Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B3847
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL DO TRABALHO
TRIBUNAL DE COMPETÊNCIA GENÉRICA
TRIBUNAL CÍVEL
Nº do Documento: SJ200411180038477
Data do Acordão: 11/18/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 792/04
Data: 05/19/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Sumário : 1. A competência do tribunal em razão da matéria, no confronto do tribunal do trabalho e do tribunal de competência genérica ou da vara, do juízo cível ou do juízo de pequena instância cível é essencialmente determinada à luz da estrutura do objecto do processo, envolvida pela causa de pedir e pelo pedido formulados na petição inicial, independentemente da estrutura civil ou laboral das normas jurídicas substantivas aplicáveis.
2. O nexo de acessoriedade, de complementariedade e de dependência justificativo da atribuição da competência ao tribunal de trabalho para conhecer de determinada acção, a que se reporta a alínea o) do artigo 85º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, pressupõe a natureza substantiva das relações conexas com a relação jurídica laboral.
3. Compete ao tribunal de competência genérica ou ao juízo de competência cível específica, conforme os casos, conhecer da acção em que a seguradora, no exercício do seu direito de regresso, pede contra a tomadora do seguro de acidentes laborais e empregadora, a sua condenação no pagamento de quantia que a mais pagou a um sinistrado laboral em cumprimento de decisão do tribunal do trabalho, em razão de a segunda lhe ter comunicado o salário daquele sinistrado de quantitativo inferior ao que efectivamente lhe pagava.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I
A "Companhia de Seguros A", intentou, no dia 6 de Setembro de 2002, contra B, acção declarativa de condenação, com processo sumaríssimo, pedindo a sua condenação a pagar-lhe € 2 274,43, acrescidos de juros de mora contados desde a citação, com fundamento em contrato de seguro do ramo acidentes de trabalho com ela celebrado, em acidente sofrido por C no dia 10 de Novembro de 1999, nas despesas suportadas por via daquele acidente no montante de € 6 246,18, no excesso do salário pago àquele em relação ao declarado para efeito de seguro e no seu consequente direito de regresso contra a ré à luz da Base L da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965.
Citada editalmente a ré, não contestou a acção, tal como a não contestou o Ministério Público, citado em representação dela.
O tribunal da 1ª instância, por sentença proferida no dia 9 de Fevereiro de 2004, declarou a sua incompetência em razão da matéria para conhecer do mérito da acção e absolveu a ré da instância, sob o fundamento de para dela conhecer serem competentes os tribunais do trabalho.
Agravou a autora, e a Relação, por acórdão proferido no dia 19 de Maio de 2004, essencialmente sob idênticos fundamentos aos expendidos na sentença proferida no tribunal da 1ª instância, negou provimento ao recurso.
Interpôs a autora recurso de agravo para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- o tribunal do trabalho já se pronunciou sobre tudo aquilo para o que tinha competência, ou seja, a qualificação do acidente como de trabalho, a responsabilidade da recorrente em consequência do contrato de seguro e a condenação desta no pagamento de indemnização na proporção da responsabilidade assumida;
- não está em causa o facto de o contrato de seguro respeitar a acidente de trabalho, mas o direito de um terceiro que indemnizou o lesado ao abrigo de uma relação contratual, e pretende exigir do outro responsável aquilo que pagou em seu lugar;
- o direito de crédito da recorrente sobre a recorrida emerge de uma relação de sub-rogação e não do acidente de trabalho, ou seja, trata-se de uma relação jurídica civil, autónoma do acidente de trabalho;
- a preexistência de uma relação conexa com a laboral não constitui causa de pedir na acção, apenas servindo para fundamentar os seus pressupostos;
- como não está em causa a relação laboral, a acção não cabe na competência específica dos tribunais de trabalho, mas na dos tribunais de competência genérica ou específica;
- não compete aos tribunais do trabalho conhecer do direito de regresso que invocou na acção, mas ao tribunal de competência genérica, pelo que o acórdão recorrido infringiu os artigos 66º do Código de Processo Civil e 85º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais.
II
É a seguinte factualidade e dinâmica processual que relevam essencialmente no recurso:
1. O pedido que a agravante formulou na acção é o de condenação da agravada no pagamento de € 2 274,43, acrescidos de juros de mora contados desde a citação.
2. A causa de pedir em que a agravante baseou o pedido mencionado sob 1 envolve a declaração de assunção por ela da responsabilidade por acidentes laborais ocorridos na empresa da agravada por via de contrato de seguro celebrado com a última, no excesso de salário por esta pago a C em relação ao por ela declarado no âmbito daquele contrato de seguro, o acidente de trabalho por aquele sofrido no dia 10 de Novembro de 1999, a sua condenação no tribunal de trabalho a indemnizá-lo no montante de € 6 246,18 de harmonia com a sua responsabilidade proporcional ao salário declarado pela ré e o seu cumprimento da referida decisão.
III
A questão essencial decidenda é a de saber se o conhecimento do objecto do processo instaurado pela recorrente se inscreve na competência dos tribunais do trabalho ou nos tribunais de competência genérica.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação da recorrente, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- sentido da causa de pedir e do pedido formulados na acção pela agravante;
- competência jurisdicional em razão da matéria dos tribunais em geral;
- âmbito da competência material dos tribunais do trabalho no confronto com a causa de pedir e do pedido formulados na acção;
- solução para o caso espécie decorrente dos factos e da lei.
Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.
1.
Expressa a lei ainda aplicável que se o salário declarado para efeito do prémio do seguro foi inferior ao real, a seguradora só é responsável em relação a esse salário pela diferença e pelas despesas efectuadas com a hospitalização, assistência clínica e transportes, na respectiva proporção (Base L da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto).
A partir do referido normativo e dos factos integrantes da causa de pedir e do pedido formulados pela agravante, entenderam as instâncias que o objecto da acção se cinge à delimitação da responsabilidade da agravante e da agravada directamente emergente do acidente de trabalho sofrido pelo empregado da segunda.
A causa de pedir é facto jurídico concreto integrante das normas de direito substantivo que concedem o direito, e o pedido a pretensão formulada pelo autor ou pelo reconvinte com vista à realização daquele direito ou à sua salvaguarda (artigos 3º e 498º, n.º 4, do Código de Processo Civil).
Ao invés do que foi entendido nas instâncias, o objecto da acção não se cinge à delimitação da responsabilidade da agravante e da agravada pela reparação do acidente de trabalho sofrido pelo empregado da segunda.
Com efeito, conforme resulta da factualidade articulada pela agravante na petição inicial, a responsabilidade dela, no confronto com a agravada, foi delimitada no processo especial de acidente laboral, e operada a sua condenação na realização de 36,32% do direito de indemnização do sinistrado, que cumpriu.
Embora também com base no disposto na Base L da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto, o que a agravante visa realizar com a acção é o direito de regresso contra a agravada na medida do que a mais pagou por virtude do contrato de seguro desrespeitado pela agravada ao comunicar o salário do trabalhador que foi sinistrado em montante inferior ao real.
Trata-se, pois, de uma relação jurídica autónoma da decorrente do acidente de trabalho, embora com ela conexa em termos de posteridade.
2.
A incompetência de um tribunal para conhecer de determinada acção é uma situação de nexo negativo que decorre da circunstância de os critérios determinativos da competência lhe não atribuírem a medida de jurisdição suficiente para o efeito.
A medida da jurisdição interna dos tribunais distingue-se em competência em razão do território, da hierarquia e da matéria.
A competência material dos tribunais para as causas de natureza cível resulta de normas de atribuição directa ou indirecta, nesta última situação por via da afectação das causas que não sejam afectas a outros tribunais (artigos 211º, n.º 1, da Constituição e 18º, n.º 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais - LOFTJ).
A vertente da competência jurisdicional em razão da matéria é delineada por via da sua distribuição por lei à pluralidade de tribunais inseridos no mesmo plano horizontal (artigo 18º, n.º 2, da LOFTJ).
Consoante a matéria das causas que lhe são atribuídas, distinguem-se os tribunais de 1ª instância em tribunais de competência genérica, a quem compete julgar as causas não atribuídas a outro tribunal, o que constitui a regra, e tribunais de competência especializada simples ou mista, que conhecem de determinadas matérias (artigos 64º, n.º 2, e 77º, n.º 1, alínea a), da LOFTJ).
Entre os tribunais de competência especializada contam-se os tribunais do trabalho (artigo 78º,alínea d), da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais - LOFTJ).
O nexo de competência fixa-se no momento da propositura da acção, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente (artigo 22º, n.º 1, da LOFTJ).
Para determinação da competência do tribunal em razão da matéria importa ter em linha de conta, além do mais, a estrutura do objecto do processo, envolvida pela causa de pedir e pelo pedido formulados na acção, no momento em que a mesma é intentada, independentemente da natureza estritamente civil ou laboral das normas jurídicas aplicáveis.
3.
A lei prescreve competir aos tribunais do trabalho em matéria cível, além do mais que aqui não releva, conhecer, por um lado, das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais.
E, por outro, das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho, ou um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a de trabalho, por acessoriedade, complementariedade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o tribunal seja directamente competente (artigo 85º, alíneas c) e o), da LOFTJ).
Decorrentemente, a competência em razão da matéria dos tribunais de trabalho abrange as acções:
- que tenham por objecto questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais. - que versem sobre litígios envolventes de sujeitos de relações jurídicas de trabalho.
- e cujo objecto emirja de uma relação jurídica conexa com a de trabalho em termos acessórios, complementares ou de dependência, envolva um sujeito da primeira e um terceiro e o pedido se cumule com outro para o qual o tribunal do trabalho seja directamente competente.
O referido nexo de acessoriedade, complementariedade ou de dependência justificativo da atribuição da competência aos tribunais do trabalho, a que se reporta o último dos referidos normativos pressupõe a natureza substantiva das relações conexas com a relação jurídica laboral.
Decorrentemente, não basta, para o referido efeito de competência, a mera conexão processual.
Tendo em linha de conta a estrutura do pedido e da causa de pedir formulados na acção, certo é não estarmos perante um litígio relativo a questões emergentes de um acidente de trabalho, pelo que se não enquadra na alínea c) do artigo 85º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais.
Ademais, a acção não veicula uma relação jurídica laboral cujos sujeitos sejam a agravante e a agravada, pelo que também se não enquadra na primeira parte da alínea o) do artigo 85º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais.
Trata-se, na realidade, de uma acção em que a agravada figura como sujeito de uma relação jurídica laboral e a agravante figura como terceiro no âmbito de uma outra relação jurídica de seguro conexa com a primeira em que ambas figuraram como sujeitos.
Todavia, também a referida situação se não integra na segunda parte da alínea o) do artigo 85º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, porque o pedido formulado pela agravante na acção não é cumulado com outro para o qual o tribunal do trabalho seja directamente competente.
4.
À luz dos factos processuais envolventes e das considerações de ordem jurídica acima desenvolvidas, vejamos a síntese da solução jurídica para o vertente caso de competência em razão da matéria.
Tendo em linha de conta o pedido e a causa de pedir formulados na acção, certo é não estarmos perante um litígio relativo a questões emergentes de um acidente de trabalho.
Trata-se de acção cuja causa de pedir se traduz numa relação jurídica conexa com uma relação jurídica laboral em que um dos sujeitos também o foi da relação jurídica laboral e o outro um terceiro em relação a ela, sem que ocorra uma situação de cumulação de pedidos.
A competência para conhecer da referida acção não se inscreve, por isso, nos tribunais do trabalho, mas nos restantes tribunais de competência cível exclusiva ou não, na espécie no tribunal da primeira instância onde a acção em análise foi intentada.
Não ocorre, por isso, a excepção dilatória da incompetência em razão da matéria consequenciante da absolvição da ré da instância, a que se reportam os artigos 288º, n.º 1,alínea a), 493º, n.º 2 e 494º, alínea a), todos do Código de Processo Civil.

Procede, por isso, o recurso, com a consequência de dever revogar-se e o acórdão recorrido e a sentença proferida pelo tribunal da 1ª instância, e de a causa continuar no órgão jurisdicional da primeira instância no qual foi distribuída.
Vencida no recurso, é a recorrida responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigos 446º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
IV
Pelo exposto, revoga-se o acórdão recorrido e a sentença proferida na primeira instância e condena-se a recorrida no pagamento das custas respectivas, incluindo as relativas ao recurso de agravo para a Relação.

Lisboa, 18 de Novembro de 2004
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
Armindo Luís