Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
283/09.0TBVFR-C.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
EFEITOS DA PROCEDÊNCIA
EXECUÇÃO
INSOLVÊNCIA DOS EXECUTADOS
DIREITO DO CREDOR APÓS A DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
Data do Acordão: 07/11/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA DO RECORRENTE BANCO E NEGADA A DOS EXECUTADOS
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES.
DIREITO FALIMENTAR - EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / EFEITOS PROCESSUAIS / EFEITOS SOBRE OS CRÉDITOS / RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE EXECUÇÃO.
Doutrina:
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, págs. 454 a 456.
- Armindo Ribeiro Mendes, “ Exercício da Impugnação Pauliana e a Concorrência entre Credores”, Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço, vol II., Lisboa, Almedina, p.443.
- Cura Mariano, Impugnação Pauliana, 2ª edição, pp. 242 a 245, 269.
- Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”, Anotado, p. 450.
- Menezes Leitão, Direito das Obrigações, volume II, pp.320, 321.
- Paula da Costa e Silva, no Estudo publicado nos “Cadernos de Direito Privado”, nº7, – Julho/Setembro 2004, em anotação ao Acórdão do Tribuna da Relação de Coimbra, de 4.2.2003, p. 56.
- Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil”, Anotado, 4ª edição, Vol. I, pp. 633/634.
- Vaz Serra, in “Responsabilidade Patrimonial”, no BMJ-75, 287.
Legislação Nacional:
CIRE: - ARTIGOS 1.º, 88.º, 90.º, 127.º, N.º3.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 601.º, 610.º, 612.º, N.ºS 1 E 2, 616.º, N.º1 E N.º4.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 865.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 28.3.96, IN CJSTJ, 1996, I, 159;
-DE 11.12.1996, IN BMJ, 462-421;
-DE 15.2.2000, CJSTJ, 2000, I, 91.
Sumário :
Se os executados são declarados insolventes na pendência de acção de impugnação pauliana movida pelo exequente, por razões de justiça material e respeito pela execução universal que a insolvência despoleta, os bens alienados, objecto da acção de impugnação pauliana julgada procedente, devem, excepcionalmente, regressar ao património do devedor, para, integrando a massa insolvente, responderem perante os credores da insolvência.

Sendo, deste modo, o crédito do exequente, autor triunfante na acção de impugnação pauliana, tratado em pé de igualdade com os dos demais credores dos ora insolventes, assim se acolhendo a lição de Pires de Lima e Antunes Varela quando afirmam que “o credor pode ter interesse na restituição dos bens ao património do devedor, se a execução ainda não é possível ou se há falência ou insolvência, caso em que os bens revertem para a massa falida.”
Decisão Texto Integral:

Proc.283/09.0TBVFR-C.P1.S1

R-420[1]

Revista


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


            Exequente AA, Lda.

            ExecutadosBB e mulher CC.

           

            Na Execução para Pagamento de Quantia Certa pendente no 3º Juízo Cível da Comarca de Santa Maria da Feira, foi proferido o seguinte despacho:

            “ (…) Conforme resulta da certidão junta aos presentes autos, os executados BB e esposa CC, foram declarados insolventes, por sentença já transitada em julgado. (cfr. fls. 98 a 101 e 112).

Notificada para se pronunciar, a exequente vem alegar que a instância executiva deve prosseguir, porquanto os imóveis em causa não são propriedade dos executados, tendo sido penhorados na sequência da procedência de uma acção de impugnação pauliana, que julgou ineficaz a alienação de tais prédios em relação à exequente.

O credor reclamante Banco DD, S.A., também se pronunciou, no sentido de que não assiste razão ao exequente, já que se é verdade que a decisão da Impugnação Pauliana referida declara a ineficácia de doação, não é menos verdade que ordena também a restituição dos bens ao património dos executados.

                Conclui que a pretensão da exequente deve ser indeferida.

               Também a executada EE se pronuncia no sentido do indeferimento do requerido pela exequente.

                Cumpre apreciar.

Conforme resulta dos autos, fls. 79 e ss, em 27.10.2011, foi penhorado um prédio urbano, sito em P..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº …  e inscrito na matriz sob o artigo ….

Da certidão de ónus e encargos junta a fls. 83 e ss, resulta que por força da procedência da acção de impugnação pauliana que a aqui exequente instaurou contra os aqui executados BB e CC e contra FF, foi declarada a ineficácia em relação à autora/aqui exequente do contrato de doação, outorgado entre os réus por escritura pública de 15.01.2009; foi ordenada a restituição dos bens ao património dos 1ºs réus/aqui executados; e foi reconhecida à autora/aqui exequente a possibilidade de executar os bens, directamente, no património da 2ª Ré, na medida do necessário para assegurar o pagamento da dívida.

Nessa sequência, foi convertido em definitivo o registo da penhora efectuada à ordem destes autos.

Tendo em conta o alcance da decisão proferida no âmbito da acção de impugnação pauliana, designadamente o facto de ter sido ordenada a restituição do imóvel penhorado ao património dos aqui executados BB e CC e tendo sido declarada a insolvência destes executados, afigura-se-nos que a execução não pode prosseguir quanto aos mesmos, devendo a exequente reclamar o seu crédito no âmbito da insolvência.

Assim sendo, tendo sido decretada a insolvência dos executados BB e esposa CC, por sentença transitada em julgado, declaro extinta a instância executiva quanto a estes por inutilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 88º do ClRE e 287º, alínea e) do Código de Processo Civil.

Custas pela massa insolvente, na proporção de metade.

Registe e Notifique.

Solicite ao processo de insolvência que informe se interessa a apensação destes autos, onde se encontra penhorado bem imóvel dos executados.”


***

            Inconformada, a exequente recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, que, por Acórdão de 11.3.2013 – fls. 64 a 68 –, concedeu provimento ao recurso e, em consequência, revogou a decisão recorrida e determinou que fosse substituída por outra para que prosseguisse o processo executivo.


***


            Inconformados, recorreram para este Supremo Tribunal de Justiça, os Executados e o “Banco DD, S.A.”.


***


Os executados alegando, formularam as seguintes conclusões:

            A) Está em causa a aplicação do no art. 88.° do CIRE.

B) Rege o Artigo 88.° do citado diploma (Acções executivas) que:

1 - A declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva intentada pelos credores da insolvência porém, se houver outros executados, a execução prossegue contra estes.

2 - Tratando-se de execuções que prossigam contra outros executados e não hajam de ser apensadas ao processo nos termos do n° 2 do artigo 85.°, é apenas extraído, e remetido para apensação, traslado do processado relativo ao insolvente.

C) A expressão normativa “a declaração de insolvência obsta…ao prosseguimento de qualquer acção executiva intentada pelos credores da insolvência”, tem em vista as execuções instauradas contra o insolvente que se encontram pendentes à data da declaração de insolvência e é de aplicação imediata e automática.

D) E este o sentido que lhe é conferido pela doutrina e pela jurisprudência.

E) Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, escrevem, em anotação a este artigo (cfr. Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 2008, p. 362), que “o regime instituído no n.°1, na parte inicial, é um efeito automático da declaração de insolvência, não dependendo de requerimento de qualquer interessado” (cfr. nota 3). E no que respeita ao impedimento de prosseguirem as acções executivas em curso contra o insolvente, dizem: “Impede se, além disso, o prosseguimento de acções executivas já em curso contra o insolvente, bem como a instauração de novas execuções. A consequência é a da nulidade dos actos que em qualquer delas tenham sido praticados após a declaração de insolvência, o que deve oficiosamente ser declarado logo que no tribunal do processo a situação seja conhecida”. Esclarecem ainda que “este é um regime de há muito consagrado no sistema jurídico português, pois, além do CPEREF, constava já do art. 1198.° do Código de Processo Civil ”. E ressalvam que “as razões determinantes da solução aqui consignada não ocorrem no caso de proferimento de sentença de insolvência com carácter limitado”. Ressalva que também por nós foi considerada no acórdão de 17-11-2009, proferido no proc. n.° 3825/08.5TBVFR-B (disponível em www.dQsi.Dt/jtrp.nsf/ ), mas que aqui não tem aplicação porque à insolvência da executada foi atribuído carácter pleno.

F) Ao nível da jurisprudência, todas as decisões conhecidas são inequívocas no sentido de que a declaração de insolvência produz como efeito automático a suspensão das execuções pendentes contra o insolvente. A título meramente exemplificativo, concluíram neste sentido: o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 25-03-2010, em www.dgsi.pt/jstj.nsf/  Proc. n.° 2532/05.5TTLSB.L1. S1; os Acs. da Relação do Porto de 14-12-2006 e 21-06-2010, em www.dgsi.ptlitrD.nsf/, Procs. n.°0636938 e 1382/08.ITJVNF.P1; os Acs. da Relação de Guimarães de 05-06-2008 e 23-09-2010, em www.dgsi.Dtljtrg.nsf/, Procs. n.° 825/08-1 e 981108.6TBVCT.G1; o Ac. da Relação de Coimbra de 03-11-2009, em www.dasi.t/jtrc.nsf/, Proc. n.° 68/08.ITBVLF-B.C1; e o Ac. da Relação de Lisboa de 21-09-2006, em www.dgsi.ptljstl.nsf/ , Proc. n.° 3352/2006-7.

G) No acórdão desta Relação de 21.06.2010 concluiu-se que “o artigo 88.° veio impor expressamente a suspensão, ao definir os efeitos processuais da sentença de declaração de insolvência nas acções executivas”. A justificação é dada pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.03.2010: “Durante a pendência do processo de insolvência, os credores só podem exercer os seus direitos nesse processo e segundo os meios processuais regulados no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o que consubstancia um verdadeiro ónus posto a cargo dos credores”. E acrescenta: “Na verdade,... o artigo 128.° prescreve que, “dentro do prazo fixado para o efeito na sentença declaratória da insolvência, devem os credores da insolvência, incluindo o Ministério Público na defesa dos interesses das entidades que represente, reclamar a verificação dos seus créditos por meio de requerimento, acompanhado de todos os documentos probatórios de que disponham” (n.° 1) e “verificação tem por objecto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento, e mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento (n.° 3)”.

H) Ora, de acordo com o conceito definido no n.° 1 do art. 47º do CIRE, “todos os titulares de créditos da natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, qualquer que seja a sua nacionalidade e domicílio”.

I) E, portanto, o recorrente AA, Lda., enquanto credor dos executados, declarados insolventes, pelo valor da quantia exequenda, é, obviamente, credor dos insolventes. Ficando, assim, abrangido, quanto a este crédito sobre a insolvente, pelas disposições do CIRE, incluindo o art. 88.°.

J) Donde se conclui que: i) Tendo sido declarada, na pendência da acção executiva, a insolvência da executada com carácter pleno, tal declaração impõe a suspensão imediata da execução, nos termos do art. 88.°, nº1, do CIRE. ii) Esta suspensão visa impedir que a execução prossiga em relação a bens que passaram a integrar a massa insolvente.

K) Nos termos do art. 88°, n°1 do C.I.R.E., ficam suspensas quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente, ficando igualmente precludida a dedução ou continuação de qualquer acção executiva contra a insolvente.

L) Observe-se o disposto no art. 85°, n°1 do C.I.R.E., requisitando-se, após informação para apensação, as acções aí previstas (“se existirem bens penhorados que interessem à massa insolvente”).

M) O art. 1° do CIRE (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas aprovado pelo DL. 53/2004 de 18/3) estabelece que “O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente.”.

N) Portanto, apesar de a primeira parte deste preceito qualificar o processo de insolvência como um processo de execução universal, não quer dizer que nele se verifique, necessariamente, a liquidação do património do devedor, porque pode dar-se o caso de vir a ser aprovado um plano de insolvência, ou, se for pertinente, um plano de pagamentos que prescinda da alienação dos bens do insolvente.

O) Mas, porque o processo de insolvência está legalmente qualificado como um processo de execução (universal) é às disposições do processo executivo que, em primeiro recurso e sempre que necessário se deve atender (neste sentido, Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado”, reimpressão, 2009, pág. 59160).

P) Atenta a natureza e função do processo de insolvência como execução universal, estatui o art. 90° que na sua pendência, os credores apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do CIRE.

Q) Compreende-se, por isso, que o art. 46° do CIRE determine:

“1 — A massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo.

2 — Os bens isentos de penhora só são integrados na massa insolvente se o devedor voluntariamente os apresentar e a impenhorabilidade não for absoluta».

Por sua vez, o art. 17° do CIRE determina que “O processo de insolvência rege-se pelo Código de Processo Civil em tudo o que não contrarie as disposições do presente Código”.

S) Nos termos do art. 821° do Código de Processo Civil estão sujeitos à execução todos os bens do devedor susceptíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida exequenda, sendo certo que, de acordo com o art. 601° do Código Civil, pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora.

T) Equacionando os citados normativos com o disposto no art. 149° do CIRE, nos termos do qual, proferida a sentença declaratória da insolvência, se procede à imediata apreensão de todos os bens integrantes da massa insolvente, ainda que estes tenham sido arrestados, penhorados.

U) Com efeito, o art. 46º, n°1, do CIRE estabelece que a massa insolvente abarca todo o património do devedor à data da declaração de insolvência e todos os bens adquiridos na pendência do processo. O seu n° 2 ressalva os bens impenhoráveis, os quais só integrarão essa massa por vontade do insolvente e se a impenhorabilidade não for absoluta.

V) O que significa que os bens penhoráveis integram a massa insolvente.

W) Os bens atingidos pela ineficácia do contrato de doação foram restituídos ao património dos Insolventes CC e BB.

X) Pois se, de facto, é verdade que a decisão do contrato de doação foram restituídos ao património dos Insolventes CC e BB.

Y) Pois se, de facto, é verdade que a decisão da Impugnação Pauliana referida no requerimento acima identificado, declara a ineficácia do contrato de doação impugnado ao aludido credor, não menos é que também ordena a restituição dos bens ao património dos insolventes.

Z) Tendo em conta o alcance da decisão proferida no âmbito da acção de impugnação pauliana, designadamente o facto de ter sido ordenada a restituição do imóvel ao património dos aqui insolventes BB e CC e tendo sido declarada a insolvência destes, afigura-se-nos que nos termos dos arts. 36º, al. g) e 149º, nºs. 1, als. a) e b), e 2, ambos do CIRE no processo de insolvência o Administrador da Insolvência terá de proceder, de imediato, à apreensão de todos os bens dos insolventes, ainda que arrestados, penhorados ou, por qualquer forma apreendidos ou detidos, seja em que processo for. Se os bens já tiverem sido vendidos, a apreensão tem por objecto o produto da venda caso este ainda não tenha sido pago aos credores ou entre eles repartido.

AA) Porquanto, tais bens integram a massa insolvente, não se podendo confundir o que não é passível de confusão.

BB) Assim, não acede razão ao credor quando considera que os bens não são propriedade dos insolventes.

CC) Note-se que a Insolvência é tida como a execução universal de bens e se o imóvel em causa foi retornado à esfera patrimonial dos Insolventes não existe qualquer motivo para que não integre a massa insolvente.

DD) Decisão contrária desvirtuaria o fulcro do processo de insolvência e colocaria os demais credores em circunstâncias desiguais, sem qualquer motivo justificativo, em relação ao credor AA.

EE) O douto acórdão recorrido viola por errada interpretação a aplicação do disposto no art. 88° do CIRE.

FF) Nesta conformidade deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se o Acórdão recorrida por errada interpretação a aplicação do disposto no art. 88° do CIRE.

Nestes termos e nos melhores de Direito que serão sempre doutamente supridos, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser declarada a nulidade do Acórdão recorrido, nos termos expostos, sendo proferida decisão diversa da recorrida, no sentido supra referido, com as legais consequências.


***


            O Banco DD S.A., alegando, formulou as seguintes conclusões:

            1 — A sentença recorrida não deve manter-se pois consubstancia uma solução que não consagra a justa e rigorosa interpretação e aplicação ao caso “sub judice” das normas e princípios jurídicos competentes.

II — No caso em apreço, foi ordenada a restituição do bem imóvel prédio urbano sito em Lugar …, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de … (freguesia de P...), sob o n.° … ao património dos Executados.

III — Tendo sido solicitado pela ora Recorrida o cancelamento do registo de aquisição a favor da ré FF.

IV — Não se vislumbra qualquer motivo para que o crédito da Recorrida seja colocado em posição privilegiada em face dos outros credores, sobretudo dos credores hipotecários.

V — Aliás, nem tal pode vir a acontecer. A hipoteca e a doação (ou mesmo a venda) não são negócios incompatíveis entre si, ou seja, é perfeitamente possível e em nada obsta a Lei a que um imóvel hipotecado seja vendido a um terceiro.

VI — O contrário seria violador do artigo 695.° do Código Civil que considera nula a convenção que proíba o dono de alienar ou onerar os bens hipotecados.

VII – Mais ainda, a hipoteca segue o bem, conforme resulta do artigo 721.° Código Civil, ou seja, mesmo após a doação, os credores hipotecários mantinham todos os seus direitos sobre o bem.

VIII — A hipoteca a favor do “Banco Comercial Português, S.A-Sociedade Aberta”, pela apresentação 5 de 1993/04/07 e,

IX — A hipoteca a favor do Banco DD, S.A., pela apresentação 30 de 1994/12/16.

X — O registo da acção de impugnação pauliana só viria a ser feito pela apresentação 1501 de 2009/07/31 e a penhora da Recorrida pela apresentação 3718 de 2011/10/27.

XI — Do que decorre que a Recorrida não dispõe, sequer, de prioridade no registo (686.° Código Civil ).

XII — Acresce que a sentença registada já transitou em julgado, sendo um dos seus efeitos o de retornar os bens alvo da impugnação pauliana ao património dos Executados.

XIII — Pelo que, bem andou a Tribunal de primeira instância quando aduz em sentença que:

Tendo em conta o alcance da decisão proferida no âmbito da acção de impugnação pauliana, designadamente o facto de ter sido ordenada a restituição do imóvel penhorado ao património dos aqui executados BB e CC e tendo sido declarada a insolvência destes executados, afigura-se-nos que a execução não pode prosseguir quanto aos mesmos, devendo a exequente reclamar o seu crédito no âmbito da insolvência.

XIV — A interpretação de sentença transitada em julgado e devidamente publicitada no Registo Predial contra o seu teor é violador do princípio da segurança jurídica, sendo este princípio basilar do Estado de Direito Democrático — cfr. artigo 2.° CRP.

XV — O tribunal de primeira instância não era competente para decidir o destino dos bens dos Executados, ora Insolventes.

XVI — Na verdade, nos termos do artigo 36.°/1.°/g) CIRE a sentença que declara a insolvência decreta a apreensão de todos os bens do devedor, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos.

XVII — Assim, o poder de decisão sobre os bens penhorados extinguiu-se no momento em que foi declarada a Insolvência dos seus proprietários, passando tal poder para o Tribunal que declarou a Insolvência.

XVIII — Pelo que, qualquer reclamação ou requerimento que incida sobre os mesmos, teria sempre de ser dirigido àquele Tribunal e não ao Tribunal de primeira instância.

XIX — Do que se retira, ainda que o Recurso de Apelação apresentado pela Recorrida ficou desprovido de qualquer fundamento, pelo que sempre cremos deveria ter sido alvo de decisão liminar nos termos do artigo 705.° Código de Processo Civil, uma vez que a primeira instância não tinha competência para decidir sobre o destino do bem imóvel.

XX — Face a toda a factualidade exposta, carece de total fundamento a pretensão dos Recorridos, assistindo ao Recorrente o legítimo e justificado direito de ver devolvido o imóvel ao património dos Executados, ora Insolventes. Isto,

XXI — Por forma a que a venda do citado imóvel possa prosseguir nos autos de Insolvência identificados pelo n.°8404/12.OTBVNG, no 6.° Juízo Cível do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia.

XXII — Do que decorre a violação das normas e princípios ínsitos nos artigos 686.°, 695.° e 721.° do Código Civil, artigo 2.° da Constituição da República Portuguesa, artigo 36.°/1.°/g) CIRE e 705. ° Código de Processo Civil.

           

Termos em que o presente recurso deve merecer provimento, revogando-se o douto Acórdão recorrido e, em conformidade, deverá o imóvel em causa ser devolvido ao património dos Executados, ora Insolventes, por forma a prosseguir a venda nos autos de Insolvência identificados pelo n.°8404/12.OTBVNG, no 6.° Juízo Cível do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia.


***

            Colhidos os vistos legais importa decidir, tendo em conta que o Acórdão recorrido tomou em conta os seguintes factos:

            1) - Conforme resulta dos autos, fls. 79 e segs. em 27.10.2011, foi penhorado um prédio urbano, sito em P..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº … e inscrito na matriz sob o artigo ….

2) - Da certidão de ónus e encargos junta a fls. 83 e segs, resulta que por força da procedência da acção de impugnação pauliana que a aqui exequente instaurou contra os aqui executados BB e CC e contra FF, foi declarada a ineficácia em relação à autora/aqui exequente do contrato de doação, outorgado entre os réus por escritura pública de 15.01.2009;

3) - Foi ordenada a restituição dos bens ao património dos 1ºs réus/aqui executados; e foi reconhecida à autora/aqui exequente a possibilidade de executar os bens, directamente, no património da 2ª Ré, na medida do necessário para assegurar o pagamento da dívida.

4) - Nessa sequência, foi convertido em definitivo o registo da penhora efectuada à ordem destes autos.

5) A insolvência dos executados foi decretada por sentença de 2/10/2012 transitada em julgado no processo n. 8404/12.OTBVNG, no 6.° Juízo Cível do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia.

            Decorre da certidão de 46 a 54:       

            - a favor do recorrente Banco recorrente, encontra-se registada pela Ap. 30, de 1994/12/16 hipoteca voluntária sobre o imóvel penhorado.

            - pela Ap. 4872, de 2009.01.12 encontra-se o imóvel registado a favor de FF, menor, aquisição por doação.

            - a acção de impugnação pauliana foi registada provisoriamente por natureza, em 2009.7.31 e o registo foi convertido, definitivamente, em 2012.03.26.

            Fundamentação.

 

            Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – a questão fulcral comum aos recursos, consiste em saber quais os efeitos da declaração de insolvência dos executados, que em consequência da acção de impugnação pauliana instaurada contra eles pelo aqui exequente, viram decretada a ineficácia do negócio impugnado, doação de uma bem imóvel que foi penhorado na execução e está onerado com hipoteca voluntária com registo a favor da banco recorrente (anterior à penhora).

            Vejamos.

            É regra consabida que o património do devedor é responsável pelo cumprimento das suas obrigações – art. 601º do Código Civil – daí, que ao credor seja dada a possibilidade de se precaver, com garantias reais ou pessoais, ou ambas, que exige do devedor, para assegurar a satisfação do seu crédito.

A lei prevê meios de conservação da garantia patrimonial, como a declaração de nulidade, a sub-rogação do credor ao devedor, o arresto e a impugnação pauliana.   

         O art. 610º do Código Civil, define os requisitos gerais da impugnação pauliana nos seguintes termos: 

“Os actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e não sejam de natureza pessoal podem ser impugnados pelo credor, se concorrerem as circunstâncias seguintes:

a) Ser o crédito anterior ao acto ou, sendo posterior, ter sido o acto realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;
           

 b) Resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade.”

            A acção de impugnação pauliana consiste na faculdade concedida por lei ao credor, de atacar os actos do seu devedor que realizados, dolosamente, façam perigar a satisfação do seu crédito.

Ao contrário do regime legal, que vigorava no Código de Seabra, em que tal acção era considerada uma “acção rescisória” ou “anulatória”, já que o art. 1404º estipulava que, “rescindido o acto ou contrato, revertem os bens ao cúmulo dos bens do devedor, em benefício dos seus credores”, a lei actual, diversamente, estabelece no art. 616º, nº1, do Código Civil:

 

 “Julgada procedente a impugnação o credor tem o direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei”.

            Os actos gratuitos, ou onerosos, praticados em desfavor do credor são intrinsecamente válidos; todavia, o credor impugnante tem direito à restituição dos que forem necessários à satisfação do seu crédito, podendo directamente agredir o património de quem estiver obrigado à restituição.

Vaz Serra, in “Responsabilidade Patrimonial”, estudo publicado no BMJ-75 escreveu:  “A acção pauliana é dada aos credores para obterem, contra um terceiro, que procedeu de má-fé ou se locupletou, a eliminação do prejuízo que sofreram com o acto impugnado.

Daqui resulta o seu carácter pessoal ou obrigacional.

O autor na acção exerce o crédito de eliminação daquele prejuízo...O efeito da acção deve ser uma simples consequência da sua razão de ser e, por isso, parece dever limitar-se à eliminação do prejuízo sofrido pelo credor, deixando o acto, quanto ao resto, tal como foi feito” obra citada pág. 287.

Tanto assim é que, nos termos do art. 616º, nº4, do Código Civil, os efeitos da impugnação aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido.

Não se está, assim, perante uma declaração de nulidade com a inerente repristinação do “statuo quo ante” que permitiria a todos os credores do devedor executar o património deste – cfr. neste sentido Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 28.3.96, in CJSTJ, 1996, I, 159 –  “A impugnação pauliana reveste um carácter pessoal, já que os seus efeitos aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido”.

 Também os Professores Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, 4ª edição, pág. 634, nota 5, acentuam o carácter pessoal da acção de impugnação pauliana a partir do preceituado no art. 616º, nº4, daquele Código.

Mas o que é agir de má-fé nos termos do art. 612º do Código Civil?

Nos termos do art. 612º, nº1, sendo o acto de alienação de cariz oneroso está sujeito a impugnação se o devedor e o terceiro, ao concretizarem-no, tiverem actuado de má-fé; sendo o acto gratuito, mesmo que os sujeitos do negócio tenham agido de boa-fé, a impugnação procede.

Para o efeito do nº2 deste normativo, agir de má-fé é ter “consciência do prejuízo que o acto causa ao credor”.

“I – A impugnação pauliana, enquanto garantia das obrigações, tem como requisitos, tratando-se de acto oneroso, a anterioridade do (s) crédito (s) do autor em relação a tal acto, o facto de este causar a impossibilidade ou o agravamento da impossibilidade de satisfação integral daquele (s) e a circunstância de todos os intervenientes no negócio questionado se encontrarem de má fé.

II – A má fé, enquanto requisito subjectivo da impugnação pauliana, significa a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor, e não já a intenção de prejudicar este último.

III – A má fé, neste sentido, abrange a própria negligência consciente – já que o agente tem consciência de que o acto pode prejudicar o credor, ainda que confie que tal resultado não venha a verificar-se.       

IV – A intenção de prejudicar só constitui requisito da impugnação pauliana se o acto a impugnar for anterior à constituição do crédito (...)” Ac. deste Supremo Tribunal de Justiça, de 11.12.1996, in BMJ, 462-421.

        

“... A má fé inserta no nº2 do art. 612º do Código Civil não se reconduz à má fé subjectiva em sentido psicológico.

A boa fé subjectiva é um estado de consciência do agente, a boa fé objectiva é uma regra de conduta, aparecendo como critério normativo da actuação das partes. A consciência do prejuízo causado ao credor não exige, para ter verificação, que se queira causar esse prejuízo. Basta, para a procedência da impugnação pauliana, o conhecimento negligente do prejuízo causado à garantia patrimonial do credor...” – Ac. deste Supremo Tribunal de Justiça,  de 15.2.2000, CJSTJ, 2000, I, 91.

            Nos termos do art. 616º do Código Civil – “1. Julgada procedente a impugnação, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei. 2. O adquirente de má fé é responsável pelo valor dos bens que tenha alienado, bem como dos que tenham perecido ou se hajam deteriorado por caso fortuito, salvo se provar que a perda ou deterioração se teriam verificado no caso de os bens se encontrarem no poder do devedor. 3. O adquirente de boa fé responde só na medida do seu enriquecimento. 4. Os efeitos da impugnação aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido”.

            Sendo a acção de impugnação pauliana uma acção pessoal, apenas aproveita ao credor que a tenha requerido, a procedência da acção implica não a nulidade do negócio impugnado que permanece válido, na medida em que não colida com os direitos do credor impugnante, concedendo a lei ao impugnante vitorioso o direito à restituição de bens ao património do devedor na medida do interesse do credor demandante, podendo executá-los no património do obrigado à restituição.

           

            No “Código Civil Anotado”, de Pires de Lima e Antunes Varela, Vol. I, págs. 633/634, em comentário ao preceito:  “São três os direitos conferidos pelo n.º1: o direito à restituição na medida do interesse do credor, o direito a praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei e o direito de execução no património do obrigado à restituição.

Este último direito é confirmado na segunda parte do artigo 818.° A restituição efectiva dos bens ao alienante não tem, pois, interesse, na generalidade dos casos.

Mas pode tê-lo, se a execução ainda não é possível ou se há falência ou insolvência, caso em que os bens revertem para a massa falida (cfr. Código de Processo Civil, art. 1203.º)”. (destaque e sublinhado nosso)

Menezes Leitão, in “Direito das Obrigações”, volume II, pág.320, sobre os efeitos da impugnação pauliana em relação ao credor, afirma:

“Os efeitos da impugnação pauliana em relação ao credor encontram-se referidos no art. 616º.

 Um aspecto importante do regime da impugnação pauliana é o de que os seus efeitos aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido (art. 616º, nº4) e que, consequentemente, com a impugnação pauliana, não há qualquer retorno dos bens ao património do devedor […]. Anteriormente, no caso de falência, admitia-se uma impugnação pauliana colectiva, a exercer pelo administrador de falência, cujos efeitos são extensivos a todos os credores da massa falida (arts. 157º e ss. CPEREF) mas mesmo esta veio a ser abolida pelo novo CIRE.

Julgada procedente a impugnação pauliana, o art. 616º, nº 2, determina que o credor que a ela recorre tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição (cfr. art. 818º, in fine) e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei…”

                Os executados doaram o imóvel penhorado e esse acto gratuito foi objecto de impugnação pauliana pelo credor exequente. Na pendência da execução, os executados devedores foram declarados insolventes.

            Sobre o imóvel, previamente ao registo da penhora e da acção pauliana, incide hipoteca voluntária registada a favor do recorrente Banco.

            A questão colocada pelo recurso é a de saber se, por mor da sentença que julgou procedente a acção pauliana, os bens regressam ao património do executado, ou antes, sendo válido o acto de doação, o credor deve executar o seu direito à restituição no património do obrigado à restituição, sendo que avulta o facto de, entretanto, os executados terem sido declarados insolventes.

            Cotejando as posições jurídicas defendidas por Antunes Varela e Pires de Lima com a de Menezes Leitão, este civilista é peremptório na consideração “de que não há qualquer retorno dos bens ao património do devedor”.  Reforçando tal opinião, afirma mais adiante, pág. 321: “O direito do credor contra o adquirente não se destina meramente a permitir a conservação do património do devedor, afectado pela alienação, uma vez que nessa hipótese ficaria naturalmente sujeita ao regime do concurso de credores nesse património, o que, conforme se verificou não acontece (cfr. art. 616º, nº4)”.  

Em nota de rodapé, acrescenta – “Daí que não seja exacta a afirmação de Antunes Varela, Obrigações, II, p. 457 e de Menezes Cordeiro, Direitos reais, p. 310 e Obrigações, 1-, p. 268 de que a impugnação pauliana permite ao credor exigir de terceiro a restituição, ao devedor, dos meios necessários para efectivar o seu crédito.

Efectivamente, a impugnação pauliana dirige-se directamente contra o terceiro, que deve restituir ao credor os bens adquiridos na medida do seu interesse, não tendo os bens que sair do património daquele. Neste sentido, vide Almeida Costa, Obrigações, p. 869.”

            Voltando ao ensino de Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. II, págs. 454 a 456, o Civilista depois de abordar os efeitos da acção em relação ao credor e afirmar que se trata de “acção vincadamente pessoal”, pondera:

            “…Por outro lado, permitindo a restituição dos bens ao património do devedor, embora na limitada medida do interesse do credor impugnante, a lei revela claramente que, nos actos de alienação, a pauliana não envolve, como consequência, a simples ineficácia do acto impugnado, abrindo apenas ao credor impugnante a possibilidade de agredir os bens alienados, mas obrigando-o a suportar a concorrência dos credores do adquirente.

A restituição — como quem diz o retorno — dos bens alienados ao património do devedor, para colmatar a brecha aberta na garantia patrimonial do credor impugnante, significa naturalmente duas coisas:

1.ª Que o impugnante pode executar os bens alienados como se eles não tivessem saído do património do devedor, mas sem a concorrência dos demais credores (…) deste, uma vez que a procedência da pauliana só ao impugnante aproveita;

2.ª Que, executando os bens alienados, como se eles tivessem retornado ao património do devedor e não se mantivessem na titularidade do adquirente, o impugnante pode executá-los, na medida do necessário para satisfação do seu crédito, sem sofrer a competição do adquirente (…).

Em terceiro lugar, desde que mantém a garantia patrimonial do crédito do impugnante, como se os bens alienados não tivessem saído da titularidade do devedor, a lei permite logicamente ao credor a prática de todos os actos em princípio autorizados para conservação dessa garantia. Por último, desde que a procedência da pauliana não envolve a destruição do acto impugnado, porque visa apenas eliminar o prejuízo causado à garantia patrimonial do credor impugnante, isso significa que, uma vez reparado esse prejuízo, nenhuma razão subsiste para não manter a validade da parte restante do acto, não atingida pela impugnação pauliana.”

Seguindo a tese de Antunes Varela, Armindo Ribeiro Mendes, afirma in Exercício da Impugnação Pauliana e a Concorrência entre Credores, “Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço”, vol II., Lisboa, Almedina, 443:

 “Afigura-se que a melhor interpretação do disposto na lei civil (arts. 616º e 818. ° do Código Civil) é a de Antunes Varela. De facto, a ideia de ineficácia da transmissão relativamente ao credor impugnante – ainda que esporadicamente posta em causa na doutrina e jurisprudência nacionais – e a utilização da expressão “restituição dos bens na medida do seu interesse” apontam para que o Código Civil pretendeu tutelar a posição do credor impugnante “na medida do seu interesse”, ou seja, permitindo-lhe a penhora dos bens alienados como se, hipoteticamente, não tivessem saído do património do devedor.”

            Cura Mariano, in “Impugnação Pauliana”, 2ª edição, págs. 242 a 245, afirma:

  “A expressão utilizada “direito à restituição” não deve ser encarada no sentido de uma viagem de regresso entre patrimónios. Esta denominação não significa a reentrada dos bens alienados no património do devedor, num movimento retroactivo, nem sequer a entrega dos mesmos ao credor; mas tão somente o restabelecimento da garantia patrimonial diminuída, através da exposição desses bens, independentemente da sua situação jurídica, aos meios legais conservatórios e executórios colocados à disposição do credor impugnante. Com a impugnação pauliana não se obtém a restauração do património do devedor, mas sim a reconstituição da garantia patrimonial do crédito do impugnante.

Neutralizam-se algumas das consequências do acto impugnado relativamente ao credor impugnante, sem afectar a sua validade, numa demonstração da sua filiação nos quadros da ineficácia stricto sensu.

Os bens alienados continuam, assim, a desempenhar no património do terceiro a sua função de garantia do cumprimento das obrigações do alienante, ficando apenas desactivado o efeito indirecto de subtracção à garantia patrimonial próprio dos actos de transmissão de bens. O direito de propriedade do adquirente sobre os bens em causa é um direito debilitado, uma vez que estes respondem por dívida de terceiro.

O “direito à restituição” traduz-se assim num direito potestativo do credor, integrante da estrutura complexa unitária do direito de crédito que consiste em poder sujeitar à execução de medidas conservatórias determinados bens do adquirente os adquiridos ao devedor, sendo aquele alheio à relação constitutiva do crédito.”

           

            No caso em apreço, pese embora, no essencial, os tratadistas citados estejam de acordo quanto aos efeitos da procedência da acção de impugnação pauliana, exceptuando alguma discrepância de entendimento no ensino de Meneses Leitão e Antunes Varela, quando este admite que, em alguns casos, o credor pode ter interesse em executar os bens no património do devedor, a questão pouco comum que o recurso postula é que, na pendência da execução contra os RR. doadores no acto impugnado e na acção de impugnação pauliana, foram eles declarados insolventes.

             A execução deixou de ser assim uma execução singular contra os executados, onde apenas poderiam intervir o exequente e os credores reclamantes cujos créditos fossem providos de garantia real – art. 865º, nº1, do Código de Processo Civil – para passar a ser uma execução universal – art. 1º do CIRE – onde são, em regra, admitidos todos os credores, (a regra par conditio creditorum) pese embora o diverso tratamento que têm os créditos comuns e os créditos privilegiados.

            Será que a decisão da acção pauliana, ainda neste quadro, deve justificar a consequência do não reenvio dos bens ao património do executado, causador do negócio impugnado?

            Agora que, por via da sua insolvência, devem os seus os bens ser apreendidos para a massa insolvente, face à validade do negócio impugnado e tendo o credor direito apenas à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los “no património do obrigado à restituição”, como se fossem seus, esse bem, no caso o imóvel penhorado e hipotecado, não seria apreendido para a massa insolvente, devendo prosseguir a execução como se entendeu no Acórdão recorrido.

            A ser assim, a solução pode não ser a mais justa uma vez que os executados RR. na acção pauliana onde sucumbiram, não seriam afectados pela insolvência do ponto em que o bem objecto da impugnação apenas e tão só continuaria a responder pelo crédito do exequente, que é também o Autor/impugnante na pauliana, sendo afastados dessa execução os credores da insolvência, já que a pauliana apenas contempla o crédito do credor impugnante (acção pessoal), ou seja, apesar da insolvência os bens em execução não seriam apreendidos para a massa insolvente e escapariam à execução universal insolvencial.

            Paula da Costa e Silva, no Estudo publicado nos “Cadernos de Direito Privado”, nº7, – Julho/Setembro 2004, em anotação ao Acórdão do Tribuna da Relação de Coimbra, de 4.2.2003, na página 56, depois de indagar “se não haverá alguma circunstância em que o credor seja encabeçado numa pretensão de restituição” e de responder afirmativamente, aborda uma hipótese de contornos semelhantes ao caso sub judice, afirmando:

 “E como se explicam as situações em que o bem deve ser restituído ao património do devedor em virtude de determinação legal, como ocorre, v.g., quando na pendência da acção de impugnação o devedor é declarado falido?

Tais situações explicam-se através da necessidade de ponderação de valores que impõem desvios significativos à estrutura típica da acção pauliana.

                Repare-se que, em tais hipóteses, a única pretensão que pode ser actuada é a de restituição do bem ao património do devedor. Isto porque permitir a respectiva execução no património do terceiro suporia conferir uma posição de vantagem ao credor que está munido de uma decisão proferida na acção de impugnação: só ele tem título que lhe permite atingir o património de terceiro.

Os demais credores deveriam satisfazer os respectivos créditos através dos bens que estivessem integrados no património do devedor ao tempo da declaração de falência; o credor impugnante, que pudesse executar determinado bem específico no património do terceiro, evitaria o concurso dos restantes credores do seu devedor.

A impugnação deixa de ser pessoal para ter uma eficácia universal: o bem reentra no património do devedor, servindo à satisfação de todos os créditos que contra esse património são invocados.

 Estamos já para além da previsão do art. 616. °, nº4, do Código Civil.

 Com isto nos estamos aproximando de uma posição que supõe introduzir uma distinção muito clara no art. 616.°, n.° 1, do Código Civil. Se há casos em que ao credor é conferida uma pretensão à restituição, outros há em que ele apenas é encabeçado numa pretensão à execução do bem no património do terceiro adquirente.

 Em face do que antecede, pode concluir-se que, em caso de impugnação, não se verifica um concurso real de pretensões, que venha a corporizar-se numa cumulação de objectos processuais. Apesar de as pretensões do credor nos surgirem como efeitos da impugnação, não poderá dizer-se que a decisão de procedência titula um concurso, podendo o credor escolher, indiscriminadamente, qual das duas pretensões actua. O credor não poderá requerer, em simultâneo, a execução da pretensão à restituição do bem ao património do devedor com a execução da pretensão de satisfação do seu crédito à custa do bem integrado no património do terceiro.

            Sufragamos, esta interpretação, que é a que mais se compagina com a execução universal que a insolvência é, sendo compaginável com a consideração do princípio par conditio creditorum, evitando que, mal grado a declaração de insolvência dos executados, estes, indirectamente, sejam beneficiados tal como o seu credor/exequente na execução singular, acobertados sob os ortodoxos efeitos da procedência da acção pauliana, o que vale por dizer, que não obstante a insolvência dos executados e Réus vencidos na acção pauliana, a execução prosseguiria, em relação ao bem penhorado e objecto da acção pauliana, apenas entre o credor exequente e os executados, ficando a salvo da execução universal com evidente tratamento discriminatório.     

           

Nos casos em que os executados são declarados insolventes na pendência de acção de impugnação pauliana, por razões de justiça material e respeito pela execução universal[2] que a insolvência despoleta, os bens alienados e objecto de acção de impugnação pauliana, devem, excepcionalmente, regressar ao património do devedor, para, integrando a Massa Insolvente responderem perante os credores da insolvência, sendo o crédito do exequente e Autor triunfante na acção de impugnação pauliana, tratado em pé de igualdade [com a ressalva do estatuído no art. 127º, nº3º, do CIRE] com os demais credores dos inicialmente executados, ora insolventes, assim acolhendo a lição de Pires de Lima e Antunes Varela quando afirmam que “o credor pode ter interesse na restituição dos bens ao património do devedor, se a execução ainda não é possível ou se há falência ou insolvência, caso em que os bens revertem para a massa falida.”

            Na vigência do revogado CPEREF este diploma previa uma acção de impugnação pauliana colectiva – art. 159º, nº1 – que, em caso de procedência, faria com que os bens revertessem para a massa falida, assim atenuando as consequências discriminatórias que a declaração de insolvência na pendência da pauliana encerrava, a admitir-se que, apesar dela, o exequente sairia incólume executando os bens no património de terceiro adquirente.

            Cura Mariano, obra citada, pág. 269, afirma – “Com a entrada em vigor do C.I.R.E., deixou de existir qualquer distinção nos efeitos da impugnação pauliana relativa a actos do devedor que veio a ser judicialmente declarado insolvente, pelo que os credores do adquirente concorrerão em qualquer caso com o credor impugnante.”

                Tendo os executados sido declarados insolventes, a execução não pode prosseguir, nos termos do art. 88º do CIRE, estabelecendo o art. 90º que os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos nos termos deste Código.

O CIRE, no art. 127º, nº 3º, estatui – “Julgada procedente a acção de impugnação, o interesse do credor que a tenha instaurado é aferido, para efeitos do artigo 616.° do Código Civil, com abstracção das modificações introduzidas ao seu crédito por um eventual plano de insolvência ou de pagamentos”.

Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, escrevem em anotação, pág. 450:

  “Na aferição do interesse do credor, o preceito em anotação atende ao disposto no art. 616º do Código Civil, nomeadamente ao seu n.°4, quando estabelece que a impugnação só aproveita ao impugnante. A nova lei afasta-se assim da anterior, a qual, no seguimento da nossa tradição, determinava que a procedência da impugnação aproveitaria à comunidade dos credores (vd. art. 159.°, n.°1, do CPEREF). Nesta base, o interesse do credor impugnante é aferido, segundo a estatuição do n.°3…sem atender às modificações introduzidas no seu crédito por um plano de insolvência ou de pagamentos que tenha sido aprovado e homologado; isto significa que o seu crédito é considerado, quanto à medida do direito à restituição, nos termos e para os efeitos do n.°1 do referido art. 616°, tal como tenha sido reclamado e verificado no processo de insolvência.”

            Pelo quanto dissemos o Acórdão recorrido não pode manter-se.

Sempre diremos que, tendo o recorrente Banco, hipoteca voluntária sobre o bem penhorado, em função da sequela e do direito de preferência que tal garantia real confere, obviamente, que poderá no processo de insolvência dos aqui executados actuar a garantia em relação ao bem objecto da penhora, objecto da doação impugnada na acção pauliana, razão pela qual as demais questões suscitadas se acham prejudicadas, assinalando-se que o registo da hipoteca sobre o bem em causa é anterior ao registo da penhora e do registo da acção de impugnação pauliana.

            Sumário – art. 713º, nº7, do Código de Processo Civil

Se os executados são declarados insolventes na pendência de acção de impugnação pauliana movida pelo exequente, por razões de justiça material e respeito pela execução universal que a insolvência despoleta, os bens alienados objecto da acção de impugnação pauliana julgada procedente, devem, excepcionalmente, regressar ao património do devedor, para, integrando a massa insolvente responderem perante os credores da insolvência.

 Sendo, deste modo, o crédito do exequente, autor triunfante na acção de impugnação pauliana, tratado em pé de igualdade com os dos demais credores dos ora insolventes, assim se acolhendo a lição de Pires de Lima e Antunes Varela quando afirmam que “o credor pode ter interesse na restituição dos bens ao património do devedor, se a execução ainda não é possível ou se há falência ou insolvência, caso em que os bens revertem para a massa falida.”

            Decisão.

           

Concede-se a revista do recorrente Banco, e nega-se a revista dos executados, e revogando o Acórdão recorrido, repristina-se a decisão da primeira instância.

Custas pelos Recorrentes/executados.

         

Supremo Tribunal de Justiça,11 de Julho de 2013

Fonseca Ramos (Relator)

Fernandes do Vale

Marques Pereira

___________________
[1] RelatorFonseca Ramos.
Ex.mos Adjuntos:
Conselheiro Fernandes do Vale.
Conselheiro Marques Pereira.
[2] Nos termos do art. 1º do CIRE –  “O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente.”