Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5074/15.7T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA PINTO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PROVA GRAVADA
ÓNUS A CARGO DO RECORRENTE
Data do Acordão: 03/21/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS .
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 640.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 28-04-2016, PROCESSO N.º 1006/12.2TBPRD.P1.S1;
- DE 06-12-2016, PROCESSO N.º 437/11.0TBBGC.G1.S1;
- DE 28-03-2017, PROCESSO N.º 1214/11.3TJVNF.G1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :

I Tendo o Recorrente, nas suas alegações de recurso de apelação, identificado os pontos de facto que considera mal julgados, o depoimento das testemunhas que entende mal valorados, a sessão na qual foram os depoimentos prestados e o início e termo da sua prestação, bem como fazendo a transcrição dos segmentos que fundamentam a sua impugnação, e referindo qual o resultado probatório que no seu entender deveria ter tido lugar, relativamente a cada ponto da matéria factual, tanto basta para que a Relação deva reapreciar a matéria de facto impugnada.

II Na verificação do cumprimento do ónus de alegação previsto no artigo 640º do CPC, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.
Decisão Texto Integral:

Processo n.º 5074/15.7T8LSB.L1.S1 (Revista) - 4ª Secção[1]


Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça


I

Relatório:

1. AA através de requerimento apresentado em formulário próprio, a que aludem os artigos 387º, n.º 2, do Código do Trabalho[2], 98º-C e 98º-D, ambos do Código de Processo do Trabalho[3], intentou, em 20 de fevereiro de 2015, na Comarca de Lisboa, Lisboa – Instância Central – 1ª Secção do Trabalho – J2, a presente Ação de Impugnação Judicial da Regularidade e Licitude do seu Despedimento, sob a forma de processo especial, contra “BB, S.A.”.

Efetuada a audiência de partes, não se conseguiu obter a sua conciliação.  

2. Notificada a Empregadora para motivar o despedimento e apresentar o procedimento disciplinar, apresentou o seu articulado a motivar o despedimento do Trabalhador com fundamento em justa causa, alegando, em síntese, nos seguintes termos:


- O trabalhador foi admitido em 09 de novembro de 1998 para, sob as suas ordens, direção e fiscalização, exercer as funções inerentes à categoria profissional de Engenheiro Civil;
- À entidade empregadora foi adjudicado, em conjunto com o seu parceiro de consórcio “CC”, o Contrato de Prestação de Serviços de Fiscalização dos Trabalhos de Reabilitação, Extensão e Exploração da “ETAR” de … e de Cinco Estações Elevatórias, contrato esse cuja execução ocorria na ...;
- O trabalhador foi, no âmbito do referido contrato, designado para o desempenho das funções de Chefe de Missão, que aceitou;
- O trabalhador era sabedor do grau de responsabilidade inerente ao cargo que ia desempenhar e de todo o circunstancialismo inerente ao desempenho de funções num país como a ...;
- Todavia, o trabalhador não logrou efetuar as tarefas que, no âmbito do cargo cujo desempenho lhe foi adstrito, deveria ter executado, sendo que as que executou o fez tardiamente, sem o devido enquadramento técnico e fundamentos, tendo o seu trabalho sido, praticamente na íntegra, corrigido pelo Engenheiro DD;
- Devido à conduta do trabalhador o cliente “EE” – que contratara com o consórcio os referidos serviços – solicitou, por escrito, a substituição do Chefe de Missão, situação que gerou na entidade empregadora receio de rescisão do contrato celebrado, aplicação de multas, bem como danos ao nível da sua imagem com o cliente;
- Com o seu comportamento, o trabalhador violou os deveres de zelo e diligência, de executar os atos tendentes à melhoria da produtividade da empregadora e de obediência, comprometendo, assim, irremediavelmente, a relação de confiança subjacente ao vínculo laboral e, por conseguinte, a manutenção do contrato de trabalho.

Concluiu pela improcedência da ação.

3. O Trabalhador apresentou, também, o seu articulado, impugnando a factualidade alegada pela Empregadora e efetuando pedido reconvencional.

Concluiu pela procedência da ação, e pediu que, em consequência, o procedimento disciplinar seja julgado inválido e a justa causa, invocada pela entidade empregadora, seja julgada totalmente improcedente.

Mais pede que o seu despedimento seja julgado ilícito, e que a Empregadora seja condenada a:
 
- Reintegrá-lo ou a pagar-lhe a indemnização de antiguidade, à razão de 45 dias por cada ano;
- Proceder ao pagamento das retribuições devidas desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da sentença que declare a ilicitude do despedimento;
- Indemnizá-lo pelos danos não patrimoniais sofridos;
- Proceder ao pagamento dos juros de mora.

4. A Empregadora veio responder ao articulado apresentado pelo Trabalhador, pugnando pela validade do procedimento disciplinar e, no mais, concluindo pela licitude do despedimento por si promovido.

5. Foi proferido despacho saneador, dispensando-se a realização da audiência preliminar, bem como a seleção da matéria de facto.

6. Procedeu-se à realização da audiência de julgamento, finda a qual o trabalhador optou pela indemnização de antiguidade em substituição da reintegração no seu posto de trabalho.

7. Foi, então, proferida sentença, em 18 de Janeiro de 2016, que decidiu nos seguintes termos:

            «Por tudo quanto se deixa exposto, o Tribunal julga ilícito o despedimento, com fundamento em justa causa, promovido pela entidade empregadora, e, em consequência, condena-a [a]:

                a) Pagar ao trabalhador a quantia de € 38.208,48 (trinta e oito mil duzentos e oito euros e quarenta e oito cêntimos) a título de indemnização de antiguidade vencida até 18 de Janeiro de 2016, à razão de 35 dias por cada ano de antiguidade, quantia à qual acrescem as que, ao mesmo título, se vencerem até ao trânsito em julgado da sentença e sobre a qual incidirão juros de mora, à taxa legal, contados desde a data do referido trânsito;

                b) Pagar ao trabalhador a quantia de € 26.828,75 (vinte e seis mil oitocentos e vinte e oito euros e setenta e cinco cêntimos) a título de retribuições vencidas desde 10 de Fevereiro de 2015 até 18 de Janeiro de 2016, quantia à qual acrescem as que, a título de retribuições, se vencerem até ao trânsito em julgado da sentença e acrescem juros, à taxa legal, desde a data em que cada retribuição deveria ter sido paga e até efetivo e integral pagamento, tudo sem prejuízo da dedução do subsídio de desemprego que haja sido auferido pelo trabalhador, o qual será entregue pela entidade empregadora à Segurança Social.

            - Absolve-se a entidade empregadora do pedido de condenação no pagamento dos danos não patrimoniais.»


II

8. Inconformada, a Empregadora interpôs recurso de apelação, impugnando de facto e de direito, ao qual se seguiu a interposição, pelo Trabalhador, de recurso subordinado.

9. Mediante acórdão proferido em 22 de Março de 2017, o Tribunal da Relação de Lisboa, rejeitando o recurso da Empregadora quanto à impugnação da matéria de facto, deliberou julgar improcedentes os recursos interpostos e confirmou na íntegra a sentença recorrida.


III

10. Novamente irresignada, a Empregadora interpôs recurso de revista excecional, formulando as seguintes conclusões:


A) A Recorrente interpôs Recurso de Apelação com reapreciação da prova gravada no qual impugnou expressamente, para todos os devidos e legais efeitos, os factos dados como provados pelo Tribunal, e sua fundamentação, a que correspondem os números: 25, 30, 33, 41, 43, 63, 64, 77, 80 a 84 e ainda, a matéria de facto dada como não provada e sua fundamentação, identificada sob os números 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7.
B) A Recorrente indicou expressamente os concretos meios probatórios que impunham uma decisão diversa, relativamente a esses factos, e enunciou a decisão alternativa que se impunha igualmente.
C) Para além da indicação dos concretos meios de prova que impunham uma decisão diversa, a Recorrente transcreveu os depoimentos das testemunhas que se figuravam pertinentes e fundamentais à prova dos factos.
D) No entanto, foi entendimento dos Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa rejeitar liminarmente a impugnação da matéria de facto deduzida com fundamento na falta de cumprimento do ónus de especificação imposto no artigo 640.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea b), do CPC.
E) Salvo o devido respeito, o Tribunal da Relação de Lisboa fez errada aplicação da lei do processo e, mais ainda numa violação manifesta dos princípios constitucionais da segurança jurídica e da confiança, do processo equitativo e do direito ao acesso à Justiça e aos Tribunais, ao proceder à rejeição do recurso referente à impugnação da matéria de facto, reapreciação esta, essencial à decisão de mérito acerca da (i)licitude do despedimento do trabalhador. 
F) Deve, por isso, tal Acórdão ser revogado e substituído por outro que admita o recurso de Apelação e proceda à reapreciação da prova produzida.
G) Com efeito, é da fixação da matéria de facto que depende a aplicação do direito sendo determinante do mérito da causa e do resultado da ação.
H) A apreciação rigorosa dos depoimentos prestados em audiência de julgamento, conexionados com os demais meios probatórios, é inquestionavelmente a função primordial de qualquer Juiz, tanto daquele que na 1ª instância preside à audiência que culmina com a decisão da matéria de facto, como daquele que, em instância de recurso, tem por missão a reapreciação de tal decisão, depois de reponderados os meios de prova.
I) Constitui, sem dúvida, em qualquer das instâncias, uma tarefa espinhosa, cuja complexidade radica essencialmente na dificuldade em captar, com sentido crítico e analítico, os factos controvertidos a partir da narração que é trazida, nomeadamente pela prova testemunhal produzida em audiência de julgamento.
J) Mas sendo espinhosa tal função, nem por isso está o Julgador desonerado de a exercer norteado, como lhe compete, pela nobre tarefa de privilegiar a substância em detrimento da forma, buscando alcançar a verdade material, que não a meramente formal, ou seja, numa palavra, fazer Justiça. (neste Sentido veja-se o Acórdão do STJ de 03.03.2016).
K) As exigências que o legislador entendeu consagrar nesta matéria e que impõem ao Tribunal o dever de fundamentação e de motivação crítica da prova, no atual artigo 607º, nº 4, do CPC, encontra o seu contraponto na igual exigência imposta à parte Recorrente, que pretenda impugnar a decisão de facto, do respetivo ónus de impugnação.
L) Trata-se, em resumo, de cumprir o ónus de impugnação estatuído no artigo 640º do NCPC.
M) Por conseguinte, na interposição de qualquer recurso, deve o Recorrente, nas suas alegações, concluir, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão, a que se reporta o artigo 639º do CPC.
N) A este ónus – de alegar e formular conclusões nos termos impostos pelo artigo 639º do CPC – acresce o ónus previsto no artigo 640º, que foi estabelecido especificamente para os casos em que seja impugnada a decisão proferida pelas instâncias sobre a matéria de facto.
O) De acordo com este normativo exige-se do Recorrente que dê cumprimento ao ónus de alegação, devendo obrigatoriamente especificar:

i. Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
ii. Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
iii. A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

P) Quer isto dizer que recai sobre a parte Recorrente um triplo ónus:

1) O de circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento;
2) O de fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, implique uma decisão diversa;
3) O de enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas.

Q) Ónus tripartido que encontra nos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e boa-fé processuais a sua “ratio” e que visa garantir, em última análise, a seriedade do próprio recurso instaurado, arredando eventuais manobras dilatórias de protelamento do trânsito em julgado da decisão.
R) A interpretação desta nova alínea c), do artigo 640º, do CPC, é-nos dada de forma exemplar por Abrantes Geraldes, podendo ler-se a este propósito que:
“O Recorrente deixará expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem no reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente”. (…) in Cf. António Santos Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2014, 2ª Edição, pág. 133.

S) Porém, essa exigência, bem como o cumprimento do ónus a cargo do Recorrente, quando esteja em causa a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, não pode redundar na adoção de entendimentos centrados numa visão formalista do processo por parte dos Tribunais da Relação, e que, na prática, se traduzam na recusa de reapreciação da matéria de facto, “máxime” da audição dos depoimentos prestados em audiência, coartando à parte Recorrente o direito de ver apreciada e, quiçá, modificada a decisão da matéria de facto, com a eventual alteração da subsunção jurídica.
T) Mais concretamente, não pode admitir-se que, por uma via interpretativa de raiz essencialmente formal, o Recorrente fique impedido de alcançar o objetivo visado pelo legislador e que foi consagrado nas reformas introduzidas ao processo civil: o segundo grau de jurisdição no âmbito do julgamento da matéria de facto.
U) Ainda no entendimento do referido Autor:
(…)
“Importa que não se exponenciem os requisitos a um ponto que seja violado o princípio da proporcionalidade e seja denegada a pretendida reapreciação da decisão da matéria de facto com invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou no espírito do legislador.
Ou seja, jamais deve transparecer a ideia – que por vezes perpassa em diversos arestos das Relações – de que a elevação do nível de exigência além dos parâmetros que a lei inequivocamente determina constitui, na realidade, um pretexto para recusar a reapreciação da decisão da matéria de facto, nesse primeiro momento, com invocação do incumprimento de requisitos de ordem adjetiva e, numa segunda oportunidade, com apresentação de argumentário de pendor genérico em torno dos princípios da imediação e da livre apreciação das provas.
Por outro lado, quando houver sérios motivos para rejeição do recurso sobre a matéria de facto (“maxime” quando o recorrente se insurja genericamente contra a decisão, sem indicação dos pontos de facto; quando não indique de forma clara nem os pontos de facto impugnados, nem os meios de prova em que criticamente se baseia; ou quando nem sequer tome posição clara sobre a resposta alternativa pretendida) tal efeito apenas se repercutirá nos segmentos afetados, não colidindo com a admissibilidade do recurso quanto a outros aspetos. Isto é, eventuais falhas de elementos essenciais no campo da motivação e/ou das conclusões apenas atingem as questões de facto a que respeitam, sem prejudicar a parte restante.”

V) Com efeito, embora o Novo Código de Processo Civil exija o cumprimento do ónus de alegação a cargo do Recorrente, impondo a este, quando se trata de impugnação da decisão da matéria de facto, que proceda à especificação prevista nas alíneas do nº 1 do artigo 640º, o exercício desse ónus, conforme se salientou em ponto anterior, não pode ser exponenciado a um nível tal que praticamente determine a indicação ao minuto das passagens, tanto o mais, que os Relatores do Tribunal da Relação não se podem basear nas passagens indicadas pelo Recorrente, competindo-lhes analisar por completo toda a prova produzida.
W) Com efeito, a lei não exige essa indicação, ao contrário do que ressalta do acórdão recorrido.
X) O que verdadeiramente importa ao exercício do ónus de impugnação em sede de matéria de facto é que as alegações, na sua globalidade, e as conclusões, contenham todos os requisitos que constam do artigo 640º do Novo CPC.
Y) A saber:
- A concretização dos pontos de facto incorretamente julgados;
- A especificação dos meios probatórios que no entender do Recorrente imponham uma solução diversa;
- E a decisão alternativa que é pretendida.

Z) Relativamente ao sentido e alcance dos requisitos formais de cumprimento dos ónus a cargo do Recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, estabelecidos no artigo 640.º, nºs 1 e 2, do CPC, impõe-se salientar que, reforçando a doutrina citada, tem vindo a consolidar-se neste Supremo Tribunal de Justiça, Jurisprudência de sentido unívoco.
AA) Posto isto, e tendo em atenção o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, relativamente ao ónus a cargo do Recorrente que pretenda impugnar a decisão da matéria de facto, verifica-se, “in casu”, que:

- Resulta do conteúdo das conclusões (e das alegações) do recurso de apelação que a Recorrente:
· Identifica os pontos da matéria de facto que em concreto impugna, enumerando-os e transcrevendo-os, afirmando que os mesmos foram dados como provados e os que tinham que ter sido dados como não provados;
· Identifica os concretos depoimentos das testemunhas, transcrevendo as passagens dos referidos depoimentos e fazendo a propósito de cada excerto transcrito, uma análise crítica do mesmo e apresentando a conclusão do que é que, tendo por base aquele depoimento, tinha que ter sido dado como provado, apresentando uma redação alternativa;
· No que respeita à prova documental: procede a uma análise crítica dos documentos, identificando-os, e o que pode ser retirado da análise dos mesmos, apresentando também uma redação alternativa para tal factualidade.

BB) Assim, e porque a Recorrente identificou no seu Recurso a matéria impugnada, bem como o sentido que, em seu entender, devia extrair-se das provas que invocou e que analisou em sede de alegações, não pode ver coarctado o seu direito de recurso, porquanto, cumpriu o ónus de impugnação que legalmente se lhe impunha.
CC) Assim sendo, a rejeição pelo Tribunal da Relação de Lisboa do recurso interposto quanto à reapreciação do julgamento da matéria de facto fez errada aplicação da lei do processo (nomeadamente do disposto no artigo 640.º do CPC), violando, em nossa opinião, grosseiramente os princípios constitucionais da segurança jurídica e da confiança, do processo equitativo e do direito ao acesso à Justiça e aos Tribunais.
DD) Por conseguinte, tendo em atenção o entendimento que tem vindo a ser sufragado pelo STJ quanto à interpretação da norma contida no artigo 640.º do CPC, a qual se encontra em oposição ao entendimento constante do Acórdão recorrido, e por se tratar de matéria relativa ao despedimento com justa causa, com impacto financeiro e moral quer na entidade patronal quer no trabalhador, é entendimento da Recorrente que se encontram preenchidos os requisitos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC quanto à relevância jurídica e social da questão.
EE) O aresto sob censura ignora, além do mais, o conteúdo dos mais recentes Acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça que, ponderados os princípios enunciados em CC) supra, rejeita liminarmente o tipo de raciocínio que conduziu à Decisão sob censura.

11. O Trabalhador não apresentou contra-alegações.


IV

Da revista:

12. Apresentados os autos à Formação a que alude o artigo 672º, n.º 3, do CPC, foi proferido acórdão em 06.06.2017, ordenando-se a distribuição do recurso como de revista nos termos gerais por não se verificar dupla conforme, dado se entender que a recusa do recurso sobre a matéria de facto, com alegado incumprimento dos ónus decorrentes dos artigos 639º e 640º, ambos do CPC, impede a formação de dupla conforme entre a decisão recorrida e a decisão da 1ª instância assentes na base factual inicialmente fixada.

13. Distribuídos os autos como de revista nos termos gerais, por despacho da, então, Relatora, proferido em 03.10.2017, foi fixado ao recurso o efeito meramente devolutivo, indeferindo-se o requerimento da Recorrente que pretendia o efeito suspensivo, e convidou-se esta a aperfeiçoar, querendo, as conclusões apresentadas, sob a cominação do artigo 639º, n.º 3, parte final, do CPC.   

14. O que a Empregadora fez, apresentando novas conclusões em 17.10.2017 e tendo o Trabalhador apresentado a “versão final” das suas contra-alegações em 12.12.2017.

15. O processo foi redistribuído ao, agora, Relator por jubilação da primitiva Relatora.

16. A Exma. Senhora Procuradora-Geral-Adjunta emitiu, nos termos do artigo 87º, n.º 3, do CPT, parecer no sentido de ser concedida a revista.

17. Preparada a deliberação, cumpre apreciar as questões suscitadas nas conclusões da alegação da Recorrente, excetuadas aquelas cuja decisão se mostre prejudicada pela solução, entretanto dada a outras, nos termos preceituados nos artigos 608º, n.º 2, e 679º, ambos do CPC.


V

18. Questões a decidir:


- Está colocada apenas uma questão e que consiste em saber se a Recorrente cumpriu os ónus exigidos pelo artigo 640º, n.ºs 1, alínea b) e 2, alínea b), do CPC, no que diz respeito ao pedido de reapreciação da matéria de facto na parte em que foi rejeitada pela Relação.

Cumpre, assim, decidir:


VI

Fundamentação:

I) – Da matéria de facto:

O presente recurso tem por objeto a rejeição liminar, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, da impugnação da decisão proferida na 1ª instância sobre a matéria de facto, que consiste em saber se a Recorrente cumpriu todos os ónus estabelecidos no artigo 640º, do CPC, para a poder impugnar.

Sendo esta questão apenas de direito e não havendo lugar a qualquer alteração da matéria de facto neste Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 663º n.º 6, do CPC, “ex vi” do artigo 679º, do CPC, remete-se para os termos da decisão proferida na 1ª instância.

II) – Do direito

Estabelece o artigo 639º, n.ºs 1 e 2, do CPC, que o recorrente tem o ónus de alegar e de formular conclusões, devendo apresentar a sua alegação, na qual deve concluir, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
Por sua vez, o artigo 640º,do CPC, concretiza esses ónus, cujo cumprimento é obrigatório para quem pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto.

Consta no citado normativo:

1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso,  
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636º, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.

Ora a recorrente “BB, S.A.” impugnou a decisão proferida na 1ª instância sobre a matéria de fato, mais propriamente a dada como provada e constante dos números 25, 30, 33, 41, 43, 63, 64 e 77 e a dada como não provada e sua fundamentação, identificada sob os números 1, 2, 3, 6, 7, 8 e 10.
Contudo o, Tribunal da Relação de Lisboa, rejeitou liminarmente a sua apreciação por entender que não tinha a Recorrente dado cumprimento ao ónus estabelecido no n.ºs 1, alínea b), e 2, alínea a)[4], artigo 640, do CPC.
Como fundamento dessa rejeição refere-se no acórdão recorrido:
[O artigo 640º, d CPC] impõe, assim, que seja o Recorrente a estabelecer a ligação entre os factos provados ou a provar, os meios de prova produzidos e a decisão do tribunal recorrido, uma vez que no exercício daquele ónus de alegação exige-se ao Recorrente a indicação exata das passagens da gravação em que se funda a sua impugnação.
Assim, não bastava à Recorrente relativamente à impugnação deduzida, designadamente dos factos n.ºs 25,30, 33, 41 e 43, a indicação apenas do nome da pessoa que em seu entender respondeu sobre a matéria em questão, uma vez que terá de indicar as passagens exatas das respetivas gravações, mesmo quando em alguns casos tenha transcrito a passagem do depoimento pretendido. Com efeito, incumbia à Recorrente o ónus de indicar, por referência ao suporte em que se encontra gravado o depoimento que pretende utilizar, o início e o termo da passagem ou das passagens desse depoimento, o que a Recorrente nunca fez, como resulta das respetivas alegações.
Deste modo, uma vez que a Recorrente não cumpriu o referido ónus de especificação imposto no n.º1 b) e n.º 2 b) do art.º 640 do CPC, este Tribunal terá de rejeitar liminarmente a impugnação da matéria de facto, deduzida pela Recorrente.”
Resulta do exposto, que a Relação não conheceu da impugnação da matéria de facto, deduzida pela Empregadora, porque entendeu que esta não tinha indicado com exatidão as passagens da gravação em que o seu recurso se fundamenta, isto é, não havia indicado o “início” e o “termo” da passagem ou passagens de cada depoimento gravado e que sustentam a sua pretensão.
É que, segundo o acórdão recorrido, não basta indicar o nome das testemunhas, em cujos depoimentos se fundamenta a impugnação e transcrever alguns dos seus segmentos.



Ora, é jurisprudência firme e uniforme deste Supremo Tribunal de Justiça que o Tribunal da Relação não pode deixar de reapreciar a matéria de facto impugnada no caso de omissão da indicação expressa das passagens das gravações em que se encontrem registados os depoimentos que impõem decisão diversa, desde que, nos termos do recurso, se faça a transcrição da parte dos depoimentos em que o sujeito se serve para contrariar a posição assumida pelo tribunal recorrido, fornecendo indicações que permitem localizar, na gravação, as passagens em que se baseia a impugnação.
A título exemplificativo referem-se seguintes os acórdãos:
1). Acórdão de 06.12.2016, proferido no processo n.º 437/11.0TBBGC.G1.S1[5]:
a. Na impugnação da matéria de facto com base em provas gravadas, deve o recorrente mencionar os depoimentos em que funda o seu entendimento indicando, com exatidão as passagens da gravação em que baseia o seu recurso. Deverá, outrossim, indicar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, referindo qual o sentido da resposta que, na sua óptica, se impõe ser dada a tais pontos.
b. No caso vertente, os recorrentes indicaram, por referência a cada um dos depoimentos das testemunhas (em que baseiam o seu entendimento), o início e o termo deles por referência ao que ficou exarado nas atas de audiência de julgamento e referiram a data em que os depoimentos foram realizados. Referenciaram ainda os trechos dos depoimentos das testemunhas que, no seu entender, justificavam a alteração almejada. Ou seja, transcrevendo parte dos depoimentos e fornecendo as indicações que permitem localizar, na gravação, as passagens a que se referem, os recorrentes forneceram à Relação os elementos relevantes e concretos que permitiriam ao tribunal a reapreciação da matéria de facto.

2). Acórdão de 28.03.2017, proferido no processo n.º 1214/11.3TJVNF.G1.S1[6]:
1. Entende-se que está adequadamente cumprido o núcleo essencial do ónus de indicação das passagens da gravação tidas por relevantes, se o recorrente forneceu a indicação da sessão na qual foi prestado, do início e do termo do depoimento, conforme o estabelecido em ata, tendo, ainda, apresentado a respetiva transcrição parcial.
2. Deve ser anulado o acórdão recorrido, com fundamento em violação da norma constante do artigo 640.º, n.º 2, al. a), do CPC, no segmento em que decidiu rejeitar o recurso no que se refere à impugnação da decisão relativa à matéria de facto, determinando-se a baixa do processo ao tribunal recorrido para que proceda à integral apreciação daquela impugnação deduzida no recurso de apelação.

3). Acórdão de 28.04.2016, proferido no processo n.º 1006/12.2TBPRD.P1.S1[7]:
1. Deve considerar-se satisfeito o ónus de alegação previsto no artigo 640º do CPC se o recorrente, além de indicar o segmento da decisão da matéria de facto impugnado, enunciar a decisão alternativa sustentada em depoimento testemunhal que identificou e localizou.
2. Na verificação do cumprimento do ónus de alegação previsto no artigo 640º do CPC, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

No caso em apreço, a recorrente/empregadora indicou, por referência a cada um dos depoimentos das testemunhas que fundamentam a sua impugnação, o seu início e o seu termo por referência ao que ficou exarado nas atas de audiência de julgamento e indicou a data em que eles foram prestados.
Igualmente, indicou os trechos dos depoimentos das testemunhas que, no seu entender, justificavam a alteração pretendida, através da sua transcrição.
 Na sua alegação consta que “[c]onsiderando os depoimentos das testemunhas Senhor Engª. DD, Senhor Engª. FF e ainda dos depoimentos da Senhora Engª. GG e da Senhora Engª. HH, resulta manifesto que cabia ao Tribunal a quo dar igualmente como provado que a designação nos moldes acima descritos se deveu, também, aos insucessos do Recorrido no passado (cf. Depoimento de DD, gravado no dia 16/10/2015, com início às 9h58m e termo às 18h12m; Depoimento de FF, gravado no dia 09/10/2015, com início às 9h59m e termo às 11h46m; Depoimento GG, gravado no dia 09/10/2015, com início às 14h53m e termo às 15h08m; e Depoimento de HH, gravado no dia 09/10/2015, com início às 11h47m e termo às 12h44m, tudo conforme atas de audiência de julgamento das referidas datas).”

Concluindo, refere-se que, no caso dos autos, analisado o corpo das alegações da apelação e as respetivas conclusões, verificamos que a recorrente:
- Concretizou os pontos de facto que considera incorretamente julgados.
- Especificou em relação a cada um daqueles pontos, os concretos meios probatórios que, no seu entender, impunham uma decisão diversa, identificando os depoentes, transcrevendo as declarações e os depoimentos produzidos em audiência em que funda a sua discordância com o decidido e, bem assim, indicando as datas e horas de início e termo de cada um dos depoimentos visados.
- Enunciou a decisão alternativa que propõe.

Nestes termos, verifica-se que a Empregadora cumpriu suficientemente os ónus exigidos pelo artigo 640°,  n.ºs 1 e 2, do CPC, e, como tal, deverá a Relação reapreciar a matéria de facto impugnada pela recorrente na apelação.


VII

III – DECISÃO:

Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente a revista e, consequentemente, em revogar o acórdão recorrido e determinar a remessa dos autos ao Tribunal da Relação para que:
a. Seja apreciada a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto deduzida pela “BB, S.A.”.
b. Sejam apreciadas as demais questões colocadas pela Ré no seu recurso de apelação.
Custas da revista: A cargo da parte vencida a final.
Anexa-se sumário do acórdão.
~~~~~~~~~~

           Lisboa, 21 de março de 2018

Ferreira Pinto – (Relator)
Chambel Mourisco
Pinto Hespanhol


__________________
[1] - 003/2018 – (FP) – CM/PH
Negrito e sublinhado nossos.
[2] - Doravante CT.
[3] - Doravante CPT.
[4] - Por lapso referiu-se a alínea b).
[5] http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f120f31b3a376ba280258081004fbe71?OpenDocument
[6] http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-tematica/Onus_Impugnacao_Materia_Facto.pdf
[7]http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/93422223cac6c8b580257fa300508dce?OpenDocument.