Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
209/06.3TVPRT.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: GREGÓRIO SILVA JESUS
Descritores: RESPONSABILIDADE MÉDICA
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
SEGURADORA
MÉDICO
ACTO MÉDICO
OBRIGAÇÃO DE MEIOS E DE RESULTADOS
FACTOS NOTÓRIOS
ÓNUS DA PROVA
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
CULPA
PRESUNÇÃO DE CULPA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 12/15/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário : I - No que toca à responsabilidade civil médica, não prevê a lei casos de responsabilidade objectiva ou de responsabilidade por factos lícitos danosos, tão só admite a responsabilidade contratual e a extracontratual ou aquiliana.

II - Tendo-se o autor apresentado aos réus médicos a coberto de um contrato de seguro celebrado pela sua entidade patronal e tendo estes actuado no âmbito de um contrato de prestação de serviços médico-cirúrgicos, previsto no art. 1154.º do CC, que mantinham com a seguradora, o conteúdo da relação estabelecida entre o autor e os médicos está impressivamente contratualizado, encontrando-se no domínio da responsabilidade civil contratual.

III - Se é inquestionável que a execução de um contrato de prestação de serviços médicos pode implicar para o médico uma obrigação de meios ou uma obrigação de resultado, o corrente na prática é o acto médico envolver da parte do médico, enquanto prestador de serviços que apelam à sua diligência e ciência profissionais, a assunção de obrigação de meios. Em regra, o médico a só isto se obriga, apenas se compromete a proporcionar cuidados conforme as leges artis e os seus conhecimentos pessoais, somente se vincula a prestar assistência mediante uma série de cuidados ou tratamentos normalmente exigíveis com o intuito de curar.

IV - Importa ponderar a natureza e objectivo do acto médico para, casuisticamente, saber se se está perante uma obrigação de meios ou perante uma obrigação de resultado.

V - Assente que o autor foi submetido a intervenção cirúrgica à coluna e nada mais se tendo provado que ajude a qualificar com precisão a obrigação, desconhecendo-se como surgiu a opção da sua submissão à intervenção cirúrgica, por iniciativa de quem, qual o objectivo da operação, que tipo de compromisso médico foi assumido, se é que tal aconteceu, nomeadamente com algum comprometimento de resultado e qual, se foi informado dos riscos inerentes, resta então ser notório que, por regra, no caso de intervenções cirúrgicas, e muito particularmente nas intervenções à coluna, não se assegura a cura mas a procura da atenuação do sofrimento do doente, estando cometida ao médico cirurgião uma obrigação de meios.

VI - Sempre que se trate de uma mera obrigação de meios, que não de uma obrigação de resultado, incumbe ao doente o ónus de provar a falta de diligência do médico.

VII - Tem o paciente/lesado de provar o defeito de cumprimento, porque o não cumprimento da obrigação do médico assume, por via de regra, a forma de cumprimento defeituoso, e depois tem ainda de demonstrar que o médico não praticou todos os actos normalmente tidos por necessários para alcançar a finalidade desejada.

VIII - Feita essa prova, então, funciona a presunção de culpa, que o médico pode ilidir demonstrando que agiu correctamente, provando que a desconformidade não se deveu a culpa sua por ter utilizado as técnicas e regras de arte adequadas ou por não ter podido empregar os meios adequados.

IX - Em termos gerais, ponto comum à responsabilidade contratual e à responsabilidade extracontratual, ter o médico agido culposamente significa ter o mesmo agido de tal forma que a sua conduta lhe deva ser pessoalmente censurada e reprovada, pois em face das circunstâncias concretas do caso, o médico devia e podia ter actuado de modo diferente.
Decisão Texto Integral:    Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

        I – RELATÓRIO

AA, residente no Lugar de Rossio, Vale de Cambra, intentou a presente acção declarativa, com processo comum ordinário, demandando o Hospital de Santa Maria do Porto, com sede na Rua de C..., nº ..., P..., e os Drs. BB e CC, médicos neste hospital, pedindo que sejam solidariamente condenados a pagar-lhe, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, a quantia já liquidada de 413.496,28€, e a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença pelos danos futuros previsíveis, designadamente, dores físicas, sofrimentos, tratamentos, intervenções cirúrgicas, assistência médica e medicamentosa, internamentos, deslocações, estadias, incapacidade permanente e consequências definitivas, bem como juros calculados à tDD legal, a contar da citação até integral pagamento.

Para o efeito alega que, na sequência de acidente de trabalho de que foi vítima em 7 de Novembro de 2001, que lhe causou lesões a nível da coluna, veio a ser operado pelo réu BB, no Hospital de Santa Maria do Porto, tendo a intervenção cirúrgica sido mal executada, por negligência manifesta do operador, que atingiu centros herniáticos e nervosos que não se mostravam lesados antes da intervenção, o que teve como consequência o agravamento substancial do seu estado, com dores e limitações cada vez mais intensas.

Submetido a segunda intervenção cirúrgica, realizada pelos réus BB e CC, novamente no Hospital de Santa Maria do Porto, para corrigir as sequelas da primeira, foi executada de forma ainda mais negligente que aquela, com o agravamento substancial do seu estado de saúde.

Passou a padecer de males e dores que descreve de forma exaustiva, decorrente de erro grave nas referidas operações, consequência directa de fracturas dos discos e dos nervos ocorridas aquando e por causa das intervenções cirúrgicas a que foi submetido.

Computa os danos não patrimoniais na quantia de 150.000,00€, o acompanhamento permanente de terceira pessoa, até aos seus 70 anos, em 114.000,00€, a indemnização pela perda do rendimento derivado do trabalho em 139.496,28€, a quantia necessária para adaptar a casa de habitação ao seu uso em 10.000,00€; mais alega que os médicos em causa trabalhavam ao serviço e na dependência do Hospital de Santa Maria do Porto, pelo que devem os três ser condenados de forma solidária.

Citados, contestaram os réus. O Hospital de Santa Maria, impugnando parcialmente os factos alegados pelo autor, afirma que tem com os dois médicos apenas contratos de prestação de serviços para internamento e cirurgia, prestando ainda um serviço de hotelaria que contrata, cedendo o espaço e entregando o material médico-cirúrgico necessário às operações realizadas, não havendo qualquer relação de comitente-comissário com os médicos que operaram o autor, nem estes actuaram sob as suas ordens e direcção, não fazendo parte dos seus quadros, pelo que nenhuma responsabilidade lhe pode ser assacada, terminando a pedir a sua absolvição da instância ou do pedido.

Os réus BB e CC, impugnando parcialmente os factos alegados pelo autor, afirmam que agiram em total conformidade com as “leges artis” aplicáveis que explicam, não lhes sendo imputável qualquer erro ou facto negligente por acção ou omissão.

Referem que as queixas do autor não têm correspondência com o seu estado clínico real, negam a existência de qualquer nexo causal entre a sua actuação e alguns dos danos que o autor reclama, que já terá sido indemnizado pela seguradora do trabalho judicialmente demandada tentando nesta acção locupletar-se com algo a que não tem direito, sendo exagerados os montantes que peticiona.

Concluindo pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido, deduzem reconvenção pedindo que o autor seja condenado a pagar a cada um deles, a título de danos não patrimoniais, a quantia de 25.000,00€, acrescida dos respectivos juros de mora à taxa legal desde a sua notificação para a reconvenção, bem como na quantia que a título de danos patrimoniais se vier a apurar em liquidação de sentença, pedido que sustentam na alegação de que, sendo médicos reputados na sua especialidade, com admiração e reconhecimento não só dos seus pares como de pacientes que têm assistido, se sentiram ofendidos na sua imagem e integridade profissional e moral com a falsa imputação de factos graves que lhes foi feita pelo autor, com eventual diminuição ou perda de clientela que não podem ainda computar neste momento.

O autor replicou mantendo o alegado e concluindo como na petição inicial, respondendo à factualidade alegada a sustentar o pedido reconvencional, por cuja improcedência pugna, e quanto ao réu Hospital sustenta a sua legitimidade, considerando-o responsável pelas ocorrências anómalas, ilícitas e abusivas das pessoas que contrata e tem ao seu serviço e pelos danos que advenham aos utentes daqueles serviços, alegando que os réus eram médicos cirurgiões ao serviço subordinado do réu Hospital, que lhes pagava os serviços por estes executados naquela unidade hospitalar.

No despacho saneador julgou-se infundada a excepção de ilegitimidade invocada pelo Hospital de Santa Maria do Porto e procedeu-se à selecção da matéria de facto que não foi alvo de reclamação.

Posteriormente, o autor requereu a ampliação do pedido relativamente aos tratamentos a que continuou a ser sujeito após a proposição da acção, no montante de 1.233,20€, acrescido de juros (fls. 543 a 679), admitida mas impugnada pelos réus, passando os respectivos factos a constar da base instrutória (fls. 704).

Realizada a audiência de discussão e julgamento, fixada, sem reparos, a matéria de facto, foi proferida sentença julgando a acção e reconvenção improcedentes e, consequentemente, absolvendo réus e autor de todo o peticionado.

Inconformado, apelou o autor, não logrando êxito. Por acórdão de 3/03/11, a Relação do Porto, por unanimidade, confirmou a sentença recorrida.

Mantendo o seu inconformismo, recorre para este Supremo Tribunal de Justiça, e, alegando, formula as seguintes conclusões:

1ª - O contrato de seguro celebrado entre a entidade patronal e a Companhia e entre esta e qualquer instituição hospitalar e/ou médicos tem obviamente reflexos na própria relação que acaba por se estabelecer entre o sinistrado e os médicos - neste sentido Ac. do STJ, de 27.11.2007, disponível em www.dgsi.pt, aplicável mutatis mutandi.

2ª - Do exposto resulta que, em situações como a dos Autos, há efectivamente que se concluir ser contratual a responsabilidade a imputar aos médicos, por força da relação contratual estabelecida entre os demais "intervenientes", a saber e in casu, a entidade patronal do Autor, a DD, o Hospital de Santa Maria e os Réus médicos.

3ª - Sendo essa responsabilidade contratual, como é, demonstrando-se a existência de danos - como se demonstraram e ficaram provados - existe a presunção de que a prestação do médico foi incorrectamente efectuada - neste sentido Ac. STJ de 07.10.2010.

4ª - No caso em apreço, não há dúvida que os Réus médicos que operaram por duas vezes o A. eram (e são) médicos especialistas, são até ortopedistas que (segundo foi referido em audiência por alguns dos seus pares) são conceituados no meio médico. Assim, a finalidade a que se propuseram aquando das intervenções - que era, afinal, a de reduzir o quadro álgico que o Autor então apresentava - não se verificou, pois que o aludido quadro não apresentou melhorias.

5ª - Aliás, sempre se dirá que esta solução será sempre a mais ajustada e correcta face quer à difícil ou quase impossível alegação por parte de um lesado do efectivo erro ou incumprimento do médico, pois que um normal lesado (partindo do princípio que este também não seja médico) jamais teria conhecimentos suficientes para o efeito, quer à posterior enormíssima dificuldade da prova, perante as eventuais "conspirações do silêncio " em sede probatória, muito comuns neste tipo de situações (assim o diz, e com todo o respeito, subscreve-se o Acórdão supra citado). De facto, se há classe em que os seus membros se "protegem" mutuamente, é sabido que essa classe é a classe dos médicos.

6ª - Competia aos médicos RR. demonstrar que as lesões que o Autor apresenta, posteriores às cirurgias realizadas, não procedem de culpa sua (assim ilidindo a presunção de culpa que sobre eles incide). O que não fizeram. E não basta para o efeito mencionar, como vem dito na sentença de 1ª Instância e confirmado na 2ª, que qualquer intervenção comporta um risco, e neste caso em concreto, o processo de fibrose de que o Autor foi alvo e que será a causa das suas dores e lesões, é um processo que acontece com regularidade e que é impossível de prever como cada corpo humano irá reagir a um corte, de onde decorrerá a cicatrização e fibrose.

7ª - Na verdade, e como superiormente já foi igualmente decidido por esta instância "Ao médico compete, por isso, em termos de responsabilidade contratual, o ónus da prova de que o resultado não cumprido ou cumprido defeituosamente não procede de culpa sua, tal como o impõe o n° 1 do art 799° do CCivil. Ao médico não basta, para cumprir esse ónus, a prova de que o tipo de intervenção efectuada importa um determinado risco (eventualmente aceite pelo paciente); é necessário fazer a prova de que a sua conduta profissional, o seu rigoroso cumprimento das "leges artis ", foi de molde a poder colocar-se o concreto resultado dentro da margem de risco considerado e não dentro da percentagem em que normalmente a intervenção teria êxito " — Ac. do STJ, de 17.12.2009

8ª - Tal ónus probatório não foi cumprido pelos Réus médicos, pelo que não conseguiram ilidir a presunção de culpa que sobre eles impende.

9ª - No caso aqui em apreço, também resulta da prova produzida que as intervenções a que foi submetido o Autor são operações que se fazem às centenas todos os dias. Assim, a prova da primeira aparência tem de contar. Se após as cirurgias não se consegue alcançar o resultado previsto e que motivou a realização das mesmas, "é lógico pensar que a actuação médica foi incorrecta".

10ª - Face à solução do litígio encontrada pelo Tribunal de 1ª Instância e confirmada pela Relação, estas acabaram por não se pronunciar quanto à extensão dos danos sofridos pelo Autor e respectivo ressarcimento.

11ª - Assim sendo, na procedência do recurso e consequente condenação dos RR, deverão os Autos baixar à Relação para aí ser fixada a indemnização devida ao Autor, o que deverá ser feito tendo em conta o que resulta dos pontos da sentença sob os números 3, 4, 6, 7, 8, 10, 11, 13, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 27, 28, 29, 30, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 40, 41, 42, 43, 45, 46, 47, 49, 50, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 66, 67, 68, 69, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 82, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 103, 104, 105, 106, 107, 108, 109 e 110.

12ª - O Acórdão recorrido violou o disposto nos art°s 341°, 342°, 798° e 799°, n°s 1 e 2 do Cód. Civil, dos quais fez uma errada interpretação e/ou (in) aplicação.

Os recorridos ofereceram contra – alegações pugnando pela manutenção do Acórdão impugnado.

            Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

        ªª

As conclusões do recorrente – balizas delimitadoras do objecto do recurso (arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Código de Processo Civil[2]  – doravante CPC) – consubstanciam as seguintes questões:

a) Se a responsabilidade civil médica em causa é de natureza contratual;

b) Se competia aos réus médicos demonstrar que as lesões que o autor apresenta, posteriores às cirurgias realizadas, não procedem de culpa sua;

c) Fixação da indemnização devida.

         ªª

                                                              


I I – FUNDAMENTAÇÃO

 DE FACTO

As instâncias consideraram provada a seguinte matéria de facto:

Constantes da matéria de facto assente:

1) Em 7 de Novembro de 2001, o A. foi vítima de acidente de trabalho, que ocorreu quando carregava um contentor e que, tendo em consideração a posição em que se encontrava, obrigou-o a um esforço mais acentuado, que lhe causou lesões graves a nível da coluna.

2) No exame radiográfico que o A. fez, em 19/11/2001, foi-lhe diagnosticado:

… Irregularidade com módulos de Schmor nas plataformas articulares dos corpos vertebrais, especialmente de L2 e L3;

… Ligeiro desvio escoliótico lombar dextro convexo rotacional;

… Acentuação da angulação lombo-sagrada.

3) Entretanto fora orientado para consulta de ortopedia com o Dr. EE, no Centro Médico da Praça, o qual disse tratar-se de uma Alombalgia de Esforço, mandando-o fazer 10 sessões de fisioterapia.

4) O A. entregou o exame referido em B), acompanhado de relatório respectivo, ao Dr. EE, que continuou a entender que se tratava de uma Alombalgia de esforço e o mandou fazer mais 10 sessões de fisioterapia.

5) A 7/12/2001, o A. dirigiu-se ao Dr. EE, que lhe deu uma carta para entregar à entidade patronal, no dia 13/12, carta essa que o A. leu e de onde se colhia que lhe era dada alta, com a indicação de que podia retomar o trabalho.

6) A 17/01/2002, o A., a fim de ser submetido a intervenção cirúrgica, foi internado, pelas 8h44m, nas instalações do R. Hospital de Santa Maria, com o diagnóstico operatório de Hérnia discal L5 - S1 esq, tendo-lhe sido efectuada essa cirurgia.

7) Após a intervenção, o A. esteve internado no Hospital de Santa Maria desde 17/01/2002 até 28/01/2002,num total de 12 dias.

8) Apresentava-se muito queixoso, com dores insuportáveis na perna esquerda e localizada na raiz S1 esq., padecia de parestesias frequentes, apresentava hipertemia e foi medicado, de forma intensa e amiudadas vezes, devido ao sofrimento de que padecia, apresentando graves dificuldades em deambular pelos seus próprios meios.

9) A 28/01/2002 foi-lhe dada alta hospitalar, sendo remetido para o domicílio.

10) Passando a ser acompanhado em regime ambulatório, de consultas e tratamentos externos, no Centro Hospitalar de S. Francisco, SA, nas instalações da DD no Campo Alegre, Porto e, por último, no Hospital de Santa Maria no Porto.

11) Entretanto, remeteram o A. para as consultas de fisioterapia, durante cerca de 3 meses, continuando este, no entanto, a ser acompanhado em consultas, no Centro Hospitalar da DD, no Campo Alegre e no Hospital de Santa Maria, até ao início de Abril de 2002.

12) Durante este período pretenderam dar-lhe alta.

13) O A. decidiu, então, submeter-se a um TAC da Coluna Lombar, de cujo relatório resulta:

… Em L5 - S1, espaço intervencionado (laminectomia esquerda), observa-se tecido fibro-cicatricial ocupando a vertente lateral esquerda do canal e ainda o recesso homolateral, não sendo possível individualizar correctamente a raiz residente (S1 esquerda);

... Coexiste protusão discal postero-lateral esquerda, que se estende na parte alta do recesso e, aparentemente, a condicionar (nas imagens com contraste) posição mais posterior da raiz S1 esquerda;

… Em L3 - L4 e L4 - L5, onde o canal tem dimensões menos amplas, mas normais, os discos invertebrais ultrapassam ligeiramente o limite posterior das plataformas, mas não tem repercussão significativa sobre as estruturas nervosas no canal ou nos foramina;

… Módulos do Schmorl nas plataformas vertebrais de L4;

… Discretos sinais degenerativos das articulações posteriores em L5 - S1.

14) Analisado o Relatório do Dr. FF pelo Dr. GG este escreveu uma carta para que o Autor entregasse na Companhia, carta essa que, juntamente com uma outra do Fisioterapeuta, o Autor levou aos Serviços Clínicos da Seguradora, e entregou ao Réu Dr. CC.

15) O Dr. CC designou data para a realização de um exame de ressonância magnética, que foi feito no Laboratório de Radioterapia do Dr. P... L... e cujos resultados foram enviados aos Serviços Clínicos da Seguradora, sendo presentes ao R. Dr. CC.

16) Foi marcada ao A. nova consulta para o R. Dr. BB, que, considerando o estado do A., que não conseguia movimentar-se a não ser em canadianas, decidiu submetê-lo a um exame de electromiografia.

17) O relatório da electromiografia foi remetido aos Serviços Clínicos da Seguradora DD, à ordem de quem vinha a ser tratado e, em nova consulta com o R. Dr. CC, este decidiu, face ao teor do relatório, submeter o A. a nova intervenção cirúrgica, que marcou para o dia 27/06/2002.

18) A 27/06/2002 o A. foi internado novamente no Hospital de Santa Maria no Porto e aí submetido a nova intervenção cirúrgica.

19) Dois dias após a intervenção cirúrgica, os RR. Drs. CC e BB, deram alta hospitalar ao A. e remeteram-no para o domicílio.

20) A 26/08/2002 o A. foi submetido a novo exame de ressonância magnética, seguido de consulta com medicação imediata, a que se seguiram múltiplas consultas, até que, a 15/10/2002, lhe marcaram novo exame de electromiografia.

21) O A. continuou a ser submetido a tratamentos de fisioterapia e recuperação funcional, o que aconteceu entre 19/09 e 26/09/2002.

22) O R. Dr. BB marcou, ao A., uma consulta para o Dr. II, em 24/10/2002.

23) A 31/10/2002, o A. voltou à consulta do R. Dr. BB que decidiu dar-lhe alta.

24) A 05/11/2002 o A. voltou ao R. Dr. CC, que lhe marcou novo exame de ressonância magnética para o dia 08/11/2002 e outra consulta para 12/11/2002.

25) Nessa mesma data o R. Dr. CC considerou o A. afectado de ITA desde 04/11/2002.

26) A 12/11/2002 foi-lhe novamente dada alta.

27) Em TAC efectuado à Coluna Lombar a 18/12/2002, verificou-se que:

… Havia sinais de intervenção cirúrgica em L5 - S1 à esquerda (hemilaminectomia);

… Presença de pequeno componente herniário recidivado com fenómenos de fibrose residual pós-cirúrgica;

… Alterações que condicionam ainda envolvimento e compromisso da raiz S1 esquerda;

… Saliência difusa com rectificação no contorno posterior do disco intervertebral L4 - L5, sem característica herniária;

… Pequena imagem lacunar centro-somática de bordos densos que se projecta a nível da plataforma superior e justa-discal do corpo L4, em provável relação com sequela de hérnia intra-esponjosa.

28) O A. continuou a fazer tratamentos de fisioterapia e recuperação funcional por prescrição médica.

29) Entre 10/12/2002 e 09/01/2003, o A. recorreu à consulta do Dr. HH, que o mandou fazer um TAC, diagnóstico também dado pelo Dr. JJ.

30) Em 22/01/2003, o A. dirigiu-se à DD com TAC que deixou ali, pedindo que lhe dessem uma consulta, tendo-lhe sido marcada a mesma para o dia 23/01/2003, com o R. Dr. BB, sendo que, quem o atendeu, no dia 23/01/2003, foi o Dr. HH.

31) O Dr. HH disse ao A. que teria de ser submetido a nova intervenção cirúrgica e, posteriormente, mandou-o para a consulta da dor nos serviços do R. Hospital de Santa Maria.

32) Na sentença proferida no processo que correu termos no Tribunal de Trabalho em virtude do acidente de trabalho de que o A. foi vítima, consta que foi atribuída ao A. pela Junta Médica, uma incapacidade parcial permanente de 34,38% para trabalho compatível, sem necessidade do auxílio constante de terceira pessoa.

Resultantes das respostas dadas à base instrutória:

33) Após o acidente referido em A), o A. foi conduzido ao Hospital Distrital de S. João da Madeira, onde foi submetido a um exame radiográfico à coluna.

34) Após o que foi conduzido ao Centro Médico da Praça em São João da Madeira, onde apresentou o exame radiográfico.

35) Aí foi medicado para aliviar as dores e marcada consulta para a semana seguinte.

36) O autor fez um exame radiográfico à coluna, em 19/11//2001 no Gabinete Radiográfico de G... de P... .

37) O Autor dirigiu-se ao Dr. EE, em 07/12/2001.

38) O Autor, ainda nesse dia 07/11/2001[3], foi a um médico particular onde acabaram por lhe agendar consulta para o dia 10/12/2001.

39) Na consulta de 10/12/2001, o médico que o examinou, diagnosticou-lhe uma hérnia lombar, fez-lhe um relatório do seu estado, e mandou-o dirigir-se à Companhia Seguradora, por acidentes de trabalho, DD.

40) O que o Autor fez de imediato, tendo-se dirigido aos Serviços Clínicos da Companhia no Campo Alegre no Porto, onde foi atendido, tendo-lhe sido marcado um exame de Ressonância Magnética para o dia 18/12/01 e uma consulta para o dia 31/12/01.

41) O Autor fez o exame de Ressonância Magnética no Laboratório do Dr. P... L..., que enviou os resultados aos Serviços Clínicos da Seguradora DD.

42) A 31/12/01 o Autor compareceu à consulta que se encontrava marcada.

43) Aí, face ao teor do relatório da Ressonância Magnética, marcaram de imediato o dia 17/01/2002 para intervenção cirúrgica à coluna.

44) A cirurgia referida em F)[4] foi efectuada pelo Dr. CC, com a ajuda do Dr. BB.

45) O que se refere em J)[5] era feito, face à impossibilidade de o Autor caminhar pelos seus próprios meios, em transporte dos Bombeiros, primeiro através de maca, depois cadeira de rodas e, por último, movimentando-se com dificuldade, com o apoio de duas canadianas.

46) O Autor, porque padecia de dores intensas e limitações, não aceitou a alta que lhe pretenderam dar.

47) Na altura da consulta referida em Q)[6], o A. padecia de dores insuportáveis.

48) A intervenção cirúrgica efectuada a 27/06/2002 e referida em S)[7], foi efectuada pelo Dr. BB como cirurgião principal e pelo Dr. CC como cirurgião ajudante.

49) Tal intervenção cirúrgica, tinha em vista rever a discetomia, anteriormente feita a L5 - S1 esquerda.

50) Após a segunda intervenção cirúrgica, era suposto o estado de saúde do autor melhorar, o que não aconteceu porque continuava com muitas dores e limitações na movimentação.

51) Após os exames, consultas e tratamentos referidos em U) e V)[8], seguiu-se uma nova consulta com o Réu Dr. BB, que disse ao autor que devia retomar o trabalho, afastando a possibilidade de uma nova cirurgia.

52) E, por isso, lhe ia dar alta.

53) O Autor opôs-se a isso; vinha sendo submetido a medicação intensa, também através de injecções.

54) Na consulta referida em X)[9] o Dr. HH disse ao Autor que apresentava uma situação de algum comprometimento da raiz S1 e o disco da coluna, no local da intervenção cirúrgica, deteriorado, deterioração essa que acontece sempre neste tipo de intervenções.

55) Tendo-lhe receitado, para aliviar as dores intensas de que padecia, 6 injecções OHB/12 e 2 caixas de 60 comprimidos de Neurobion, para tomar 4 por dia.

56) Após a segunda intervenção cirúrgica, exames e tratamentos a que se submeteu, o A. nunca melhorou do ponto de vista sintomático, das queixas.

57) Manteve sempre lombalgia intensa.

58) E ciatalgia esquerda hiperálgica.

59) O autor continuou a queixar-se de lombalgia e ciatalgia intensa.

60) O autor queixava-se de incontinência urinária.

61) O que determinou que o Dr. LL entendesse que o mesmo deveria ser reavaliado em Neurocirurgia e Urologia.

62) Durante todo este período de consultas e tratamentos, os réus Dr. BB e Dr. CC, tinham dado instruções para aplicarem ao autor várias injecções para aliviar as dores.

63) O Dr. HH, na consulta referida em AG)[10], disse ao autor que devia ser submetido a nova intervenção cirúrgica para fixar o disco da coluna (artrodese).

64) Tendo-lhe dito que não podia garantir que ficaria 100% bom.

65) O Autor, face a estas afirmações e informações, procurou múltiplas vezes pelos RR. Dr. CC e Dr. BB, nos serviços clínicos do Réu Hospital Santa Maria.

66) O Dr. HH mandou o autor fazer fisioterapia.

67) Em consulta posterior o Dr. HH disse ao Autor que a fisioterapia já não lhe fazia nada.

68) O Autor foi assistido em consultas com a Drª MM.

69) Que o orientou para a consulta da dor no Hospital de São João no Porto.

70) Os médicos pensaram em aplicar ao autor um aparelho (bomba) na coluna para alimentar a ferida com morfina e anestésico local, mas acabaram por desistir da ideia.

71) No dia 04/02/2004 o Dr. NN fez-lhe teste com cortizona directamente na coluna, que não lhe tirou a dor.

72) O autor tem alergias nas ancas, partes genitais e pernas.

73) O autor foi consultado na Clínica do Dr. M... L..., onde lhe foi proposto, face à recusa em realizar artrodese lombar, tratamento à base de radiações.

74) Após as intervenções cirúrgicas a que foi submetido na unidade hospitalar do réu Hospital de Santa Maria, no Porto, executadas pelos réus Dr. BB e Dr. CC, o autor apresenta situação de comprometimento da raiz S1 esquerda, susceptível de agravamento em carga.

75) Apresenta abaulamento difuso do disco L2 - L3 com ligeiro rebordo osteofitário e em compromisso radicular evidente, que se associa à presença de hérnias intra-esponjosas retromarginais anteriores em ambas as plataformas articulares, e hérnia intra-esponjosa retromarginal anterior a nível da plataforma articular superior L4 em alterações associadas.

76) Ligeira hipertrofia das facetas articulares interapofisárias em L5 - S1, à esquerda, contribuindo discretamente para a redução do lumen foraminal adjacente.

77) Apresenta limitação lombar, com dor à mobilização.

78) O exame RMN que efectuou demonstra abaulamento discal postero lateral que afecta a porção proximal da raiz S1.

79) E o exame de EMG, feito na mesma data, revela sofrimento radicular de L5 esquerda.

80) O autor está sempre a gemer e a lamuriar-se.

81) Não se mantém sentado, nem deitado por muito tempo e caminha sempre apoiado em 2 canadianas.

82) O autor não fica parado na mesma posição por muito tempo.

83) Apresenta um rosto de sofrimento e angústia permanente.

84) Sente-se um inútil, um farrapo humano.

85) Está e estará definitivamente, até ao fim dos seus dias, dependente de terceiros, para o ajudar.

86) Não pode exercer qualquer actividade profissional, nem evoluir como trabalhador, de modo a angariar meios de subsistência e melhorar a sua situação social e económica.

87) Factos que o deixam extremamente abalado física, social, moral e psicologicamente, fazendo-o desejar a própria morte.

88) Sente-se só, desprezado, tendo inclusivé sido orientado para a consulta de psiquiatria.

89) O Autor está afectado de Incapacidade Absoluta, para todo o trabalho em geral.

90) O Autor não consegue calçar-se sem o apoio de terceira pessoa e não consegue vestir-se sozinho e entrar para uma banheira nos períodos de maior dor.

91) O Autor terá de adaptar a casa de habitação de modo a criar condições que lhe permitam, face ao seu estado, movimentar-se adequadamente na mesma.

92) À data do sinistro o Autor auferia a remuneração mensal de € 598,06.

93) O autor adaptou o rés-do-chão da casa onde mora com a mãe, construindo uma casa de banho com poliban, com água quente e fria e varões de apoio e passou o seu quarto para esse mesmo rés-do-chão, tendo pago as obras de adaptação.

94) O réu Hospital de Santa Maria do Porto punha à disposição dos réus Dr. BB e Dr. CC os meios técnicos, medicamentosos e humanos, para que os mesmos executassem as tarefas que lhes eram cometidas.

95) O autor recusou a cirurgia que lhe foi proposta de fixação intersomática (artrodese), para aliviar as dores.

96) O reconvinte Dr. BB é médico, com especialidade em Ortopedia, exercendo a sua profissão há mais de 25 anos.

97) Licenciou-se em medicina pela Faculdade de Medicina do Porto (15 valores), fez o Internato Geral de Policlínica no Hospital Distrital de Guimarães (1980/81), o Serviço Médico à Periferia em Vimioso (1982), iniciou o Internato da Especialidade de Ortopedia no Hospital Geral de Santo António (Porto) com início em 1983 e termo em 1990 (19 valores).

98) Além da sua carreira no Hospital Santa Maria (Porto), o reconvinte Dr. BB tem desenvolvido a sua actividade extra-hospitalar prestando serviços da sua especialidade à Companhia de Seguros Aliança Seguradora (desde 1987) e passou a ser, desde 1991, o responsável pela equipa médica que, no Centro Hospitalar S. Francisco, presta serviços médicos adequados aos sinistrados da DD Portugal - Cª Seguros, S.A..

99) Actualmente é o coordenador da Unidade de Saúde do Hospital de Santa Maria, onde são tratados os sinistrados das Seguradoras DD Portugal, Açoreana, Rural e Sagres.

100) Por sua vez, o reconvinte Dr. CC é médico, com especialidade em Ortopedia desde Janeiro de 1997 (19 valores), sendo actualmente Assistente Graduado de Ortopedia do quadro do Centro Hospitalar Póvoa de Varzim/Vila do Conde.

101) Desde 1992, o reconvinte Dr. CC presta serviços da sua especialidade aos sinistrados das Seguradoras DD Portugal, OO, PP, QQ, RR e SS Seguros, tendo adquirido uma vasta experiência no tratamento de todo o tipo de patologia ortopédica, particularmente a cirurgia do joelho e da coluna.

102) Os reconvintes Dr. BB e Dr. CC são médicos reputados na sua especialidade, com vasto currículo, tendo a admiração e o reconhecimento dos seus pares, sendo pessoas honestas na sua vida profissional e pessoal.

103) O A., com vista a minorar o seu sofrimento, continuou e continua em tratamentos, até ao presente.

104) Designadamente, em sessões de fisioterapia e em consultas das especialidades de ortopedia e neurocirurgia.

105) Para esse fim gastou em transportes públicos a quantia de € 251,20.

106) Em táxis despendeu € 15,94.

107) Em consultas gastou a quantia de € 355,00.

108) Em assistência medicamentosa despendeu € 567,86.

109) Em refeições que teve de tomar, aquando das deslocações para consultas, o A. gastou € 28,20.

110) E na aquisição de um par de canadianas gastou € 15,00.


ªª

            DE DIREITO

A) Se a responsabilidade civil médica em causa é de natureza contratual

No que toca à responsabilidade civil médica não prevê a nossa lei casos de responsabilidade objectiva ou de responsabilidade por factos lícitos danosos, tão só admite a responsabilidade contratual e a extracontratual ou aquiliana[11]/[12].

No caso em apreço, o autor iniciou a lide aparentando enquadrar o seu petitório numa perspectiva de responsabilidade delitual, particularmente denunciada nos arts. 223 a 229 da petição inicial, e surpreende nesta revista a procurar a tutela da responsabilidade contratual. Argumenta que do contrato de seguro celebrado, entre a sua entidade patronal e a seguradora, e do contrato de prestação de serviços celebrado por esta com os réus advém uma presunção de culpa destes (art. 799°).

Foi díspar o entendimento perfilhado nas instâncias. A tecedura de toda a argumentação desenvolvida na 1ª instância, embora sem unívoca afirmação, aparenta posicionar-se no campo da responsabilidade contratual, ao passo que a Relação sustentou, com declaração expressa, a responsabilidade civil extracontratual.

Nada de estranho indicia tal desencontro, uma vez que estas duas espécies de responsabilidade civil podem coexistir, pois que o mesmo facto pode constituir, a um tempo, uma violação do contrato e um facto ilícito. Existe um único dano, produzido por único facto, só que este, além de constituir violação de uma obrigação contratual, é também lesivo do direito absoluto à vida ou à integridade física[13]/[14].

Todavia, não se pode ignorar que hoje no comum das situações, como refere João Álvaro Dias, “a responsabilidade médica tem, em princípio, natureza contratual. Médico e doente estão, no comum dos casos, ligados por um contrato marcadamente pessoal, de execução continuada e, por via de regra, sinalagmático e oneroso.

Pelo simples facto de ter o seu consultório aberto ao público e de ter colocado a sua placa, o médico encontra-se numa situação de proponente contratual. Por seu turno, o doente que aí se dirige, necessitando de cuidados médicos, está a manifestar a sua aceitação a tal proposta. Tal factualidade é, por si só, bastante para que possa dizer-se, com toda a segurança, que estamos aqui em face dum contrato consensual pois que, regra geral, não se exige qualquer forma mais ou menos solene para a celebração de tal acordo de vontades [15].

Na mesma conformidade, Miguel Teixeira de Sousa escreve que a responsabilidade civil médica “é contratual quando existe um contrato, para cuja celebração não é, aliás, necessária qualquer forma especial, entre o paciente e o médico ou uma instituição hospitalar e quando, portanto, a violação dos deveres médicos gerais representa simultaneamente um incumprimento dos deveres contratuais (…). Em contrapartida, aquela responsabilidade é extracontratual quando não existe qualquer contrato entre o médico e o paciente e, por isso, quando não se pode falar de qualquer incumprimento contratual, mas apenas, como se refere no art. 483º, nº 1, do Código Civil, da violação de direitos ou interesses alheios (como são o direito à vida e à saúde)[16].

Distingue-se a responsabilidade civil em contratual, quando provém da “falta de cumprimento das obrigações emergentes dos contratos, de negócios unilaterais ou da lei”, e extracontratual, também designada de delitual ou aquiliana, quando resulta da “violação de direitos absolutos ou da prática de certos actos que, embora lícitos, causam prejuízo a outrem”[17].

O Código Civil (são deste diploma legal todos os preceitos por diante mencionados sem alguma menção de origem) sistematiza estas duas formas de responsabilidade em lugares distintos. A responsabilidade contratual nos arts. 798º e segs., no capítulo atinente ao cumprimento e não cumprimento das obrigações, e a responsabilidade extracontratual nos arts. 483º e segs. no capítulo das fontes das obrigações[18]. Porque versando um problema que lhes é comum, às duas formas de responsabilidade interessam ainda os arts. 562º e segs.que fixam o regime próprio da obrigação de indemnizar.

Dispõe aquele art. 798º que “o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor”, e de harmonia com o disposto no nº 1 do art. 483º, “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.

São os mesmos os elementos constitutivos da responsabilidade civil, provenha ela de um facto ilícito ou de um contrato, a saber: o facto (controlável pela vontade do homem); a ilicitude; a culpa; o dano; e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

Em qualquer dos casos, a responsabilidade civil assenta na culpa, a qual é apreciada in abstracto, ou seja, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, conforme preceitua o nº 2 do art. 487º, aplicável à responsabilidade contratual ex vi nº 2 do art. 799º.

Todavia, existe interesse na destrinça das duas espécies que reside essencialmente no facto de a tutela contratual ser a que, em regra, mais favorece o lesado na sua pretensão indemnizatória face às regras legais em matéria de ónus da prova da culpa (arts. 799º nº 1 e 487º nº 1)[19], o que será objecto de análise no ponto seguinte.

Estando aqui em causa a eventual violação ilícita de um direito de personalidade (a integridade física do autor) sempre tal ilícito geraria responsabilidade extracontratual. Mas será o caso concreto que, analisado em toda a sua envolvência, dirá se se está perante uma relação contratual ou extracontratual.


ª

Dúvidas não existem de que entre o autor, por um lado, e os médicos réus, pelo outro, não foi ajustado de forma pessoal e directa um qualquer contrato. Não existindo essa relação contratual, a responsabilidade pelo acto médico, em princípio, assume exclusivamente natureza extracontratual[20].

É, contudo, facto assente que os cuidados médicos foram prestados ao autor na sequência de acidente de trabalho de que foi vítima, cuidados por sua vez relacionados (pressupostamente por contrato) com a seguradora da sua entidade patronal, e operados no réu Hospital de Santa Maria no Porto (cfr. factos provados em 1), 6), 10), 11), 14), 15), 17), 18), 30), 31), 39), 40), 41) e 74)).

O regime de responsabilidade civil em hospitais públicos ou em clínicas ou consultórios privados é diverso[21], mas não importa aqui a destrinça uma vez que é do conhecimento geral ser o réu Hospital de Santa Maria no Porto uma unidade de saúde privada.

Como se anota no acórdão recorrido, a questão da prestação de cuidados médicos em instituições de saúde privadas, continua a ser objecto de debate jurisprudencial e doutrinal[22].

Inexiste na lei portuguesa um regime unitário no que respeita à responsabilidade dos médicos quando os serviços são por si prestados em ambiente institucional privado, pois que depende do que forem os factos de cada caso concreto, sendo diferentes as modalidades contratuais em “função de combinações entre as diferentes qualificações das partes no contrato e das suas relações, directas ou indirectas, com a participação em actos médicos”.

Neste contexto, igualmente se oferece como inquestionável que o autor nenhuma celebração contratual teve com o réu Hospital, fosse do que se entende por “contrato totalou por contrato dividido”[23].

A intervenção do réu Hospital explica-se pela circunstância de se haver comprometido para com os réus Dr. BB e Dr. CC a proporcionar-lhes o internamento do autor e a pôr à sua disposição os meios técnicos, medicamentosos e humanos, para que os mesmos executassem as tarefas que lhes eram cometidas (cfr.o nº 94 dos factos provados).

Isto é, nenhuma relação contratual estabelecida por este hospital quer com o autor quer com a seguradora vem recortada, nem se mostra que as intervenções cirúrgicas realizadas sejam execução de prestação correspondente a acto médico contratualmente celebrado entre ele e os réus médicos, nem sequer estes se perfilam como seus comissários[24] como flui das respostas negativas dadas aos quesitos 105º, 107º e 108º.

Deste modo, se o estabelecimento hospitalar não se comprometeu à prestação de cuidados de saúde propriamente ditos, não faz sentido responsabilizá-lo por um comportamento culposo dos médicos (arts. 500º, nºs 1 e 2 e 800º, nº 1, a contrario). A sua responsabilidade confina-se aos actos praticados pelo seu pessoal envolvido na execução do contrato de internamento e dos actos conexos com as intervenções a que se comprometeu[25].

Já, no referente aos réus médicos, a situação acima desenhada configura-se como susceptível da sua responsabilização civil suportada numa relação contratual triangular que se ajusta a um contrato a favor de terceiro, ou seja, como um “contrato misto em que a componente prestação de serviço (médico) é a mais relevante”[26].

Abordando uma outra vertente, mas chegando à mesma solução da natureza contratual, se pronunciou, em caso aparentemente idêntico ao dos autos, o Acórdão deste Supremo Tribunal de 27/11/07, no Proc. nº 07A3426, citado pelo recorrente, disponível no ITIJ, fundamentando-a na intervenção do médico no âmbito de um contrato de prestação de serviços médico-cirúrgicos - previsto no art. 1154º do Código Civil - que mantinha com a seguradora do autor, aceitando ainda que “a partir do momento em que o Réu decide intervencionar o A. e este aceita tal intervenção, estabelece-se, ao menos tacitamente, um contrato de prestação de serviços entre ambos”“.

Desnecessários se mostram, por isso, quaisquer elementos para avaliar e decidir de modo afirmativo se fora ou não celebrado um acordo directo entre o autor e os réus médicos, ou se fora ou não celebrado um acordo entre ele e o réu Hospital, lacuna que serviu de esteio à Relação para enveredar e concluir pela responsabilidade civil médica extracontratual.

Nesta conformidade, tendo-se o autor apresentado aos réus médicos a coberto de um contrato de seguro celebrado pela sua entidade patronal e tendo eles actuado no âmbito de um contrato de prestação de serviços médico-cirúrgicos - previsto no art. 1154º [27]- que mantinham com a seguradora, o conteúdo da relação estabelecida entre o autor e os médicos está impressivamente contratualizado, e, contrariamente à conclusão a que chegou o Tribunal da Relação, estamos no domínio da responsabilidade civil contratual.

Assim, no que à primeira questão concerne, entende-se ser de não manter a fundamentação de direito seguida no acórdão impugnado.

B) Se competia aos médicos réus demonstrar que as lesões que o autor apresenta, posteriores às cirurgias realizadas, não procedem de culpa sua

Assente, pois, que in casu a responsabilidade médica é de natureza contratual, dúvidas não subsistem sobre a especial gravidade dos danos invocados.

Demonstrando-se a existência de danos, defende o recorrente existir a presunção de que a prestação dos médicos foi incorrectamente efectuada, pelo que lhes competia demonstrar que as lesões que apresenta, posteriores às cirurgias realizadas, não procedem de culpa sua, assim ilidindo a presunção de culpa que sobre eles incide. O que não fizeram.

Acrescenta que, ao médico não basta, para cumprir esse ónus, a prova de que o tipo de intervenção efectuada importa um determinado risco (eventualmente aceite pelo paciente), é necessário fazer a prova de que a sua conduta profissional, o seu rigoroso cumprimento das "leges artis ", foi de molde a poder colocar-se o concreto resultado dentro da margem de risco.

Vejamos!

É princípio básico o de que o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação se torna responsável pelos prejuízos ocasionados ao credor, quer se trate de não cumprimento definitivo, quer de simples mora ou de cumprimento defeituoso (cfr. arts. 798º, 799º, 801º e 804º).

Como ensina Antunes Varela, “para que o facto ilícito gere responsabilidade, é necessário que o autor tenha agido com culpa. Não basta reconhecer que ele procedeu objectivamente mal. É preciso, nos termos do art. 483º, que a violação ilícita tenha sido praticada com dolo ou mera culpa. Agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito. E a conduta do lesante é reprovável, quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo[28].

Outrossim, estabelece a lei no nº 1 do art. 799º uma presunção legal de culpa do devedor, a qual pode ser ilidida mediante prova em contrário (cfr. nº 2 do art. 350º). Portanto, sobre ele recai o ónus da prova.

Como dá conta João Álvaro Dias, na obra já citada, a págs. 223 e segs., tradicionalmente a doutrina era relutante em admitir a natureza contratual da responsabilidade médica, porquanto repugnava aceitar-se a culpa presumida do médico sempre que o tratamento tivesse efeitos nefastos ou não houvesse alcançado os objectivos fixados, pois que colocaria o médico na difícil situação de se ver sistematicamente obrigado a elidir a presunção de culpa que sobre ele, na qualidade de devedor de cuidados ao paciente, passaria a recair, o que equivaleria, na prática, a uma quase real impossibilidade pois que se teria então de provar uma “afirmação negativa de carácter indefinido”.

Todavia, esse problema viria a ser superado com a posterior adopção da distinção entre obrigações de meios e obrigações de resultados[29], que veio permitir a abordagem desta responsabilidade sem importar especial ónus para o lesante, o médico, aceitando-se hoje consensualmente que a regra é a da natureza contratual da responsabilidade médica.

Isto, porque o ónus da prova da culpa funciona em termos diversos num e noutro tipo de situações, pois que, enquanto no primeiro caso (obrigações de resultado) a simples constatação de que certa finalidade não foi alcançada (prova do incumprimento) faz presumir a censurabilidade ético-jurídica da conduta do devedor (podendo este, todavia, provar o contrário), no segundo tipo de situações (obrigações de meios) caberá ao credor fazer a demonstração em juízo de que a conduta do devedor não foi conforme com as regras de actuação susceptíveis de, em abstracto, virem a propiciar a produção do resultado almejado[30]/[31].

Se é inquestionável que a execução de um contrato de prestação de serviços médicos pode implicar para o médico uma obrigação de meios ou uma obrigação de resultado, o corrente na prática é o acto médico envolver da parte do médico, enquanto prestador de serviços que apelam à sua diligência e ciência profissionais, a assunção de obrigação de meios.

 “Genericamente a obrigação do médico consiste em prestar ao doente os melhores cuidados ao seu alcance, no intuito de lhe restituir a saúde, suavizar o sofrimento e salvar ou prolongar a vida.

 Nesta fórmula ampla se compreende a actividade profissional, intelectual ou técnica que tipicamente se pode designar por «acto médico»[32].

Pode dizer-se que, em regra, o médico a só isto se obriga, apenas se compromete a proporcionar cuidados conforme as leges artis e os seus conhecimentos pessoais, somente se vincula a prestar assistência mediante uma série de cuidados ou tratamentos normalmente exigíveis com o intuito de curar. Mas não assegura, nem se obriga a curar o doente uma vez que a cura também depende do concurso de outros factores independentes da vontade do médico e por ele não controláveis (ex. resistência do doente, capacidade de regeneração do seu organismo, estado anímico, etc.)[33].

Então, o médico erra não quando não atinge o resultado da cura ou da atenuação do mal ou do sofrimento do paciente, mas quando não utiliza com diligência, perícia, e consideração as técnicas e conhecimentos reconhecidos pela ciência médica, para o concreto caso clínico, que definem, em cada momento, as leges artis[34].

Sempre que assim é, trata-se de uma mera obrigação de meios, que não de uma obrigação de resultado, incumbindo, pois, ao doente o ónus de provar a falta de diligência do médico.

Deste modo, se a intervenção médica não produzir o resultado terapêutico esperado, o paciente não poderá, por esta razão, exigir uma compensação pelos danos sofridos.

Mas casos há em que o médico está vinculado a obter um resultado concreto, constituindo exemplo de escola a cirurgia estética de embelezamento[35] (mas já não a cirurgia estética reconstrutiva geralmente considerada como exemplo cirúrgico de obrigação de meios), a par da execução das manobras próprias de parto[36], no campo da odontologia, por exemplo, a simples extracção de um dente ou colocação de um implante, e ainda nas áreas da vasectomia e exames laboratoriais[37].

Importa, pois, ponderar a natureza e objectivo do acto médico para casuisticamente saber se se está perante uma obrigação de meios ou perante uma obrigação de resultado.

No caso em apreço, o autor guardou completo silêncio em torno do que imediatamente antecedeu a sua entrada, pela primeira vez, na sala da cirurgia, mais concretamente, como surgiu a opção da sua submissão à 1ª intervenção cirúrgica[38], por iniciativa de quem, de que médico se foi o caso, qual o objectivo da operação, que tipo de compromisso médico foi assumido se é que tal aconteceu, nomeadamente com algum comprometimento de resultado e qual, se foi informado dos riscos inerentes. Tudo isto relevava particular interesse para tal qualificação, mas o autor no referente a este particular campo, e tempo, limitou-se a alegar de modo indeterminado, vago e improfícuo, no art. 29º da petição, que: “Aí, (nos serviços clínicos da seguradora DD) face ao teor do relatório da Ressonância Magnética, marcaram de imediato o dia 17/01/2002 para intervenção cirúrgica à coluna”.

Nada mais alegado, e nada mais provado, de útil que ajude a qualificar com precisão e de modo categórico a obrigação em causa, resta-nos então ser notório que, por regra, no caso de intervenções cirúrgicas, e muito particularmente nas intervenções à coluna, não se assegura a cura mas a procura da atenuação do sofrimento do doente. Ao médico cirurgião está cometida uma obrigação de meios, não responde pela obtenção de um determinado resultado mas pela omissão ou pela inadequação dos meios utilizados aos fins correspondentes à prestação que se propôs prestar.

Como se refere no Acórdão deste Supremo Tribunal de 4/03/08, antes citado, “É de considerar que em especialidades como medicina interna, cirurgia geral, cardiologia, gastroenterologia, o especialista compromete-se com uma obrigação de meios – o contrato que o vincula ao paciente respeita apenas às legis artis na execução do acto médico; a um comportamento de acordo com a prudência, o cuidado, a perícia e actuação diligentes, não estando obrigado a curar o doente[39].

Estamos, pois, perante uma obrigação de meios.


ª

Escreveu-se no Acórdão deste Supremo Tribunal, e desta Secção, de 28/09/2010, Proc. n.º 171/2002.S1, disponível no ITIJ, que acompanhamos na íntegra, o seguinte: “(…) como ensina A. Varela (Direito das Obrigações em Geral – II – 7.ª ed. 1997)[40]:

«Nas obrigações chamadas de meios não bastará…a prova da não obtenção do resultado previsto com a prestação, para considerar provado o não cumprimento.

 Não basta alegar a morte do doente ou a perda da acção para se considerar em falta o médico que tratou o paciente ou o advogado que patrocinou a causa.

 É necessário provar que o médico ou advogado não realizaram os actos em que normalmente se traduziria uma assistência ou um patrocínio diligente, de acordo com as normas deontológicas aplicáveis ao exercício da profissão».

Também a este respeito escreve Carneiro da Frada (Direito Civil – Responsabilidade Civil – O Método do caso – 81) «nas obrigações de meios, dada a ausência de um resultado devido, não é suficiente que o credor demonstre a falta de verificação desse resultado. Ele tem sempre de individualizar uma concreta falta de cumprimento (ilícita). Dada a índole da obrigação, carece de demonstrar que os meios não foram empregues pelo devedor ou que a diligência prometida com vista a um resultado não foi observada».

Ora, tal doutrina aceite pela generalidade dos autores, não significa que a presunção de culpa do art. 799.º, n.º 1, do C.C. não tenha qualquer aplicação no âmbito das obrigações de meios, como apressada e superficialmente pretendem os recorrentes.

Significa apenas, como diz Carneiro da Frada (in obra citada), que em tal tipo de obrigações terá o credor de identificar e fazer provar a exigibilidade dos meios ou da diligência (objectivamente) devida. «A presunção de culpa tende, portanto, a confinar-se à mera censurabilidade pessoal do devedor» isto é, a presunção reduzir-se-á à culpa em sentido estrito.

Portanto, provado pelo credor que o meio exigível ex contractu ou ex negotii não foi empregue pelo devedor ou que a diligência exigível de acordo com as regras da arte, foi omitida, competirá ao devedor provar que não foi por sua culpa que não utilizou o meio devido, ou omitiu a diligência exigível.

Neste sentido, mais restrito, é aplicável às obrigações de meios a presunção de culpa do art. 799.º, n.º 1, do CC [41].

Significa isto que primeiramente tem o paciente/lesado de provar o defeito de cumprimento, porque o não cumprimento da obrigação do médico assume, por via de regra, a forma de cumprimento defeituoso, e depois tem ainda de demonstrar que o médico não praticou todos os actos normalmente tidos por necessários para alcançar a finalidade desejada.

 “A presunção de culpa do devedor inadimplente estende-se ao cumprimento defeituoso (artº 799º, nº 1). Quem invoca tratamento defeituoso como fundamento de responsabilidade civil contratual tem de provar, além do prejuízo, a desconformidade (objectiva) entre os actos praticados e as leges artis, bem como o nexo de causalidade entre defeito e dano[42].

Feita essa prova, então, funciona a presunção de culpa, que o médico pode ilidir demonstrando que agiu correctamente, provando que a desconformidade não se deveu a culpa sua por ter utilizado as técnicas e regras de arte adequadas ou por não ter podido empregar os meios adequados.

    Em termos gerais, ponto comum à responsabilidade contratual e à responsabilidade extracontratual, ter o médico agido culposamente significa ter o mesmo agido de tal forma que a sua conduta lhe deva ser pessoalmente censurada e reprovada, pois em face das circunstâncias concretas do caso, o médico devia e podia ter actuado de modo diferente[43].

Culpa em qualquer grau, dolo ou mera culpa, “a ser apreciada pela diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias de cada caso” (art.º. 482.º, n.º 2, aplicável ex vi do n.º 2 do art.º 799.°).

No caso da responsabilidade civil dos médicos, o padrão do bom pai de família tem como correspondente o padrão de conduta profissional que um médico medianamente competente, prudente e sensato, com os mesmos graus académicos e profissionais teria tido em circunstâncias semelhantes, naquela data[44]. “ Este critério abstracto de determinação da culpa, apreciado pelo padrão da actuação de um homem ideal, comportará, obviamente, todas as nuances concretas na apreciação da culpa médica, dados os diferenciados “tipos ideais de médico” a que poderá ter de se atender em cada caso: o médico do interior, sem meios e condições profícuas de trabalho, e o médico da cidade; o especialista e o médico de clínica geral, etc.”[45].

Assim, como já se fez notar, não se pode ter como padrão de aferição um só tipo profissional ideal, mas vários consoante a classe ou grupo do médico concretamente visado. Natural que a um especialista se exija mais no domínio da sua especialidade do que a um médico generalista, mas isso não implica, como sustenta o recorrente, que a sua obrigação seja de resultado. Tal depende da especificidade e finalidade da sua intervenção.

Em suma, o médico, “deve actuar de acordo com o cuidado, a perícia e os conhecimentos compatíveis com os padrões por que se regem os médicos sensatos, razoáveis e competentes do seu tempo. Mas se porventura ele tem, ou se arroga ter, conhecimentos superiores à média, em qualquer tipo de tratamento, intervenção cirúrgica e riscos inerentes, poderá ser obrigado a redobrados cuidados, embora nem por isso se possa dizer que ele assumiu a posição de garante de um certo resultado”[46].


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Delineados que estão em termos muito gerais os princípios, importa analisar o pedido em concreto.

Relembrando, no contrato de prestação de serviços que o médico celebra, existe como obrigação contratual principal por parte daquele a obrigação de tratamento[47]. Trata-se, no caso em apreço, de uma obrigação de meios, não de resultado, já que nem da lei nem do negócio jurídico versado se pode concluir que os médicos se tenham vinculado a um certo efeito, a um certo resultado.

Percorrida a matéria alegada como fundamento da sua pretensão, constata-se que o autor/recorrente não provou os factos que invocou tendentes a demonstrar a deficiência de actuação dos réus, nomeadamente que a cirurgia efectuada em 17/01/02 tivesse atingido centros herniáticos e nervosos que não se mostravam lesados antes da intervenção (resposta negativa ao quesito 14º), que em consequência dela o seu estado se tivesse agravado substancialmente (resposta restritiva ao quesito 16º), que o réu CC tivesse desvalorizado o exame de ressonância magnética (resposta negativa ao quesito 18º), que a intervenção cirúrgica de 27/06/02 tivesse em vista corrigir as sequelas da anterior feita de forma negligente e que comprometera gravemente a raiz S1esq (respostas restritiva ao quesito 21º e negativa ao 22º), que esta segunda intervenção tivesse sido executada de forma ainda mais negligente que a anterior (respostas negativa ao quesito 23º e restritivas aos 24º, 30º, 33º, 34º), que as dores e lesões de que padecia eram consequência directa de fracturas ocorridas aquando e por causa das intervenções cirúrgicas incorrectamente executadas (respostas negativas aos quesitos 39º, 40º, 41º, 54º, 61º, 62º, 68º, 76º, e restritivas aos 42º, 43º, 74º, 103º), que apresente disfunção vesical e lesões renais decorrentes da medicação que lhe foi aplicada pelos réus (resposta negativa ao quesito 83º), e que o réu hospital não dispusesse de meios técnicos e humanos adequados (respostas negativas aos quesitos 107º e 108º).

Perante o acervo factual provado e utilizado no acórdão impugnado, em vão se procura, na verdade, relativamente a toda a sequência de actos praticados pelos réus, desde as consultas até à realização das intervenções cirúrgicas, algum desvio do padrão de comportamento diligente e competente, uma desconformidade entre a sua actuação e as leges artis, seja por terem praticado as cirurgias de forma deficiente, seja por terem omitido actos necessários e adequados à atenuação ou superação do estado do autor, actos que também não se referem.

Nenhum indício, portanto, revelador de falta de cuidado, zelo diligência, imperícia ou falta de conhecimentos técnico-científicos necessários ao exercício do respectivo múnus, aos quais se possam causalmente imputar os invocados efeitos danosos.

Sabe-se, é certo, que o autor apresenta lesões físicas, que importam a sua incapacidade absoluta para todo o trabalho em geral e dependência de terceiros, e morais graves, a que ninguém será indiferente, mas não se apura, em sede da matéria de facto, se ocorreu um erro médico, um acto ilícito e negligente, que lhes deu origem, nem se divisa uma relação de causa e efeito que permita concluir-se, em juízo eticamente fundado, que o agravamento da sua situação de deveu às intervenções cirúrgicas.

É, na realidade, uma inferência que não encontra apoio na prova produzida pelo autor e adquirida no processo. Portanto, não resultou provada qualquer violação das leges artis nem mesmo nexo de causalidade entre os padecimentos do autor e a intervenção dos réus médicos.


ª

Mas, o recorrente vai um pouco mais além e invoca serem as intervenções a que se submeteu daquelas que se fazem “às centenas todos os dias”, pelo que se não se consegue o resultado previsto “é lógico pensar que a actuação médica foi incorrecta”, cabendo assim aos médicos demonstrar que as lesões que apresenta, posteriores às cirurgias realizadas, não procedem de culpa sua, ilidindo a presunção de culpa que sobre eles incide.

Esgrime aqui o recorrente também com o conceito da prova da primeira aparência[48], buscando arrimo no Acórdão deste Supremo de 4/03/08, Proc. nº 08A183, já citado, e no voto de vencido do Conselheiro João Bernardo no Acórdão de 15/10/09, Proc.  08B1800, disponíveis no ITIJ, onde se acolhe a ideia fundamental em matéria de ónus da prova nas acções de responsabilidade civil por actos médicos preconizada pela doutrina e a jurisprudência italianas, que consiste em separar os tipos de intervenção cirúrgica, repartindo o ónus da prova de acordo com a natureza mais ou menos complexa da intervenção médica.

 Manuel Rosário Nunes, no seu trabalho de análise de várias propostas doutrinais que permitam suavizar a rigorosa exigência de prova a cargo do paciente/demandante, por regra não dotado de conhecimentos da ciência médica, “O Ónus da Prova nas Acções de Responsabilidade Civil por Actos Médicos”, Almedina, 2005, dá disso conhecimento a págs. 41-42:

“Assim, enquanto nos casos de difícil execução o médico terá apenas alegar e provar a natureza complexa da intervenção, incumbindo ao paciente alegar e provar não só que a execução da prestação médica foi realizada com violação das leges artis, mas que também foi causa adequada à produção da lesão, nos casos de intervenção “rotineira” ou de fácil execução, ao invés, caberá ao paciente o ónus de provar a natureza “rotineira” da intervenção, enquanto que o médico suportará o ónus de demonstrar que o resultado negativo se não deveu a imperícia ou negligência por parte deste[49]/[50].

É sabido que os lesados, nos processos de responsabilidade médica, em regra, se confrontam com inúmeras dificuldades de prova do nexo de causalidade adequada entre a actuação negligente e o resultado danoso, avolumadas por aquilo que se designa por “conspiração do silêncio”[51] dos profissionais médicos que grande parte das vezes não se consegue ultrapassar[52].

Não obstante isso, para lá de casos que se assumam como verdadeiramente anómalos e chocantes[53], por isso mesmo de excepção e pontuais, não se nos afigura ser tal orientação a mais ajustada em tese geral pelo dano considerável que importaria à confiança e à certeza do direito numa área de intervenção de elevada contingência. Teria ainda outra consequência, o crescimento exponencial do chamado exercício defensivo da medicina, com os efeitos perversos que de tal advêm limitando a prevenção e tratamento de doenças em áreas mais sensíveis e de menor conhecimento científico[54]. É necessário assegurar a margem de risco tolerado ao acto médico.

Se é certo que não é justo desvalorizar os danos sofridos pelo paciente deixando que fique sózinho a suportá-los e sofrê-los, também os profissionais da saúde não deverão ser excessivamente onerados no exercício do seu desempenho. Por isso que se têm vindo a desenvolver sistemas alternativos de recomposição dos danos médicos, nomeadamente a substituição da responsabilidade civil pela protecção dos seguros[55].

Será preferível, por ora, trilhar o caminho apontado pelo Prof. Manuel de Andrade, segundo o qual perante a dificuldade natural da prova de um facto o mais que pode ser aconselhável é fazer uso da máxima “iis quae dificcillioris sunt probationis, levioris probationes admittuntur” (perante maiores dificuldades na prova, menor exigência na sua aceitação)[56].

Mas, no caso vertente, nem o recurso à figura da prova da primeira aparência é susceptível de aplicação porquanto, e como já referimos, uma intervenção cirúrgica a hérnia discal está muito longe de se poder ter por intervenção simples e rotineira, como sinónimo de fácil execução, mesmo para médicos especialistas, nem as sequelas pós-operatórias de que o recorrente se queixa, não obstante a sua gravidade, se podem considerar como incomuns e contrárias ao quadro de risco de tais intervenções, como episódios estranhos à sucessão normal dos acontecimentos.

Os casos versados nas decisões deste Supremo citadas pelo recorrente são realidades particularmente danosas e de gravidade extrema, para situações que se apresentavam, e aparentavam, como de risco inexistente (exame laboratorial) ou extremamente reduzido (administração de anestesia local).


ª

Não pode ser esquecido que não existe procedimento médico livre de riscos, e sobretudo os actos cirúrgicos comportam uma margem aleatória que pode contender com o resultado. Há sempre uma dose de imprevisibilidade em qualquer intervenção cirúrgica, por mais simples que seja, pois cada patologia tem a sua especificidade, e cada doente reage de modo diverso à enfermidade.

Assim também é o pensamento do Ilustre Magistrado Álvaro Rodrigues quando no seu estudo cita Hans Luttger na afirmação de que “não há tratamento cirúrgico curativo no qual, por via de regra, não haja risco; esta é uma realidade que tanto a medicina como o direito devem conhecer[57].

Um médico, ao fazer uma cirurgia tem o compromisso máximo de aplicar todo o seu esforço, conhecimento e dedicação possíveis para a obtenção do melhor resultado, mas não pode garantir, com absoluta certeza, de que tudo sairá conforme se espera.

Então, é facto notório que a cirurgia da hérnia discal tem riscos específicos, tão imprevisíveis como o processo de cicatrização e a forma como os tecidos possam reagir ao seu manuseamento. É do conhecimento geral que alguns pacientes podem não beneficiar com ela, se não mesmo piorar, para além de que a recuperação não é um processo puramente físico, depende também da atitude do paciente, ou que a origem da dor pode estar conexionada com patologia prévia ou factores degenerativos.

Concluindo, pode dizer-se que por via de regra é a falta de perícia, de aptidão, de zelo, de cuidado, de senso, de experiência, de negligência que determina a responsabilização civil do médico.

Citando João Álvaro Dias, “os médicos estão obrigados para com os seus doentes, quer pelos específicos deveres que resultam do contrato entre eles celebrado quer de um genérico dever de cuidado e tratamento que a própria deontologia profissional lhes impõe. Espera-se dos médicos, enquanto profissionais, que dêem provas de um razoável e meridiano grau de perícia e competência (…) Sempre que tal perícia e cuidado não são postos em prática, em termos de ser prestado um tratamento errado ou ser omitido o tratamento adequado, estamos perante uma actuação negligente, que poderá agravar-se substancialmente quando é levada a cabo contra legem artis[58]

Porém, uma vez mais, nenhuma relação se estabelece entre esta constatação e os actos praticados pelos réus ou por eles omitidos. Desnecessário se tornou aos réus médicos elidir qualquer presunção de culpa.

E, como só existe obrigação de indemnizar, independentemente de culpa, nos casos especificados na lei, onde não se inclui a pratica de actos médicos, não tendo sido, como já anotámos, acolhida no nosso ordenamento jurídico a teoria do risco profissional, não se demonstrando a culpa, inexiste, consequentemente, responsabilidade civil médica.

Termos em que a decisão absolutória proclamada pelas instâncias, sob qualquer ângulo de visão do problema, não merece censura.

C) Fixação da indemnização devida

Face à conclusão que antecede, a de que, seja à luz da responsabilidade civil contratual ou extracontratual, não está demonstrada a culpa dos réus, não se verificam os pressupostos da obrigação de indemnizar.

Assim, está prejudicado o conhecimento desta questão (art. 660º, nº 2 do CPC).


II-DECISÃO


Termos em que se julga improcedente a revista, confirmando-se o Acórdão recorrido.

Custas do recurso pelo recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

                                                           

Lisboa, 15 de Dezembro de 2011.

Gregório da Silva Jesus (Relator)

Martins de Sousa

Gabriel Catarino          

_________________________________________________
[1] Relator: Gregório Silva Jesus - Adjuntos: Conselheiros Martins de Sousa e Gabriel Catarino.
[2] Considerando que a acção foi intentada em 20/06/05 ao recurso é aplicável o regime processual anterior ao Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (arts 11º e 12º deste diploma).
[3] Esta data corresponde a manifesto lapso na transcrição dos factos dados por provados. Quis antes referir-se a de 07/12/2001 constante da decisão da matéria de facto, harmónica com o facto anterior para que a redacção do quesito aponta.
[4] Supra sob o nº 6.
[5] Supra sob o nº 10.
[6] Supra sob o nº 16.
[7] Supra sob o nº 18.
[8] Supra sob os nºs 20 e 21.
[9] Supra sob o nº 22.
[10] Supra sob o nº 30.
[11] Durante muito tempo, o ressarcimento dos danos causados pelo exercício médico fundou-se apenas no regime delitual, até se que se tornou comum o entendimento de que entre médico e doente se celebra, em regra, um negócio jurídico bilateral em que o primeiro se obriga a prestar, ao segundo, assistência médica mediante retribuição. Em Portugal, esta mudança de orientação dá-se com Moitinho de Almeida, e o seu artigo "A Responsabilidade Civil do Médico e o seu Seguro”, publicado na "Scientia Ivrídica", Tomo XXI, 1972, pág. 327 e segs.
[12] A actuação ilícita do médico, causadora de resultados danosos para o doente, pode configurar uma situação de responsabilidade extracontratual. Por exemplo, no caso do médico prestar assistência a uma pessoa inanimada, se, por força da ilicitude do acto e da culpa do agente, a sua actuação configurar determinado tipo legal de crime (v.g., ofensas corporais, homicídio negligente, prática ilegal de aborto, revelação de sigilo profissional), ou por nulidade do contrato por ilicitude do seu objecto (cfr. João Álvaro Dias, in “Procriação Assistida e Responsabilidade Médica”, Stvdia Ivridica, n° 21 - BFDC - Coimbra, 1996, págs. 226 a 228).
[13] Pinto Monteiro, in “Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil”, págs. 430 /431, defende como solução mais razoável a que Vaz Serra propunha, devendo permitir-se ao lesado, em princípio, a faculdade de optar por uma ou outra espécie de responsabilidade, de cumular, na mesma acção, regras de uma e outra, à sua escolha; Cfr. neste sentido Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, no BMJ 332º, págs. 39/40; Rui de Alarcão, “Direito das Obrigações”, pág. 210; Vaz Serra, na RLJ ano 102, págs. 313-314.
[14] Almeida Costa, in “Direito das Obrigações”, 10ª ed., págs. 551/552, defende o princípio da consunção. O regime da responsabilidade contratual “consome” o da extracontratual; Também o Conselheiro Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, in “Reflexões em Torno da Responsabilidade Civil dos Médicos”, Revista Direito e Justiça da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, vol. XIV, 2000, págs. 191/198, Miguel Teixeira de Sousa, in “Sobre o Ónus da Prova nas Acções de Responsabilidade Civil Médica”, Direito da Saúde e Bioética, Lisboa, 1996, edição da AAFDUL, pág. 137; e Ac. do STJ de 22/09/11, Proc. nº 674/2001.P L.S1, no ITIJ.
[15] In loc. cit., págs. 221/222; No mesmo sentido o Conselheiro António Silva Henriques Gaspar, in “A Responsabilidade Civil do Médico”, in CJ, Ano III, 1978, pág. 341, e Álvaro Rodrigues, loc. cit., págs. 180.
[16] Loc. cit., pág. 127.
[17] Cfr. Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 9ª ed., pág. 537.
[18] Não obstante, alguns preceitos incluídos na secção desta responsabilidade extracontratual, como os arts. 485º, nº 2, 486º, 491º, 492º, nº2 e 493º abrangem nas suas hipóteses situações que também se enquadram na responsabilidade contratual, como ocorre também o inverso com os arts. 805º e 806º.
[19] Duas outras diferenças significativas entre as duas formas de responsabilidade residem no prazo de prescrição - 20 anos na responsabilidade contratual (art. 309º) e 3 anos (regra) na delitual (art. 498º), - e na responsabilidade por facto de terceiro - a nível contratual, vale o art. 800º (actos dos representantes legais ou auxiliares), no plano aquiliano o art. 500º (responsabilidade do comitente).
[20] Cfr. Carlos Ferreira de Almeida, “Os contratos civis de prestação de serviço médico”, in Direito da Saúde e Bioética, AAFDUL, Lisboa, 1996, págs. 81 e 82.
[21] Num estabelecimento público de saúde há que fazer intervir o regime da responsabilidade civil do Estado e demais entes públicos por danos causados pelos seus órgãos, agentes e representantes no exercício de uma actividade que deve ser considerada como de gestão pública. A eventual responsabilidade civil proveniente dos actos e omissões lesivos dos direitos dos utentes, desde que praticados no exercício e por causa dessa função pública, é regulada pelo regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, hoje constante da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro; Veja-se Diogo Freitas do Amaral, “Natureza da Responsabilidade Civil Por Actos Médicos Praticados em Estabelecimentos Públicos de Saúde”, in Direito e Bioética, Lex, 1991, págs. 123/131.
[22] Para maiores desenvolvimentos que aqui não cabem, leia-se o estudo “Responsabilidade Civil em Instituições Privadas de Saúde, Problemas de Ilicitude e de Culpa”, de Nuno Manuel Pinto Oliveira, vol. nº 11 do Centro de Direito Biomédico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, pág. 127 e segs, onde se explanam as diversas posições que têm sido defendidas, tanto na doutrina nacional como na de diversos países europeus, sobre as concepções unitárias e pluralistas do regime da responsabilidade civil dos médicos.
[23] Carlos Ferreira de Almeida explica que os contratos firmados entre as clínicas e os pacientes podem assumir diferentes qualificações consoante os serviços acordados. No “contrato total” o paciente contratou com a clínica a prestação dos serviços médicos e os cuidados de internamento hospitalar. No caso de um “contrato dividido”, a clínica é responsável normalmente pelo internamento, cuidados de enfermagem, venda de medicamentos e refeições, em conexão com outro contrato de prestação de serviço médico autonomamente celebrado entre o paciente e o médico. Neste caso o médico não age como auxiliar da clínica (loc. cit., págs 89/ 94).
[24] Ultrapassando as dúvidas que se levantam em torno desta questão. Há quem considere que a liberdade médica não será respeitada se se admitir que um não médico lhe possa dar ordens ou instruções. Navegando nesta orientação parece o Acórdão deste Supremo de 21/03/01, Proc. nº 00S3509, assim sumariado no ITIJ: “I- No exercício da actividade médica, como em todas as actividades técnica e cientificamente especializadas, as directrizes, ordens e instruções da empregadora ao trabalhador não poderão penetrar profundamente no seu exercício, na medida em que essas actividades, por natureza, reclamam apreciável autonomia técnica, diluindo-se nessa medida a ideia de subordinação estreita. “.
     Antunes Varela, em “Das Obrigações em geral”, vol. I, 9ª ed., pág. 663, admite que o médico possa funcionar como comissário relativamente ao dono da casa de saúde em que presta serviço.
[25] Aliás, o tratamento da definição do enquadramento contratual do réu Hospital e consequente responsabilidade, é vertente que foi claramente abandonada pelo recorrente nos seus recursos, que primam a esse propósito por completo silêncio.
[26] Cfr. Carlos Ferreira de Almeida In “Os contratos civis de prestação de serviço médico”, Direito da Saúde e Bioética, AAFDUL, págs. 85 e segs, particularmente págs. 95 a 99.
[27] Carlos Ferreira de Almeida, no local que vimos citando, a págs. 87/89, qualifica como sendo um contrato socialmente típico, inserido na categoria ampla dos contratos de prestação de serviço do art. 1154º do Código Civil, onde se incluem prestações de “trabalho intelectual”, e simultaneamente um contrato de consumo a justificar a aplicação das regras de protecção dos consumidores; Cfr. também Rute Teixeira Pedro, in “A Responsabilidade Civil do Médico”, vol. nº 15 do Centro de Direito Biomédico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, págs. 70 e segs.
[28] Ibidem, pág. 582.
[29] Proposta por Demogue, in "Traité des Obligations", Tomo V, Paris, 1925, nº 1.237 e Tomo VI, Paris, 1931, nº 599, como dá notícia e transcreve J. C. Moitinho de Almeida, in loc. cit., págs. 336/337.
     Haverá obrigação de meios quando “o devedor apenas se compromete a desenvolver prudente e diligentemente certa actividade para a obtenção de determinado efeito, mas sem assegurar que o mesmo se produza”, e existe obrigação de resultado ”quando se conclua da lei ou do negócio jurídico que o devedor está vinculado a conseguir um certo efeito útil” (Almeida Costa, ob. cit., págs. 1039/1040).
[30]  João Álvaro Dias, in ob. cit., pág. 225.
[31] Para Miguel Teixeira de Sousa, na obra citada, a págs. 125/127 e 136/137, a obrigação assumida pelo médico não será de qualificar como uma obrigação de meios, mas antes como uma obrigação de risco ou de resultado aleatório, “ porque o médico não se obriga apenas a usar a sua melhor diligência para obter um diagnóstico ou conseguir uma terapia adequada, antes se vincula a fazer uso da sua ciência e aptidão profissional para a realização do diagnóstico e para a definição da terapia aconselhável. Ainda que o médico não possa responder pela obtenção de um resultado, ele é responsável perante o paciente pelos meios que usa (ou deve usar) no diagnóstico ou no tratamento”, podendo essa responsabilidade não só ser contratual ou extracontratual como coexistirem.
     Sustenta ainda que muito embora a presunção de culpa do devedor estabelecida no art. 799º, nº 1, do Código Civil se justifique plenamente na generalidade das obrigações contratuais, todavia, essa mesma presunção de culpa não se justifica na área da responsabilidade médica. Isso porque “a existência de uma relação contratual entre o médico e o paciente não acrescenta, na área da responsabilidade profissional, qualquer dever específico aos deveres gerais que incumbem a esse profissional, pelo que parece não dever atribuir-se qualquer relevância, quanto ao ónus da prova da culpa, à eventual celebração de um contrato entre esses sujeitos. Dado que a posição do médico não deve ser sobrecarregada, através da repartição do ónus da prova, com a demonstração de resultados que não garantiu, nem podia garantir, o regime do ónus da prova da culpa deve ser sempre o da responsabilidade extracontratual”.
[32] Henriques Gaspar, no seu mencionado Estudo, pág. 342.
[33] Álvaro Rodrigues, no loc. cit., a págs. 182/183 escreve que sendo o contrato médico um contrato de prestação de serviços, o “resultado” a que alude o art. 1154º do Código Civil “parece dever considerar-se não a cura em si, mas a cuidados de saúde já que o objecto do contrato de saúde não é a cura, mas a prestação de tais cuidados ou tratamentos”.
[34] Sobre o conceito das legis artis, não obstante sob enfoque da lei penal, veja-se Álvaro Rodrigues na “Responsabilidade Médica em Direito Penal”, (Estudos dos Pressupostos Sistemáticos), Almedina, 2007, págs. 53 e segs.
[35] Cfr. Ac. do STJ de 17/12/09, Proc. nº 544/09.9YFLSB, no ITIJ, citado pelo recorrente.
[36] Ac. do STJ de 7/10/10, Proc. nº Proc. nº 1364/05.5TBBCL.G1, no ITIJ, também citado pelo recorrente, onde se argumenta que já se torna compreensível a inversão do ónus da prova por se tratar de uma obrigação de resultado – devendo o especialista em causa ser civilmente responsabilizado pela simples constatação de que a finalidade proposta não foi alcançada (prova do incumprimento), o que tem por base a sobredita presunção da censurabilidade ético-jurídica da sua conduta (sem embargo, todavia, de ele poder provar o contrário).
[37] Cfr. Ac. deste STJ de 4/03/08, Proc. nº 08A183, no ITIJ.
[38] A 2ª sabe-se que teve em vista rever a discetomia anteriormente feita a L5 - S1 esquerda – (facto nº 49).
[39] No mesmo sentido se sentenciou no Acórdão deste STJ de 11/07/06, Proc. nº 06A1503, no ITIJ.
[40] Completamos nós que a páginas 101.
[41] Neste mesmo sentido se pronunciaram  os Acórdãos do STJ de 5/7/2001, CJ/STJ, Tomo II/2001, págs. 166-170 e de 10/11/11, Proc. nº 6152/03.0TVLSB.S1, no ITIJ, este reafirmando o transcrito e subscrito pelos ora relator e adjuntos.
[42] Carlos Ferreira de Almeida, ob. cit., pág. 117.
[43] Cfr. Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 9ª ed., pág. 586 e segs..
[44] João Álvaro Dias, in “O Problema da Avaliação dos Danos Corporais Resultantes de Intervenções e Tratamentos Médico-Cirurgicos”, vol. nº 11 do Centro de Direito Biomédico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, pág. 401; No mesmo sentido, Moitinho de Almeida, loc. cit., pág. 332.
[45] Henriques Gaspar, no seu citado Estudo, pág. 344.
[46] João Álvaro Dias, “Culpa médica: algumas ideias-força”, in Revista Portuguesa do Dano Corporal, Ano IV, nº 5, págs. 21 e 22.
[47] Obrigação essa que se pode desdobrar em diversas prestações tais como: de observação, de diagnóstico, de terapêutica, de vigilância, e de informação. Na terapêutica se inserindo a actividade cirúrgica (cfr. Álvaro Rodrigues, “Reflexões em Torno da Responsabilidade Civil dos Médicos”, Revista Direito e Justiça da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, vol. XIV, 2000, págs., pág. 181/182.).
[48] Cfr. Alberto dos Reis, no Código de Processo Civil anotado, vol. III, 3ª ed., pág. 246, segundo o qual se trata de prova que “não assenta sobre quaisquer averiguações ou investigações concretas; exprime um juízo de mera probabilidade ou conjectura, que tem por base a lição da experiência e os sucessos normais da vida”.
[49] Porém, não perfilha o autor este entendimento, sobretudo quando o paciente é colocado em posição mais gravosa nos casos das intervenções de difícil execução, precisamente aquelas que lhe poderão acarretar consequências mais negativas.
     E vai mais longe defendendo e preconizando se deva consagrar em matéria de responsabilidade civil médica uma inversão do ónus da prova da culpa a favor do paciente, atentas as suas dificuldades em matéria de actividade probatória pois que não domina os conhecimentos técnicos adequados, crescentes com a utilização de tecnologias muito avançadas, embora reconhecendo as dificuldades que a tal coloca a distinção entre obrigações de meios e de resultado, e no limite preconiza a admissibilidade da aplicação da Lei de Defesa do Consumidor às relações jurídicas estabelecidas entre pacientes e médicos/instituições de saúde (ob. cit., págs. 61 a 77, particularmente págs. 69/70, e 91/92). 
[50] Também aceite e destacada por Miguel Teixeira de Sousa, na obra citada, págs. 140 a 143.
[51] Cfr. João Álvaro Dias, “Culpa médica: algumas ideias-força”, in Revista Portuguesa do Dano Corporal, Ano IV, nº 5, pág. 18.
[52] Que tem motivado o desenvolvimento de soluções muito próximas da responsabilidade objectiva dos médicos. Tem-se vindo a seguir em crescendo, particularmente nos Estados Unidos, a teoria da “re ipsa loquitur” (“a coisa fala por si”), que terá sido formulada pela primeira vez na Inglaterra, em 1863, pelo Juiz Baron Pollock, que se diferencia da prova prima facie já referida, segundo a qual perante a evidência das lesões surge uma presunção de negligência do médico, desonerando o demandante/paciente da prova (ex. um bisturi que foi deixado no interior do corpo do paciente após a intervenção cirúrgica).
[53] Que poderão corresponder ao que Miguel Teixeira de Sousa entende por “ um erro grosseiro – isto é, uma violação indiscutível segundo o estado de conhecimento da ciência médica no momento do diagnóstico ou do tratamento”, (ob. cit., pág. 142).
[54] Neste sentido parece igualmente pronunciar-se Moitinho de Almeida na obra citada a págs. 332.
[55] Em Portugal ainda facultativo. Sobre os modelos alternativos que têm vindo a ser introduzidos em diversos países, veja-se o trabalho de Carla Gonçalves, “A Responsabilidade Civil Médica: Um Problema Para Além Da Culpa”, vol. nº 14 do Centro de Direito Biomédico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, pág. 170 e segs.
[56] Noções Elementares de Processo Civil, 1976 pág. 202.
[57] Na “Responsabilidade Médica em Direito Penal”, (Estudos dos Pressupostos Sistemáticos), Almedina, 2007, págs. 271.
[58] In “Culpa Médica: algumas ideias-força”, já citada, pág. 30.