Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07P1031
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SANTOS CARVALHO
Descritores: CRIME CONTINUADO
TRATO SUCESSIVO
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
Nº do Documento: SJ200703290010315
Data do Acordão: 03/29/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEITADO O RECURSO
Sumário :
I - O recorrente não veio questionar o enquadramento jurídico dos factos, que o tribunal recorrido integrou num crime de abuso sexual de crianças, na forma continuada, p.p. pelos artigos 30.º e 172º, n.º 2 do Código Penal. Mas, mais correcto teria sido considerar os vários actos criminosos apurados como constituindo um único crime de trato sucessivo e não como um crime continuado.
II - No crime continuado há uma diminuição de culpa à medida que se reitera a conduta, mas não se vê que tal diminuição exista no caso do abuso sexual de criança por actos que se sucedem no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da culpa parece aumentar à medida que os actos se repetem.
III - Não podendo este Supremo corrigir “in pejus” a qualificação jurídica do colectivo relativo à existência de um crime continuado, pois o recurso é do arguido e em seu benefício, deve ficar, no entanto, o reparo.*

*Sumário elaborado pelo relator
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. A foi julgado no Tribunal Colectivo de Benavente e, por Acórdão de 9 de Novembro de 2006, foi decidido condená-lo pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, na forma continuada, p.p. pelos art.ºs 30.º e 172.º, n.º 2 do CP, na pena de 5 (anos) anos e 6 (seis) meses de prisão.

2. Do acórdão condenatório recorre o arguido para este Supremo Tribunal de Justiça e, da sua motivação, retira as seguintes conclusões:
1. O arguido vive com a mãe de B, trabalha à jorna, e aufere cerca de 600 euros mensais.
2. Vive em casa arrendada pagando 110 euros mensais de renda.
3. Tem 4 filhos com 8, 4, 6 e 2 anos,
4. Encontra-se socialmente integrado sendo o único sustento da casa.
5. Atendendo aos factos supram referidos e dados como provados no acórdão de que se recorre, e à motivação da matéria de facto, tal pena deveria ter sido fixada em três anos de prisão, em atenção ao disposto no artigo 71º do Código Penal;
6. Por outro lado, verificam-se os pressupostos a que alude o artigo 50º, n.º 1 do Código Penal, pelo que deverá a pena ser suspensa na sua execução pelo período de cinco anos.
Pelo que, dando provimento ao recurso, V. Ex.as, fazendo como sempre a melhor e mais equilibrada Justiça, devem substituir a pena aplicada em primeira instância, condenando o arguido na pena de três anos de prisão e suspendendo a execução da mesma pelo período de cinco anos, bem como na pena acessória de não contacto com a ofendida.

3. O M.º P.º na 1ª instância respondeu ao recurso, pronunciando-se no sentido do seu não provimento.
A Excm.º P.G.A. neste Supremo requereu a audiência para aí alegar oralmente.
Porém, o relator considerou que o recurso era manifestamente improcedente, pelo que o mandou à conferência.

4. Colhidos os vistos e realizada a conferência com o formalismo legal, cumpre decidir.

A única questão em debate é a de saber se a pena deve ser reduzida para 3 anos de prisão e suspensa na sua execução, ainda que sob condições.

Os factos provados são os seguintes:
1. B, nasceu em 29.10.91 e é filha de C e de D;
2. Desde data não determinada em concreto, mas pelo menos, desde 1993, o arguido e a mãe de B vivem maritalmente, entre si;
3. B, passou a viver, conjuntamente com a sua mãe e o arguido, tendo, inicialmente, residido todos em Ponte de Sôr;
4. No ano de 1997 ou 1998, o arguido, a mãe da B e esta, passaram a residir em Abrantes, onde permaneceram até ao ano de 2000, altura em que passaram a residir em Vila Nova de Ródão, com mais uma irmã de B, filha da mãe desta e do arguido;
5. A partir de 2002, o arguido e a companheira, passaram a residir em Salvaterra de Magos, conjuntamente com a B e mais duas irmãs desta, filhas do arguido e da sua companheira;
6. Durante período de tempo não determinado em concreto, mas, pelo menos desde 1998 e até Fevereiro de 2004, com regularidade não determinada em concreto, mas pelo menos, uma vez por semana, que o arguido, durante a noite, dirigia-se ao quarto onde dormia a B;
7. Aí, o arguido, depois de acordar a B, nas vezes em que esta já estava a dormir, destapava-a, retirava-lhe as cuecas e depois de se despir, deitava-se em cima dela;
8. De seguida, o arguido introduzia o seu pénis erecto na vagina da B, até ejacular;
9. Por vezes, enquanto praticava esses actos, o arguido tapava a boca a B para que a mesma não gritasse e acariciava os seus seios e apalpava diversas partes do corpo de B;
10. Em Fevereiro de 2004, por decisão do Tribunal de família e Menores de Vila Franca de Xira, a B passou a residir com E, passando apenas os fins-de-semana, em casa do arguido, o que aconteceu até ao Verão desse ano;
11. Nesse período, pelo menos, por duas vezes, o arguido, dirigiu-se a B, despiu-lhe as cuecas, apalpou o seu corpo e depois de se deitar em cima dela, introduziu o pénis erecto na vagina de B até ejacular;
12. Nas situações referidas em 7 a 9 e 11, o arguido dizia sempre a B para não contar a ninguém o que lhe fazia;
13. Nessas situações, por vezes, a B tinha dores;
14. O arguido não ignorava a idade da B, não só a real, mas aparente, inferior a 14 anos;
15. O arguido actuou livre, deliberada e conscientemente, com o intuito de satisfazer os seus instintos sexuais, propósito que foi renovado, durante o período em que foi concretizando os actos supra referidos, aproveitando-se do fácil contacto que mantinha com B e do ascendente que mantinha sobre a mesma;
16. O arguido sabia que o seu comportamento era punido e proibido por lei;
17. O arguido vive com a mãe de B, trabalha à jorna, declarando auferir cerca de 600 Euros mensais;
18. Vive em casa arrendada, declarando pagar 110 Euros mensais de renda;
19. Tem 4 filhos com 8, 6, 4 e 2 anos respectivamente, que se encontram, todos, à guarda de uma instituição;
20. O arguido já foi julgado e condenado nos seguintes processos:
- Nº 439/99, do 1º Juízo do Tribunal de Santarém, por decisão de 29.07.99, na pena de 100 dias de multa, pelo crime de condução sem habilitação legal para o efeito, praticado em 28.07.99;
- Nº 289/00, do Tribunal de Estremoz, por decisão de 15.12.00, na pena de 200 dias de multa, pelo crime de condução sem habilitação legal para o efeito, praticado em 06.12.00;
- Nº 11/01, do 1º Juízo do Tribunal de Abrantes, por decisão de 23.05.01, na pena de 130 dias de multa, pelo crime de condução sem habilitação legal para o efeito, praticado em 18.09.00;
- Nº 432/00, do 1º Juízo do Tribunal de Abrantes, por decisão de 23.05.01, na pena de 130 dias de multa, pelo crime de condução sem habilitação legal para o efeito, praticado em 18.09.00;
- Nº 92/01, do 3º Juízo do Tribunal de Abrantes, por decisão de 03.07.01, na pena de 8 meses de prisão, suspensa na sua execução, pelo crime de condução sem habilitação legal para o efeito, praticado em 19.05.01;
- Nº 69/04, do Tribunal da Golegã, por decisão de 07.10.05, na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos, pelo crime de condução sem habilitação legal para o efeito, praticado em 03.07.93.

Estes factos não contêm nenhum dos vícios a que se reporta o art.º 410.º, n.º 2, do CPP, pelo que se devem considerar definitivamente adquiridos.
O recorrente não veio questionar o enquadramento jurídico dos mesmos, que o tribunal recorrido integrou num crime de abuso sexual de crianças, na forma continuada, p.p. pelos artigos 30.º e 172º, n.º 2 do Código Penal (embora, por manifesto erro material ou de escrita, no dispositivo do acórdão recorrido esteja o n.º 1 do art.º 172.º).
Mas, mais correcto teria sido considerar os vários actos criminosos apurados como constituindo um único crime de trato sucessivo e não como um crime continuado. No crime continuado há uma diminuição de culpa à medida que se reitera a conduta, mas não se vê que tal diminuição exista no caso do abuso sexual de criança por actos que se sucedem no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da culpa parece aumentar à medida que os actos se repetem.
Não podendo este Supremo corrigir “in pejus” a qualificação jurídica do colectivo relativo à existência de um crime continuado, pois o recurso é do arguido e em seu benefício, deve ficar, no entanto, o reparo.

Quanto à medida da pena, disse o tribunal recorrido:
O crime de abuso sexual de criança, p.p. pelo art.º 172º, nº 2 do CP é punível com pena de prisão de 3 a 10 anos.
A determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção de futuros crimes, não podendo, nunca, a mesma ser superior à culpa do agente, atento o princípio da dignidade da pessoa humana (cfr. art.º 1º CRP).
Assim, na dosimetria da pena valorar-se-ão o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, a intensidade do dolo do agente, as suas condições pessoais, a sua conduta anterior e posterior ao facto, as exigências de prevenção e todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente (cfr. art.º 71º CP).
No caso concreto, depõe contra o arguido, o dolo na modalidade de directo e que se tem por intenso, bem como a gravidade da ilicitude dos seus actos – desfloramento de B, o que necessariamente lhe acarretou dores; a idade da B, à data dos factos com idade compreendida entre os 7 e 13 anos, que dada a convivência que mantinha com o arguido, a quem tratava como pai, confiava no mesmo, tendo “traído” essa mesma relação de confiança da menor. Depõe ainda contra o arguido o número de vezes, que em concreto praticou os factos com a B (pelo menos um vez por semana durante quase 7 anos), assim como a intimidação que sobre a mesma exerceu para que não contasse nada a ninguém e assim pudesse continuar a praticar tais actos.
As necessidades de reprovação e da prevenção geral e especial são acentuadas, uma vez que, estes comportamentos horrorizam uma sã consciência moral e como tal têm grande dimensão a nível do alarme social e têm efeitos altamente perversos e destrutivos nas próprias crianças, no seu desenvolvimento emocional e psíquico.
Mostra-se necessária também uma dissuasão individual sem a qual se não conseguirá uma verdadeira dissuasão comunitária.
Não se vislumbram circunstâncias que deponham a favor do arguido, tendo apenas de se ponderar que a B e os seus filhos, já não estão sob a sua guarda e tutela e que os antecedentes criminais que o mesmo tem, não se relacionam com este tipo de ilícito.
Desta forma, atento o grau muito acentuado da culpa, e as acentuadas exigências de prevenção, reputa-se adequada e proporcional aplicar ao arguido a pena de prisão de 5 anos e 6 meses.

Ora, o nosso acordo é total quanto a estas considerações.
O recorrente, durante mais de 6 anos, com uma regularidade não determinada em concreto, mas pelo menos uma vez por semana, penetrou a vagina da menor, filha da sua companheira, até ejacular, tendo aquela uma idade compreendida entre os 7 e os 13 anos de idade.
Quer isto dizer que o recorrente por mais de 300 vezes (!) praticou actos susceptíveis de integrar o ilícito criminal. Deve ser punido com a pena correspondente ao acto mais grave (art.º 79.º do CP), mas o número de factos e o tempo decorrido não podem deixar de constituir fortes agravantes da ilicitude, embora de natureza geral.
Também a circunstância de ser o “padrasto” da menor, embora numa situação meramente de facto, não deixa de constituir uma outra severa agravante da ilicitude, pois se a situação estivesse legalizada – e o recorrente e a mãe da menor viveram em união de facto por mais de 10 anos e tiveram 3 filhas – a pena seria agravada em um terço nos seus limites mínimo e máximo (art.º 177.º, n.º 1-a, do CP). A agravação neste caso faz-se, não assim, mas nos termos gerais, dentro da moldura abstracta do tipo configurada no art.º 172.º, n.º 2.
A favor do arguido temos apenas a sua humilde condição social e o facto de trabalhar e de viver com a mãe da menor, em aparente estabilidade. Mas o facto da menor e das outras filhas do recorrente já não viverem consigo, mas institucionalizadas, embora constitua uma situação factual que dificulta o seu contacto imediato com as ditas menores, em nada abona o seu comportamento e a sua personalidade, bem pelo contrário, pois só demonstra que as crianças estavam em risco se permanecessem junto do seu contacto, como parece bem evidente.
O dolo do recorrente foi muito intenso e os seus actos podem ter molestado para sempre a menor, no corpo e no espírito, pois a mesma durante tantos anos viveu subjugada à lascívia de um padrasto que não soube respeitar a intimidade e a pureza infantis.
A pena de 5 anos e 6 meses mostra-se perfeitamente ajustada às necessidades de prevenção geral e especial e ao grau de culpa, pecando até por excesso de benevolência.
Termos em que o recurso é manifestamente improcedente.

7. Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em conceder rejeitar o recurso por ser manifestamente improcedente, mas não se deixa de mandar corrigir o apontado erro material da decisão recorrida, pois o crime cometido pelo arguido é o p.p. pelos art.ºs 30.º e 172.º, n.º 2, do Código Penal.
Fixam-se em 6 UC a taxa de justiça a cargo do recorrente, com metade de procuradoria.
Nos termos do art.º 420.º, n.º 4, do CPP, o recorrente pagará ainda uma soma correspondente a 6 UC.
Notifique.

Supremo Tribunal de Justiça, 29 de Março de 2007

Santos Carvalho (relator)
Costa Mortágua
Rodrigues da Costa