Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
31509/15.0T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
CLÁUSULA PENAL
JUROS DE MORA
INICIO DA MORA
DEVER DE COOPERAÇÃO
PODERES DA RELAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
TRANSACÇÃO
TRANSAÇÃO
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 05/23/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL À REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / VÍCIOS E REFORMA DA SENTENÇA / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA.
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / ABUSO DE DIREITO – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / FALTA DE CUMPRIMENTO E MORA IMPUTÁVEIS AO DEVEDOR / MORA DO DEVEDOR.
Doutrina:
- A. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE P. SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2018, p. 34, 35 e 797;
- A. PINTO MONTEIRO, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 142.º, 2012/2013, p. 72;
- J. LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 1999, p. 472;
- LOPES DO REGO, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª edição, 2004, p. 267 a 269.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 615.º, N.º 1, ALÍNEA D) E 674.º, N.º 3.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 334.º, 804.º E 805.º, N.º 1.
Sumário :
I. Não estando a Relação legalmente vinculada a convidar a parte para que apresente no processo documentos (faturas), na sua disponibilidade, não há violação do dever de cooperação e, por consequência, está excluída a prática de ato (omissão) processual nulo.

II. Incorrendo a devedora em responsabilidade civil, por incumprimento do contrato, tem aplicação a cláusula penal acordada no contrato.

III. Dispondo a credora do direito de apresentar propostas, mas não estando obrigada a fazê-lo, não lhe pode ser imputada responsabilidade por esse facto.

IV. A obrigação pecuniária, sendo líquida, vence juros de mora, desde a data da interpelação da devedora.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:




I – RELATÓRIO


AA. ACE, instaurou, em 16 de novembro de 2015, nos Juízos Centrais Cíveis da Comarca de …, contra BB, S.A., ação declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo que a Ré fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 1 845 457,18, acrescida dos juros moratórios vencidos, no montante de € 136 121,43, e vincendos.

Para tanto, alegou, em síntese, que, na sequência de ação declarativa de condenação instaurada contra a ora Ré, as partes, em 30 de setembro de 2011, celebraram uma transação, com a inclusão de uma cláusula penal até ao valor de € 2 000 000,00; a Ré, porém, não cumpriu esse contrato, vindo a causar-lhe prejuízos, no valor de € 1 845 457,18, e incorrendo em mora.

Contestou a Ré, alegando o cumprimento da obrigação, que era de meios, mas cujo resultado não foi obtido por a Autora não ter diligenciado na sua parte e que o contrato não lhe impunha uma obrigação de comunicação acrítica de condições de concorrentes, num contexto de milhares de adjudicações, sendo que apenas a disponibilizaria se solicitada para eventual equiparação da melhor proposta. Concluiu, assim, pela improcedência da ação.

Respondeu a A., aludindo que o acordo consagra um pacto de preferência e que cabia à Ré comunicar-lhe a preferência, o que não aconteceu.

Foi proferido despacho saneador, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, em 11 de julho de 2017, que, julgando a ação procedente, condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de € 1 845 457,18, acrescida de juros de mora, desde 4 de novembro de 2014 até efetivo pagamento.

Inconformada com a sentença, a Ré recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 29 de novembro de 2018, julgando a apelação parcialmente procedente, condenou apenas a Ré a pagar à Autora a diferença do montante a liquidar em 30 % de margem bruta sobre o valor das propostas rejeitadas pela Autora que acrescerá ao valor já líquido de € 1 184 147,60 e os € 2 000 000,00.


Inconformada com este acórdão, a Autora recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formulou essencialmente as seguintes conclusões:


a) O Tribunal a quo, dando como não provado o facto n.º 18 da sentença, violou o disposto nos artigos 236.º e 237.º, do Código Civil, 2.º, 6.º, 413.º e 607.º, n.º 5, do CPC.

b) Constituindo o direito à prova um corolário do direito de acesso à Justiça é inconstitucional a interpretação dada às normas dos arts. 406.º e 354.º do CC, quando desta resulte uma limitação dos meios de prova sem que resulte claro e explícito que era a vontade das partes.

c) O acórdão recorrido desconsiderou os factos 12, 13, e 14 da sentença, violando os arts. 334.º do CC  e 8.º do CPC.

d) O Tribunal a quo violou o princípio da cooperação, bem como o dever de inquisitoriedade, quanto à prova da margem bruta realizada pela A. com os negócios feitos com a R.

e) A violação do dever de cooperação determina a nulidade processual.

f) O acórdão recorrido é nulo, nos termos do art. 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, por excesso de pronúncia, porquanto, tendo-se omitido o comportamento exigido pelo dever de cooperação, o tribunal conheceu de matéria que não poderia conhecer.

g) Caso se não entenda do modo referido, estar-se-á perante uma interpretação materialmente inconstitucional do art. 7.º do CPC, em razão da restrição manifestamente desproporcional dos princípios do acesso do direito e da tutela jurisdicional efetiva (arts. 18.º, n.º 2, e 20.º, da CRP).

h) Por cinco razões, o acórdão recorrido violou o art. 811.º, n.º 3, do CC, ao deduzir ao valor da cláusula penal o valor do lucro que presumivelmente seria auferido pela A., caso tivesse celebrado os contratos aos quais se reportavam os concursos no âmbito dos quais não apresentou qualquer proposta.

i) Cabia à R. a alegação e prova dos factos necessários ao preenchimento dos pressupostos da culpa do lesado, nos termos do art. 342.º, n.º 2, do CC.


Com o provimento do recurso, a Recorrente pretende a revogação do acórdão recorrido, nomeadamente nos termos especificados a fls. 1000/1.


Contra-alegou a R., no sentido da improcedência total da revista.


Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


Nesta revista, está em discussão, para além da nulidade do acórdão, por excesso de pronúncia, a fixação da matéria de facto, a cláusula penal e os juros moratórios.


II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. No acórdão recorrido, foram dados como provados, designadamente, os seguintes factos:


1. A A. é um agrupamento complementar de empresas, constituído pelas CC, S.A., e DD - Sistemas Informáticos, S.A., tendo por objeto social o comércio e a implementação de soluções informáticas.

2. A 19.07.2013, foi constituída nova sociedade comercial com o objetivo de concentrar as atividades de comercialização de equipamentos e “software” e prestação de serviços no setor das tecnologias da informação das sociedades DD - Sistemas Informáticos, S.A., e EE, S.A., tendo a 01.08.2013, numa operação de cisão-fusão, estas sociedades destacado essas atividades para as integrar na FF - Sistemas de Informação, S.A., que passou a integrar o denominado Grupo DD.

3. A R. dedica-se, designadamente, à conceção, construção, gestão e exploração de redes e infraestruturas de comunicações eletrónicas, à prestação de serviços de comunicações eletrónicas, de transporte e difusão de sinal de telecomunicações, e de difusão e a atividade de televisão, à prestação de serviços nas áreas de tecnologias de informação, sociedade de informação, multimédia e comunicação, ao desenvolvimento e a comercialização de produtos e equipamentos de comunicações eletrónicas, tecnologias de informação e comunicação, bem como a realização da atividade de comércio eletrónico.

4. Na Conservatória do Registo Comercial, a 29.12.2004, encontra-se registada a fusão, por incorporação, de BB, S.A., na GG, S.A., mediante transferência global do património da primeira, com a extinção e transferência da globalidade das posições contratuais para a incorporante, a qual adotou, na mesma data, a firma da incorporada.

5. A 30.07.2010, a A. intentou contra a HH, S.A.., uma ação declarativa de condenação, a qual correu termos na … Vara Cível de Lisboa, … secção, sob o n.º l 761/10.4TVLSB.

6. A 30.09.2011, as partes chegaram a acordo quanto à resolução do litígio e estabeleceram os termos e condições, conforme escrito de fls. 81/89, que denominaram “contrato de transação”(CT), que, nessa data, subscreveram.

7. No contrato consta, para além do mais, que “ (…) “1.1. O objeto da presente transação consiste em pôr termo, em termos globais e definitivos, ao litígio. 1.2. As partes aceitam que o capital faturado no âmbito do Programa e.escolinha não pago pela HH corresponde ao montante total de € 3 590 783,96. 1.3. As partes aceitam, pela presente transação, pôr termo à ação judicial, nos seguintes termos e condições: (a) A AA e a II Leasing e Factoring reduzem os pedidos que formularam na ação judicial ao montante de € 3 590 783,96, desistindo, em consequência, do remanescente peticionado, nos termos do requerimento cuja minuta constitui o Anexo I da presente transação e que faz parte integrante da mesma, e de 1.4. infra, o que a HH aceita; (b) A HH aceita ser devedora e obriga-se a pagar o montante total de € 3 590 783,96, nos termos referidos em 1.5 e 1.6 infra; (c) As custas judiciais no âmbito da ação judicial serão da responsabilidade de ambas as partes, na proporção de 50 % para cada, prescindindo as partes das custas de parte. 1.4. Para cumprimento do referido em 1.3 (a), a AA obriga-se a apresentar em juízo, no âmbito da ação judicial, o requerimento de transação conforme minuta que constitui o Anexo I da presente transação, no prazo de 10 dias úteis, a contar da data de celebração da presente transação. 1.5. A HH obriga-se a efetuar os pagamentos referidos em 1.6. 1.6. A HH obriga-se a pagar o montante de € 1 131 215,58, por meio de transferência bancária para a conta bancária (...) e o montante de € 2 459 568,38 para a conta da II Leasing e Factoring (...), na mesma data em que se mostre ter sido apresentado em juízo, no âmbito da ação judicial, o requerimento de transação referido em 1.4 e apenas após a apresentação do mesmo. 1.7. Considerando a resolução do litígio e o termo da ação judicial nos termos referidos em 1.3. e a relevância da AA e dos respetivos membros como fornecedores de produtos e serviços a nível nacional, a HH e, bem assim, as outras sociedades com sede em Portugal de que a GG SGPS, S.A., seja titular, direta ou indiretamente, da totalidade do capital social, desenvolvendo os melhores esforços para que a AA e/ou os respetivos membros venham, com elas, a estabelecer parcerias nos processos ou concursos que lançarem para a aquisição de produtos de informática (hardware e software) e, bem assim, de serviços de informática, obrigam-se a dirigir convites ou contactar a AA para que esta apresente as suas propostas comerciais, as quais lhe serão adjudicadas verificadas condições de igualdade competitiva, técnica, comercial e financeira. 1.8. Quando a proposta apresentada pela AA (e/ou pelos respetivos membros) não for a que reúna as melhores condições para vir a ser escolhida, a empresa adjudicante comunicar-lhe-á essas condições para a verificação de igualdade competitiva (técnica, comercial e financeira) relativamente à proposta melhor qualificada. 1.9. A AA (e/ou respetivos membros) terá então, dentro do prazo que lhe for fixado, que não poderá ser inferior a dez dias, de igualar a proposta melhor qualificada, caso em que lhe será adjudicado o fornecimento. 1.10. O compromisso resultante do supra estipulado no n.º s 1.7 e 1.9 mantém-se válido pelo período de 3 anos a contar da data de celebração do presente contrato.1.11. Caso a HH e, bem assim as outras sociedades com sede em Portugal de que a GG SGPS, S.A., seja titular, direta ou indiretamente, da totalidade do capital social, incumpram definitivamente as obrigações estipuladas nos n.º s 1.7 a 1.9 supra, a HH obriga-se a pagar à AA, a título de cláusula penal, um montante até um valor máximo de € 2 000 000,00, correspondente ao montante em juros de mora que a AA desiste de receber nos termos da presente transação; ao referido valor máximo de € 2 000 000,00 será deduzido o valor correspondente à margem bruta libertada pelos negócios que tiverem sido adjudicados à AA e/ou aos seus membros ao abrigo do disposto em 1.7 a 1.9. 1.12. Caberá à AA provar à HH qual foi a referida margem bruta, mediante a apresentação das faturas que comprovem os custos incorridos pela AA (e/ou pelos respetivos membros) com a aquisição dos produtos e/ou serviços fornecidos ao abrigo do estipulado em 1.7 a 1.9; caso a AA não consiga provar qual foi a efetiva margem bruta, presumir-se-á que a mesma foi de 30 %. 2. Condições e Garantias: 2.1. As partes comprometem-se a adotar todas as medidas necessárias ou que se venham a revelar necessárias ou adequadas à execução integral da presente transação. (...) ”.

8. À data em que foi outorgado esse acordo, a HH, S.A., integrava o Grupo GG, sendo a GG SGPS, S.A.. titular, direta ou indiretamente, da totalidade do capital social da mesma, tal como das demais sociedades integrantes desses grupos.

9. Entre a data da outorga do contrato de transação e a data em que se completaram três anos, a HH e bem assim as outras sociedades com sede em Portugal, de que a GG SGPS, S.A., era titular, direta ou indiretamente, da totalidade do capital social, adquiriram à A., às sociedades do consórcio A. e/ou à FF, S.A., bens e/ou serviços, no valor total de € 3 947 158,67.

10. Em 19.08.2013, a A. enviou à R., e esta recebeu a carta de fls. 130/131, onde consta, para além do mais, “como estão recordados (e como resulta dos 1.9 a 1.12 do CT), essa obrigação tem a vigência de 3 anos, portanto até 30.09.2014. A data de 31.03.2013 - em que já decorreram 18 meses desde a outorga do CT, faltando portanto aproximadamente 18 meses para o termo acima referido - as aquisições de bens e serviços efetuadas nos termos acima descritos totalizaram € 917 052,57, totalizando a “margem bruta libertada pelos negócios”, conforme demonstrações que vimos facultando a essa empresa, € 33 137,20”. O volume de negócios referido é reconhecidamente diminuto (...). Assim, vimos desde já agradecer os Vossos melhores esforços para corrigir os processos internos de forma a incrementar de forma significativa o volume de negócios entre as empresas”.

11. Em 04.09.2014, a A. enviou à R., e esta recebeu, a carta de fls. 132/133, onde consta, para além do mais, “como V. Exas sabem - já o temos regularmente transmitido - as aquisições de bens e serviços efetuadas, no período em apreço e até esta data, pela HH, S.A., e por todas as outras sociedade do “Grupo GG” à AA. ACE, e/ou os seus membros totalizam € 3 479 890,16, totalizando (…) “a margem bruta libertada pelos negócios que foram adjudicados à AA e/ou aos seus membros” - conforme demonstração atualizada em anexo - € 130 935,40. (…) é inequívoco que a obrigação acima descrita não foi cumprida (…). Por tal, a AA. ACE, vem comunicar que, no próximo dia 01 de outubro de 2014, irá interpelar essa empresa, para, no prazo de 10 dias úteis após a receção da sobredita interpelação, proceder ao pagamento, a título de cláusula penal, estipulada nos n.º s 1.9 a 1.12 do CT, do valor de € 2 000 000,00, deduzido do valor correspondente à margem bruta libertada pelos negócios que, nos termos acima descritos, tiverem sido, até essa data, adjudicados à AA. ACE e/ou aos seus membros”.

12. Em 15.10.2014, a A. enviou à R., e esta recebeu, a carta de fls. 136/138, onde consta, para além do mais, “como V. Exas sabem - já o temos regularmente transmitido - as aquisições de bens e serviços efetuadas, nos três anos decorridos entre a outorga do CT e o dia 30.09.2014, pela HH, S.A., e por todas as outras sociedades do “Grupo GG” à AA. ACE, e/ou os seus membros (incluindo, desde maio de 2013, a FF, S.A.) totalizam € 3 947 158,67, totalizando, por sua vez “a margem bruta libertada pelos negócios que foram adjudicados à AA e/ou aos seus membros” – conforme demonstrações que vimos facultando a essa empresa - € 154 542,82. (…) é inequívoco que a obrigação acima descrita não foi cumprida (…). Por tal, a AA. ACE, vem interpelar essa empresa, para, até ao próximo dia 03.11.2014, proceder ao pagamento, a título de cláusula penal, estipulada nos n.º s 1.9 a 1.12 do CT, do valor de € 1 845 457,18, resultante da dedução ao valor de € 2 000 000,00 - correspondente à supra referida redução do pedido - dos € 154 542,82 de margem bruta libertada pelos negócios que, nos termos e no prazo convencionados no CT, foram adjudicados à AA. ACE e/ou aos seus membros”.

13. A R. enviou à A., e este recebeu, a carta de 14.10.2014, de fls. 141, onde consta, para além domais, “acusamos a receção da vossa carta (…), que nos causou surpresa e alguma perplexidade. Com efeito, é profunda convicção da BB - algo que esta, na preparação da presente resposta, confirmou junto dos seus serviços - que as obrigações para si decorrentes do contrato identificado em epígrafe (…) foram sendo pontual e integralmente cumpridas, não havendo, consequente e naturalmente, lugar ao pagamento de qualquer cláusula penal prevista no CT ou indemnização de qualquer outro tipo (…).

14. Nos três anos que decorreram após a assinatura do “contrato de transação”, as sociedades membros do consórcio da A. e/ou a FF, S.A., apresentaram várias propostas de fornecimento de bens e serviços, fosse em resposta a convites diretos, efetuados por correio eletrónico, fosse em “procedimentos de consulta” em plataforma eletrónica, lançados pela R. ou por empresas do Grupo GG

15. Os bens e/ou serviços referidos em 9 são os elencados a fls. 104/129.

16. A venda desses bens e serviços permitiu à A., às sociedades membros do consórcio e/ou à FF, S.A., realizar uma margem bruta (diferença entre o custo de aquisição/produção do bem e/ou serviço e o preço recebido, livre de impostos) de € 1 184 147,60 (alterado pela Relação).

17. A R. não implementou um mecanismo para que a A., as sociedades membros do consórcio ou a FF, S.A., pudessem exercer o direito a igualar a proposta melhor qualificada nas seguintes situações: proposta de fornecimento de 300 “Headsets Plantronics HW261N”; proposta para renovação de contrato OVS Microsoft; proposta de fornecimento de 12 baterias para HP Elitebook 8440P Notebook PC; proposta de fornecimento de 40 discos externos 500gb 2.5; proposta de fornecimento de 3 placas de rede para HP 8300 CMT para testes; proposta de fornecimento de servidor HP; proposta de fornecimento de projeto de desenvolvimento da nova STB Zapper DTH EHD-4K.

18. A R. não implementou um mecanismo para à A., membros da A., ou a FF poderem exercer o direito de igualar a proposta melhor qualificada no que concerne a propostas e eventual contratação do fornecimento de bens e serviços lançados através de plataforma eletrónica pela R. e pelas outras sociedades com sede em Portugal de que a GG SGPS, S.A., fosse titular, direta ou indiretamente, da totalidade do capital social, como por ex. na proposta de prestação de serviço no processo 43528, relativo a serviços de conceção, implementação e gestão da BDP, ou na proposta no processo 45589 relativo o fornecimento de computadores portáteis.

19. A R. e as outras sociedades com sede em Portugal de que a GG SGPS, S.A. foi titular, direta ou indiretamente, da totalidade do capital social, lançou o procedimento referente ao licenciamento Microsoft do Grupo GG, em 2012, e adjudicou-o a Informática JJ, S.A.., por exigência da Microsoft.

20. A R. também lançou o procedimento de contratação de fornecimento para aquisição e instalação de servidores no Datacenter da …, em 2012.

21. A HH, um mês após a subscrição do “contrato de transação”, divulgou pelo Grupo GG e ordenou que fossem dadas instruções à GG Compras para a necessidade de cumprir as obrigações constantes do C.T.

22. A R., na análise da melhor proposta, não incidia apenas sobre critérios estritamente comerciais, mas tinha também em consideração critérios técnicos que eram aferidos.

23. O A. recusou ou não apresentou proposta nos processos n.º s 48146, 42615, 44508, 37348, 39681 (Sourcing GG Inovação (2012-2014)), 43144, 43528 e 39344 (aditado pela Relação).



***



2.2. Delimitada a matéria de facto, depois de alterada pela Relação, importa conhecer do objeto do recurso, definido pelas suas conclusões, nomeadamente da fixação da matéria de facto, da cláusula penal e dos juros moratórios.

A Recorrente arguiu a nulidade do acórdão recorrido, por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil (CPC), porquanto, segundo alega, tendo a Relação omitido o dever de cooperação, não podia conhecer da impugnação do facto descrito sob o n.º 16 (n.º 18 da sentença e do acórdão recorrido).

Esta matéria constituía expressamente objeto da apelação interposta da sentença, pelo que a Relação, no âmbito dos seus poderes legais de cognição, estava vinculada ao seu conhecimento.

Ainda que pudesse, eventualmente, ter havido violação do dever de cooperação, nomeadamente nos termos configurados pela Recorrente, tal redundaria antes em erro material de julgamento, sem que afetasse o aspeto formal do acórdão.

Nestas circunstâncias, sendo manifesta a inexistência de excesso de pronúncia, não se verifica a nulidade do acórdão prevista no art. 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC.

Assim, improcede a arguição de nulidade do acórdão recorrido.

 

2.3. Noutro plano, a Recorrente questionou a alteração introduzida pela Relação, no âmbito da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, respeitante ao mesmo facto.

Desde logo, é de destacar que o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, apenas conhece, por regra, de direito.

A questão de facto, nomeadamente o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais, só de forma residual pode ser objeto de revista, como decorre expressamente do disposto no art. 674.º, n.º 3, do CPC. A decisão sobre a matéria de facto cabe, exclusivamente, às instâncias, com a derradeira palavra a pertencer à Relação, no exercício efetivo do duplo grau de jurisdição.

A alegação da Recorrente, no entanto, não se insere no âmbito da referida disposição legal, porquanto não foi invocada a prática, no acórdão recorrido, de qualquer erro de direito probatório material.

Por isso, e na ausência de uma razão justificativa, tem de respeitar-se integralmente a decisão sobre a matéria de facto, não sendo passível de alteração, nomeadamente no âmbito do presente recurso de revista.


No âmbito da prova da mesma matéria de facto, a Recorrente alegou ainda a violação do dever de cooperação pela Relação, por ter considerado necessária a prova pela apresentação das faturas, sem conferir “a possibilidade de ordenar à Autora a junção dessas faturas aos autos” (fls. 945).

O princípio da cooperação encontra-se, expressamente, consagrado no art. 7.º do CPC, que reproduziu o anterior art. 266.º.

Este princípio processual surgiu, como tal, com a reforma processual introduzida pelo DL n.º 329-A/95, de 12 de dezembro, e pelo DL n.º 180/96, de 25 de setembro (J. LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 1999, pág. 472).  

O princípio da cooperação envolve duas vertentes: a cooperação das partes com o tribunal e a cooperação do tribunal com as partes.

Destacando esta última vertente, por a alegada violação do princípio da cooperação daí decorrer, a cooperação do tribunal com as partes concretiza-se mediante a consagração de um genérico poder-dever de o juiz promover o suprimento de insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, a consagração de um genérico poder-dever de providenciar pelo suprimento de obstáculos procedimentais à prolação da decisão de mérito ou à realização do normal efeito dos atos processuais, nos termos do n.º 2 do art. 7.º do CPC, a consagração do poder-dever de auxiliar qualquer das partes na remoção ou ultrapassagem de obstáculos que razoavelmente as impeçam de atuar eficazmente no processo, comprometendo o êxito da ação ou da defesa, e que não se possam imputar à parte por eles afetados, e a consagração da obrigatória discussão prévia com as partes da solução do pleito, com vista a prevenir a prolação de “decisões-surpresa” (LOPES DO REGO, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª edição, 2004, págs. 267 a 269, e A. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE P. SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2018, págs. 34 e 35).

Embora reconhecendo, pelo que se deixou referido, que o princípio da cooperação tem particular aplicação ao nível da primeira instância, não podia a Relação convidar a Recorrente a apresentar as faturas para prova da materialidade relativa ao facto n.º 18 da sentença.

Desde logo, o princípio da cooperação não é absoluto ou ilimitado.

Por outro lado, estando a prova documental na inteira disponibilidade da própria Recorrente, não fazia qualquer sentido apelar à cooperação do Tribunal, porquanto a Recorrente dispôs da oportunidade de juntar a prova documental ou, mesmo, de requerer, para o mesmo fim, espécie diversa de prova.

Tal convite a ser feito corresponderia, aliás, à sugestão expressa da prática de ato proibido por lei. Efetivamente, sendo manifesto não se poder juntar os documentos, nomeadamente as faturas, no âmbito do recurso de apelação, decorrente do disposto nos arts. 651.º, n.º 1, e 425.º, do CPC, estaria sempre fora de hipótese o convite para a junção das faturas, como entende a Recorrente.

Nestas circunstâncias, não estando a Relação legalmente vinculada a convidar a Recorrente para que apresentasse as faturas no processo, não houve violação do dever de cooperação e, por consequência, está excluída a prática de ato (omissão) processual nulo.

Por outro lado, não releva também a invocação do disposto na alínea b) do n.º 2 do art. 662.º do CPC, nos termos da qual a Relação deve, mesmo oficiosamente, “ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova”.

Tal norma destina-se a conferir “uma possibilidade a que a Relação pode aceder quando se lhe depara uma dúvida objetiva e fundada sobre a prova que foi realizada e que possa ser resolvida, por exemplo, através da junção de documentos na posse de entidades administrativas” (A. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE P. SOUSA, idem, pág. 797).

A Relação, no âmbito da decisão sobre a impugnação da matéria de facto, não foi confrontada por uma “dúvida fundada”, mas antes por uma situação de falta de prova, nomeadamente por omissão da apresentação das correspondentes faturas, em poder da própria Recorrente.

A Recorrente não pode pretender aceder, na Relação, à utilização de meios de prova, de que podia ter-se servido na primeira instância, sem qualquer impossibilidade subjetiva, mas que entendeu livremente não usar.

De resto, não se tendo verificado limitação de prova alguma, e sem prejuízo ainda da aplicação do princípio da preclusão, encontra-se naturalmente salvaguardada a garantia constitucional da tutela jurisdicional efetiva.


Entrando agora na questão substantiva da revista, interessa averiguar se a cláusula penal, acordada no contrato de transação, foi respeitada pela decisão proferida no acórdão recorrido, sendo certo que as instâncias divergiram, embora num contexto factual diverso, e se são devidos juros moratórios.

  Em 30 de setembro de 2011, as partes, pondo termo a um litígio em que estavam envolvidas, celebraram uma transação, com diversas cláusulas, descritas no facto sob o n.º 7. Nesse contrato, a Recorrida e as suas participadas obrigaram-se, designadamente, a dirigir convites à Recorrente para a apresentação de propostas comerciais, nos concursos para a aquisição de produtos de informática, a adjudicar-lhe em condições de igualdade competitiva, técnica, comercial e financeira; quando a proposta apresentada pela Recorrente não reúna as melhores condições para ser escolhida, a Recorrida e as suas participadas obrigam-se a comunicar-lhe essas condições para a verificação da referida igualdade relativamente à proposta melhor qualificada; a Recorrente, nesse caso, tem um prazo não inferior a dez dias para igualar a proposta melhor qualificada e obter a adjudicação.

Esse compromisso foi estabelecido para vigorar durante três anos, nomeadamente de 30 de setembro de 2011 a 30 de setembro de 2014.

Para o caso de incumprimento das cláusulas especificadas, previa-se que a Recorrida incorreria em responsabilidade civil, fixando-se uma cláusula penal, que podia ascender ao máximo de € 2 000 000,00 (correspondente aos juros de mora de que a Recorrente desistira na transação celebrada). Ao montante da cláusula penal seria deduzida a margem bruta libertada pelos negócios adjudicados ao abrigo do contrato, fixando-se, subsidiariamente, uma presunção de 30 % de margem bruta.

A cláusula penal estabelecia o máximo que a indemnização podia atingir, pois havia sempre de deduzir-se a margem bruta de lucro, a alcançar mediante a apresentação das faturas ou, então, presumi-la em 30 %.

Está adquirido nos autos, nomeadamente em ambas as instâncias, que a Recorrida incorreu no incumprimento do contrato, ao desrespeitar as obrigações assumidas no âmbito dos concursos para a aquisição de produtos informáticos.

Incorrendo a Recorrida em responsabilidade civil, por incumprimento do contrato, tem aplicação a cláusula penal, acordada pelas partes no contrato.

Perante a matéria de facto, nomeadamente depois da modificação operada pela Relação (facto n.º 16), a margem bruta dos negócios realizados durante a vigência do contrato atingiu o montante de € 1 184 147,60, quantia que, nos termos do contrato, deve ser deduzida ao valor máximo da cláusula penal (€ 2 000 000,00), para se obter o valor líquido da cláusula penal, nomeadamente a quantia de € 815 852,40.

Na verdade, a cláusula penal do contrato, em correspondência com uma das suas finalidades, fixou antecipadamente por acordo o montante da indemnização exigível resultante do incumprimento do contrato imputável à Recorrida – art. 810.º, n.º 1, do Código Civil (CC).

Trata-se, com efeito, da manifestação prática dos princípios da autodeterminação e da liberdade contratual (A. PINTO MONTEIRO, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 142.º, 2012/2013, pág. 72), a que o devedor pode obstar ou evitar, cumprindo pontualmente o contrato.

Embora a Recorrente dispusesse do direito de preferência na adjudicação dos concursos de aquisição de produtos informáticos lançados pela Recorrida e suas participadas, não estava vinculada a exercer tal preferência, podendo ou não exercê-la, conforme os seus interesses. As obrigações assumidas pela Recorrida conferiam à Recorrente uma vantagem, para cujo incumprimento foi acordada a cláusula penal, com o montante máximo a equivaler ao montante em juros de mora, de que a Recorrente desistira na transação, como declarado no respetivo clausulado.

Neste contexto, não podem ser retiradas consequências do facto da Recorrente ter recusado ou não ter apresentado propostas no âmbito de alguns concursos, nomeadamente os identificados em 23 da matéria de facto. A Recorrente dispunha do direito de apresentar propostas, mas não estava obrigada a fazê-lo, não lhe podendo ser imputada qualquer responsabilidade por esse facto, como a redução da indemnização por efeito do incumprimento contratual da outra parte.

Por outro lado, do elenco da matéria de facto provada não resulta minimamente consubstanciada qualquer situação de abuso do direito, tal como este é objetivamente definido pelo art. 334.º do CC.

Assim, a cláusula penal encontra-se já devidamente liquidada, em concreto na quantia de € 815 852,40, não carecendo de mais liquidação, ao contrário do que se decidiu no acórdão recorrido.


Correspondendo a indemnização a uma obrigação pecuniária líquida, são ainda devidos juros de mora desde a data da interpelação extrajudicial da devedora, nomeadamente desde 4 de novembro de 2014, nos termos do disposto nos arts. 804.º e 805.º, n.º 1, ambos do Código Civil.

Por isso, também nesta parte, não se pode manter o acórdão recorrido.


Assim, concedendo a revista parcial, deve a Recorrida, pelo incumprimento do contrato, ser condenada a pagar à Recorrente a indemnização de € 815 852,40, acrescida dos juros de mora vencidos, desde 4 de novembro de 2014 até integral pagamento.   




2.6. A Recorrente e a Recorrida, ao ficarem vencidas por decaimento, são responsáveis pelo pagamento proporcional das custas, em todas as instâncias, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC.


III – DECISÃO


Pelo exposto, decide-se:


1) Conceder a revista parcial e, em consequência, revogar o acórdão recorrido e condenar a Ré a pagar à Autora a quantia de € 815 852,40 (oitocentos e quinze mil oitocentos e cinquenta de dois euros e quarenta cêntimos), acrescida dos juros de mora vencidos desde 4 de novembro de 2014 até integral pagamento.


2) Condenar a Recorrente (Autora) e a Recorrida (Ré) no pagamento proporcional das custas em todas as instâncias.


Lisboa, 23 de maio de 2019


Olindo dos Santos Geraldes (Relator)

Maria do Rosário Morgado

Hélder Almeida