Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08A3665
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: URBANO DIAS
Descritores: DOCUMENTO PARTICULAR
FORÇA PROBATÓRIA
Nº do Documento: SJ20081209036651
Data do Acordão: 12/09/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
A força probatória do documento particular circunscreve-se no âmbito das declarações (de ciência ou de vontade) que nela constam como feitas pelo respectivo subscritor.
Tal como no documento autêntico, a prova plena estabelecida pelo documento respeita ao plano da formação da declaração, não ao da sua validade ou eficácia. Mas, diferentemente do documento autêntico, que provém de uma entidade dotada de fé pública, o documento particular não prova plenamente os factos que nele sejam narrados como praticados pelo seu autor ou como objecto da sua percepção directa.
Nessa medida, apesar de demonstrada a autoria de um documento, daí não resulta, necessariamente, que os factos compreendidos nas declarações dele constantes se hajam de considerar provados, o mesmo é dizer que daí não advém que os documentos provem plenamente os factos neles referidos.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1.
Relatório
AA e marido, BB, CC e marido, DD, EE e marido, FF, GG e marido, HH, e II e mulher, JJ, instauraram, no Tribunal Judicial de Guimarães, acção ordinária contra
LL e mulher, MM, pedindo a sua condenação no pagamento de 75.023,16 € e juros.
Em suma, alegaram que o seu falecido pai e sogro emprestou aos RR., em 1992, a quantia de 7.500.000$00 (correspondente a 37.409,84 €), tendo estes apenas feito entrega de 775.600$00 (3.868,67 €), razão pela qual ficou em dívida a importância de 6.724.400$00 (33.541,18 €).

Os RR. contestaram, dizendo que a importância de 37.409,84 € representa o preço do trespasse do estabelecimento comercial que era do dito FM e que foi por eles adquirido e não o montante de qualquer mútuo que nem sequer existiu e que o mesmo foi pago na íntegra. Mais alegaram em favor da sua absolvição que o falecido pai dos AA. ficou a dever-lhes várias outras importâncias e que parte dos juros peticionados já está prescrita.

Na réplica, os AA. contrariaram a defesa excepcional dos RR..

Saneado e condensado, o processo seguiu a tramitação normal até julgamento, após o que foi proferida sentença a julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência, foi declarada “operada a compensação do crédito dos AA. no montante de 28.239,99 euros (…) com o contra-crédito das despesas dos RR., de montante a liquidar em execução de sentença na parte correspondente”, e foram condenados “os RR. a pagarem aos AA. a parte não compensada do crédito deste, se o houver”.

Inconformados com o teor desta decisão, os RR. apelaram, então, para o Tribunal da Relação de Guimarães que, por acórdão lavrado a fls. 335 e seguintes, a revogou e, consequentemente, os absolveu do pedido.

Foi a vez de os AA. manifestarem o seu inconformismo com o acórdão proferido e, por isso, recorreram de revista para este Supremo Tribunal de Justiça, tendo, para o efeito apresentado a respectiva minuta que fecharam com as seguintes conclusões:
- Ao reapreciar a matéria de facto controvertida constante dos quesitos 13° e 17°, alterando consequentemente as respostas dadas aos mesmos, o acórdão recorrido violou disposição expressa da lei que estabelece o valor de determinado meio probatório. Na verdade,
- Os presentes autos fundam-se numa dívida constituída pelos RR. a favor do falecido FM, pai e sogro dos AA., cujo montante, tempo e modo de pagamento consta de um documento de confissão de dívida que aqueles subscreveram e entregaram ao falecido, conjuntamente com quatro cheques de garantia de pagamento da mesma.
- O acórdão de que se recorre alterou a resposta aos indicados quesitos 13º e 17º, fundamentando tal decisão na reapreciação dos depoimentos das testemunhas arroladas pelos RR., as quais diz terem referido, em síntese, a existência de um acordo nos termos do qual a quantia confessamente em dívida deveria ser paga – e tê-lo-ia efectivamente sido – em prestações mensais de 80.000$00 cada e, ainda, na conjugação de tais depoimentos com o teor dos documentos de fls. 52 a 57 imputados pelos RR. ao punho do FM, entendendo que essa conjugação aponta “no sentido de terem sido liquidados os montantes em tais documentos inscritos”.
- Dos invocados depoimentos testemunhais entende assim a Relação resultar a existência de um posterior acordo entre o credor (FM) e os devedores (os RR.) da quantia confessamente em dívida, nos termos do qual o pagamento da mesma seria feita não no tempo e pela forma plasmada no documento de confissão de dívida mas, antes, mediante pagamentos prestacionais, que teriam sido efectivamente pagos.
- Acontece que, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 394° do Código Civil, é inadmissível a prova por testemunhas que tenha por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou de documentos particulares mencionados nos artigos 373° a 379°, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores”.
- Pelo que inadmissível é também a alteração da matéria de facto controvertida constante dos quesitos 13° e 17° – “no sentido em que o feita” (sic) – tendo por base depoimentos que podem até ser credíveis mas que, à luz da lei – citado artigo 394º, nº 1 do Código Civil – são simplesmente inadmissíveis, e que por isso mesmo e enquanto tal terão sido desconsiderados, e bem, em sede de primeira instância.
- Assim, na parte em que reaprecia a matéria de facto e, em consequência, altera as respostas dadas em sede de primeira instância àqueles quesitos 13º e 17º, o acórdão recorrido, concedendo eficácia probatória a depoimentos testemunhais inadmissíveis, viola o citado artigo 394º, nº, 1 do Código Civil.
- Sem prescindir, sendo aqueles depoimentos testemunhais legalmente inadmissíveis, não constando aquele invocado posterior acordo – “ convenção” nos termos da lei – de qualquer documento escrito que os RR. tenham apresentado, não tendo o falecido credor devolvido aos RR. o título original do crédito, nem lhes tendo passado qualquer tipo de quitação legal e, finalmente, não sendo os “papéis” que constituem os documentos 52 a 57, sequer, documentos particulares por lhes faltar a assinatura do seu alegado subscritor, não se encontrava a Relação na posse de todos os elementos de prova produzidos sobre aqueles quesitos 13º e 17°, como refere e obriga o indicado artigo 712°, nº 1, aliena a).
- Pelo que, ao reapreciar a matéria de facto controvertida dos quesitos 13° e 17° no sentido em que o fez, agiu a Relação muito para além dos limites traçados por lei – o invocado artigo 712º, nº 1, alínea a) – no uso dos poderes que aquele normativo lhe confere.
- Também ao reapreciar a matéria de facto controvertida constante do quesito 18°, alterando consequentemente a resposta dada ao mesmo, o acórdão recorrido violou disposição expressa da lei.
- Nos presentes autos, os RR. fundamentaram grande parte da sua argumentação na existência de um pretenso acordo entre eles e o falecido FM, nos termos do qual a quantia em dívida seria paga em prestações mensais fixas de 80.000$00 cada – quesito 13°, in fine – sem prejuízo de poderem ocorrer outros pagamentos, para além daqueles que haviam estipulado como fixos – quesito 14.
- O acórdão recorrido entendeu que da prova produzida não resultava qualquer alteração à resposta negativa ao quesito 14° porquanto aquela “não se mostra clara, apenas tendo tido referências vagas, pouco precisas e convincentes”.
- Já o quesito 18º, o qual versa, precisamente, sobre alegados pagamentos que os RR. teriam feito ao credor para além daqueles que haviam estipulado como fixos – portanto, matéria de facto controvertida idêntica à do quesito 14°– foi reapreciado, acabando por de não provado passar a parcialmente provado.
- Assim temos que o acórdão da Relação, reapreciando a matéria de facto controvertida, mantém como não provada a existência de um acordo nos termos do qual sempre que o R. marido pudesse e o Sr. FM o solicitasse, poderiam ocorrer outros pagamentos, para além daqueles que haviam estipulado como fixos – quesito 14º – mas, contraditoriamente e, sobretudo, tendo por base prova produzida que não se mostra clara, apenas tendo tido referências vagas, pouco precisas e convincentes”, dá como provado que “para além de tais pagamentos [as prestações de 80.000$00 mensais] foram [ainda] efectuados os seguintes. Ora,
- Se o problema da alteração das resposta dadas em primeira instância, pela Relação, deve ser analisado não numa perspectiva global da apreciação decisória do conjunto da matéria factual mas, antes, relativamente a cada facto, através da resposta precisa e independente e alheia à consequência decisória, sabido é, também, que dessa alteração não pode, nem deve, resultar uma contradição evidente.
- Por outro lado também aqui se não prescinde e expressamente se invoca, ser inadmissível prova testemunhal sobre esta outra alegada “convenção” contrária ou adicional ao documento particular de confissão de dívida outorgada pelos RR., em clara violação do disposto no já citado artigo 394º, nº 1, do Código Civil.
- Mas, quanto à reapreciação da matéria de facto controvertida do quesito 18º, a verdade é ainda que, quanto a estes alegados “outros pagamentos” não se vislumbra no acórdão recorrido uma única menção ou palavra sobre a matéria de facto que tenha levado fundamentadamente à sua reapreciação em sentido diferente daquele que lhe foi atribuído em primeira instância.
- Já que para além daquela curta e bem explicita referência à deficiente prova produzida quanto a esta matéria, do acórdão recorrido não se extrai qualquer análise crítica da prova produzida, tão pouco qualquer especificação dos fundamentos decisivos para a formação da convicção do julgador, que justifique ou fundamente a reapreciação do quesito 18° no sentido em que o foi, parecendo a mesma resultar de mero juízo arbitrário ou simplesmente intuitivo.
- Pelo que, ao não haver qualquer menção aos concretos meios de prova em que tal reapreciação se baseou nem tão pouco os motivos porque eles se tornaram credíveis e decisivos, o acórdão recorrido nesta parte manifestamente viola também o disposto no artigo 635º, nº 2 do Código de Processo Civil.
- Sendo ainda e finalmente que, também aqui, ao não dispor, como não dispôs o julgador de segunda instância, da totalidade dos elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa – alínea a) do nº 1 do artigo 712º do Código de Processo Civil – em muito ultrapassou o acórdão recorrido os poderes que por este normativo lhe são conferidos.

Em defesa da manutenção do acórdão impugnado, contra-alegaram os recorridos.

2.
As instâncias deram como provados os seguintes factos:
1. Os AA. são filhos e únicos herdeiros legítimos de FM, falecido a 1 de Janeiro de 2004, na freguesia de ..., Guimarães, sem testamento ou qualquer disposição de última vontade e no estado de viúvo de MS.
2. Os RR., por seu turno, são, respectivamente genro e filha da senhora com quem o falecido FM passou os últimos anos da sua vida, de nome JF.
3. Os RR. constituíram-se em dívida para com o falecido FM pela quantia de 7.500.000$00 (37.409,84 €).
4. Aquando do referido em 3. os RR. emitiram quatro cheques no valor de 1.875.000$00 (9352,46 €) cada um e datados de 30-12-93, 30-12-94, 30-12-95 e 30-12-96.
5. Os RR. entregaram ao falecido FM para além dos pagamentos referidos em 5.a, as seguintes quantias:
- Em 03/07/1992 – 271.600$00 contra valor de 1354,73 €, titulada pelo cheque nº 2390390539;
- Em 04/08/1992 – 223.000$00; Em 16/09/1992 – 80.000$00; Em 02/10/1992 – 106.000$00; Em 23/12/1993 – 17.000$00; Em 02/05/1994 – 200.000$00; Em 02/02/1995 – 300.000$00 titulada pelo cheque nº 80000000; Em 27/07/1995 – 100.000$00; Em 17/08/1995 – 100.000$00; Em 28/10/1995 – 50.000$00 titulada pelo cheque nº 0900000000; Em 18/03/1996 – 49.000$00 e em 18/03/1996 – 49.000$00 (contra valor € 488,82), tituladas pelos cheques nºs 100000000 e 100000000; Em 29/11/1996 – 50000$00 (contra valor € 249,39), titulada pelo cheque nº 30000000; Em 19/08/1997 – 50000$00 (contra valor € 249,39), titulada pelo cheque nº 5000000000000; Em 07/04/1998 – 200.000$00 (contra valor € 997,60), titulada pelo cheque nº 7000000000; Em 07/05/2000 – 100.000$00 (contra valor € 498,80), titulada pelo cheque nº 600000000.
5.a – Os RR. pagaram ao falecido Sr. FM, no âmbito das mensalidades acordadas, entre Outubro de 1992 e Dezembro de 1999 as quantias assim discriminadas por anos: 1992 - 3 meses x 80.000$00 = Esc. 240000$00 (Eur. 1.197,12); 1993 - 12 meses x 80.000$00 = Esc. 960.000$00 (Eur. 4788,46); 1994 - 12 meses x 80.000$00 = Esc. 960.000$00 (Eur. 4.788,46); 1995 - 12 meses x 80.000$00 = Esc. 960.000$00 (Eur. 4.788,46); 1996 - 12 meses x 60.000$00 = Esc. 720.000$00 (Eur. 3.591,35); 1997 -12 meses x 60.000$00 = Esc. 720.000$00 (Eur. 3.591,35); 1998 -12 meses x 60.000$00 = Esc. 720.000$00 (Eur. 3.591,35); e 1999 – 12 meses x 40000$00 = Esc. 480.000$00 (Eur. 2.394,23).
6. O falecido Sr. FM, após ter enviuvado, juntou-se em comunhão de vida com a referida Sr.ª JF, com quem passou a residir, na habitação desta, desde o ano de 1987.
7. Tal união verificou-se até à morte daquele em 1 de Janeiro de 2004.
8. O Sr. FM, no decurso do ano de 1989, decidiu passar a explorar comercialmente o estabelecimento designado por “Café F...”, sito na Rua do ..., nº 3, em ..., Guimarães, que tinha também o fim de snack-bar, casa de pasto e restaurante.
9. Actividade que passou a cumular com a sua anterior ocupação profissional na empresa de cutelarias “Mafil”, sita também na freguesia de ..., deste concelho.
10. Ao fim de cerca de um ano da mencionada exploração do café, o Sr. FM começou a insistir com o R. marido para tomar conta do mesmo.
11. Perante as reiteradas insistências do Sr. FM, o R. marido acabou por aceitar, o que veio a suceder em meados do ano de 1992.
12. O preço ajustado de tal cedência de exploração foi fixado em Esc. 7.500.000$00 (Eur. 37.409,84), que seria pago em mensalidades de Esc. 80.000$00 (Eur. 399,04).
13. O R. marido assumiu a exploração efectiva do dito estabelecimento em Junho de 1992, mas tal negócio só se formalizou em 21 de Janeiro de 1993.
14. Foi o R. marido quem entregou a “declaração” e os quatro cheques de fls. 10 e 11.
15. O pai dos AA., entre Junho de 1992 e Junho de 2001, almoçava todos os dias úteis, e em que trabalhava, no estabelecimento dos RR., gratuitamente.
16. O valor médio era de 300$00, por refeição.
17. A boda do casamento da A. filha do Sr. FM, GG, realizou-se no estabelecimento comercial explorado pelos RR. e não foi paga.
18. O falecido Sr. FM abastecia-se de produtos alimentares que os RR. comercializavam no seu mini-mercado.
19. Foram os RR., dada a alegada proximidade e amizade que o acompanharam nos tratamentos de saúde, deslocações a médicos e a exames e que custearam tais deslocações e demais despesas até ao momento do seu falecimento.

3.
Quid iuris?
A decisão cujo mérito é posto à nossa consideração revogou o julgado da 1ª instância, com base na alteração da matéria de facto, em parcial sintonia com o objecto de recurso que lhe serviu de base.
Com efeito, os RR.-apelantes puseram, então, o acento tónico da sua discordância no juízo probatório firmado na 1ª instância, muito embora não tivessem deixado escapar a oportunidade de, a pretexto de uma falsa nulidade, enfatizar o erro de decisão traduzido na inconsideração do facto de não ter sido provada a factualidade que serviu de base ao pedido formulado pelos AA. (não ficou provado o alegado mútuo), o que deveria, desde logo, ter redundado na improcedência da acção.
Vistas e analisadas as conclusões do recurso de revista, marcos delimitadores do nosso poder cognitivo, verificamos que somos confrontados com as seguintes questões:
1ª – Terá a Relação de Guimarães, ao alterar as respostas dadas aos pontos nºs 13 e 17 da base instrutória, violado o disposto no artigo 394º do Código Civil?
2ª – E terá a Relação, com tais alterações, ido para além do que lhe era consentido pelo artigo 712º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Civil?
3ª – E, finalmente, terá a Relação violado esse mesmo preceito legal ao alterar a resposta dada ao ponto nº 18?

Analisemos, separadamente, cada uma destas questões.

1ª – Da alegada violação do artigo 394º do Código Civil.
Este preceito legal, no seu nº 1, prescreve:
“É inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo do documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373º a 379º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores”.
Em causa está, ou parece estar, a questão da não admissibilidade de prova testemunhal a contrariar o teor do documentado.
Concretamente, na base da crítica está o documento junto com a petição inicial e que consta de fls. 9, no qual os RR. declaram estar a dever a FM a quantia de 7.500.000$00 e se comprometem a pagar por meio de quatro cheques (doc. nº 2).
Mas, vistas bem cousas, não nos parece que os RR. tenham posto em crise a declaração que lhes é atribuída pelos AA.. O que aconteceu é que, defendendo-se nitidamente por excepção, deram à mesma uma outra explicação: na base não está um contrato de mútuo, mas sim o preço de um trespasse.
E o que foi perguntado nos referidos pontos da base instrutória refere-se apenas a este último contrato e não ao alegado mútuo.
Colhe-se, assim, a ideia segura da desvirtuação do que releva para a decisão: reforçada, com as respostas dadas aos quesitos aludidos, ficou, sem dúvida alguma, a tese dos RR..
Permitimo-nos dizer, à guisa de obiter dictum, que isso até seria desnecessário com vista a determinar o destino da acção: a resposta restritiva ao ponto 1º da base instrutória, afastando a verificação do alegado mútuo, é, de per se, suficiente para determinar o seu inêxito.
É que, de acordo com os ditâmes da distribuição do ónus probatório, era aos AA. que cabia a prova do incumprimento do invocado mútuo. Não o tendo conseguido, como resulta claramente do que ficou respondido ao quesito 1º, outra solução não poderia ter a acção que não fosse a improcedência.
Apesar do que fica exposto, não deixaremos de, repetindo-nos, dizer que o teor do documento (não datado, acrescente-se) não foi posto em crise quando a Relação anuiu ao pedido de reapreciação da prova, pois apenas procurou saber e soube não só da veracidade do preço do trespasse como também do seu integral pagamento.
Mais: a versão dada pelos RR. ao teor do documento sai reforçada com a resposta restritiva dada ao quesito 1º - “provado apenas o que consta de C”.
Em C) consta que “os RR. constituíram-se em dívida para com o falecido FM pela quantia de 7.500.000$00 (€ 37.409,84)”.
O que fica dito é suficiente para demonstrar a sem razão dos recorrentes.
Mas não deixaremos de dizer que o simples facto de a Relação ter alterado, por via da audição de testemunhas, as respostas em apreciação, não configura qualquer violação do artigo 394º do Código Civil.
Expliquemo-nos.
Sem dúvida que o documento junto a fls. 9 consubstancia uma confissão de dívida, através de um documento meramente particular.
O artigo 352º do Código Civil define confissão como o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe seja desfavorável e que favoreça a parte contrária.
A sua eficácia está prevista no artigo 358º do mesmo diploma legal.
Relativamente aos documentos particulares, o artigo 374º do Código Civil prescreve o seguinte: “a letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular consideram-se verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado, ou quando este declare não saber se lhe pertencem, apesar de lhe serem atribuídas, ou quando sejam havidas legal ou judicialmente como verdadeiras”.

Quanto à sua força probatória dispõe o artigo 376º do mesmo diploma legal que “o documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações nele atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento” (nº 1), sendo que “os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante” (nº 2).

A força probatória do documento particular circunscreve-se, assim, no âmbito das declarações (de ciência ou de vontade) que nela constam como feitas pelo respectivo subscritor. Tal como no documento autêntico, a prova plena estabelecida pelo documento respeita ao plano da formação da declaração, não ao da sua validade ou eficácia. Mas, diferentemente do documento autêntico, que provém de uma entidade dotada de fé pública, o documento particular não prova plenamente os factos que nele sejam narrados como praticados pelo seu autor ou como objecto da sua percepção directa. O âmbito da sua força probatória é, pois, bem mais restrito (José Lebre de Freitas, "A Falsidade no Direito Probatório", Coimbra, 248 e 249).
Nessa medida, apesar de demonstrada a autoria de um documento, daí não resulta, necessariamente, que os factos compreendidos nas declarações dele constantes se hajam de considerar provados, o mesmo é dizer que daí não advém que os documentos provem plenamente os factos neles referidos.
É que a força ou eficácia probatória plena atribuída pelo nº 1 do artigo 376º do Código Civil às declarações documentadas limita-se à materialidade, isto é, à existência dessas declarações, não abrangendo a exactidão das mesmas.
Na verdade, mesmo que um documento particular goze de força probatória plena, tal valor reporta-se tão só às declarações documentadas, ficando por demonstrar que tais declarações correspondam à realidade dos respectivos factos materiais (Antunes Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra, 1985, página 523, nota 3).
Com tudo isto queremos dizer que, sendo certo que os RR. produziram o documentado a fls. 9., nada impedia o tribunal de conhecer da veracidade do seu teor, nomeadamente através da prova testemunhal produzida: é que, como referido, a eficácia probatória de um documento diz apenas respeito à materialidade das declarações e já não à exactidão das mesmas.

Podemos, pois, sem necessidade de qualquer outra consideração, concluir seguramente pela não transgressão ao artigo 394º do Código Civil por parte do tribunal recorrido.

2ª – Da pretensa violação do preceituado na alínea a) do nº 1 do artigo 712º do Código de Processo Civil.

A tese dos recorrentes, no que a este ponto concreto diz respeito, está também votada ao fracasso, como implicitamente decorre do já dito.
Mas sempre se dirá, corroborando o afirmado, que os quesitos 13º e 17º correspondem a matéria de excepção, alegada, obviamente pelos RR., e dizem respeito não só ao preço do invocado trespasse – causa última da confissão de dívida –, como também ao modo de pagamento e ao pagamento propriamente dito.
Sendo isto assim, como efectivamente é, não descortinamos onde é que verdadeiramente os recorrentes pretendem chegar quando defendem que a Relação fez mau uso do artigo do diploma adjectivo supra referido, certo que todos os elementos probatórios oferecidos são de livre apreciação e todos eles foram globalmente considerados.

3ª - Ainda a violação do preceito referido a propósito da resposta dada ao quesito 18º.

Para os recorrentes a violação do preceito em causa, neste ponto particular da resposta ao quesito 18º, tem a ver com a sua fundamentação – “não se vislumbra … uma única menção ou palavra sobre a matéria de facto que tenha levado fundamentalmente à sua reapreciação em sentido diferente daquele que foi atribuído em primeira instância”, mais “parecendo a mesma resultar de mero juízo arbitrário ou simplesmente intuitivo”, acrescentam e apontam ainda como violado o artigo 653º do mesmo diploma legal.
A este propósito, os recorrentes, a terem alguma razão, esquecem duas cousas: primeira, não arguiram em tempo qualquer nulidade processual, razão pela qual, a ter sido a mesma cometida, está definitivamente sanada (artigo 205º, nº 1 do Código de Processo Civil); segunda, da decisão da Relação não cabe aqui recurso – isso está bem expresso no nº 6 do artigo 712º do Código de Processo Civil.
Como assim, também aqui a razão não está do lado dos recorrentes.

Para além destas questões, entrelaçada com elas, suscitam os recorrentes uma outra, qual seja a da contradição entre as respostas dadas aos quesitos 14º (não provado) e 18º (foram dados apenas como provados pagamentos relativos ao preço ajustado do trespasse).
Não vemos onde está a contradição.
Mais, ainda: como é possível.

Mas todo este desenrolar de queixas – pelos vistos, infundadas – não nos deve fazer perder o rumo do que é essencial.
E o essencial é apenas isto: da prova produzida veio à tona a veracidade do alegado pelos RR., nada se tendo provado no que tange à causa de pedir invocada pelos AA.. Razão de sobra para a acção improceder, como acabou por improceder, por mor da apelação interposta por aqueles.
Daí que se tenha de dizer que, para além das razões avançadas pela Relação, a sorte da acção sempre estaria votada ao insucesso a partir do momento em que não foi posto em crise o juízo probatório firmado pela 1ª instância no que diz respeito ao quesito 1º.
É que caída por terra a causa de pedir, o pedido, naturaliter, fracassa.
Era precisamente isto que os RR., enquanto apelantes, deveriam ter feito sublinhar na crítica dirigida à sentença da 1ª instância e, não, como ficou dito, arguirem a mesma de nula por tal facto.

Em conclusão: improcede, em toda a linha, a argumentação dos recorrentes.

4.
Decisão
Nega-se a revista e condenam-se os recorrentes no pagamento das respectivas custas.


Lisboa, aos 09 de Dezembro de 2008

Urbano Dias (relator)
Paulo Sá
Mário Cruz