Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
389/14.4T8VFR.P2.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: ACÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DA PATERNIDADE
PRAZO DE CADUCIDADE
INCONSTITUCIONALIDADE
IMPUGNAÇÃO DE PATERNIDADE
TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
Data do Acordão: 12/16/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário : I. A acção de impugnação e investigação da paternidade está sujeita aos prazos de caducidade dos artigos 1842.º, n.º 1, al. c), e do artigo 1817.º do CC, ex vi do artigo 1873.º do CC.

II. De acordo com o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 309/2016 de 18.05.2016, não deve julgar-se inconstitucional a norma do artigo 1842.º, n.º 1, al. c), do CC, no segmento que estabelece que a acção da impugnação da paternidade pode ser intentada pelo filho, no prazo de três anos contados desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



I. RELATÓRIO


1. AA, residente na Rua …, propôs contra BB, residente na …, CC, residente na Rua …, e DD, residente na Rua …, acção com processo comum de impugnação e investigação de paternidade, pedindo que fosse declarado que não é filho de EE e em consequência que fosse eliminado do assento de nascimento do autor as referências, como pai, a EE e, como avós paternos, a HH e II; e que fosse declarado filho do 3.º réu e este condenado a reconhecer a paternidade do autor e, em consequência, ordenada a inscrição no seu assento de nascimento do réu DD, como pai, e JJ e KK, como avós paternos.

Para tanto alega factos constitutivos que demonstram que aquele que figura no seu registo de nascimento como pai, EE (pai de GG, falecida a … .04.1991 e mãe dos 1.º e 2.º réus), não pode ser efectivamente seu pai, devendo-se assim afastar a presunção legal {artigo 1796.º, n.º 2, do CC). Mais alega estar a acção “a ser instaurada em tempo, não obstante os normativos previstos no Código Civil relativos aos prazos para propositura de acções de impugnação e investigação de paternidade (artigos 1842.º e 1817.º por força do artigo 1873.º do Código Civil)”.

2. Citados, apenas o 3.º réu, DD, deduziu contestação, invocando a caducidade do direito do autor e impugnando a matéria alegada, por não serem factos pessoais, serem inexactos ou não corresponderem à verdade.

3. Seguidamente, a Mma. Juíza proferiu despacho em que referiu julgar estar em condições de proferir decisão de mérito em sede de despacho saneador, considerando, quanto ao pedido deduzido em A) da petição inicial, o disposto no artigo 1842.° do CC, na versão introduzida pela Lei n.º 14/2009, que confere aos filhos (ora demandante) o prazo de 10 anos contados a partir da maioridade para impugnar a paternidade presumida. Porém, para obstar a decisões convidou as partes para, querendo, se pronunciarem quanto à excepção deduzida, o que o autor fez, sustentando a inconstitucionalidade do artigo 1842.º, e alegou, ainda, que só por documento que obteve em 2014 teve conhecimento de circunstâncias de que pode concluir-se não ser filho do marido da sua mãe (artigo 1842.º n.º 1, al. c), do CC): quando obteve em … .09.2014 certidão de casamento da mãe, junto da Conservatória de Registo Civil, verificou, em tal certidão, que o casamento da mãe, ocorrido em … .08.1937, havia sido dissolvido por sentença de … .06.1962, proferida pelo Tribunal da Comarca da …..; a curiosidade levou, então, o A, ao arquivo judicial do extinto Tribunal de …. onde, por consulta do processo, verificou que foi alegado pela sua mãe, e dado como provado pelo tribunal que a mãe do autor se encontrava separada do seu marido há muito mais de 10 anos; ora, o autor nasceu em … .03.1955, ou seja, quando a mãe do autor já se encontrava separada do seu marido, pelo que não podia ser filho do homem que, sendo embora marido da mãe, já estava separado dela havia largo tempo. Por onde que a acção foi proposta tempestivamente.

4. Na sequência, a Mma. Juíza proferiu saneador/sentença decidindo:

Relativamente ao primeiro pedido, de impugnação da paternidade presumida:

- Julgo improcedente o pedido de recusa da aplicação do disposto no art. 1842º, n.º 1, al. c), do CC, por inconstitucionalidade;

- Julgo verificada a exceção perentória da caducidade do direito de interpor a presente ação de impugnação da paternidade presumida e, em consequência, absolvo os Réus BB e CC do primeiro pedido.

b). No que concerne ao segundo pedido, de investigação da paternidade, o seu conhecimento ficou prejudicado devido à improcedência do primeiro pedido, pelo que julgo extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide (277º, al. e), do Novo CPC), e, consequentemente, absolvo o Réu DD da instância”.


5. Mediante apelação do autor, anulou o Tribunal da Relação do … a decisão, determinando o prosseguimento dos autos, por forma a ser produzida prova quanto à questão da caducidade do direito do autor.


6. Baixados os autos e realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, em … .10.2017, que julgou:

a). Relativamente ao primeiro pedido, de impugnação da paternidade presumida:

- [] improcedente o pedido de recusa da aplicação do disposto no art. 1842º, n.º 1, al. c), do CC, por inconstitucionalidade;

- [] verificada a exceção perentória da caducidade do direito de interpor a presente ação de impugnação da paternidade presumida e, em consequência, absolvo os Réus BB e CC do primeiro pedido.

b). No que concerne ao segundo pedido, de investigação da paternidade, o seu conhecimento ficou prejudicado devido à improcedência do primeiro pedido, pelo que julgo extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide (277º, al. e), do Novo CPC), e, consequentemente, absolvo o Réu DD da instância”.


7. Novamente inconformado com o decidido, interpôs o autor recurso de apelação da sentença.


8. Em … .09.2018, proferiu o Tribunal da Relação do …, por maioria, um Acórdão de cujo dispositivo consta:

“Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, em função do que na revogação da douta sentença recorrida, julgam a acção procedente, declarando que EE não é pai biológico do recorrente e se ordene a eliminação no assento de nascimento do A. da referência paterna e respectiva avoenga; e declare que o terceiro Réu DD é seu pai biológico e se ordene a inscrição no assento de nascimento do A. dessa paternidade e avoenga paterna; e devendo, após trânsito, efectuar-se a comunicação à conservatória do registo civil competente, nos termos do art.° 78.° do Código do Registo Civil.

Custas pelo recorrido”.


9. Desta decisão, que desaplicou a norma do artigo 1817.º, n.º 1 e n.º 3, al. b), do CC, com fundamento na sua inconstitucionalidade, recorreu o Ministério Público (recurso obrigatório) para o Tribunal Constitucional, tendo este, por decisão sumária, decidido:

Nos termos e pelos fundamentos expostos, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, decide-se:

a) Não julgar inconstitucionais as normas constantes do artigo 1817.º, n.º 1, e n.º 3, alínea b), do Código Civil, na parte em que, quando aplicáveis à investigação da paternidade, prevêem, respetivamente, um prazo de dez anos e de três anos, verificadas as hipóteses legais, para a propositura da ação;

b) Conceder provimento ao recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida em conformidade com o decidido quanto à questão de constitucionalidade”.


11. Desta decisão sumária do Tribunal Constitucional veio, então, o autor apresentar reclamação, tendo a Conferência decidido revogar a decisão sumária e não tomar conhecimento do objecto do recurso.


12. Pugnando pela confirmação na totalidade da decisão do Tribunal de 1.ª instância, vem o réu DD interpor recurso de revista.

Conclui assim as suas alegações:

1ª- A questão objeto de recurso tem a ver com a não aplicabilidade por parte do douto tribunal de que se recorre, das normas legais previstas nos artigos arte 1842º nº 1 c) e 1817 nº 1 e 3 al b) por força do artigo 1873, todas do CC. que estabelecem o prazo de caducidade de 10 anos após atingir a maioridade e posteriormente de 3 anos após o conhecimento, por parte do impugnante filho, no caso o autor/recorrido , das circunstâncias que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe.

2ª- O prazo máximo investigação de paternidade é de dez anos após ter atingido a maioridade, ou posteriormente, dentro de três anos a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe, de acordo com o disposto no artigo 1842 nº 1 c) do Código civil, na redação da lei 14/2009.

3ª- Está provado nos presentes autos que à data que o autor intentou a presente acção de impugnação e investigação de paternidade já havia decorrido mais de 10 anos após ter atingido a maioridade e, já depois destes 10 anos, havia decorrido mais de três anos entre a data que teve conhecimento dos factos e da convicção séria de que o marido da mãe não era seu pai biológico.

4ª Tendo em conta os factos dados como provados e referidos em 3º, verifica-se terem sido ultrapassados todos os prazos legais para propositura da presente acção, verificando-se no caso em apreço a exceção de caducidade prevista nos artigos do artº 1842º nº 1 c) e 1817 por força do artigo 1873, todos do Código Civil.

5ª Os prazos de caducidade previsto nos artigos do artº 1842º nº1 c) e 1817 por força do artigo 1873 do CC, são prazos razoáveis e proporcionais.

6ª- Não há qualquer restrição desproporcionada do direito à identidade das pessoas.

7ª- As disposições legais previstas nos artigos arte 1842º nº 1 c) e nº 2 alínea b) do artigo 1817 do CC, na redação dada pela lei 42/2009, ao estabelecerem prazos de caducidade não violam qualquer direito constitucional, não existe qualquer consagração constitucional que imponha a imprescritibilidade de ação de investigação de paternidade.

8ª- O douto acórdão de que se recorre, ao revogar a decisão proferida em primeira instância e declarar a não caducidade do direito do autor em intentar a presente ação de impugnação e investigação de paternidade, declarando que EE não é pai biológico do recorrido e que declarou que o aqui recorrente é seu pai biológico fez uma erra aplicação da lei , violando o disposto nos artigos arts 1842º nº 1 c) e 1817 por força do artigo 1873, todos do CC pela redação dada pela lei 14/2009”.


13. Por seu turno, pugnando pela manutenção do decidido pelo Tribunal da Relação do …, apresenta o autor as seguinte contra-alegações:

A. A fixação de prazos para o exercício do direito de impugnação e de investigação de paternidade constitui obstáculo e entrave incompreensível ao exercício do direito à identidade pessoal.

B. No equilíbrio que a lei procura estabelecer ao fixar tais prazos acabam a ser colocados lado a lado o direito à identidade pessoal, que é um direito fundamental, e o direito à segurança jurídica e à paz familiar e social do visado.

C. Com prazos tão curtos como os que a lei prevê não é tomado em consideração que o ser humano, a lidar internamente com abandono e rejeição, atravessa vários estádios até se empoderar e ter a coragem de propor uma acção em Tribunal desta delicadeza, em suma, para exigir a reposição da verdade.

D. A propalada segurança jurídica podia facilmente ser alcançada pelo pretenso pai, exercendo auto-tutela jurídica.

E. O legislador, na fixação de tais prazos, revela-se mais exigente com aqueles que pretendem ver a sua filiação estabelecida com base na verdade biológica do que com aqueles que pretendem exercer direitos patrimoniais que podem ter prazos de prescrição mais alargados.

F. O princípio da verdade biológica que é um princípio basilar do nosso ordenamento jurídico, que integra a tutela do direito a conhecer a historicidade pessoal de cada um, que bebe a sua essência no próprio direito à identidade pessoal com protecção constitucional, não se compagina com limitações ao nível de prazos para o exercício do direito de impugnação de paternidade estabelecida com base em presunção e não correspondente à verdade biológica.

G. Pelo que ao afastar a aplicação de tais normativos que fixam, injustificadamente, prazos para o exercício do direito fundamental à identidade pessoal, e como tal violam a Constituição da República Portuguesa, o Venerando Tribunal da Relação mais não fez do que aplicar a Justiça e a Lei”.


14. Em … .10.2020 proferiu o Exmo. Desembargador Relator um despacho com o seguinte teor:

Face à baixa dos autos do Tribunal Constitucional, que decidiu não tomar conhecimento do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, admito o recurso interposto de fls. 418 v., que é de revista, subindo imediatamente nos próprios autos com efeito suspensivo”.


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Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a questão a decidir, in casu, é a de saber se a acção de impugnação e investigação de paternidade deve ser julgada procedente.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:

1.º O A. deu entrada com a presente acção em … .10.2014.

2.º No dia … .03.1955 nasceu o ora A. AA.

3.º Do assento de nascimento do A. consta como mãe FF, casada, e como pai EE, casado.

4.º FF e EE casaram entre si em … .08.1937.

5.º Por sentença datada de … .06.1962, devidamente transitada em julgado, foi decretada a separação judicial de pessoas e bens de FF e de EE.

Em tal sentença deu-se como provado que a separação ocorreu há mais de 10 anos consecutivos.

6.º EE faleceu em … .10.1965.

7.º FF faleceu em … .11.1999.

8.º GG, falecida em … .04.1991, foi registada como filha de FF e de EE.

9.º GG deixou como herdeiros os Réus BB e CC.

10.º DD nasceu em … .10.1932.

11.º Nos 120 dias dos 300 dias que precederam o nascimento do A. a mãe deste e EE, seu marido, estavam separados de tecto, mesa e leito conjugal (separação que ocorrida desde pelo menos 1952), não tendo o A. sido concebido em resultado de relações de cópula completa entre a sua mãe e o então marido.

12.º Nos 120 dias dos 300 dias que precederam o nascimento do A. a mãe deste e o terceiro Réu DD, à data solteiro e vizinho da mãe do A., mantiveram entre si relações de cópula completa, dos quais resultou o nascimento do A.

13.º O A. tinha fortes suspeitas e mesmo a convicção interior de que EE não era seu pai biológico há mais de três, reportados à data da entrada em juízo desta acção, mais precisamente desde pelo menos meados da década de 2000.

14.º O A. tinha fortes suspeitas e mesmo a convicção interior de que o 3o Réu DD era o seu pai biológico há mais de três, reportados à data da entrada em juízo desta acção, mais precisamente desde pelo menos meados da década de 2000, por tal lhe ter sido contado ou confirmado por contemporâneos do 3o Réu, pessoas que foram procuradas pelo próprio A. para o esclarecimento da sua paternidade biológica, os quais mencionaram-lhe e/ou confirmaram-lhe que o 3o Réu era o seu pai biológico (com indicação da pessoa em concreto, do seu nome, do seu local de residência, da sua actividade profissional e mesmo do facto de ter um estabelecimento comercial aberto ao público).


E são seguintes os factos considerados não provados no Acórdão recorrido:

I - Nos 120 dias dos 300 dias que precederam o nascimento do A. a mãe deste não manteve relacionamento sexual com nenhum outro homem, para além do Réu DD.

II – O A. teve conhecimento da existência e do teor do processo e da decisão constante de fls. 20 a 40 (mencionado em 5.º dos factos dados como provados) apenas em …. ou … de 2014.

III – O A. apenas criou a convicção íntima de que não era filho biológico de EE após ter tido conhecimento do teor da acção mencionada em 5." dos factos dados como provados.

IV – Relativamente à data em que o A, teve conhecimento que o EE não era seu pai biológico, não se apurou com segurança que tivesse sido há mais de 10 anos, reportados à entrada em juízo da PI, mas seguramente há mais de 3 anos, conforme se deu como provado.


O DIREITO

O presente recurso é interposto no âmbito de uma acção que compreende dois pedidos: o pedido de impugnação de paternidade e o pedido de investigação de paternidade.

Visivelmente, os dois pedidos estão ligados entre si por uma relação de prejudicialidade. Adquire especial relevo o disposto no artigo 1848.º, n.º 1, do CC: “não é admitido o reconhecimento em contrário da filiação que conste do registo de nascimento enquanto este não for retificado, declarado nulo ou cancelado”.

O pedido de impugnação de paternidade tem como causa de pedir a não procriação biológica do autor pela pessoa que figura no registo como pai.

O artigo 1826.º, n.º 1, do CC consagra uma presunção de paternidade: presume-se que o filho nascido ou concebido na constância do matrimónio da mãe tem como pai o marido da mãe.

Esta é uma presunção relativa ou juris tantum, o que significa que é susceptível de ser ilidida, nos termos do artigo 1838.º e 1839.º do CC, destacando-se o ónus que impende sobre o autor de alegar e provar que, de acordo com as circunstâncias, a paternidade do marido da mãe é manifestamente impossível (cfr. artigo 1839.º, n.º 2, do CC).

A acção de impugnação da paternidade presuntiva está, porém, subordinada a prazo de caducidade.

Dispõe-se no artigo 1842.º, n.º 1, al. c), do CC que a acção de impugnação de paternidade pode ser intentada “pelo filho, até 10 anos depois de haver atingido a maioridade ou de ter sido emancipado, ou posteriormente, dentro de três anos a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe”.

A acção de impugnação da paternidade pode, assim, ser proposta num de dois prazos: no prazo de dez anos a contar da maioridade ou emancipação (prazo dito “normal”) ou no prazo de três anos a contar da ocorrência ou do conhecimento de factos supervenientes que justifiquem a impugnação da paternidade presumida para lá daqueles 10 anos (prazo suplementar ou excepcional).

Por sua vez, o pedido de investigação de paternidade tem como causa de pedir a procriação biológica do autor pelo pretenso pai.

Fora do casamento, a paternidade é estabelecida por reconhecimento do filho e efectua-se por perfilhação ou decisão judicial em acção de investigação (cfr. artigos 1796.º, n.º 2, e 1847.º do CC). Esta acção pode ser especialmente intentada pelo filho se a maternidade já se achar estabelecida ou se for pedido conjuntamente o reconhecimento de uma e de outra (cfr. artigo 1869.º do CC).

Também a acção de investigação da paternidade está subordinada a prazo de caducidade. Por força do artigo 1873.º do CC, é aplicável o artigo 1817.º do CC, onde se dispõe, na parte relevante para os presentes autos, que:

1 - A acção de investigação de maternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação.

(…)

3 - A acção pode ainda ser proposta nos três anos posteriores à ocorrência de algum dos seguintes factos:

(…)

b) Quando o investigante tenha tido conhecimento, após o decurso do prazo previsto no n.º 1, de factos ou circunstâncias que justifiquem a investigação, designadamente quando cesse o tratamento como filho pela pretensa mãe”.

A acção de investigação da paternidade pode, pois, ser proposta num de dois prazos: durante a menoridade do autor e até dez anos após a sua maioridade ou emancipação (prazo dito “normal”) ou no prazo de três anos a contar do conhecimento de factos supervenientes que justifiquem a investigação da paternidade (prazo suplementar ou excepcional).

A única questão que se põe neste recurso relaciona-se com a (alegada) inconstitucionalidade destes prazos de caducidade ou, nas palavras do recorrente, “tem a ver com a não aplicabilidade por parte do douto tribunal de que se recorre, das normas legais previstas nos artigos arte 1842º nº 1 c) e 1817 nº 1 e 3 al b) por força do artigo 1873, todas do CC. que estabelecem o prazo de caducidade de 10 anos após atingir a maioridade e posteriormente de 3 anos após o conhecimento, por parte do impugnante filho, no caso o autor/recorrido , das circunstâncias que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe” (cfr. conclusão 1.ª).

Alega o recorrente, essencialmente, que, não tendo o autor e ora recorrido proposto a acção dentro dos prazos previstos nas normas do artigo 1842.º n.º 1, al. c), e do artigo 1817.º do CC, aplicável por força do artigo 1873.º do CC (cfr. conclusões 3.ª e 4.ª) e não violando estas normas qualquer princípio ou norma constitucional (cfr. conclusão 7.ª), o Acórdão recorrido, ao desaplicá-las com fundamento na inconstitucionalidade, incorreu na sua violação (cfr. conclusão 8.ª).

Ora, com efeito, no que é relevante, desde logo, para o pedido de impugnação da paternidade, da decisão sobre a matéria de facto resulta que:

- a presente acção deu entrada em … .10.2014 (cfr. facto provado 1.º);

- à data de entrada da acção, o autor tinha 59 anos de idade (cfr. facto provado 2.º); e

- desde meados da década de 2000 que o autor tinha fortes suspeitas e mesmo a convicção interior de que EE não era seu pai biológico (cfr. facto provado 13.º)

Destes factos retiram-se de imediato duas conclusões:

1.ª) quando a acção deu entrada, o autor tinha atingido a maioridade há mais de 10 anos, tendo-se esgotado o primeiro prazo para a impugnação de paternidade disposto no artigo 1842.º, n.º 1, al. c), do CC.

2.ª) quando a acção deu entrada, o autor tinha conhecimento de circunstâncias de que podia concluir-se não ser filho do marido da mãe há mais de três anos, tendo-se esgotado também o prazo para a impugnação de paternidade disposto no artigo 1842.º, n.º 1, al. c), do CC.

Assim, no que respeita, à impugnação de paternidade, há que dar razão ao recorrente, quando diz a presente acção foi proposta fora de tempo.

Compete, no entanto, saber se esta interpretação do artigo 1842.º, n.º 1, al. c), do CC ofende algum princípio ou norma da lei fundamental.

A mesma questão se põe (e nos mesmos termos) em que se põe para o artigo 1817.º, n.º 1 e n.º 3, al. b), do CC, aplicável às acções de investigação de paternidade ex vi do artigo 1817.º do CC.

Como comprovam as numerosas referências bibliográficas e jurisprudenciais contidas tanto na sentença como no Acórdão recorrido, a questão é amplamente debatida na doutrina e na jurisprudência portuguesas. Uns, dando prevalência à tutela do interesse público e dos interesses privados associados aos valores da segurança e da estabilidade jurídicas, sustentam a razoabilidade e a proporcionalidade dos prazos e a inexistência de qualquer desconformidade constitucional das disposições legais que os fixam[1]; outros, entendendo que aqueles prazos põem em causa direitos fundamentais como o direito à identidade pessoal ou o direito à família, defendem a inconveniência de limitações temporais neste tipo de acções e a ofensa às normas constitucionais, designadamente às normas dos artigos 18.º, n.º 2, 26.º, n.º 1, ou 36.º, n.º 1, da CRP[2].

Cumprindo tomar posição nesta controvérsia, valoriza-se, em particular no que respeita ao artigo 1842.º, n.º 1, al. c), do CC, a pronúncia do Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 309/2016 de 18.05.2016[3], em que se decidiu “não julgar inconstitucional a norma do artigo 1842.º, n.º 1, alínea c), do Código Civil, na redação dada pela Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, no segmento que estabelece que a ação da impugnação da paternidade pode ser intentada pelo filho, no prazo de três anos contados desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe”.

E valoriza-se ainda o Acórdão de 3.05.2018, Proc. 158/15.4T8TMR.E1.S1[4], em cujo sumário se afirma, eloquentemente:

I. Constitui entendimento pacífico do Tribunal Constitucional que o legislador ordinário goza de liberdade para submeter as ações de impugnação da paternidade a um prazo preclusivo, desde que acautelado o conteúdo essencial dos direitos fundamentais em causa, cabendo-lhe fixar, dentro dos limites constitucionais admitidos pelo respeito pelo princípio da proporcionalidade, o concreto limite temporal de duração desse prazo.

II. Os interesses subjacentes à ação de impugnação da paternidade presumida, diferem consoante estamos perante uma ação negatória da paternidade proposta pela mãe ou pelo presumido pai – em que o direito tutelado é o direito de personalidade de cada um destes - ou uma ação proposta pelo filho - em que o direito protegido é o direito à sua identidade pessoal e ao desenvolvimento da sua personalidade – , sendo, por isso, a necessidade de ponderação e a harmonização de todos estes valores com o interesse público ligado à segurança jurídica e à estabilidade social e familiar que legitima o legislador a fixar prazos razoáveis de caducidade.

III. É que a relação paterno-familiar estabelecida, a confiança e a paz familiar seriam necessariamente postas em crise, se colocadas numa situação de permanente precariedade e incerteza, por sujeita a ser abolida por ação, exercitável a todo o tempo, sem qualquer preclusão, do filho.

IV. Do mesmo modo, tornando-se imprescritível a ação proposta por algum dos progenitores contra o filho, os cônjuges acabariam, de forma manifestamente injustificada, por afetar a confiança que o filho, porventura, tinha depositado, ao longo de muitos anos, na consistência da filiação resultante do registo civil e/ou por poder inviabilizar, na prática, a ulterior propositura pelo filho da ação de reconhecimento judicial da paternidade.

V. A fixação legal de prazos de caducidade para a propositura de ações de impugnação da paternidade presumida, diferenciados por categorias de interessados legitimados, como se prescreve nos artigos 1842.º a 1844.º do CC, desde que tais prazos se mostrem proporcionados ou razoáveis, não ofende o núcleo essencial dos direitos fundamentais à identidade e ao desenvolvimento da personalidade e de constituir família, por via da verdade biológica da geração paterna, quer do dito filho quer do suposto progenitor, garantidos nos termos dos artigos 16.º, n.º 1, 18.º, n.º 2, 26.º, n.º 1 e 3, e 36.º, n.º 1, da Constituição da República.

VI. O prazo geral estabelecido no art. 1842º, nº 1, al. c), 1ª parte, do C. Civil – ou seja, nos 10 anos subsequentes à maioridade ou emancipação – é um prazo razoável e proporcional que não coarta o direito à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade do filho impugnante, no confronto com o princípio da confiança na relação de filiação estabelecida e da tutela da estabilidade e paz familiar, tanto mais que, o mesmo pode ainda beneficiar do prazo especial de 3 anos fixado na 2ª parte desta mesma alínea c)”.

Por fim, não é de todo – não pode ser – irrelevante que a corrente dominante neste Supremo Tribunal de Justiça seja a que defende a não inconstitucionalidade da fixação de prazos para as acções deste tipo.

A tese da não inconstitucionalidade que aqui se propugna assenta, em síntese, nos seguintes fundamentos:

- o direito ao estabelecimento da paternidade biológica não é um direito absoluto, podendo e devendo ser harmonizado adequadamente com outros valores conflituantes;

- um regime de imprescritibilidade conduziria necessariamente a situações indesejáveis de incerteza;

- ao fixar prazos de caducidade para a propositura da acção, o legislador evita que o interesse da segurança jurídica seja posto em causa pelo mero desinteresse do autor;

- não é injustificado nem excessivo onerar o titular do direito com a necessidade de uma iniciativa processual diligente.

Adoptando a premissa da não inconstitucionalidade da norma do artigo 1842.º, n.º 1, al. c), do CC, não há razão para desaplicar a norma e, não havendo razão para desaplicar a norma, não resta senão reiterar a conclusão de que, face à decisão sobre a matéria de facto, e no que toca ao pedido de impugnação da paternidade, a acção foi proposta fora de prazo.

Verifica-se, pois, a excepção peremptória da caducidade, devendo, consequentemente, os dois primeiros réus ser absolvidos do pedido (cfr. artigo 576.º, n.º 3, do CPC).

Quanto ao pedido de investigação da paternidade, dado que, como se disse de início, a procedência depende da prévia procedência do pedido de impugnação da paternidade (cfr. artigo 1848.º, n.º 1, do CC), o seu conhecimento fica prejudicado.


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III. DECISÃO


Pelo exposto, concede-se provimento à revista, revogando-se o Acórdão recorrido e repristinando-se, nos termos expostos, a decisão do Tribunal de 1.ª instância.


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Custas pelo recorrido.



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Catarina Serra (Relatora)

Bernardo Domingos

Rijo Ferreira


Nos termos do artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo DL n.º 20/2020, de 1.05, declaro que o presente Acórdão tem o voto de conformidade dos restantes Exmos. Senhores Juízes Conselheiros que compõem este Colectivo.

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[1] Em favor da não inconstitucionalidade da actual redacção do artigo 1817.º do CC, pronunciaram-se, entre tantos outros, os Acórdãos do Tribunal Constitucional (Plenário) n.º 401/2011, de 22.09.2011, n.º 604/2015 de 26.11.2015, n.º 309/2016, 18.05.2016, n.º 89/2019 de 6.02.2019, n.º 394/2019 (Plenário) de 3.07.2019, n.º 499/2019 de 26.09.2019, ou n.º 173/2019 de 21.10.2019 (todos disponíveis em tribunalconstitucional.pt), e os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 28.05.2015, Proc. 2615/11.2TBBCL.G2.S1, de 22.10.2015, Proc. 1292/09.5TBVVD.G1.S1, de 17.11.2015, Proc. 30/14.5TBVCD.P1.S1, de 23.06.2016, Proc. 1937/15.8T8BCL.S1, de 8.11.2016, Proc. 4704/14.2T8VIS.C1.S1, de 2.02.2017, Proc. 200/11.8TBFVN.C2.S1, de 9.03.2017, Proc. 759/14.8TBSTB.E1.S1, de 4.05.2017, Proc. 2886/12.7TBBCL.G1.S1, de 3.10. 2017, Proc. 737/13.4TBMDL.G1.S1, de 13.03.2018 Proc. 2947/12.2TBVLG.P1.S1, de 3.05.2018. Proc. 158/15.4T8TMR.E1.S1, de 3.05.2018 Proc. 454/13.5TVPRT.P1.S3, de 5.06.2018, Proc. 65/14.8T8FAF.G1.S1, de 12.09. 2019, Proc. 503/18.0T8VNF.G1.S1, de 7.11.2019, Proc. 317/17.5T8GDM.P1.S2, e de 10.12.2019, Proc. 211/17.0T8VLN.G1.S2 (todos disponíveis em dgsi.pt). Refira-se ainda o recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Uniformização de Jurisprudência de 17.09.2020, Proc. 2947/12.2TBVLG.P1.S2 (ainda não transitado em julgado), em que, não cabendo tomar posição sobre a questão, se pressupõe a jurisprudência do Tribunal Constitucional acima referida.
[2] Em favor da inconstitucionalidade da actual redacção do artigo 1817.º do CC, pronunciaram-se, por exemplo, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 488/2018 de 4.10.2018 (disponível em tribunalconstitucional.pt), e os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 14.01.2014, Proc. 155/12.1TBVLC-A.P1.S1, de 15.02.2018, Proc. 2344/15.8T8BCL.G1.S2, de 31.03.2017, Proc. 440/12.2TBBCL.G1.S1, de 6.11.2018, Proc. 1885/16.4T8MTR.E1.S2, e de 14.05.2019, Proc. 1731/16.9T8CSC.L1.S1 (todos disponíveis em dgsi.pt).
[3] Disponível em tribunalconstitucional.pt
[4] Disponível em dgsi.pt.