorrente (logo, não estamos perante qualquer incumprimento culposo da Recorrente), isentando, porém, de culpas também os Recorridos, conforme se passa a transcrever:

- “… a não comparência da Ré em obediência à notificação judicial avulsa foi irrelevante para o efeito, pois ainda que tivesse comparecido, não estavam reunidas as condições legais para assinatura do contrato”.

- “Donde, não se vê que se possa atribuir culpa a qualquer das partes pela não celebração do contrato. O que se verifica é a circunstância do contrato prometido não poder ser celebrado por impedimento legal, dada a falta de documento imprescindível, a emitir pela Administração Pública, neste caso, a Câmara Municipal ...”.

24ª- Aqui chegados, temos, por imposição do nº 3 do artº 410º do C.Civil, dois corolários:

a) Não se encontrando provada nos autos qualquer culpa da Recorrente na falta da licença de utilização necessária para outorga do contrato prometido, a nulidade do contrato promessa não poderá ser invocada, nem declarada;

b) Também não pode ser assacado à Recorrente qualquer incumprimento contratual.

24ª-A - Resulta dos artigos 1031.º e 1032.º do Código Civil que o Recorridos se encontravam obrigados, ao celebrar o contrato em causa nos autos, a proporcionar o gozo do prédio em questão de acordo com a finalidade acordada (arrendamento comercial), ou seja, sob pena de incumprimento do contrato em causa, ficou vinculado a modificar ou a permitir as necessárias alterações no prédio e a promover todas as diligências administrativas necessárias por forma a adaptá-lo e adequá-lo a essa nova utilização, impondo o senso e a experiência comum a necessidade da concretização dos actos necessários para tal efeito – pelo que, contrariamente ao que escreve o Acórdão recorrido, o incumprimento do contrato promessa em análise nos autos deriva de culpa dos Recorridos (promitentes senhorios).

25ª - Não nos podemos esquecer que os Recorridos/AA. peticionam pagamento de rendas previstas para o contrato prometido – que corresponderiam ao valor de exploração de um estabelecimento comercial (2.500,00€/mês), e jamais ao valor de rendas referentes a uma “casa de morada de família” – uso provado nos autos, pelo que, ao se avantajarem através de uma suposta nulidade derivada de falta de licença (exigindo restituição do prédio), por um lado, mas exigirem pagamentos de rendas fixadas em função do uso que falta licenciar, por outro, os Recorridos agem em manifesto venire contra factum proprium, que expressamente se argui.

26ª - Do exposto decorre que não tem razão o Tribunal “a quo” quando escreve:

- “Face à nulidade do contrato promessa de arrendamento e à inexistência desse contrato prometido, não existe título que legitime a ocupação do imóvel por parte da Ré, pelo que deverá esta restituir o imóvel aos seus legítimos proprietários”; e

- «…não merece qualquer reparo a decisão de condenar a Ré ao pagamento de indemnização pela ocupação do imóvel até à efectiva entrega, em quantia equivalente àquela que as partes acordaram ser a renda devida”.

27ª - A nulidade do contrato promessa de arrendamento apresenta enquadramento legal específico (artº 410º, nº 3 do C. Civil) – norma violada no Douto aresto recorrido e o título que legitima a ocupação do imóvel é, justamente, a traditio realizada na sequência de contrato promessa – encontrando-se impedido apenas o uso para o qual o senhorio ainda não forneceu licenciamento, e não qualquer outro.

28ª - Ficando claro no Douto Acórdão recorrido que a Recorrente não tem qualquer culpa na falta de licença e não ficando provado qualquer uso, por parte desta do prédio, para além do realizado por pessoas jurídicas distintas (o agregado familiar do legal representante), falham todos os pressupostos legais para a condenar no pagamento de quaisquer quantias, muito menos as que as partes estipularam seriam as devidas em caso de exploração de estabelecimento – encontrando-se a decisão condenatória, por isso, além do mais, inquinado de abuso de direito.

29ª – Errando também o Tribunal “a quo”, ao considerar que, por um lado, não se encontra provado qualquer uso pela Recorrente (a não ser o de casa de morada de família por outra pessoa), por um lado; e, por outro, condenar a Recorrente a pagar justamente a mesma quantia mensal que tinha sido fixada pelas partes para o efeito daquela realizar uma exploração comercial do prédio – o que, tudo, integra violação do princípio da igualdade das partes.

29ª-A - Do exposto decorre que o Douto Acórdão recorrido aplicou erradamente ao caso o artº 280º do C. Civil e devia ter aplicado ao caso normas do artº 410º e 1.031º e 1.032 do C. Civil (que no Acórdão foram violadas), as quais deveria ter interpretado e aplicado por forma a concluir conforme se escreveu neste ponto.

30ª - Ao absolver os Recorridos do pedido de pagamento, deduzido pela Recorrente, de lucros cessantes pela impossibilidade de utilização do imóvel e pelo valor das benfeitorias, o Douto Acórdão recorrido viola os artºs 406º, 1.031º e 1.032º do C. Civil, bem como o princípio geral de equidade e encontra-se inquinado de abuso de direito, pois:

a) O Tribunal “a quo”, a este respeito, volta a considerar que nenhuma das partes tem culpa da falta de obtenção de licença de utilização para a finalidade para o qual o prédio identificado nos autos foi acordado ser arrendado, pelo que se dá, nesta sede, por reproduzida toda a matéria antes alegada.

b) Tal “falta de culpa”, no entender do Tribunal “a quo”, apenas tem um efeito perverso para a Recorrente: esta, tem de restituir o prédio que recebeu por traditio e pagar rendas acordadas, como se a licença tivesse sido obtida (apesar de não se encontrar provado qualquer uso, mas sim de terceiros, em casa de morada de família e não estabelecimento).

c) Já quanto aos Recorridos tal “falta de culpa” tem um efeito paliativo: não têm de pagar à Recorrente os lucros cessantes decorrentes dessa falta e ainda têm o “prémio” de verem a Recorrente condenada a restituir-lhes o prédio, em resultado da sua omissão de diligenciar a obtenção da necessária licença, a pretexto da sua obtenção apresentar uma suposta “dificuldade extrema”.

31ª - Estamos perante um tratamento discriminatória da Recorrente, que viola também o princípio da igualdade das partes e o direito a um processo justo – o que expressamente se invoca.

32ª - O Tribunal “a quo” refere que “da prova produzida (…) não resultou que a Ré não tenha dado utilização ao locado”, porém, salvo o devido respeito:

a) Está provado que não poderia utilizar o prédio para os fins contratados, por falta de obtenção da necessária licença (essa falta até determinaria, no entender do Tribunal “a quo”, nulidade) e que tal utilização foi prevista no contratado pelas partes;

b) A única utilização provada nos autos é a que é realizada pelo legal representante e família, como casa de morada de família;

c) À Recorrente ainda caberia, nas palavras do Tribunal “a quo”, a diabólica prova negativa de que “não utilizou o locado”…

33ª - E não se diga – como faz o Douto Acórdão recorrido, que a Recorrente já tinha desistido deste pedido em outro processo (o que levou à outorga do contrato promessa/transação que integra os autos), pois:

a) Essa desistência só foi motivada, obviamente (pelas regras de normalidade comum), pela outorga do referido contrato promessa, que pressupunha obtenção de licença para exploração;

b) O Tribunal deveria, ainda assim, a admitir tal desistência, considerar que os lucros cessantes peticionados nos presentes autos se reportam ao período posterior a tal desistência e em diante, e fixar uma indemnização a pagar pelos Recorridos à Recorrente recorrendo à equidade.

34ª - Lamentavelmente, apesar de julgar que “a falta de licença não é culpa de ninguém”, o Tribunal “ a quo” apenas penaliza a Recorrente em virtude de tal falta, apesar de (cf. 1.031º e 1.032º do C. Civil) a obrigação de a obter ser dos Recorridos e de estes se terem obrigado a facultar o imóvel para os fins a licenciar (devendo cumprir, cf. 406º do C. Civil), afigurando-se o teor do Douto Acórdão recorrido extremamente injusto, violador das normas atrás apontadas e dos princípio da equidade, da justiça e da igualdade das partes, que enformam o nosso sistema jurídico e que foram, assim, violados.

35ª - Do exposto resulta que, face à matéria provada e ao Direito que atrás se refere, o Tribunal “a quo” deveria ter condenado os Recorridos no pagamento de quantias para indemnização dos lucros cessantes peticionados.

36ª - Quanto à indemnização por benfeitorias peticionada pela Recorrente, apesar da desistência do pedido apresentada em processo anterior, o Tribunal deveria levar a sua realização em consideração, pelo menos para efeitos de fixar valores a pagar pela ocupação do prédio pela Recorrente, determinando senão a sua total absolvição (como acima se defende) a sua diminuição drástica face à manifesta impossibilidade de uso de harmonia com o contratado e frustração de todas as expectativas criadas à Recorrente neste negócio.

37ª – Da matéria exposta nas presentes conclusões resulta que o Douto Acórdão recorrido aplicou erradamente o regime do artº 280º do C. Civil e violou as seguintes normas e princípios: princípio da protecção constitucional do domicílio (casa de morada de família), princípio da igualdade das partes e do contraditório, artº 20º, nº 1 da CRP, artºs 334º, 406º, 410º, 1.031º e 1.032º do C. Civil, enquadramento legal que deveria ter aplicado e interpretado por forma a considerar conforme anteriores conclusões 1ª a 36º.

38ª – Deve, assim, ser revogado e substituído por outro que julgue improcedente o pedido deduzido pelos Recorridos e procedente o pedido reconvencional.

Por contra-alegações, os Autores sustentam, que a não admissão de revista excepcional, quer a negação da revista.


Factos Provados

1. Os autores são comproprietários em comum e sem determinação de parte ou direito do prédio urbano constituído sob o regime da propriedade horizontal sito na Rua ..., ..., ..., inscrito sob o artigo 559 da matriz predial urbana da união de freguesias ... e ... e inscrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o n.º 868.

2. Por escrito particular de 1 de janeiro de 1994, AA, e outros celebraram com a Ré um contrato promessa de arrendamento, tendo por objecto o prédio referido em 1, pela renda mensal de 310.000$00.

3. O arrendamento teve início em 1 de Janeiro de 1994 e destinou-se ao exercício da indústria hoteleira, casa de hóspedes, pensão residencial, lar de idosos e lar de estudantes.

4. Na acção judicial de despejo – intentada pelos então proprietários contra a Ré – que correu termos na Comarca de Lisboa Oeste – ... – Instância Central ... secção Cível – J..., sob o n.º 9574/10...., foi celebrado termo de transação entre os então autores AA, BB e CC e a então Ré Casa de Hóspedes Casal do Olival.

5. Nessa mesma transação as partes comprometeram-se a celebrar um novo contrato de arrendamento, relativamente ao imóvel até ao dia 30 de Abril de 2015, pelo prazo certo de 5 anos, com início em 01 de Maio de 2015 e termo em 30 de Abril de 2020, pela renda mensal de € 2.500,00, fazendo constar nesse contrato uma cláusula de opção de compra pelo preço de € 400.000,00, a exercer pela Ré durante o período de duração do contrato e nessa conformidade os Autores e Ré desistiram dos pedidos formulados na acção e na reconvenção.

6. A acção referida em 5. era uma acção de despejo e tinha como fundamento a falta de pagamento de rendas do local arrendado por parte da Ré.

6 A. Nessa acção, a Ré apresentou contestação, onde deduziu pedido reconvencional no qual pediu a condenação dos Autores “a título de indemnização pela impossibilidade de exercício de actividade no locado, resultante da falta de licença, à razão de € 2 000 mensais, contados desde o 1.º mês do contrato até à obtenção da licença de utilização (…) e ainda na quantia que se apurar em sede de perícia a realizar no imóvel, a título de indemnização por obras de adaptação e benfeitorias executadas no locado, igualmente a liquidar em execução de sentença (…)”.

7. Após a transação, os mandatários das partes encetaram negociações para a formalização do contrato de arrendamento.

8. Em15 de Abril de 2015, o mandatário dos Autores enviou ao então mandatário da Ré a minuta do contrato de arrendamento a celebrar entre ambos.

9. Em 05 de Maio de 2015, o ilustre mandatário dos Autores enviou ao ilustre mandatário da Ré a comunicação constante de fls. 16 que aqui se dão por integralmente reproduzida.

10. Em 05 de Maio de 2015, o então mandatário da Ré enviou ao mandatário dos Autores a comunicação constante de fls. 17, que aqui se dá por integralmente reproduzida.

11. Em 7 de Maio de 2015, o então mandatário da Ré enviou ao mandatário dos Autores a contraproposta de minuta de arrendamento, com o teor fls. 19v. e ss. que aqui se dá por integralmente reproduzido.

12. Em 18 de Maio de 2015, o mandatário dos Autores enviou ao mandatário da Ré o email constante de fls. 21 v., aceitando as alterações propostas com exceção da cláusula 14.ª.

13. Em 27 de Maio de 2015 o mandatário da Ré enviou ao mandatário dos Autores o email constante de fls. 24 v. que aqui se dá por integralmente reproduzido.

14. No mesmo dia 27 de Maio de 2015, o mandatário dos autores respondeu aos mandatários da Ré nos moldes constantes de fls. 24 v. que aqui se dá por reproduzidos nos seguintes moldes: “ Se a questão é o n.º 2 do art. 14.º, e assumindo eu a responsabilidade da sua eliminação, sem falar com os senhorios e se me garante que a casa de hóspedes paga a renda de Maio e até ao dia 8 de Junho, faça o favor de eliminar a cláusula 2 do art. 14.º (…) Envie-me logo que possa o contrato e as cópias assinadas, para os senhorios poderem liquidar o I. selo.(…)”.

15. No dia 29 de Maio de 2015 o mandatário da Ré enviou ao mandatário dos Autores o email constante de fls. 27 v com o seguinte teor: “Ainda não foi desta, porque a cliente me tem vindo a levantar questões a pouco e pouco, embora sempre me diga (também me parece que não) que não é por causa do valor ou do pagamento da renda. A questão prende-se agora com a responsabilidade pelo eventual risco de falta de licença, pretendendo o cliente que não fiquem dúvidas que, caso isso aconteça, a responsabilidade seja da inquilina. A questão da compra pelos € 400 000 é o ressuscitar de uma promessa que os seus clientes lhe fizeram, em 2013, em que aceitavam vender o prédio por € 300.000,00 com o pagamento mensal de 2.500,00, mas que depois retrocederam. Sei que o colega já deve estar cansado disto, mas eu também (…)”

16. Em resposta ao email referido em 15., o ilustre mandatário dos Autores enviou o mail constante de fls. 28, com o seguinte teor: “Isto está a ultrapassar o bom senso e a boa-fé nas negociações. Compreendo a sua posição, mas a sua cliente não deve andar todos os dias a arranjar uma nova forma ou um novo motivo para não assinar o contrato. (…) Hoje foi esta, amanhã qual será a imposição da sua cliente? (…)”

17. Em 04 de Junho de 2021 o mandatário dos Autores enviou ao mandatário dos Réus o email de fls. 33 v. no qual refere: “Para não atrasarmos mais isto (estamos em Junho com a renda de Maio vencida e a de Junho até dia 8) tomo a liberdade de lhe pedir que a Casa de Hóspedes assine o contrato e o faça chegar à Associação Lisbonense de Proprietários, tal como consta da minuta que me enviou…e seja o que Deus quiser. Vou já interceder junto da família AA para começar a tratar do assunto da licença de utilização até com colaboração da própria ALP.(…)”.

18. Em 5 de Junho de 2015, o mandatário da Ré informa o mandatário dos Autores que vai para os ... e regressa na 3.ª f, afirmando “Julgo que agora não vai haver mais nenhum problema, a não ser mais este atraso. Mas tem de ser, devido à minha ausência! O mais tardar na 3.ª feira este assunto ficará certamente concluído. (…)”

19. No dia 24 de Junho de 2015 o mandatário da Ré comunicou ao mandatário dos Autores o abandono do patrocínio por “divergências surgidas”.

20. Na falta de concretização do contrato, os Autores intentaram um procedimento de notificação judicial avulsa da Ré, notificando-a para comparecer no dia 29 de Junho de 2016, entre as 11h e as 11.30, na Associação Lisbonense de Proprietários, para proceder à assinatura do contrato, com a cominação de que, caso não compareça, os requerentes consideram rompidas todas as negociações para a celebração do contrato.

21. O legal representante da Ré não compareceu à assinatura do contrato.

22. No dia 27 de Junho de 2016, a Ré enviou aos Autores uma carta na qual referia que “não é possível outorgar o contrato para o qual fomos notificados em virtude do impedimento legal derivado da falta de licença de utilização e certificado energético, requisitos a cargo dos senhorios”.

23. A Ré continua a deter as chaves do todo o prédio fruindo-o.

24. O prédio em apreço é constituído por quatro pisos, lados direito e esquerdo, sendo o r/c direito constituído por dois vestíbulos, 3 assoalhadas, cozinha, casa de banho e arrecadação no sótão, os 1.º, 2.º e 3.º andares direitos são constituídos por 2 vestíbulos, 4 divisões, cozinha, duas casas de banho e uma arrecadação no sótão; o rés-do- chão esquerdo é constituído por dois vestíbulos, 4 divisões assoalhadas, duas casas de banho e uma arrecadação no sótão e os 1.º, 2.º e 3.º andar esquerdos por dois vestíbulos, 4 assoalhadas, duas casas de banho e uma arrecadação, cada um.

25. Está situado no centro de ... e é servido por transportes públicos.

26. Relativamente ao pedido de emissão de licença de utilização (proc. 2535/76) o mesmo foi deferido por despacho do Sr. Presidente da Câmara de 26-04-2003.

27. Indeferido foi o pedido de mudança de utilização do prédio, apresentado pela Casa de Hóspedes do Olival, que deu origem ao processo OB19...70.

28. Posteriormente, em 31 de Janeiro de 2018, foi emitida nova licença de utilização referente ao mesmo prédio.

29. Não existe registo da existência de certificado energético relativamente ao prédio dos autos.

30. Não obstante a não assinatura do contrato de arrendamento, a Ré procedeu ao pagamento de algumas das rendas devidas pela ocupação do locado.

31. O legal representante da Ré vive no prédio com a sua família, fazendo do mesmo sua habitação.

32. O arrendamento prometido entre as partes, através da transacção referida nos pontos n.ºs 4 e 5 dos factos provados, e que consta da minuta de contrato que integra a notificação judicial avulsa referida no ponto n.º 20 dos factos provados, destina-se ao exercício da seguinte actividade da Ré: “instalação de uma residencial, pensão e lar de idosos ou estudantes”.

33. Em 8 de Novembro de 1995 e 28 de Junho de 1996, a ora Ré foi notificada pela PSP, nos termos dos mandados com os seguintes teores, respectivamente:

“Notifique na pessoa do proprietário ou gerente responsável do estabelecimento da “CASA DE HÓSPEDES” (…) sita no Casal do Olival, ..., em ..., de que em cumprimento do despacho da Sra Governadora do Governo Civil de Lisboa, (…) deve proceder ao encerramento voluntário da citada casa de hóspedes, no prazo de 30 dias a contar da notificação, em virtude de se encontrar sem alvará sanitário, nem licença de utilização (…)”

“Notifique na pessoa gerente ou proprietário da Casa de Hóspedes, sita na Rua ..., ..., em ...,, de que por despacho de 31 de Maio de 1996, do Exmo Senhor Governador Civil do Distrito de Lisboa, foi revogado o anterior despacho que suspendia a execução da ordem de encerramento da referida Casa de Hóspedes, atendendo a que a Câmara Municipal ..., através do seu ofício ...88 de 96ABR09, voltou a solicitar o seu encerramento, não dando assim provimento à exposição em que a sociedade proprietária solicitava nova prorrogação do prazo anteriormente concedido, uma vez que o edifício onde o mesmo se encontra instalado ainda não possui licença de utilização.”

“Assim, e nos termos do despacho acima referido, fica o sócio gerente da sociedade proprietária do estabelecimento notificado de que deve proceder ao seu encerramento voluntário no prazo de cinco dias, situação que se manterá até decisão em contrário da Câmara Municipal ...”.


Factos Não Provados

a) que, em data incerta do ano de 2003, na sequência da crise económica nacional que já se vivia e da frágil situação económica da Ré, foi estabelecido um acordo entre os senhorios e a Ré, segundo o qual, para pagamento da renda de € 2546,00, após a retenção de 15%, entregaria aos autores mensalmente dois cheques com vencimento imediato de € 1164,00, e outro de 1000€ que os senhorios manteriam na carteira, para ser descontado em data a combinar entre as partes.

b) que este acordo tenha vigorado até à instauração da acção referida em 4.

c) que ao longo os anos as rendas tenham sido pagas aos senhorios, na pessoa de AA, encontrando-se as mesmas pagas à data da instauração da acção referida em 4).

d) que após executar as obras de adaptação o ramo de actividade, ao pretender requerer o licenciamento da sua actividade, a Ré tenha sido informada pela Câmara Municipal ... que o edifício locado era clandestino e que não possuía licença de utilização.

e) (eliminado);

f) (eliminado);

g) que em condições normas a Ré tivesse um lucro mensal não inferior a €2.000,00;

h) que à data do arrendamento nada fazia prever que o imóvel não possuísse licenciamento camarário e que a Ré ignorasse que o edifício não tinha licença de utilização.

i) que nas obras de adaptação das fracções a Autora tenha gasto quantia não inferior a 50 000,00;

j) que a Ré tenha efectuado tais obras no pressuposto que o edifício era legal.


Conhecendo:


I


A primeira questão substancial suscitada no recurso prende-se com a constatação de que “o legal representante da Ré vive no prédio com a sua família, fazendo do mesmo sua habitação”, consoante o facto provado 31.

Daí retira a Recorrente a ilegitimidade passiva, por ausência de intervenção litisconsorcial das pessoas singulares que habitam o prédio – frise-se que o invoca nos autos, pela primeira vez, nas presentes alegações de revista.

A lei processual define a legitimidade através da titularidade do interesse litigado, sendo parte legítima, pelo lado activo, quem tem interesse directo em demandar e, pelo lado passivo, quem tem interesse directo em contradizer (art.º 30.º n.º1 do CPCiv).

A fim de superar as dificuldades práticas de aplicação do conceito, a lei fixou, explicitamente desde a reforma processual de 95/96, no anterior art.º 26.º do CPCiv, um critério supletivo: “são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”.

A lei tomou assim partido na querela desenvolvida à luz da redacção original do Código de Processo Civil de 1939, optando pela tese Barbosa de Magalhães, face à oposta tese José Alberto dos Reis, este preferindo que se partisse da relação jurídica real, para aferir da legitimidade processual.

Em matéria de legitimidade, deve pois partir-se da premissa de que o direito invocado pelo Autor e o correlativo dever imputado ao Réu existem – assim, Antunes Varela, Revista Decana, 114.º - pg. 142.

Ora, olhando ao “direito invocado pelo Autor” nos presentes autos, ele é, no pedido principal, o do reconhecimento do direito de propriedade dos Autores, e consequente restituição do imóvel e indemnização pela respectiva ocupação – subsidiariamente, a resolução de contrato de arrendamento e pagamento de rendas, até à entrega do locado.

Toda a acção se estrutura na base do relacionamento dos Autores com a sociedade Ré e na ocupação por esta do imóvel, sem prejuízo de a Ré ser representada por determinadas pessoas singulares.

Portanto, cabe à Ré defender-se, por caber no conceito de parte legítima, pelo lado passivo, do citado art.º 26.º n.º3 do CPCiv, que não à pessoa ou pessoas singulares que a representam, sendo certo que estas podem também defender os respectivos interesses na medida em que intervêm na acção, ainda que em representação de uma entidade societária – daí que, intervindo nessa qualidade, inexista ofensa ao princípio do acesso ao direito ou da tutela jurisdicional efectiva, do art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa.

Quanto à entrega do bem, ela decorre da mera procedência da acção, não cabendo invocar, neste momento, norma legal que a tanto possa obstar, mesmo que o representante legal faça do imóvel a sua habitação.



II


Confrontado com uma acção e um pedido típicos da reivindicação de propriedade, prevista no art.º 1311.º n.º1 do CCiv, a sentença, tendo reconhecido o direito real na esfera jurídica dos Autores, procurou indagar se a restituição do imóvel poderia ser obstada pela prova de outro direito real justificativo da posse ou da prova de direito pessoal que obstasse à restituição.

Concluiu pelo incumprimento, por parte da Ré, do compromisso de celebração de contrato de arrendamento, assumido em transacção judicial, e pela consequente não justificação da detenção do bem, por parte da Ré.

Já o acórdão recorrido contatou a nulidade do contrato promessa de arrendamento, face ao facto de o contrato prometido não poder ser celebrado (por falta de licença de utilização do imóvel, com vista ao desenvolvimento da actividade comercial pretendida) e, como assim, ser já do conhecimento de ambas as partes, à data da celebração, no processo anterior, da transacção judicial, com o conteúdo de promessa de arrendamento, que a emissão de licença de utilização não poderia ocorrer – dessa forma, dispuseram as partes sobre um contrato de arrendamento legalmente impossível, à luz do art.º 280.º n.º1 do CCiv (“é nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível”).

Divergimos aqui do acórdão recorrido – a impossibilidade jurídica prende-se com a oposição ontológica, do conteúdo (cláusulas) ou do objecto mediato, com o direito (por todos, Menezes Cordeiro, CC Comentado, I, 2020, pg. 811).

Ora, na transacção celebrada, as partes (facto 5.º) comprometeram-se a celebrar um novo contrato de arrendamento, relativamente ao imóvel até ao dia 30 de Abril de 2015, pelo prazo certo de 5 anos, com início em 01 de Maio de 2015 e termo em 30 de Abril de 2020, pela renda mensal de € 2.500,00, fazendo constar nesse contrato uma cláusula de opção de compra pelo preço de € 400.000,00, a exercer pela Ré durante o período de duração do contrato e nessa conformidade os Autores e Ré desistiram dos pedidos formulados na acção e na reconvenção.

Nada nesse acordo aponta para a respectiva oposição ontológica com o direito.

Cumpre apenas sublinhar, por concordância, o afirmado no acórdão recorrido, noutros pontos do mesmo:

“Do relatório pericial resulta que um processo de alterações foi submetido em 20-11-1995, pela Casa de Hóspedes do Olival, com o objectivo, precisamente, de alteração do uso, pois embora uma casa de hóspedes tenha fins habitacionais, tem algumas exigências específicas. Ou seja, desde 1995, que a Ré desenvolve uma autêntica batalha burocrática com vista a obter da Câmara Municipal ... a emissão da licença de utilização com vista ao desenvolvimento de actividade pretendida, ou seja casa de hóspedes, pensão residencial, lar de idosos ou lar de estudantes. E tais diligências resultaram num indeferimento da Administração, conforme está expresso no ponto 27 dos factos provados. A ora Apelante (Ré) chegou mesmo a intentar no Tribunal Administrativo competente, uma acção contra a Câmara Municipal ..., com vista a ver reconhecido o direito da ora Apelante, à emissão da referida licença, mas sem sucesso.”

“Impõe-se concluir desta factualidade, em primeiro lugar, que não é verdade que se deva à inércia dos Autores a não existência da necessária licença de utilização para o uso comercial acordado pelas partes. Mas também se impõe concluir que ambas as partes sabiam que, por falta desse documento essencial, não era possível proceder à assinatura do contrato e, por conseguinte, a não comparência da Ré em obediência à notificação judicial avulsa, foi irrelevante para o efeito, pois ainda que tivesse comparecido, não estavam reunidas as condições legais para a assinatura do contrato.”

É de sufragar esta última conclusão da Relação, mas precisamente dela se extrai que, à data em que celebraram a transacção, ambas as partes se encontravam já cientes da inexistência de licença de utilização (desde a data do anterior contrato, em 1994) e ambas tinham consciência da essencialidade do requisito legal em causa – o da licença de utilização do prédio para o exercício da actividade comercial da Ré.

Como assinala o acórdão, a própria Ré desenvolveu diligências para a obtenção da licença de utilização dos espaços para o exercício da respectiva actividade, diligências que envolveram até acções judiciais que não lograram sucesso.

Dessa forma, ambas as partes contribuíram culposamente para a omissão das formalidades legais necessárias à celebração do contrato definitivo, podendo a culpa de ambas ser graduada em igual medida, com a consequência causal na produção de danos decorrentes do incumprimento – Autores e Ré omitiram a diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias do caso (art.º 487.º n.º2 do CCiv).



III


No quadro do contrato promessa, em que se consubstanciou a transacção celebrada, caberia a recusa da entrega do bem, por parte da promitente arrendatária, ora Ré?

Como é sabido, “à convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato são aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido, exceptuadas as relativas à forma e as que, por sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato promessa” – art.º 410.º n.º1 do CCiv.

Significa isto que a Ré justificava o gozo do imóvel com base no direito dos Autores, isto é, com base no gozo que os Autores lhe proporcionavam, como decorre das normas conjugadas dos art.ºs 1022.º e 1023.º do CCiv.

Não procedendo o direito da Ré de um contrato de arrendamento, a promessa que justificasse a recusa de restituição do bem teria de ser completada pelo animus possessório, a intenção de se exercer sobre a coisa, como seu titular, o direito correspondente a um domínio de facto que pudesse concorrer com o afirmado direito de propriedade dos Autores (art.º 1251º do CCiv).

Ora, nunca a Ré colocou o respectivo domínio empírico em confronto com o direito do Autor, a quem aliás reconheceu como podendo dar-lhe, a ela Ré, de arrendamento, e pese embora a mesma Ré detenha as “chaves” de todo o prédio, com conhecimento dos Autores.

A reivindicação dos Autores tinha assim todas as condições de proceder, em face da posição jurídica da Ré.



IV


Quanto à indemnização em que a Ré foi condenada.

Não se pode questionar que, encontrando-se o prédio ocupado, e face à recusa da respectiva entrega, por parte da Ré, a privação do uso ou da possibilidade de uso configuram uma desvantagem económica, uma diferença patrimonial e um dano, susceptíveis de avaliação pecuniária, e sem necessidade de prova de outros factos (assim, Abrantes Geraldes, Indemnização pelo Dano da Privação do Uso, 2007, pg. 13).

Esse dano foi ponderado nas instâncias no valor equivalente à renda que seria devida, no caso de cumprimento da promessa.

A ponderação revela-se equitativa, visto o disposto nos n.ºs 2 e 3 do art.º 566.º do CCiv, embora, por força da culpa revelada no incumprimento contratual supra exposto, deva ver o seu montante reduzido, na proporção de metade.



V


A reconvenção peticionou quantia a liquidar, a título de indemnização por obras de adaptação e benfeitorias executadas no locado.

Como ressalta da alegação na contestação, nos art.ºs 36.º e ss., designadamente 39.º e 40.º, a Reconvinte reporta-se a obras realizadas em período anterior à transacção judicial, na acção de despejo anterior (na qual foi igualmente formulado pedido reconvencional), em 4/3/2015.

Com a transacção em causa, as partes puseram termo, livre e voluntariamente, ao processo, extinguindo-se a instância – art.º 277.º al.d) do CPCiv.

Um dos efeitos da transacção é o de “modificar o pedido ou fazer cessar a causa”, nos precisos termos em que é efectuada (art.º 284.º do CPCiv) – o processo ganha assim uma solução nos precisos termos encontrados pelas partes, que, dessa forma, encontraram solução para o litígio que as opunha.

Desta forma, e transitada em julgado a sentença homologatória da transacção, não cabe repristinar o pedido reconvencional adrede solucionado pela vontade das próprias partes.

Quanto à indemnização peticionada pela Ré, relativa à privação do uso, reafirma-se o argumento das instâncias, no sentido de que a Ré tem dado um efectivo uso ao imóvel previsto para arrendamento, mesmo que esse uso não tenha sido efectuado para os fins que inicialmente a Ré pretendia – provou-se que o imóvel é a habitação familiar do legal representante da Ré, tendo os filhos daquele inclusive aí vivido até se terem autonomizado.

Igualmente não se provou que o rendimento previsível a retirar do locado fosse de € 2 000 líquidos, por mês, inexistindo prova de que o uso efectivamente dado ao imóvel tenha resultado em qualquer espécie de prejuízo para a Ré.

Não se descortina neste transcurso qualquer espécie de abuso de direito (art.º 334.º do CPCiv), por parte dos Autores, como alegado.


Em conclusão:

I – A impossibilidade jurídica a que se reporta o art.º 280.º n.º1 do CCiv (“é nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível”) prende-se com a oposição ontológica, do conteúdo (cláusulas) ou do objecto mediato, com o direito.

II – Se, à data em que celebraram transacção judicial, na qual celebraram promessa de arrendamento, ambas as partes se encontravam cientes da inexistência de licença de utilização do imóvel para os fins pretendidos e a própria Ré desenvolveu diligências para a obtenção da licença de utilização dos espaços, também ambas as partes contribuíram culposamente para a omissão das formalidades legais necessárias à celebração do contrato definitivo, podendo a culpa de ambas ser graduada em igual medida.

III – No quadro da transacção celebrada, a Ré justificava o gozo do imóvel com base no direito dos Autores, isto é, com base no gozo que os Autores lhe proporcionavam (art.ºs 1022.º e 1023.º do CCiv), pelo que não provava direito, real ou pessoal, capaz de opor à restituição do bem (art.º 1311.º do CCiv).

Decisão:

Concede-se em parte a revista, revogando parcialmente o acórdão recorrido, quanto à condenação da Ré a pagar aos Autores, a título de indemnização, a quantia de € 2 500,00/mês, condenando agora a Ré a pagar aos Autores a quantia de € 1 250,00, por cada mês de ocupação do imóvel, desde a citação, até efectiva restituição do mesmo imóvel aos Autores.

No restante, confirma-se o acórdão recorrido.

Custas na proporção do decaimento, por Autores e Ré/Reconvinte.

                                     

S.T.J., 11/5/2023


Vieira e Cunha (Relator)

Afonso Henrique Cabral Ferreira

Isabel Salgado