Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6979/19.1T8VNG.P2.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: PROCEDIMENTOS CAUTELARES
CADUCIDADE
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
PRESSUPOSTOS
ERRO DE JULGAMENTO
FALSIDADE
Data do Acordão: 11/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
O requerente de providência cautelar que veio a caducar por motivo que lhe é imputável, incorre em responsabilidade civil, nos termos do art. 374º, nº1 do CPC se adulterou factos e omitiu outros no requerimento inicial, que foram determinantes para o decretamento da providência.
Decisão Texto Integral:



Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



Victoria – Seguros, S.A., intentou contra o Condomínio Edifício Cavada Velha acção declarativa com processo comum pedindo a sua condenação a pagar-lhe, por via da responsabilidade civil por factos ilícitos ou, subsidiariamente, do enriquecimento sem causa, a quantia de € 126.000,00, acrescida de juros de mora vencidos, à taxa legal, no valor de € 19.284,03, e vincendos, bem como nas custas do processo.

Alegou para tanto, e em síntese, que despendeu a quantia peticionada no âmbito de procedimento cautelar que o Réu instaurou com fundamentação falsa, e que caducou por a acção principal correspondente ter sido julgada improcedente.

Contestou o R., defendendo não estarem preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos e excepcionando o caso julgado, por o Supremo Tribunal de Justiça já se ter pronunciado, de modo desfavorável, sobre pretensão que a A. formula neste litígio.

Respondeu a A. pronunciando-se pela improcedência da excepção.

Foi proferida decisão que, julgando procedente a excepção de caso julgado, absolveu o R. da instância.

Inconformada, apelou a Autora com sucesso pois que a Relação do Porto revogou a decisão recorrida, determinando o prosseguimento dos autos.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença que, julgando a acção procedente, condenou o R. a pagar à A. a quantia de € 126.000,00, acrescida de juros de mora vencidos à data da propositura da acção, no montante de € 19.284,03, assim como dos que se tiveram entretanto vencido na sua pendência e vierem e vencer, à taxa legal, até integral pagamento.

Inconformado, o Réu apelou.


O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 04.04.2022, julgou a apelação procedente, revogou a sentença e absolveu o Recorrente do pedido principal; e julgando procedente a excepção de caso julgado, absolveu o apelante da instância do pedido subsidiário (enriquecimento sem causa).


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Inconformado com tal decisão, a Autora interpôs recurso de revista, concluindo como segue as respectivas alegações:

1. A decisão de facto obriga a concluir pela verificação de todos os pressupostos de que depende a responsabilidade do requerente da providência: ausência de justificação da providência ou sua caducidade por facto imputável ao requerente, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade entre o ilícito e o dano.

2. O acórdão recorrido concluiu pela verificação dos referidos pressupostos, com excepção do nexo de causalidade (sendo errada a decisão quanto a este último requisito).

3. A questão do preenchimento do primeiro pressuposto do art. 374º/1 do CPC (a ausência de justificação da providência ou a sua caducidade por facto imputável ao requerente) estava ultrapassada mesmo antes do acórdão recorrido, pois tanto o acórdão do STJ de 07.03.2019 (Revista nº 5744/15.0...), como o acórdão da Relação do Porto de 23.02.2021 que revogara o saneador-sentença absolutório de 06.07.2020, tinham já concluído pela possibilidade de a A. responsabilizar a R. à luz da referida disposição legal.

4. A factualidade provada - entre outros, os FP 36 i., 45, 46, 35, 36, 6, 7, 8, 9, 11, 12, 14, 15, 16, 18, 20, 22, 19, 47, 44, 23, 33 e, especialmente, 48 - é esmagadora quanto à ilicitude da conduta do R. e à sua culpa.

5. Essa factualidade revela que o R., quando requereu a providência cautelar, estava consciente da antiguidade das patologias do edifício seguro (desde 2009, pelo menos), da causa dessas patologias (implantação das fundações em terrenos compressíveis, determinante do assentamento desses terrenos e dos consequentes danos do edifício seguro, nomeadamente fissuras) e que em 7.1.2014 não ocorrera qualquer sinistro do qual tivessem resultado esses danos; dito de outro modo, naquela altura, o R. já sabia da inexistência do seu alegado direito sobre a A..

6. Não bastando isso, o R., no requerimento inicial da providência, distorceu a realidade, alegando factos inverídicos (nomeadamente ficcionando um sinistro em 7.1.2014 e dando a entender que os danos do edifício foram detectados nessa data – FP 18, 20 e 22) e omitindo factos relevantes (nomeadamente os FP 6 a 9, relacionados com a vistoria de 2013 e a ordem camarária de realização de obras, bem como os assentamentos e os danos já existentes, pelo menos, desde 2009, incluindo o estudo geotécnico realizado nesse ano – FP 19 e 47 –, já para não falar em factos mais antigos, como aqueles a que se reportava a documentação elaborada e enviada pelo R. ao construtor do edifício seguro, relacionada com deficiências detectadas na construção).

7. Acresce que, naquele requerimento inicial, o R. atribuiu as patologias do edifício seguro a duas causas hipotéticas - deficiente compactação do terreno e afectação das fundações do edifício por uma linha de água a Norte deste-, quando já sabia que só a primeira era real (tanto que descartou asegunda na acção principal – FP 33), sendo que nenhuma das duas estava contratualmente garantida (ambas representavam exclusões específicas da cobertura de “Aluimentos de Terras”, a primeira prevista na cl. 2.5.3, Secção I, c) 1. das CGA – FP 5 – e a segunda prevista na cl. 2.5.3., Secção I, c) 2., 2ª parte, das CGA – FP 48 do Processo 5744/15.0...).

8. A factualidade provada mostra que a ilicitude da conduta do R. adveio da violação, em primeiro lugar, do dever de não dedução de pretensões (ou requerer providências) infundadas e, em segundo lugar, do dever de verdade (isto é, de não alegar factos inverídicos e de não omitir factos relevantes), sendo que essa violação foi culposa, como resulta, inequivocamente, do FP 48, entre outros.

9. A aferição do requisito do nexo de causalidade deverá ter por referência essa actuação do Réu.

10. O erro de julgamento apontado pelo tribunal a quo ao tribunal que decretou a providência não apaga a conduta do R., nem a sua responsabilidade, por ter, primeiro, requerido uma providência cautelar que sabia ser infundada (com o inerente risco de procedência) e, depois, alterado e ocultado a realidade.

11. O R. requereu a providência ciente de que não era titular de qualquer direito sobre a A., com o que violou o dever de não dedução de pretensões infundadas, em consequência do que a providência acabaria por ser decretada e a A. condenada no seu cumprimento.

12. Mesmo desprovido de fundamento, qualquer requerimento de providência cautelar tem em vista, naturalmente, o seu decretamento e, tendo este lugar, não pode (aquele requerimento) deixar de ser considerado sua causa adequada, independentemente de o tribunal decidir melhor ou pior (o risco de procedência é inerente à submissão a juízo de uma qualquer pretensão).

13. A providência nunca seria decretada e a A. nunca teria de pagar as quantias mencionadas no nº 53 dos factos provados se o R. não a tivesse requerido, em violação do dever de não dedução de pretensões infundadas (assim, a existência de um nexo de causalidade directo entre o pedido de procedimento cautelar e a sua procedência é indisfarçável).

14. Mesmo que para o decretamento da providência tivesse contribuído um erro de julgamento, este originaria uma situação de concausalidade e não afastaria a responsabilidade do R. para com a A., nos termos do art. 497º/1 do CC.

15. Ainda que se concluísse pela existência de uma única causa directa – o referido erro de julgamento-, o que apenas se admite por mero dever de cautela e de patrocínio, sempre haveria um nexo de causalidade indirecto (não excluído pelo art. 563º do CC) entre a violação do dever de abstenção dededução de pretensões infundadas eo decretamento daprovidência, pois, nesta hipótese, o erro de julgamento teria sido proporcionado pelo pedido de providência infundado, sem o qual não haveria erro de julgamento algum.

16. Além de ter requerido uma providência que, à partida, sabia ser infundada, o R., para obter o seu decretamento, distorceu a realidade, alegando factos inverídicos e omitindo factos relevantes, sendo que esta sua conduta contribuiu ou influenciou o decretamento da providência.

17. Primeiro, o R. ficcionou um sinistro com inegável sucesso, pois o tribunal convenceu-se que, em Janeiro de 2014, ocorrera um aluimento de terras, traduzido no afundamento do terreno na zona das fundações e consequente deformação do terreno junto da base do pilar (provado está que esse sinistro danoso inexistiu - FP 48 -, sendo que a sua alegação pelo R. nos autos de providência cautelar induziu o tribunal em erro e influenciou a sua decisão sobre essa questão, quanto mais não seja porque o inexistente sinistro nunca poderia ter sido julgado provado se não tivesse sido alegado pelo R.).

18. Em segundo lugar, o R., pelaforma(dúbia) como alegou no requerimento deprovidênciacautelar, contribuiu para que, finda a produção de prova (sumária) naqueles autos, subsistissem dúvidas no espírito do julgador quanto à causa das patologias do edifício seguro.

19. Embora conhecesse essa causa (assentamento das fundações devido à sua implantação em terrenos compressíveis)o R., no requerimento inicial daprovidência, em lugardea alegar claramente, apresentou-a como uma de duas causas hipotéticas, assim lançando, injustificadamente, confusão e dúvidas, no espírito de meritíssimo juiz que julgou a providência, sobre a verdadeira causa dos problemas do edifício seguro, as quais não foram dissipadas pela prova sumária produzida naqueles autos, como transparece da fundamentação da decisão da providência.

20. Constituindo as alegadas causas hipotéticas exclusões específicas da cobertura do risco de “Aluimentos de Terras”, nos termos da cláusula 2.5.3. (nº 1 e nº 2, 2ª parte, da al. c) da Secção I) das CGA, e não tendo a prova sumária produzida permitido apurar a causa real das referidas patologias (apenas tendo ficado indiciada a mera possibilidade de essas patologias serem atribuíveis a uma das causas alegadas pelo A. ou à sua combinação - FP 20 dos autos de providência cautelar), o tribunal, face à persistência da dúvida, concluiu pela ausência de prova de quaisquer exclusões de cobertura, por pertencer ao A. o respectivo ónus probatório.

21. Provado que estava um sinistro (ficcionado pelo R.) enquadrável na cobertura de “Aluimentos de Terras”, e não provada a sua causa (nem, consequentemente, qualquer exclusão de cobertura), o tribunal concluiu pela procedência da requerida providência cautelar.

22. Independentemente de ter decidido bem ou mal, certo é que o tribunal, na sua decisão, foi condicionado ou influenciado pela versão dos factos apresentada pelo R. no requerimento de providência cautelar, nomeadamente pela alegação de um ficcionado aluimento de terras e a omissão de alegação da causa real das patologias do edifício seguro, que o R., não obstante conhecê-la, apresentou como uma causa meramente hipotética, em alternativa a uma outra, ficcionada (tal como o sinistro) e logo descartada pelo próprio R. na acção principal.

23. O nexo de causalidade entre a actuação do R. (, isto é, a violação do dever de não requerer providências infundadas e do dever de verdade) e o decretamento da providência é inquestionável e obriga à condenação do R. no pedido, com fundamento nos arts. 374º/1 do CPC e 483º/1 do CC.

24. O acórdão recorrido violou ou desconsiderou os arts. 374º/1 do CPC e 483º/1, 497º/1 e 563º do CC.


Enriquecimento sem causa (subsidiariamente)

25. Para a A. é claro que, ainda que se concluísse pela falta de preenchimento dos pressupostos do art. 374º/1 do CPC e do art. 483º/1 do CC, em particular do nexo de causalidade, o que apenas se admite por mero dever de cautela e de patrocínio, o R. jamais poderia ficar com as quantias dela recebidas em cumprimento de uma decisão judicial (provisória) que caducou e foi levantada e de uma obrigação de indemnização afinal inexistente, devendo, nessa hipótese, o pedido ser julgado procedente pela via subsidiária do enriquecimento sem causa (e improceder a excepção de caso julgado).

26. O que ditou, no acórdão do Supremo de 7.3.2019, a improcedência da reconvenção foi a natureza subsidiária do enriquecimento sem causa e a possibilidade de a A. recorrer a outro meio, isto é, à previsão do art. 474º/1 do CPC, para ser restituída, sendo que, agora, as circunstâncias se alteraram, pois, esgotada a via do art. 474º/1 do CPC (situação que se verificará em caso de confirmação da absolvição do R. do pedido com esse fundamento), a A. não disporá de outro meio, que não o do enriquecimento sem causa, para ser indemnizada, pelo que a subsidiariedade desse instituto não constitui mais obstáculo a que o mesmo sirva de fundamento à procedência da pretensão indemnizatória da A.

27. A inexistência de outro meio de a A. ser indemnizada, que não se verificava aquando do julgamento da Revista nº 5744/15...., e se verificará nestes autos caso se  conclua pela falta de preenchimento dos pressupostos da responsabilidade por factos ilícitos, traduz uma alteração da causa de pedir (por referência à causa da reconvenção deduzida naqueles autos), que impede que o caso julgado opere.

28. Assim, à luz do citado art. 621º do CPC, o acórdão do Supremo de 7.3.2019 não obsta a que, nos presentes autos, improcedendo a responsabilização do R. nos termos do art. 374º/1 do CPC, ou seja, esgotado este meio, e inexistindo qualquer outro de a A. ser restituída, seja julgada procedente a pretensão indemnizatória da A. com fundamento no enriquecimento sem causa, sendo que esta questão (isto é, a de saber se o R. enriqueceu sem causa justificativa) não foi objecto de decisão de mérito naquele aresto, por se ter concluído pela inadmissibilidade do recurso ao referido instituto, atenta sua natureza subsidiária.

29. O acórdão recorrido violou ou desconsiderou os arts. 621º do CPC e 473º, 474º e 479º do CC.

30. Seja pela via (principal) da responsabilidade por factos ilícitos, seja pela via (subsidiária) do enriquecimento sem causa, impõe-se que o R. restitua à A. aquilo que dela recebeu em virtude de uma causa afinal inexistente, sendo que outra solução que não esta ofenderia os valores fundamentais da ordem jurídica e o sentimento de justiça socialmente dominante!


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Contra alegou o Recorrido, com as seguintes conclusões:

I - No procedimento cautelar resultou      suficientemente indiciado      no ponto 20 fundamentação de facto que o assentamento de terreno pode ter sido provocado 1) por deficiente compactação de terreno; 2) pela água provinda de uma linha de água a norte do prédio e que dista do mesmo poucos metros e que provoca erosão e lavagem das terras onde assentavam as fundações dos pilares; 3) pela combinação das suas situações, tratando-se da existência de água de uma situação que vem ocorrendo há mais de seis anos.

II - No ponto 22 da fundamentação de facto, o tribunal que decretou a providência decidiu que as referidas causas estão excluídas da cobertura da apólice e, contraditoriamente entendeu que não se provou qualquer causa de exclusão da responsabilidade da recorrida, incorrendo assim em manifesto erro de julgamento.

III - A causa do decretamento da providência não foi qualquer comportamento culposo do recorrente, pois, atenta a matéria suficientemente indiciada, em circunstâncias normais, impunha-se que a providência não fosse decretada.

IV - A responsabilidade do requerente da providência não pode consistir em erro de apreciação, por grosseiro que seja, nem sequer na dedução de pretensão cautelar infundamentada, nem na omissão de factos relevantes, nem ainda em outra omissão do dever de cooperação ou no uso reprovável do processo.

V - Nem tão pouco se pode considerar tratar-se de concausalidade ou causalidade indireta.

 

VI - Até agora a recorrente invocava como facto causador do dano a omissão de factos relevantes por parte da requerente da providência, alegando que essa omissão é que teve como consequência o decretamento da mesma. Agora, já em sede de recurso de revista, invoca a recorrente que foi o simples facto do recorrido ter intentado a providência cautelar a causa do dano que sofreu (questão nova, que por isso nem deve ser apreciada).

VII - A causalidade indireta verifica-se quando o facto ilícito desencadeia ou proporciona outros danos, que não é caso.

VIII - O facto que foi julgado ilícito pelas instâncias foi a omissão de factos ou elementos relevantes por parte da requerente quando instaurou o procedimento cautelar e não o facto da requerente da providência a ter instaurado (tratando-se esta última alegação de matéria nova que não pode ser apreciada pelo Tribunal ad quem).

IX - O requerimento de providência cautelar (mesmo que infundamentada) nunca pode ser entendido, per se, como um facto ilícito, sob pena de violação do direito constitucional de acesso à justiça.

X - Se a providência for infundamentada, o curso normal das coisas é que ela não venha a ter provimento, mais ainda quando os factos alegados pela requerente, julgados suficientemente indiciados, conduziam, em circunstâncias normais, a que a providência cautelar não tivesse sucesso.

XI - Por outro lado, não estamos perante outros danos que tenham sido desencadeados ou proporcionados pelo facto que as instâncias julgaram como ilícito (omissão de factos relevantes).

XII - Não existe nexo de causalidade entre a simples instauração da providência nem a omissão de factos relevantes e o pagamento da indemnização pela requerida, pois a providência cautelar só foi decretada por causa do erro de julgamento verificado.

XIII - Não se encontram preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil prevista no nº1 do artigo 374º do C.C., concretamente, não se verifica o nexo de causalidade, não sendo assim o recorrido responsável pelos danos sofridos pela recorrente.

XIV - Quanto ao pedido subsidiário, fundamentado no instituto do enriquecimento sem causa, existe caso julgado.

XV - A decisão do Supremo Tribunal de Justiça, transitada em julgado, confirmou a decisão proferida em primeira instância no processo nº 5744/15.0..., na parte em que, quando ao pedido de enriquecimento sem causa, o aqui recorrido foi absolvido do pedido.

XVI - Verifica-se, de forma cristalina, a tríplice identidade pressuposta pelo artigo 581º CPC: identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir, estando qualquer Tribunal impedido de reapreciar a questão, verificando-se a exceção de caso julgado.


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São questões a decidir:

- Se se verificam os pressupostos da responsabilidade civil, por instauração de providência cautelar que veio a caducar, nos termos do art. 374º do CPC;

- Subsidiariamente, se o Réu está obrigado a indemnizar a Autora com base em enriquecimento sem causa.


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Fundamentação.

Está provada a seguinte matéria de facto:

1 – A A. é uma sociedade comercial que tem por objecto a actividade seguradora.

2 – Pela apólice n.º ...87, a A. e o R. celebraram um contrato de seguro com a designação comercial “Multi-Riscos Habitação – Victoria Condomínio”, com efeitos a partir de 14.3.2003, o qual tinha por objecto as partes comuns do prédio sito na Rua ..., ... – V. N. de Gaia, e garantia, entre outros, o risco de “aluimentos de terras”, até ao valor de 374.098,35 €, com uma franquia de 50,00 € .

3 – A cláusula 1.5 das Condições Gerais da Apólice (CGA) define sinistro como “Qualquer acontecimento de carácter fortuito, súbito e imprevisto, susceptível de fazer funcionar as garantias do contrato.”

4 – A cláusula 2.4.1., Secção I, das CGA define “Aluimentos de terras” como “Fenómenos geológicos, tais como aluimentos, deslizamentos, derrocadas e afundamentos de terrenos.”

5 – A cláusula 2.5.3. das CGA, que prevê as exclusões específicas de cada risco coberto, estabelece que “Sem prejuízo das exclusões gerais enumeradas são igualmente aplicáveis as seguintes exclusões específicas de cada secção. Secção I … c) quanto à garantia de Aluimentos de Terras, as perdas ou danos: 1. Em edifícios ou outros bens seguros que estejam assentes sobre fundações que contrariem as normas técnicas ou as boas regras de engenharia de execução das mesmas, em função das características dos terrenos e do tipo de construção ou bens envolvidos nesta cobertura.”

6 – Em Junho de 2013, o R., representado pelo seu administrador, dirigiu ao Senhor Presidente da Câmara Municipal ... um pedido de vistoria às condições de segurança, solidez e salubridade do edifício seguro, invocando, para tanto, que este “… padece de problemas infraestruturais, visíveis num eventual afundamento do mesmo e que pode por em causa a integridade física e o património dos residentes e proprietários.”

7 – A vistoria requerida foi realizada pelos serviços da G... em 30.8.2013, tendo sido lavrado o respectivo auto.

8 – Após o que o R. foi notificado, em Outubro de 2013, do teor da proposta de decisão da Senhora Vereadora do Pelouro da Fiscalização, tendo-lhe sido concedido prazo para o exercício do direito de audição prévia, o que o mesmo não fez.

9 – Em 3.1.2014, foi comunicada ao R. o teor da decisão camarária tomada em Dezembro de 2013, tendo o mesmo sido notificado, nos termos do artigo 89.º/2 do DL n.º 555/,99, de 16.12, da ordem administrativa de realização de obras de conservação, a completar no prazo máximo de 120 dias úteis, sob pena de praticar um crime de desobediência, e incorrer em responsabilidade contra-ordenacional, sendo a sua conduta punível com coima entre os 500 € e os 100.000 €.

10 – Em 7.1.2014, isto é, apenas 4 dias depois, a pedido da proprietária do apartamento do r/c dto., foi solicitada a intervenção no local dos Bombeiros Sapadores ..., para verificarem as condições de segurança daquela habitação, tendo os mesmos, segundo declararam, observado, entre outros danos, que “- Num dos pilares da cave, o recobrimento deslocou e caiu, ficando toda a armadura à vista e apresentando-se deteriorada; - O pilar apresentava, a 2/3 da altura, uma fissura transversal em toda a sua secção; - O pavimento, junto ao pilar, encontrava-se todo fissurado e com muita água;

11 – Em 16.1.2014, o R. participou à A. a ocorrência de um sinistro, invocando que “Por motivos que não se conseguem, neste momento, concretizar com o desejado rigor técnico, está afetada a estrutura e estabilidade do edifício em causa.” e que “Do exame até agora levado a cabo os problemas terão a sua origem no aluimento e movimentação de terras.

12 – Nessa participação, o R. omitiu qualquer referência à decisão camarária de que fora notificado em 3.1.2014 e a todos os factos que a antecederam.

13 – Na sequência do recebimento da participação do sinistro, a A. nomeou a empresa de peritagens “R...” para apurar as causas dos problemas do edifício seguro.

14 – A referida empresa emitiu um relatório em 20.2.2014, tendo o respectivo perito, após ter vistoriado o edifício, concluído o seguinte:

Com o decorrer do tempo, a compactação dos terrenos de fundação do edifício seguro e movimentações estruturais, provocaram diversos danos na estrutura do edifício, nomeadamente fissuras e abatimento da laje.”(…)“…, os solos de aterro não terão sofrido a compactação devida aquando da construção.

Este facto está comummente associado ao aparecimento de patologias que ocorrem nas pavimentações térreas. Isto deve-se ao facto de, com o decorrer do tempo, por acção do próprio peso, os solos tenderem a auto compactar-se, criando pequenas zonas ocas sob os pavimentos. Essa auto compactação é um processo lento

Do mesmo modo, é provável que alguns elementos da fundação tenham sido igualmente assentes sobre solos insuficientemente compactados, nomeadamente os pilares da fachada que suportam o pequeno corpo avançado, levando a que tenham ocorrido pequenos assentamentos diferenciais.

Esses assentamentos diferenciais, são responsáveis por algumas das fissuras que se observam, nomeadamente na fachada posterior do imóvel Fotos n.ºs 8 a 12.

Da mesma forma, são igualmente responsáveis pelo aparecimento de fissuras em paredes tetos e pavimentos, levando em muitos casos ao deslocamento de revestimentos cerâmicos Fotos n.º 13 a 18.

As patologias observadas estão relacionadas com movimentações estruturais consequência do assentamento de solos. O pavimento térreo da garagem e eventualmente alguns elementos de fundação estão assentes sobre solos insuficientes compactados aquando da construção do imóvel. Fotos n.º 19 a 29.

Uma análise atenta permite aferir que as patologias observadas são consequência de um processo continuado no tempo, não sendo resultado de um acontecimento súbito e imprevisto. Esta convicção sai reforçada pela consulta de “Fotos Google” que se anexam Docs. n.º 1 a 3, datadas de 2009, onde são observadas a maioria das patologias da fachada agora reclamadas.

Uma vez que estas patologias estão associadas a assentamento dos solos, pode deduzir- se também existirem em 2009 as patologias interiores observadas.”; - “…, dado o sinistro estar relacionado com a insuficiente compactação do solo que serve de fundação ao edifício seguro e movimentações estruturais, estando-se perante um processo contínuo e que ocorre pelo menos desde 2009, somos de concluir que o sinistro em causa não se encontra garantido ao abrigo da presente apólice …”.

15 – A “R...” deu a conhecer ao R. as conclusões do seu relatório de peritagem

16 – Por carta datada de 27.2.2014, a A. informou o R. que a situação que este lhe participara não se encontrava coberta pela apólice e que, por isso, a sua reclamação carecia de fundamento, informando-o, também, para justificar a sua posição, que “… os danos reclamados são resultantes de um processo continuado de movimentação de terras determinado pela falta de compactação dos terrenos, sobre os quais assenta o edifício seguro.”

17 – Em 9.2.2015, o ora R. requereu contra a ora A. uma providência cautelar não especificada, que correu termos no Juízo Central Cível ... sob o n.º1037/15.... (a que foi atribuído posteriormente o n.º 5744/15....), com o intuito de obter a sua condenação no pagamento do “… custo das obras estritamente necessárias à estabilidade do edifício em apreço, orçamentadas no montante de 126.000,00 ”.

18 – No referido procedimento, a requerente, ora R. invocou a cobertura de “Aluimentos de Terras”, alegando, quanto às causas das patologias do imóvel, os seguintes factos:

“Artigo 5.º - “Na sequência de fortes intempéries, o edifício em causa começou a apresentar danos estruturais.”;

Artigo 6.º - “Relativamente às condições gerais de segurança, salubridade e estética, em Janeiro de 2014, o edifício em causa apresentava as patologias seguintes:

a) Exterior, Fachadas: desagregação do revestimento exterior em material cerâmica em todas as fachadas do prédio,

b) Logradouro:

Partes Comuns (Exterior): Anomalias estruturais existentes parcialmente na edificação, designadamente, fissuras nos pilares, vigas, teto e paredes, que se encontra ao nível da cave (aparcamento automóvel, mais próximos da junta de dilatação que separa os blocos 2 e 3, na zona da fachada norte, incluindo desconsolidação de uma sapata de um desses pilares, causadas ao que tudo indica por um assentamento do terreno, provocado eventualmente por deficiente compactação deste e/ou pelo facto de existir a poucos metros uma linha de água a norte do prédio, que poderá ter afectado parcialmente as fundações da edificação.”

Artigo 7.º - “No dia 7 de Janeiro de 2014, a pedido da proprietária da habitação do rés- do-chão direito, deslocou-se ao local a companhia de Bombeiros sapadores de ... para verificar as condições de segurança da referida habitação, tendo, então, sido observado o seguinte:

- Existência de fissuras em toda a habitação e empolamento das portas; - Num dos pilares da cave, nas últimas 24 horas, o recobrimento deslocou e caiu, ficando toda a armadura à vista e apresentando-se deteriorada;

- O pilar apresentava, a 2/3 da altura, uma fissura transversal em toda a sua secção;

- O pavimento, junto ao pilar, encontrava-se todo fissurado e com muita água;

- Infiltração pelo tecto da cobertura da cave,

- Perigo eminente do pilar ceder, partindo e arrastando o edifício, podendo pôr em perigo os seus habitantes …”;

Artigo 13.º - “Quanto às causas prováveis para a ocorrência das patologias verificadas, sustenta o mencionado relatório de peritagem que a sua origem se deve a deslizamentos e aluimentos do terreno provocados pelas correntes de águas oriundas da linha de água adjacente à fachada Norte do edifício, conduzindo à erosão e lavagem de terras onde assentam as fundações dos pilares constituintes da estrutura.”

19 – Tal como já fizera na participação do sinistro, o ora R. omitiu, no requerimento de providência cautelar, a ordem administrativa de realização de obras no edifício seguro e os factos que lhe deram origem.

20 – Como resulta desse requerimento, o ora R. localizou temporalmente o sinistro em 7.1.2014, dando a entender que os danos no edifício foram detectados nessa altura.

21 – As patologias do edifício em Janeiro de 2014 coincidiam com as patologias verificadas pela “G...” em Agosto de 2013.

22 – No artigo 5.º do requerimento de providência cautelar, o ora R. imputou os danos estruturais do edifício seguro a “fortes intempéries”, as quais não mencionara no pedido de vistoria que dirigira ao Presidente da Câmara de ....

23 – No artigo 6.º do mesmo requerimento, o ora R. atribuiu os problemas do edifício seguro a uma de duas causas hipotéticas, ou a ambas: a deficiente compactação do terreno e/ou a acção contínua de água provinda de uma linha de água situada a Norte do edifício, que poderia ter afectado parcialmente as fundações, “…, causadas ao que tudo indica por um assentamento do terreno, provocado eventualmente por deficiente compactação deste e/ou pelo facto de existir a poucos metros uma linha de água a norte do prédio, que poderá ter afectado parcialmente as fundações da edificação.”

24 – Por sentença de 9.4.2015, transitada em julgado, o referido procedimento cautelar foi julgado procedente e, em consequência, a ora A. foi condenada a custear “… a reparação da sapata do pilar no aparcamento automóvel referido no facto provado 3a3, com a reparação do reforço de fundações dos pilares, consolidação do solo sob as sapatas e reparação de elementos de betão armado que estejam fissurados do edifício, na zona onde ocorreu o aluimento e onde se verifique ser necessário realizar tais obras, até ao valor máximo de 126 000 EUR.”

25 – Diferentemente das “fortes intempéries”, essas causas, apresentadas como hipotéticas, foram julgadas indiciadas na sentença proferida nos autos de providência cautelar:

“20). O assentamento do terreno referido em 3a3 destes factos pode ter sido provocado:

. por deficiente compactação do terreno;

. pela água provinda de uma linha de água a norte do prédio e que dista do mesmo poucos metros e que provoca erosão e lavagem das terras onde assentam as fundações dos pilares;

. pela combinação das duas situações tratando-se da existência de água de uma situação que vem ocorrendo mais de seis anos.”

26 – Tendo o Tribunal observado na decisão do procedimento cautelar:

“Ora, na nossa visão, o Autor no requerimento inicial alegava duas situações que integravam duas cláusulas de exclusão da responsabilidade da requerida, a saber: deficiente compactação do terreno; . erosão causada pela água factos 20 e 22 -, ou seja, a deficiência de construção (compactação do terreno) e erosão (provocada por água) referidas no ponto 2 do n.º2.5.3 das exclusões específicas fls. 65 “.


27 – Apesar do circunstancialismo referido em 25 e 26, o tribunal concluiu pela procedência da providência cautelar com o seguinte fundamento:

Estas situações não se provaram, ou seja, não se apurou que o aluimento se deveu a deficiente compactação do terreno ou erosão causada pela água pelo que, sendo integradoras de cláusulas de exclusão, tinham de ser provadas ou pela (artigo 342.º, n.º 2, do C.C.) ou então, tendo sido alegadas pelo Autor, pela prova que resultasse dos autos (artigo 413.º, do C.P.C.), o que não sucedeu.

Não assim prova de qualquer causa de exclusão da responsabilidade da requerida.”

28 – Em 11.6.2015, o ora R. propôs a respectiva acção principal (Proc. n.º 5744/15.0..., que correu termos no Juízo Central Cível ...), contra a ora A., pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de 346.370,00 €, acrescida de juros moratórios desde essa data.

29 – Em 19.6.2015, os autos de providência cautelar foram apensados aos autos principais sob o n.º 5744/15.....

30 – Em 11.9.2015, a ora     A. apresentou a sua contestação na acção principal, defendendo-se por excepção e por impugnação, e aí deduziu reconvenção contra o ora R., pedindo que, em caso de improcedência da acção e consequente caducidade da providência cautelar, este fosse condenado “… a reembolsá-la das quantias pagas em cumprimento da decisão provisória proferida no procedimento cautelar, que se contabilizam neste momento em 47.600,00, e respectivos juros calculados nesta data em 447,44.”

31 – Em 7.12.2016, a ora A. apresentou um articulado superveniente, alegando que, após a apresentação da contestação - reconvenção, pagou ao ora R., em cumprimento da decisão proferida nos autos de providência cautelar, outras quantias, num total de 78.400,00 €, e requerendo a ampliação do pedido reconvencional para 135.415,30 €, dos quais 126.000,00 € correspondiam a capital e € 9.415,30 correspondiam a juros moratórios legais vencidos desde as datas dos diversos desembolsos.

32 – O ora R. alegou, no artigo 12.º da p.i., que “… não concorda com a quanto ao alegado “… processo continuado por falta de compactação dos terrenos sobre os quais assenta o edifício seguro …”, concretizando a sua alegação nos artigos subsequentes desse articulado.

33 – O R. alegou, no artigo 17.º da p.i., que “…, os danos verificados no edifício têm a sua origem em deslizamentos e aluimentos de terreno, provocados pelas fortes intempéries verificadas no Inverno de 2013, que conduziram ao arrastamento, em grande quantidade, dos finos (areias finas) conduzidos pela água, provocando o desequilíbrio dinâmico da estrutura no seu todo …” e, no artigo 18.º do mesmo articulado, que “Efectivamente, das análises efectuadas pela A., pode concluir-se que:

- Os cursos de água existentes nas proximidades do edifício estão estabilizados desde muitos anos;

- Após a intervenção do alargamento da EN...09, actual A...9, não se procedeu a desvios dos cursos de água subterrâneos, que justificasse os danos existentes no edifício;

- O aqueduto que passa por baixo da auto-estrada, e ao lado do edifício, tem altura e largura suficiente para abraçar uma quantidade anormal de água, não havendo qualquer co-relação entre esta infra-estrutura e o desaparecimento de suporte das fundações do edifício;

- Os fluxos anormais de pluviosidade, inscritos num curto espaço de tempo, provocaram o aluimento de terras; ”;

34 – Sendo que a referida factualidade foi julgada provada (factos provados n.ºs 13, 14 e 15), com excepção do último facto (“Os fluxos anormais de pluviosidade, inscritos num curto espaço de tempo, provocaram o aluimento de terras;”), que corresponde à al. e) dos factos não provados.

35 – Assim, ficaram provados os seguintes factos:

“a) “O edifício em causa foi construído em terreno inclinado, revelando-se necessária a realização de um aterro para obter a plataforma que permitisse executar o pavimento térreo da garagem.”;

b) “Os solos do terreno, até uma profundidade de entre 0,00 a 3,50 metros, não sofreram a compactação devida aquando da sua construção.” (facto provado n.º 27 - 1ªparte do artigo 10.º da contestação);

c) “Em Janeiro de 2014, as patologias que o edifício em causa nos autos apresentava estão relacionadas com movimentações estruturais em consequência do assentamento de solos.” );

d) “O pavimento térreo da garagem e eventualmente alguns elementos da fundação estão assentes sobre solos a profundidade de entre 0,00 a 3,50 metros insuficientes 1 compactados aquando da construção do imóvel.”;

e) “Em Fevereiro de 2014 as causas das patologias estão relacionadas com insuficiente compactação do solo que serve de fundação ao edifício seguro e movimentações estruturais, a profundidade de entre 0,00 a 3,50 metros.”;

f) “O prédio foi edificado numa encosta cuja superfície teve de ser modelada, com recurso a movimentação de solos e construção de aterros de volume significativo, para possibilitar o processo construtivo.” (facto provado n.º 37 - artigo 15.º da contestação);

g) “A construção do aterro necessário à implantação do edifício na encosta deve ser precedida, de acordo com as normas técnicas e as boas regras de engenharia de execução de fundações, da realização de estudos adicionais de forma a garantir capacidade resistente do solo da fundação das estruturas que sobre ele eventualmente apoiassem.” (facto provado n.º 38 - artigo 16.º da contestação);

h) “Os fenómenos de abatimentos de solos estavam circunscritos aos solos localizados dentro dos limites da propriedade do condomínio, não tendo sido observadas quaisquer patologias cuja origem se possa atribuir a alegados aluimentos de solos nas diversas construções existentes nas imediações, designadamente edifícios, arruamentos e ajardinamentos confinantes com a linha água.”;

i) “Os danos observados no imóvel em estudo são resultantes de movimentações verticais dos solos utilizados aquando do processo construtivo do edifício seguro, designadamente um processo de auto compactação dos solos utilizados nos aterros, processo que se caracteriza pela procura de um equilíbrio que não lhe foi totalmente conferido por compactação aquando da construção e que resultam da acção do seu peso próprio e de eventuais cargas que sobre eles lhe sejam aplicados, a profundidade de entre 0,00 a 3,50 metros.”;

j) “O processo de auto compactação que se verificou em consequência da falta de equilíbrio derivada da deficiente compactação dos terrenos é um processo lento e continuado no tempo.”;

36 – A essa factualidade acrescem os factos que, em consequência da procedência da impugnação da decisão de facto, foram aditados pela Relação do Porto:

“i. “Desde o ano de 2009, pelo menos, eram observáveis e foram detectados danos nas fachadas do edifício seguro relacionados com o assentamento de solos.” ;

ii. “Os assentamentos sofridos pelo piso térreo da garagem decorreram da diminuição de volume:

a) do aterro (situado entre as profundidades 0,0 e 3,0-3,5 m, abaixo da cota do piso térreo), ocasionado pelo processo de consolidação/compactação devido ao seu peso próprio e a eventuais sobrecargas, consequência de uma deficiente compactação do material de aterro;

b) dos terrenos (existentes antes do início da construção) subjacentes aos aterros (entre as profundidades 3,0-3,5 m e 5,0-5,5 m, abaixo do piso térreo) que tenham experimentado um processo de consolidação/compactação (níveis compressíveis) causado pelas cargas exercidas pela nova construção (peso dos aterros, cargas transferidas por elementos estruturais, etc.).” (facto provado n.º 31);

iii. “Os assentamentos sofridos pelas fundações, constituídas por sapatas isoladas posicionadas a profundidades da ordem dos 3m, terão sido devidos apenas à segunda das duas referidas causas.” (facto provado n.º 32);

iv. “Na zona em apreço, o terreno tem a seguinte constituição (profundidade aproximadas em relação à cota do piso térreo):

Entre os 0 e os 3-3,5 m principalmente aterros heterogéneos pouco compactos; Entre os 3-3,5 m e os 5-5,5 m camadas (provavelmente) naturais, com alguns níveis particularmente compressíveis;

Abaixo dos 5-5,5 m camada competente, pouco a muito pouco compressível.”

v. “Na zona com anomalias, as fundações, para ficarem assentes na camada competente, teriam que ficar cerca de 2 metros abaixo da cota a que efectivamente foram assentes.”;

vi. “No início da obra, na zona onde se vieram a desencadear as anomalias, assentou-se as fundações directas mais acima do que o necessário, a uma cota mais próxima da superfície do terreno na altura (antes da posterior construção dos aterros), tendo ficado sob as sapatas camadas de terreno compressíveis.”;


37 – Para efeitos da prova referente à antiguidade das patologias e danos subsequentes, a ora A. requereu, na contestação que apresentou na acção principal, “(…), a notificação do autor para que este junte aos autos todas as actas das assembleias de condóminos, desde a constituição até à mais recente, a fim de apurar o ano em que foi pela primeira vez abordado o problema das estruturas do edifício.”, o que foi deferido por despacho de 17.12.2015.

38. Por requerimentos de 17.2.2016, o ora R. juntou, unicamente, as actas n.ºs 1 a 5, referentes às assembleias de condóminos realizadas no período compreendido entre Outubro de 2000 e Janeiro de 2002.

39 – Constatando esse facto, a ora A., por requerimento de 26.2.2016 requereu que o ora R. juntasse as actas das assembleias de condóminos posteriores a Janeiro de 2002 e, verificando a alusão nas actas n.ºs 1 e 2 a documentação elaborada e enviada ao construtor do edifício seguro, a empresa “C...”, relacionada com deficiências na construção entretanto detectadas, requereu, ainda, a notificação do ora R. para juntar aos autos cópias desses documentos.

40 – Por requerimento de 1.4.2016 o ora R. alegou que não possuía esses documentos e requereu a concessão de um prazo de 30 dias para os procurar nos arquivos da sala de condomínio e juntá-los aos autos ou prestar nestes informação, o que foi deferido por despacho de 7.4.2016.

41 – O ora R. nunca chegou a juntar os referidos documentos ou a informar os autos do que quer que fosse.

42 – No seu acórdão de 13.6.2018, a Relação do Porto extraiu consequências dessa conduta processual do ora R.:

“… não é de todo plausível que o Autor detenha apenas as primeiras 5 actas e desconheça o paradeiro de todas as actas posteriores a Janeiro de 2002, o mesmo sucedendo relativamente à documentação que, de acordo com as actas n.ºs 1 e 2, foi remetida ao construtor do edifício.

Ou seja, não existe qualquer justificação válida para a não junção pelo Autor dos referidos documentos.

E tal conduta processual tem e deve ter consequências legais que são as sugeridas pela Ré/apelante nas suas alegações de recurso.

(…)

Na ideia da Ré/apelante, tais regras não podem deixar de ser aplicadas à situação em análise.

Na verdade, “a não junção aos autos das actas das assembleias de condóminos posteriores a Janeiro de 2002, bem como da correspondência trocada com o construtor do edifício a que aludem as actas n.ºs 1 e 2, dentro do prazo (objecto de prorrogação) que lhe foi concedido para o efeito ou, pelo menos, até ao encerramento da discussão, documentação essa que, dada a sua natureza, não pode deixar de possuir, acompanhada da não alegação e demonstração de qualquer impedimento definitivo a essa junção (sendo que o impedimento inicialmente invocado, por requerimento com a refª. ...04, relacionado com a execução das obras determinadas no âmbito da providência cautelar, a existir, foi meramente temporário), obriga a concluir que o A. agiu culposamente, procurando privar os autos dos referidos documentos, os quais, tudo o indica, demonstrariam a veracidade do alegado pela R., ou seja, que as patologias do edifício foram surgindo ao longo do tempo, em virtude do progressivo assentamento dos solos, e muito (desde 2009, pelo menos) eram visíveis e conhecidas, pelo que não resultaram de qualquer evento fortuito, súbito e imprevisto.”

Ou seja, estão verificadas no caso, as condições legais de que depende a referida inversão do ónus da prova, o que leva a dizer que passou a caber ao Autor a prova da inveracidade dos factos alegados pela nos artigos 9.º, 12.º e 46.º da sua contestação.

Ora é para nós claro que o Autor não logrou fazer tal prova.

E é também manifesto que a conseguiu provar tal circunstancialismo de facto, como já a seguir veremos:”

43 – No seu acórdão de 7.3.2019, referido em 51, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu sobre essa questão o seguinte:

Sendo inquestionável que o autor não justificou a não apresentação dos documentos que lhe foram solicitados (uma vez que, após solicitar prazo para o efeito nada fez), ou seja as atas das assembleias de condóminos posteriores a janeiro de 2002 e os documentos referidos nas atas anteriores, n.ºs 1 e 2, que apresentou é manifesto que, pelo menos estes documentos (que, nos termos destas atas, respeitavam a documentação enviada à empresa construtora do edifício neles se fazendo referência à existência de deficiências de construção) seriam de extrema relevância para a prova da factualidade em questão, que a instância deu como não provada (e que a Relação alterou) sendo até natural que nas atas relativas às posteriores assembleias, não apresentadas, se fizesse referência ao mesmo tema, designadamente à eventual resposta da construtora e consequentes desenvolvimentos sobre a resposta ou não resposta.

Assim, a não junção injustificada dos documentos implicava, para efeitos probatórios, a livre apreciação dessa recusa e, porventura ainda, a inversão do ónus da prova.”

44 – No requerimento de providência cautelar, tal como na acção principal, o ora R. omitiu a referida documentação, bem como os factos a que esta se reporta.

45 – Em anexo ao projecto de reforço das referidas fundações, elaborado, em 2015, a pedido do réu, com vista à execução dos trabalhos cuja realização fora decidida no âmbito da providência cautelar, constavam dois ensaios geotécnicos, um dos quais datado de 2009 (mandado fazer pelo R.), o que, tendo em conta que tais ensaios se destinam a estudar soluções para fundações de edifícios, mostra que o edifício seguro já apresentava nessa altura problemas, nomeadamente ao nível das suas fundações.

46 – Esse facto encontra-se entre os fundamentos invocados pela Relação do Porto para ditar o facto provado n.º 29: “c) Em 2009, o A. mandou fazer um ensaio geotécnico (que é um estudo de soluções para fundações de edifícios), que foi anexado ao projecto de reforço das fundações elaborado em 2015, sinal que, nessa altura, o edifício seguro apresentava problemas com as suas fundações;”.

47 – Também esse facto foi ocultado pelo ora R. no requerimento de providência cautelar.

48 – Quando optou por requerer a providência cautelar, o R. estava ciente que o edifício já apresentava patologias desde, pelo menos 2009, e de que estas resultavam da implantação de fundações em terrenos inapropriados (o que determinou assentamentos desses mesmos terrenos e os danos consequentes, mormente fissuras, que o edifício veio a apresentar), sabendo ainda que em 7/1/2014 não tinha ocorrido qualquer sinistro do qual tivessem resultado tais danos.

49 – Por sentença de 28.10.2017, a acção principal foi julgada totalmente procedente, tendo a ora A. sido condenada a pagar ao ora R. a quantia peticionada, e a reconvenção foi julgada totalmente improcedente, com a consequente absolvição do ora R. do respectivo pedido.

50 – Interposto pela ora A. recurso de apelação da referida sentença, com impugnação da decisão da matéria de facto, o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 13.6.2018, julgou totalmente procedente a impugnação da decisão de facto e concedeu provimento à apelação, julgando improcedente e absolvendo a ora A. do pedido formulado pelo ora R. e julgando procedente e condenando este no pedido reconvencional (isto é, no pagamento à ora A. das quantias de € 47.600,00 e € 78.400,00, num total de € 126.000,00, acrescidas de juros moratórios desde as datas dos respectivos desembolsos)

51 – Interposto pelo ora R. recurso de revista do acórdão da Relação do Porto, o Supremo Tribunal de Justiça (... Secção), por acórdão de 7.3.2019, já transitado em julgado, confirmou o acórdão recorrido na parte que julga improcedente a acção principal e revogou-o na parte em que, com base no enriquecimento sem causa, julga procedente a reconvenção, tendo, quando a esta, mantido a decisão da 1ª instância.

52 – Por despacho de 6.5.2019, proferido nos autos de providência cautelar, o AA – Juiz ..., a requerimento da ora A., nos termos do artigo 373.º/1 c) do CPC, declarou a caducidade da providência cautelar decretada e, em consequência, ordenou o seu levantamento.

53 – Em cumprimento da decisão proferida no procedimento cautelar supra identificado, a A. pagou ao R. as quantias de 47.600,00 € e 78.400,00 €, num total de 126.000,00 €.


///


Fundamentação de direito.

Com base num contrato de seguro “Multi-Riscos Habitação – Victoria Condomínio”, o Recorrido Condomínio instaurou, em 09.02.2015, contra a Recorrente Victória Seguros SA,  uma providência cautelar não especificada, que correu termos no Juízo Central Cível ... sob o n.º1037/15...., com o intuito de obter a sua condenação no pagamento do “… custo das obras estritamente necessárias à estabilidade do edifício em apreço, orçamentadas no montante de 126.000,00 ”.

A providência foi decretada e, em cumprimento da decisão ali proferida, a ora Recorrente pagou ao Recorrido a quantia total de €126.000,00.

A acção principal (art. 364º do CPC) foi julgada improcedente por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07.03.2019, transitado em julgado.


Com a presente acção, pretende a Autora, Requerida no procedimento cautelar, ser ressarcida do prejuízo que suportou, com fundamento no disposto no nº1 do art. 374º, do CPC, segundo o qual:

 Se a providência for considerada injustificada ou vier a caducar por facto imputável ao requerente, responde este pelos danos culposamente causados ao requerido, quando não tenha agido com a prudência normal.


A providência, quando decretada, caduca se a acção vier a ser julgada improcedente, por decisão transitada em julgado (art. 373º, nº1, c), do CPC).


Na 1ª instância a acção procedeu, mas soçobrou na Relação que revogou a sentença e absolveu o Réu do pedido, decisão que justificou nos termos seguintes:

(…).

“Estamos agora em condições de apreciar a problemática do nexo de causalidade.

Embora o apelante tenha invocado um fundamento inverídico para o acionamento da apólice de seguro ─ as intempéries do inverno de 2013 ─ alegou também, de forma algo contraditória, que o assentamento do terreno pode ter sido provocado:

. por deficiente compactação do terreno;

. pela água provinda de uma linha de água a norte do prédio e que dista do mesmo poucos metros e que provoca erosão e lavagem das terras onde assentam as fundações dos pilares;

. pela combinação das duas situações tratando-se da existência de água de uma situação que vem ocorrendo há mais de seis anos.

Não tendo ficado indiciado que os danos reclamados tivessem sido provocados pelas intempéries, o procedimento cautelar deveria ter sido julgado improcedente, pois que as alegadas causas de assentamento do terreno integravam causa de exclusão do contrato de seguro.

Com efeito, da cláusula 2.5.3 das condições gerais da apólice, consta da alínea c) da Secção I que a garantia de aluimento de terras exclui as perdas ou danos em edifícios ou outros bens seguros que estejam assentes sobre fundações que contrariem as normas técnicas ou as boas regras de engenharia de execução das mesmas, em função das características dos terrenos e do tipo de construção ou bens envolvidos nesta cobertura.

Ora, não obstante considerar as causas de exclusão como indiciadas, o Tribunal, de forma algo incompreensível, afirmou que não se apurou que o aluimento se deveu a deficiente compactação do terreno ou erosão causada pela água, pelo que, sendo integradoras de cláusulas de exclusão, tinham de ser provadas ou pela R. (artigo 342.º, n.º 2, do C.C.) ou então, tendo sido alegadas pelo A., pela prova que resultasse dos autos (artigo 413.º, do C.P.C.), o que não sucedeu.

E concluiu que não se provou e qualquer causa de exclusão da responsabilidade da requerida, decretando o procedimento cautelar.

Trata-se de um erro de julgamento.

A actuação culposa do apelante não foi causal do prejuízo sofrido pela apelada: ao ter decaído na prova do alegado sinistro, cessou o potencial danoso da sua conduta.

A providência foi decretada, não por que o Tribunal tenha sido induzido em erro por factos inverídicos alegados pelo apelante, mas por que enveredou por uma interpretação assente numa confusão e num salto lógico:

Confusão por que, apesar de ter considerado, no acervo probatório, indiciados factos que integravam causas de exclusão, acabou por afirmar que tais factos não estavam provados, por que tinham de ser provados pela R., por ser matéria de excepção, ou resultar da prova produzida, o que não sucedera;

Salto lógico por que da alegada não prova das cláusulas de exclusão ficcionou a existência de um direito inexistente.

Não sendo possível estabelecer um nexo de causalidade entre a actuação culposa do apelante e o dano sofrido pela apelada, improcede necessariamente a pretensão indemnizatória da apelada.

Como sublinham Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado Almedina,            vol. II, 3.ª ed., pg. 76, não é da responsabilidade do requerente o decretamento da providência devido à má interpretação ou aplicação do direito.”

Dissentindo do assim decidido, a Recorrente insiste na responsabilidade civil do Recorrido, pois que, ainda que tenha ocorrido erro de julgamento, tal só foi possível pelo facto de ter sido deduzido um pedido de providência cautelar infundado.

Vejamos.

A responsabilidade civil do requerente de providência cautelar injustificada ou que venha caducar, é nos dizeres do Acórdão do STJ de 1.10.2003, “uma particular situação de responsabilidade civil extracontratual derivada de uma conduta processual imprudente do requerente do procedimento cautelar que, prevalecendo-se do seu carácter urgente e da sua sumária cognição, não tenha procurado informar-se de efectiva existência do seu direito com o cuidado de um homem normalmente diligente.”

Como observa Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, III, 3ª edição para que se verifique a responsabilidade do requerente da providência cautelar é necessária a conjugação dos seguintes pressupostos:

a) O evento, constituído pela constatação de que a providência era injustificada ou caducou;

b) O dolo, ou culpa, resultante de conduta activa ou passiva do requerente que possa qualificar-se como dolosa ou decorrente da violação das regras da prudência normal;

 c) A ilicitude decorrente da violação do dever de veracidade ou do dever de cuidado;

d) O dano correspondente aos prejuízos de ordem patrimonial ou moral determinados pela providência requerida;

e) O nexo de causalidade entre o evento e o dano.


Significa isto que o dever de indemnizar não é uma consequência automática da improcedência da providência cautelar; exige-se que o requerente não tenha agido com a prudência normal, que tenha assumido uma conduta culposa quando tomou a iniciativa de a requerer, ficando assim incluídas as hipóteses de mera negligência, além naturalmente das situações dolosas (cf. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, pag. 254).

Actuação do requerente que pode traduzir-se na ocultação intencional de factos ou na sua deturpação consciente, quer no plano da afirmação do direito de fundo, quer no da invocação do periculum in mora; mas pode igualmente consistir em imprudência ou erro grosseiro na alegação e na prova dos factos, de que o tribunal não se aperceba ao proferir a decisão cautelar, bem como em culpa leve; a prudência normal que lhe é exigida corresponde à diligência do bom pai de família (art. 497º/2 do CC) e este é responsável pelas actuações danosas que tenha com mera culpa (art. 483º/1). (José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil, volume 2º, pag. 76).


Revertendo ao caso dos autos.

Que o Recorrido ao requerer a providência cautelar omitiu e deturpou factos de forma consciente, é algo que não suscita dúvidas e assim foi reconhecido pelas instâncias.

Com efeito,

Requereu a providência cautelar em 09.02.2015, invocando patologias no edifício causadas por “fortes intempéries” ocorridas em 07.01.2014, sugerindo que os danos foram detectados na altura.

Provou-se, no entanto, que:

- Em Junho de 2013, o Réu, representado pelo seu administrador, dirigiu ao Senhor Presidente da Câmara Municipal ... um pedido de vistoria às condições de segurança, solidez e salubridade do edifício seguro, invocando, para tanto, que este “… padece de problemas infraestruturais, visíveis num eventual afundamento do mesmo e que pode por em causa a integridade física e o património dos residentes e proprietários.”

-  A vistoria requerida foi realizada pelos serviços da G... em 30.8.2013, tendo sido lavrado o respectivo auto;

– Após o que o R. foi notificado, em Outubro de 2013, do teor da proposta de decisão da Senhora Vereadora do Pelouro da Fiscalização, tendo-lhe sido concedido prazo para o exercício do direito de audição prévia, o que o mesmo não fez;

– Em 3.1.2014, foi comunicada ao R. o teor da decisão camarária tomada em Dezembro de 2013, tendo o mesmo sido notificado, nos termos do artigo 89.º/2 do DL n.º 555/,99, de 16.12, da ordem administrativa de realização de obras de conservação, a completar no prazo máximo de 120 dias úteis, sob pena de praticar um crime de desobediência, e incorrer em responsabilidade contra-ordenacional, sendo a sua conduta punível com coima entre os 500 € e os 100.000 €;

- Em Fevereiro de 1014, tomou conhecimento de um relatório pericial realizado a pedido da seguradora pela “R...” de acordo com o qual “as patologias observadas no edifício são consequência de um processo continuado no tempo, que ocorre pelo menos desde 2009, associado ao assentamento dos solos, por deficiente compactação do solo que serve de fundação ao edifício, não tendo resultado de um acontecimento súbito e imprevisto”.


É patente pois que o Réu deturpou a verdade dos factos de forma a obter uma decisão favorável na providência cautelar.


Apesar de constatar que o requerente da providência alterou a verdade dos factos a Relação absolveu-o do pedido por considerar que o que determinou a concessão da providência não foi o Tribunal ter sido induzido em erro por “factos inverídicos alegados pelo apelante”, mas sim por ter incorrido em erro de julgamento.

Com ressalva do devido respeito, não podemos acompanhar este entendimento e não nos parece que tal interpretação se possa retirar da anotação ao art. 374º, no Código de Processo Civil Anotado, dos Professores Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, cuja autoridade é invocada pela decisão recorrida.

A pag. 76 da obra citada lê-se o seguinte, depois de referir que o requerente (da providência) é responsável pelas actuações danosas que tenha com mera culpa (art. 483º/1 do CC) abrangendo esta a culpa leva:

“Não pode já consistir em erro de apreciação, por grosseiro que seja (neste sentido Abrantes Geraldes, idem, III, pag. 322), nem na dedução de pretensão cautelar infundamentada, mas não baseada em factos não verificados ou na omissão de factos relevantes, nem ainda em outra omissão do dever de cooperação ou no uso reprovável do processo, circunstâncias que podem apenas dar lugar à responsabilização por litigância de má fé (art. 542º/2). Designadamente, se uma construção jurídica artificiosa é aceite pelo juiz que decreta a providência, o requerente não pode ser por ela responsabilizado”.

E acrescentam:

“(…) não sendo da responsabilidade do requerente o decretamento da  providência, devido a má interpretação da lei ou aplicação do direito.”

Se bem nos parece o que aqueles Ilustres Mestres defendem é apenas  a irresponsabilidade do requerente de providência que não deveria ter sido decretada, por não verificados os necessários pressupostos, mas já não quando o requerente ocultou intencionalmente factos ou os deturpou conscientemente, casos em que se mantém a sua responsabilidade.

Abrantes Geraldes, na obra citada, pag. 321, refere que “considerando a actual redação do preceito, parece que a responsabilização civil do requerente não está limitada aos casos anteriormente apontados de “ocultação intencional da verdade ou afirmação conscientemente contrária à verdade”, estendendo-se ainda às actuações imprudentes, baseadas em erros grosseiros de apreciação que tenham sido decisivas para a adopção da providência decretada.”

No caso vertente, não parece haver dúvidas de que a deturpação da verdade dos factos, e ainda que depois o juiz possa ter incorrido em erro de julgamento, foi decisiva para o decretamento da providência.

Como decidiu o Acórdão do STJ de 26.09.2002, P. 02B1938, (Sousa Inês), “não são fundamento de responsabilidade do requerente, nos termos deste preceito legal, o requerer providência com ausência de fundamento de facto ou de direito, ou com errada ou discutível interpretação do direito, mas que, não obstante, conduza ao decretamento providência.

Os erros de julgamento são do tribunal, não responsabilizam o requerente da providência.”

Ou seja, apenas a providência infundamentada, que não deveria ter sido decretada, e ainda assim o foi, isenta o requerente da responsabilidade.

Não assim quando na providência se deturpam factos ou se omitem outros, criando as condições para que o juiz, numa apreciação sumária, de probabilidade e de mera verosimilhança que é própria dos juízos em sede de providências cautelares, venha a proferir uma decisão errada.

Verificam-se, pois, todos os pressupostos da responsabilidade civil do Réu, enquanto requerente da providência cautelar nos termos do art. 374º, nº1 do CPCivil,  o que conduz à procedência da revista e a reposição da sentença de 1ª instância que condenou o Réu a indemnizar a Autora em €126.000,00, com juros de mora.


Decisão.

Pelo exposto, concede-se a revista e revogando o acórdão recorrido, julga-se procedente a acção, condenando o Réu no pedido.

Custas pelo Réu.


Lisboa, 10.11.2022


Ferreira Lopes (Relator)

Manuel Capelo

Tibério Nunes da Silva