Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6354/16.0T8VNG.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO ROSÁRIO MORGADO
Descritores: FIANÇA
EXTINÇÃO
APRESENTAÇÃO À INSOLVÊNCIA
SUB-ROGAÇÃO
INSOLVÊNCIA
HIPOTECA
Data do Acordão: 02/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação:
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES / FIANÇA / EXTINÇÃO DA FIANÇA / LIBERAÇÃO POR IMPOSSIBILIDADE DE SUB-ROGAÇÃO.
DIREITO FALIMENTAR – MASSA INSOLVENTE E INTERVENIENTES NO PROCESSO / MASSA INSOLVENTE E CLASSIFICAÇÕES DOS CRÉDITOS / CONCEITO DE CREDORES DA INSOLVÊNCIA E CLASSES DE CRÉDITOS SOBRE A INSOLVÊNCIA.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 653.º.
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGO 47.º, N.º 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 21.01.2014, PROCESSO N.º 6466/05.5TVLSB.L1.S1.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

- DE 08-11-2016, PROCESSO N.º 1343/14.1TBFIG-A.C1.


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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

- DE 31-03-2016, PROCESSO N.º 85/09.4TBBGC-A.G1;
- DE 23-02-2017, PROCESSO N.º 484/13.7BBRG.G1.
Sumário :
I - A liberação do fiador ao abrigo do regime prevenido pelo art. 653.º do CC pressupõe um facto voluntário (mas não necessariamente culposo) do credor afiançado que determine a perda da faculdade de sub-rogação nos direitos que a este assistiam.

II - A insolvência do devedor originário não impede que o fiador se sub-rogue na posição credíticia, traduzindo-se somente numa potencial impossibilidade de cobrança.

III - Não resultando dos factos provados qualquer deficiência no exercício do direito hipotecário relativamente ao bem imóvel que também garantia o crédito afiançado e não sendo viável ao réu Banco impedir a apresentação à insolvência dos devedores originários, inexiste fundamento para a desoneração da fiança, tanto mais que os recorrentes poderiam ter pago o montante em dívida e, comprovando esse facto no processo de insolvência, se sub-rogado na posição daquele (n.º 3 do art. 47.º do CIRE).

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I - Relatório


1. AA, e mulher, BB, intentaram ação declarativa com processo comum contra Banco CC, S.A., pedindo que seja “declarada extinta a fiança prestada pelos autores relativamente às obrigações resultantes dos contratos de mútuo celebrados entre o R. e os mutuários e de que os AA. são fiadores.”.

Alegaram, para tanto, e em síntese, que:

A ré celebrou com CC e DD contratos de mútuo, com hipoteca, para aquisição de casa de morada de família.

Nesses contratos, os autores declararam constituir-se fiadores e principais pagadores, com renúncia ao benefício da excussão prévia, de todas as obrigações emergentes dos referidos contratos para os mutuários.

Os mutuários, porém, deixaram de pagar as prestações em dívida desde 2.10.2012, no montante global de EUR 201.177,36, tendo sido declarada a sua insolvência, por sentença transitada em julgado, em 22.3.2013.

A ré reclamou o seu crédito, no âmbito da insolvência, o qual foi reconhecido pelo valor de EUR 201.177,36.

Por sua vez, o imóvel hipotecado, único bem detido pelos insolventes, após sua apreensão para massa insolvente, foi vendido com a concordância da ré por EUR 85.500,00, sendo que, à data da concessão dos empréstimos, havia sido avaliado em EUR 175.000,00.

A ré interpelou os autores para procederem ao pagamento das quantias ainda em dívida, atenta a sua qualidade de fiadores.

Entendem, porém, que, dadas as finalidades específicas dos contratos, visando a aquisição de casa própria dos mutuários, bem com a diferença entre o valor da avaliação e o valor da venda e entre este e o montante da dívida, a atuação da ré configura abuso de direito.

Além disso, traduziria um enriquecimento injustificado do Banco, por inexistir causa legítima para receber dos autores a prestação em causa.

Por outro lado, a ré, perante o incumprimento dos contratos pelos mutuários, não encetou diligências junto deles tendentes à cobrança coerciva das prestações vencidas e não pagas, nem informou os fiadores, ora autores, da situação de incumprimento, que, por essa razão, se viram impossibilitados de, por via do cumprimento, ficar sub-rogados nos direitos do credor.

2. Contestou a ré, alegando em resumo que:

Os mutuários só se constituíram em mora após 02.11.2012, tendo o Banco diligenciado junto deles no sentido de ser estabelecido um plano que evitasse a resolução dos contratos.

Porém, ainda nessa fase pré-contenciosa, os mutuários apresentaram-se à insolvência, tendo sido declarados insolventes, o que determinou a citação da ora ré no processo de insolvência, atenta a sua qualidade de credora hipotecária, ali tendo reclamado os seus créditos acumulados à data de início da mora, no montante de EUR 201.177,36 no que toca ao mutuário e de EUR 201.631,38 quanto à mutuária.

Os anúncios das insolvências foram publicitados nos locais próprios, tendo os fiadores sido notificados após a reclamação de créditos (em 01.04.2013 e em 04.04.2013), da resolução ocorrida e dos valores em dívida. E entre o momento em que foram notificados e o momento da venda judicial, em 16.12.2015, cerca de dois anos e meio depois, bem poderiam ter liquidado a dívida reclamada, ficando, assim, sub-rogados no direito do credor.

Mais alegou que, à data da venda em leilão do imóvel hipotecado, se assistia a uma desvalorização geral no mercado imobiliário, daí que o preço da venda seja o resultado da conjuntura, então vivida.

Concluiu, pedindo a improcedência da ação.

3. Na 1ª instância, foi proferida sentença que julgou a ação procedente.

4. Desta decisão, apelou a ré, tendo o Tribunal da Relação do Porto julgado a apelação procedente e absolvido a ré do pedido.

5. Irresignados com o decidido, vieram os autores interpor revista, formulando as seguintes conclusões:

A) Nas relações entre o devedor e o fiador, como aplicação do princípio geral em matéria de sub-rogação, estabelece o artigo 644º do Código Civil que “O fiador que cumprir a obrigação fica sub-rogado nos direitos do credor, na medida em que estes forem satisfeitos.” Por força deste regime, opera-se a transferência do crédito por sub-rogação legal, com as suas garantias e acessórios, de acordo com o regime da cessão de créditos, previsto no artigo 582º ex vi legis do disposto no artigo 594º do Código Civil. O fiador pode depois demandar o devedor por aquilo que pagou

B) Como consequência do princípio geral em matéria de sub-rogação, o artigo 653º do Código Civil sob a epigrafe “Liberação por impossibilidade de sub-rogação”, estabelece que “Os fiadores, ainda que solidários, ficam desonerados da obrigação que contraíram, na medida em que, por facto positivo ou negativo do credor, não puderem ficar sub-rogados nos direitos que a este competem.”

C) Desta norma resulta que o credor que proceda de modo a obstar que o fiador se sub-rogue nos seus direitos, perde a garantia da fiança, na medida em que o fiador fica desonerado da obrigação da fiança. O que se compreende, na medida em que a conduta omissiva do credor impede a sub-rogação do fiador na sua posição. E é precisamente o alcance da conduta omissiva do R. perante os AA. que está em apreciação neste recurso, considerando o Tribunal de 1ª instancia apoiando-se na matéria de facto dada como provada.

D) Os AA. constituíram-se fiadores numa operação de crédito do banco R. aos mutuários CC e DD, para aquisição de habitação destes, garantido por hipoteca sobre o imóvel/habitação.

E) Os mutuários entraram em incumprimento no contrato de financiamento/mútuo. Os mutuários apresentaram-se à insolvência, tendo o R. banco reclamado o seu crédito, no valor de 201.177,36 €. O imóvel era o único bem dos insolventes. Após sua apreensão pela massa insolvente, e feitas diligências de venda, foi pelo R. banco feita proposta de adjudicação pelo valor de 85.317,44 €, tendo sido feita proposta de compra pelo valor de 85.500,00 €, tendo esta sido aceite.

F) O bem imóvel aquando da concessão do crédito (ano de 2006) foi avaliado pelo valor de 175.000,00 €. O R. banco apenas interpelou os fiadores, aqui AA., após os mutuários se terem apresentado à insolvência. Face a esta factualidade, a atuação do R. banco efetivamente impediu os aqui AA., fiadores, de se poderem sub-rogar na hipoteca constituída a favor do R. banco.

G) O Acórdão recorrido não considerou a conduta omissiva do R. determinativa da extinção da fiança, desvalorizando totalmente o facto do banco R. se apresentar a comprar por 85.317,44 uma habitação que avaliara e concedera crédito alguns anos antes pelo valor de 175.000,00 € e permitindo que esse bem fosse vendido, no total desconhecimento dos fiadores, por 1/3 deste valor para depois se apresentar a reclamar dos fiadores o pagamento da diferença para menos e juros, revelando em tudo um total desinteresse pela sorte dos fiadores e para as consequências que da sua conduta resultasse para estes.

H) Não relevou para o acórdão recorrido os meses que mediaram entre a entrada em incumprimento dos devedores e o momento em que o credor R. avisa os fiadores da entrada em incumprimento dos devedores, já depois destes terem sido declarados insolvente e do único bem que possuíam ter sido vendido por um preço irrisório com o consentimento do R. credor.

I) Desvalorizou totalmente o acórdão recorrido o facto de que a habitação vendida em condições normais, através da intervenção dos AA. fiadores, cobriria a totalidade da dívida ao R., sem necessidade de qualquer pagamento adicional pelos AA.

J) Para o Tribunal da Relação é totalmente irrelevante para o artigo 653º do Código Civil a conduta do R. credor que permite que o património dos devedores seja alienado por um valor irrisório, porque sabe que pode ir buscar aos fiadores o remanescente do seu crédito.

L) O Tribunal da Relação interpretou a norma do artigo 653º do Código Civil no sentido de que não impõe ao credor uma obrigação de zelar pelo património do devedor, mas também que lhe permite deixar delapidar o património dos devedores, deixar destruir esse património e permitir que fique totalmente sem valor, porque sabe de antemão que pode ir sobre o património dos fiadores para obter pagamento do seu credito pela totalidade e com juros.

M) Ou seja, a interpretação da norma é no sentido de permitir condutas negligentes e até dolosas por parte do credor em detrimento dos fiadores, desvalorizando totalmente o interesse da sua intervenção após a entrada em incumprimento pelos devedores no sentido de acautelar o âmbito e a amplitude da responsabilidade pela qual poderão vir a ser chamados.

N) Estamos em crer que uma tal interpretação do artigo 653º do Código Civil não tem qualquer suporte na letra ou no espírito da lei, nem suporte na doutrina e jurisprudência citados.

O) Ora, o credor, assim como recebe com a fiança uma garantia para o crédito, deve, por outro lado, evitar que o fiador, por falta daquela sub-rogação, seja lesado. Januário da Costa Gomes sublinha que "o fato positivo ou negativo do credor terá de ser um facto voluntário, não fazendo aqui sentido a exigência do carácter culposo da sua atuação.

P) Independentemente do facto de não estarmos em sede de determinação de responsabilidade civil do credor – caso em que a «busca» da culpa do devedor (no caso, o credor) teria toda a razão de ser – o que é razoável é que o credor perca a vantagem da fiança na medida em que a perda do direito lhe seja imputável"

Q) Compulsada a factualidade dada como provada, efetivamente os AA. constituíram fiadores numa operação de crédito do banco R. aos mutuários CC e DD, para aquisição de habitação destes, garantido por hipoteca sobre o aludido imóvel/habitação.

R) Os mutuários entraram em incumprimento no aludido contrato de financiamento/mútuo. Os mutuários apresentaram-se à insolvência, tendo o R. banco reclamado o seu crédito, no valor de 201.177,36 €. O bem imóvel era o único bem dos agora insolventes. Após sua apreensão pela massa insolvente, e feitas diligências de venda, foi pelo R. banco feita proposta de adjudicação pelo valor de 85.317,44 €, tendo sido feita proposta de compra pelo valor de 85.500,00 €, tendo esta sido aceite.

S) O bem imóvel aquando da concessão do crédito (ano de 2006) foi avaliado pelo valor de 175.000,00 €. O R. banco apenas interpelou os fiadores, aqui AA., após os mutuários se terem apresentado à insolvência. Face a esta factualidade, a atuação do R. banco efetivamente impediu os aqui AA., fiadores, de se poderem sub-rogar na hipoteca constituída a favor do R. banco. E para que se considere a atuação do credor para feitos de desoneração da obrigação dos fiadores, não é necessário que a mesma seja culposa

T) E se analisarmos ao pormenor a matéria de facto dada por provada, ainda se compreende melhor a falta razoabilidade da solução contemplada no acórdão do Tribunal da Relação do Porto em recurso, colocando em causa os mais elementares princípios básicos da justiça material que as decisões judiciais buscam e tem que ter por princípio supremo a respeitar.

U) Resulta dos documentos juntos que o R. no âmbito do processo de insolvência dos mutuários apresentou proposta de compra por adjudicação da fração que constitui o bem que está na base do credito pelo preço de 85.317,44 e aceitou a sua venda pelo preço de 85.500,00 o único bem em venda e único património dos mutuários que servia de suporte ao pagamento da divida cujo credito reclamou no valor de 201.177,36.

V) O R. por ato livre e expresso permitiu que um bem que avaliou no ano de 2006 pelo valor de 175.000,00 e que esteve na base da concessão do crédito para a sua compra no valor de 151.270,00 fosse vendido pelo preço de 85.500,00 e ainda pretendia adquirir esse bem por um preço inferior correspondente ao valor de 85.317,44.

X) Os mutuários já se encontravam em incumprimento no pagamento das prestações desde 02/10/2012 e o R. nenhumas diligências tomou no sentido da cobrança das prestações vencidas e em divida juntos dos mutuários. Não enviou cartas aos mutuários interpelando-os para procederem ao pagamento das prestações em atraso, sob aviso de instauração de processo judicial para cobrança coativa dos valores em divida. Não instaurou ação executiva para cobrança coerciva das prestações em atraso. Não enviou nenhuma comunicação aos AA., garantes nesses contratos, informando-os de que os mutuários não se encontravam a cumprir o plano de pagamentos a que contratualmente se vincularam e por cujo cumprimento os AA. também podiam vir a ser chamados à responsabilidade.

Y) A primeira comunicação que os AA. receberam do R. a informar do incumprimento e da insolvência dos mutuários ocorreu em 02/04/2013, já depois dos mutuários terem apresentado pedido de declaração da sua insolvência e de esta ter sido judicialmente declarada, por sentença transitada em julgado. Foi no mesmo momento 04/04/2013 que o R. interpela o AA. para procederem ao pagamento da totalidade dos três empréstimos em divida pelos mutuários. Foram os mutuários que por sua iniciativa livre e espontânea, se apresentaram a solicitar a declaração da sua insolvência.

W) À data da entrada em incumprimento dos empréstimos, os mutuários não tinham quaisquer outros bens à exceção da fração autónoma dada em hipoteca à R. Presentemente os mutuários não têm quaisquer bens suscetíveis de penhora. Auferem o vencimento de valor correspondente ao SMN na qualidade de trabalhadores por conta de outrem, vivem em casas arrendadas e com filha, pai e irmão a seu cargo. Os mutuários encontram-se dispensados de entrega do rendimento disponível ao fiduciário no âmbito dos processos de insolvência. Não tem quaisquer bens ou rendimentos disponíveis que permitam aos AA. em via de regresso obter o pagamento dos créditos cujo pagamento o R. pretende por via do acionamento da garantia os AA. sejam chamados a pagar. Não tem quaisquer bens ou rendimentos disponíveis que permitam aos AA. em via de regresso obter o pagamento dos créditos cujo pagamento o R. pretende por via do acionamento da garantia os AA. sejam chamados a pagar.

AA) As condutas do R. levaram a que os AA. ficassem impedidos de se sub-rogarem nos direitos do R. pois neste momento os devedores não tem qualquer património e o R, banco permitiu que o único bem que estes tinham fosse vendido por 1/3 do seu valor real, impossibilitando a sua venda a um preço justo ou que os fiadores levassem a cabo diligencias de venda ou adjudicação da habitação a um preço razoável que permitisse o pagamento do credito do R., e assim, ficar extinta a responsabilidade dos AA. enquanto fiadores.

BB) Afigura-se-nos inequívoco que a desoneração do fiador - por esta via – tem de radicar ou derivar da atuação do credor, enquanto verdadeiro agente provocador, constituindo a sua vontade elemento e fator determinantes para que o fiador, num contexto de colaboração recíproca, imbuído de boa-fé, lealdade e lisura negocial, haja confiado na atuação da forma como o fez.

168 – Ora, as condutas do R. levaram a que os AA. ficassem impedidos de se sub-rogarem nos direitos do R. pois neste momento os devedores não tem qualquer património e o R, banco permitiu que o único bem que estes tinham fosse vendido por 1/3 do seu valor real, impossibilitando a sua venda a um preço justo ou que os fiadores levassem a cabo diligencias de venda ou adjudicação da habitação a um preço razoável que permitisse o pagamento do credito do R., e assim, ficar extinta a responsabilidade dos AA., enquanto fiadores.

CC) E se é certo que o credor não tem por obrigação zelar pelo património do devedor, ainda mais certo é que a norma do artigo 653º do Código Civil e os princípios gerais da boa-fé no cumprimento das obrigações que recai sobre o credor, também não lhe permite que atue de forma dolosa ou negligente para com o património do devedor, deixando-o delapidar-se, destruir-se ou ficar totalmente sem valor, porque sabe que tem a garantia do património dos fiadores para ir ressarcir-se da totalidade do seu credito. A estas condutas, a norma do artigo 762º, nº 2 do Código Civil, constitui impedimento direto.

DD) Como é sabido, o conceito normativo de boa-fé é utilizado pelo legislador em dois sentidos distintos e perfeitamente diferenciados: no sentido de boa-fé objetiva, enquanto norma de conduta, ou seja, no plano dos princípios normativos, como base orientadora e fundamento de efetivas soluções reguladoras dos conflitos de interesses, alcançadas através da densificação, concretização e preenchimento pelos Tribunais desta cláusula geral; e no sentido de boa-fé subjetiva ou psicológica, isto é, como consciência ou convicção justificada de se adotar um comportamento conforme ao direito e respetivas exigências éticas.

EE) Como afirma, por exemplo, o Prof. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 2006, p. 120) neste último caso, a boa-fé reconduz-se a um conceito técnico-jurídico utilizado numa multiplicidade de normas para descrever ou delimitar um pressuposto de facto da sua aplicação. Algo de diverso sucede com o ditame da boa-fé, ele próprio uma regra jurídica que, inclusive, assume o alcance de princípio geral de direito.

FF) Na situação dos autos, releva decisivamente para a composição do litígio o conceito de boa-fé objetiva, que atravessa toda a vida do contrato, desde as negociações preliminares (art. 227º do Código Civil), à integração do contrato (art. 239º do Código Civil) e ao cumprimento das obrigações dele emergentes (art. 762º, nº2 do Código Civil) – de particularíssimo relevo em toda a vida da relação contratual, desde o momento da celebração do contrato, acompanhando-a ao longo do respetivo desenvolvimento e execução.

GG) Ora, está em causa no presente litígio determinar, por preenchimento e densificação da referida cláusula geral, se o comportamento do R. documentado de modo cabal na factualidade apurada e tida por provada, viola ou não os ditames da boa-fé objetiva, tal como devem ser concretizados no âmbito da específica relação contratual.

HH) E sendo, por outro lado, neste quadro, evidente e inquestionável que, a entender-se que tal conduta lesiva, nomeadamente de um dever de lealdade, probidade e verdade do credor no confronto com a posição dos fiadores, viola efetivamente os deveres laterais ou acessórios emergentes do princípio da boa-fé objetiva, por violação dos padrões normativos exigíveis no relacionamento das partes – bastando obviamente, nos termos gerais, a existência de mera culpa ou negligência na violação de tais deveres não dependendo esta da existência de dolo ou intenção de prejudicar.

II) Por outro lado, a falta de interpelação dos fiadores pelo R. após a entrada em incumprimento dos devedores no pagamento das prestações, apos a sua declaração de insolvência e durante o procedimento de venda do único bem dos devedores, foi de fundamental importância pois a sua intervenção permitira a venda da habitação de acordo com a sua valia real no mercado e com pagamento integral do crédito do R..

JJ) Permitiria aos AA. a venda do imóvel a um preço que cobrisse o credito do R., impedindo a sua venda por 1/3 do seu valor, totalmente ao desbarato.

LL) Tal conduta consubstancia uma atuação em total desrespeito pelas regras de boa-fé na condução dos contratos por parte do R. que atuou desta forma apenas porque sabia de antemão que poderia obter dos AA. fiadores o pagamento da totalidade dos seu credito e juros.

MM) No caso temos que o R. contribuiu e muito com a sua conduta para o agravamento da responsabilidade dos AA., permitindo a venda do único bem dos devedores por um preço 60% inferior àquele pelo qual o tinha avaliado no momento em que concedeu o crédito.

NN) Mas também inviabilizou as possibilidades de sub-rogação dos AA. na obtenção dos devedores do pagamento das quantias a que tivessem que ser chamados a reembolsar por ter permitido que a situação de incumprimento se prolongasse e mantivesse no tempo, sem interpelar os mutuários para pagamento das prestações em atraso, sem avisar os fiadores da situação de incumprimento, sem instaurar ação executiva para cobrança dos créditos, sem requerer a declaração de insolvência dos mutuários.

OO) A primeira vez que os AA. tomam conhecimento da situação dos devedores, já estes se tinham apresentado à insolvência e o único bem existente – a habitação de que o R. é credor hipotecário se encontrava apreendida à ordem dos processos de insolvência, sem que os mutuários tivessem quaisquer outros bens por onde obter pagamento das quantias que fossem forçados a pagar.

PP) Entende-se que a circunstância de os fiadores não terem efetuado qualquer pagamento, em cumprimento da obrigação da qual se constituíram fiadores, não impede a que se devam considerar desonerados da garantia prestada.

QQ) Efetuado ou não qualquer pagamento, é da conduta culposa e omissiva do credor que decorre a impossibilidade prática dos fiadores se sub-rogarem nos seus direitos e obterem dos devedores o ressarcimento respetivo, assim como, é em resultado da conduta do credor que o grau de responsabilidade que os fiadores podem ser chamados a cumprir se mostra substancialmente agravada. E, assim independentemente do lapso temporal decorrido sobre a data da constituição da fiança, se tem de concluir pela insubsistência da fiança. Dito de outro modo, decorre diretamente do artigo 653º que para existir a sub-rogação a que alude o artigo 644º era necessário que o R. tivesse interpelado os mutuários para pagarem logo que incorresse a situação de incumprimento, e disso desse conhecimento aos AA. para iniciarem diligencias juntos dos mesmos com vista ao pagamento ou que tivesse instaurado ação executiva mais cedo, como poderia ter feito, atenta a data em que os mutuários deixaram de cumprir com o pagamento das prestações, dando assim origem a que os devedores se apresentasse os dois à insolvência e que o seu único bem fosse apreendido nesses processos.

SS) Ao omitir por completo qualquer desses comportamentos, o R. impediu que os AA. possam agora vir a discutir o seu potencial crédito contra os devedores declarados insolventes, uma vez que a sub-rogação se tornou impossível, por inexistência de quaisquer bens. É que, a insolvência assenta numa insusceptibilidade de solver compromissos, daí resultando que, todas as ações em que se apreciassem questões relativas aos bens compreendidos na massa, sejam apensadas ao processo de insolvência e a declaração desta obsta à instauração ou prosseguimento de qualquer ação executiva contra os devedores.

TT) Por outro lado, o R. a aceitar que o único bem que constitui o património dos devedores insolventes fosse vendido por preço substancialmente inferior àquele pelo qual o avaliou no momento da concessão do crédito e ao pretender, ele próprio comprá-lo por preço ainda inferior, agravou consideravelmente a responsabilidade dos AA. fiadores.

YY) Quer dizer, o R. criou uma situação aos AA. de estes não puderem, por qualquer meio, ser ressarcidos pelos devedores insolventes, caso fossem obrigados a ressarci-lo, deixando, desta forma, sem qualquer conteúdo, o instituto da sub-rogação, pois este implica a transferência do crédito respetivo com as suas garantias e acessórios, passando o fiador a ter o direito de exigir do devedor tudo o que haja por ele pago, incluindo, para além do capital, os juros, as despesas e demais acréscimos de harmonia com o disposto no artigo 634º do Código Civil, pois no caso concreto tal direito tornou-se de impossível concretização.

UU) Ou seja, os AA. fiadores podem desvincular-se porque por ato omissivo do credor R., os AA. seus garantes perderam os seus direitos de sub-rogação. Se os AA. pagassem a garantia ao R. nunca reaveriam o dinheiro por culpa da omissão do credor, além de que o valor a pagar ao R. seria substancialmente mais elevado também por sua conduta exclusiva ao permitir e ao pretender adquirir o único bem por um preço inferior a 60% daquele pelo qual avaliou o bem.

VV) A situação dos AA. trata-se de um caso em que o fiador tem a possibilidade de se desvincular, declarando o tribunal a sua desoneração da obrigação de cumprir perante o R. as garantias uma vez que, por culpa da omissão do beneficiário das garantias/credor da obrigação principal, os fiadores perderam a possibilidade de ao cumprir se sub-rogarem nos direitos do credor perante os devedores.

WW) Trata-se também da única solução que é justa, segundo a correta ordenação do direito e do sentimento dominante na comunidade, pois não seria justo serem os AA. fiadores a terem de suportar o prejuízo na sua esfera jurídica por facto imputável ao credor. O R. credor não atuou de boa-fé, atuando em abusivamente e, não podem ser os fiadores a pagar pelos erros e atuações culposas do credor, pois tinha o dever de fazer de tudo para receber o pagamento do devedor e só depois pedir o cumprimento do fiador pelo valor em falta e na medida do menor valor possível. Além disso, devia faze-lo atempadamente, para que os direitos dos AA. ficassem salvaguardados e estes se pudesse sub-rogar nos direitos do R. perante os devedores a fim de reaverem o seu dinheiro.

XX) Em casos como o que se verifica na pessoa dos AA. faz todo o sentido, a sua desvinculação da fiança, pois apesar de o fiador assegurar o cumprimento perante o credor de determinada prestação, também ele (fiador) merece proteção, e como tal, não seria justo sair prejudicado por um ato positivo ou negativo do credor, no caso negativo - não interpelação dos devedores para pagamento dos créditos, nem instauração do processo de cobrança executiva da hipoteca - e positivo – aceitação da venda do único bem a preço 60% inferior ao valor da avaliação, apresentado proposta de compra por preço ainda inferior.

RR) Em casos como o que se verifica na pessoa dos AA. faz todo o sentido, a sua desvinculação da fiança, pois apesar de o fiador assegurar o cumprimento perante o credor de determinada prestação, também ele (fiador) merece proteção, e como tal, não seria justo sair prejudicado por um ato positivo ou negativo do credor, no caso negativo - não interpelação dos devedores para pagamento dos créditos, nem instauração do processo de cobrança executiva da hipoteca - e positivo – aceitação da venda do único bem a preço 60% inferior ao valor da avaliação, apresentado proposta de compra por preço ainda inferior.

ZZ) Foi assim inteiramente justa e com a mais correta interpretação e aplicação da lei a sentença recorrida ao decidir ser declara extinta a fiança prestada pelos AA. relativamente às obrigações resultantes dos contratos de mútuo supra identificados celebrados entre o R. e os mutuários.

O acórdão recorrido fez errada interpretação e aplicação da lei substantiva, que se traduz na violação do disposto nos artigos 653º, 644º e 762º, nº 2 do Código Civil.

6. Nas contra-alegações, pugnou-se pela confirmação do acórdão recorrido.


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7. Como se sabe, o âmbito objetivo do recurso é definido pelas conclusões apresentadas (arts. 608.º, n.º2, 635.º, nº4 e 639º, do CPC), pelo que só abrange as questões aí contidas.[1]

Por sua vez – como vem sendo repetidamente afirmado – os recursos são meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação do tribunal que proferiu a decisão impugnada, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal a quo.

Sendo assim, a única questão de que cumpre conhecer consiste em saber se deve, ou não, considerar-se extinta a fiança, nos termos previstos no art. 653º, do CC.


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II – Fundamentação de facto


8. As instâncias deram como provado que:

1.      Por escrito particular outorgado em 2006.11.28, o R. celebrou com CC e DD um contrato de mútuo com hipoteca e fiança, pelo qual emprestou a estes a quantia de € 116.795,00, a liquidar em 444 prestações mensais e sucessivas.

2.    Também por escrito particular outorgado em 2006.11.28, o R. celebrou com CC e DD um contrato de mútuo com hipoteca e fiança, pelo qual emprestou a estes a quantia de € 34.475,87, a liquidar em 444 prestações mensais e sucessivas.

3.    Por escrito particular outorgado em 2009.09.01, o R. celebrou com CC e DD um contrato de mútuo com hipoteca e fiança de reestruturação, pelo qual emprestou a estes a quantia de € 12.000,00, a liquidar em 360 prestações mensais e sucessivas.

4.    Os referidos contratos foram celebrados pelo R. no exercício da sua atividade de concessão de crédito.

5.  CC e DD confessaram-se devedores dessas quantias, constituindo-se direito real de hipoteca para garantia e liquidação das quantias mutuadas a favor do R. credor.

6.     O A. marido interveio nos três escritos particulares outorgados em 2006.11.28 e em 2009.09.01 na qualidade de fiador, tendo a A. mulher intervindo na celebração do escrito particular outorgado em 2009.09.01.

7.      O R. celebrou ainda com CC e DD em 2009.08.31 um contrato de mútuo, pelo qual emprestou a estes a quantia de € 31.300,00, a liquidar em 60 prestações mensais e sucessivas. (Doc. n° 4)

8.       Os mutuários movimentaram e utilizaram as quantias referidas nos empréstimos na aquisição da fração autónoma "R" que constituía a casa de morada de família

9.      A fração autónoma "R" constitui uma habitação do tipo T4 do prédio urbano sito na Avenida …, n° 1643 - 7o E, da União das freguesias de …, com a área privativa de 146 m2 e área dependente de 20 m2 e lugar de estacionamento na cave, com 123 m2, descrito na Conservatória do registo Predial sob o n° 438/19851227-R e inscrito na matriz sob o artigo 7958°.

10.      O R. tem três hipotecas registadas sobre a fração autónoma EE "R" pela AP. 90 de 2006/12/06 para garantia do crédito de € 116.795,00, pela AP. 91 de 2006/12/06 para garantia do credito de € 47.231,94 e AP. 1144 de 2009/08/31 para garantia do crédito de € 16.440,00.

11.      Nesses contratos os AA. declararam que se constituem fiadores e principais pagadores, com renuncia ao benefício da excussão prévia de todas e quaisquer obrigações que resultem dos referidos contratos para os mutuários CC e DD

12. Os mutuários CC e DD deixaram de cumprir com o pagamento das prestações vencidas a partir de 02.10.2012.

13.   Quando deixaram de cumprir encontravam-se em dívida prestações no valor global de € 201.177,36, correspondendo a quantia de € 116.795,00 ao primeiro contrato, a quantia de € 34.475,87 ao segundo contrato e a quantia de € 12.000,00 ao terceiro contrato, juros nos montantes de € 3.006,62, € 889,14 e € 408,13 e despesas extrajudiciais nos montantes de € 4.671,80, € 1.379,03 e € 480,00 e a quantia de € 29.691,08 relativa a contrato outorgado em 31.08.2009 e juros no valor de €31.226,55.

14.  DD foi declarado insolvente por sentença proferida em 06.02.2013 no âmbito do processo que sob o n° 901/13.6TBVNG, transitada em julgado em 22.03.2013 e CC foi declarada insolvente por sentença proferida em 21.02.2013 no âmbito do processo que sob o n° 1316/13.1TBVNG, transitada em julgado em 22.03.2013 do extinto … Juízo Cível de ….

15.     O R. reclamou créditos no âmbito dos processos de insolvência dos mutuários no valor global de € 201.177,36.

16.     A fração autónoma "R" constituiu o único bem apreendido aos mutuários no âmbito dos processos de insolvência dos mutuários.

17.      A fração autónoma "R" foi avaliada no ano de 2012 para efeitos de IMI no valor de € 97.240,00.

18.      A prospeção de mercado de venda realizada no ano de 2014 de acordo com as características, localização e envolvente da fração, mediante pesquisa em zonas próximas à zona onde se localiza o imóvel para valores de venda de frações semelhantes e comparáveis obtiveram-se valores entre o mínimo de € 115.000,00 e um máximo de € 170.000,00.

19.     A prospeção de mercado de arrendamento realizada no ano de 2014 de acordo com as características, localização e envolvente da fração, mediante pesquisa em zonas próximas à zona onde se localiza o imóvel para valores de renda/mês de frações semelhantes e comparáveis obtiveram-se valores entre o mínimo de € 550,00 e um máximo de 1.300,00.

20.     Os créditos do R. foram reconhecidos no valor global de € 201.177,36 correspondente ao exato valor reclamado.

21.     O R. apresentou proposta de adjudicação da fração autónoma "R" pelo montante de € 85.317,44.

22.      O Administrador da insolvência (AI) promoveu a venda da fração autónoma através de leilão, tendo por base o valor mínimo indicado pelo credor hipotecário R.

23.      Teve lugar leilão para venda da fração autónoma "R" em 2015.12.05 da qual resultou uma proposta no montante de € 72.500,00.

24.      Em 2015.12.16, o AI recebeu proposta de compra da fração no montante de € 85.500,00.

25.    O R. na qualidade de credor hipotecário foi notificado para se pronunciar sobre a aceitação da nova proposta apresentada, tendo aceitado o valor proposto.

26.      A escritura pública de compra e venda da fração teve lugar no dia 01.03.2016 no Cartório do Notário FF pelo preço de € 85.500,00 tendo sido compradores GG e HH.

27.     O R. credor hipotecário foi o único credor a receber pagamento dos seus créditos pelo produto da venda da fração. (Docs. n.°s 17 e 18)

28.      A fração autónoma foi avaliada para efeitos de concessão de crédito pelo R. aos mutuários em 2006.09.22 pelo valor de € 175.000,00. (Doc. n° 19)

29.      O R. interpelou os AA. para procederem ao pagamento, na qualidade de fiadores, das quantias vencidas decorrentes dos contratos de créditos mencionados supra datados de 21.11.2006 e 31.08.2009, missivas datadas de 02.04.2013.

30.      O R. comunicou ao Banco de Portugal a existência de créditos em situação de incumprimento por parte dos AA. na qualidade de fiadores relativos aos contratos de créditos mencionados supra.

31.      Os AA. figuram ao Banco de Portugal na Central de Responsabilidades de crédito como clientes em situação de risco fundada na existência de créditos em situação de incumprimento por parte dos AA. na qualidade de fiadores relativos aos contratos de créditos mencionados supra.

32.      Os mutuários já se encontravam em incumprimento no pagamento das prestações desde 02.10.2012 e o R. nenhumas diligências tomou no sentido da cobrança das prestações vencidas e em dívida juntos dos mutuários.

33.      Não enviou cartas aos mutuários interpelando-os para procederem ao pagamento das prestações em atraso, aviso de instauração de processo judicial para cobrança coativa dos valores em divida.

34.      Não instaurou ação executiva para cobrança coerciva das prestações em atraso.

35.      Não enviou nenhuma comunicação aos AA, garantes nesses contratos, informando-os de que os mutuários não se encontravam a cumprir o plano de pagamentos a que contratualmente se vincularam e por cujo cumprimento os AA. também podiam vir a ser chamados à responsabilidade.

36.      A primeira comunicação que os mutuários receberam do R. ocorreu em 02.04.2013, já depois dos mutuários terem apresentado pedido de declaração da sua insolvência e de esta ter sido judicialmente declarada, por sentença transitada em julgado.

37.      A primeira comunicação que os AA, receberam do R. a informar do incumprimento e da insolvência dos mutuários ocorreu em 02.04.2013, já depois dos mutuários terem apresentado pedido de declaração da sua insolvência e de esta ter sido judicialmente declarada, por sentença transitada em julgado.

38.      Foi no mesmo momento 04.04.2013 que o R. interpela o AA. para procederem ao pagamento da totalidade dos três empréstimos em dívida pelos mutuários.

39.     Foram os mutuários que por sua iniciativa livre e espontânea, se apresentaram a solicitar a declaração da sua insolvência.

40.     A data da entrada em incumprimento dos empréstimos, os mutuários não tinham quaisquer outros bens à exceção da fração autónoma dada em hipoteca ao R.

41.     Presentemente os mutuários não têm quaisquer bens susceptíveis de penhora.

42.      Auferem o vencimento de valor correspondente ao SMN na qualidade de trabalhadores por conta de outrem, vivem em casas arrendadas e com filha, pai e irmão a seu cargo.

43.      Os mutuários encontram-se dispensados de entrega do rendimento disponível ao fiduciário no âmbito dos processos de insolvência.

44.      Não tem quaisquer bens ou rendimentos disponíveis que permitam aos AA. em via de regresso obter o pagamento dos créditos cujo pagamento o R. pretende por via do acionamento da garantia os AA. sejam chamados a pagar.

45.     Era necessário que o R. tivesse interpelado os mutuários para pagarem logo que incorresse a situação de incumprimento, e disso desse conhecimento aos AA. para iniciarem diligências juntos dos mesmos com vista ao pagamento ou que tivesse instaurado ação executiva mais cedo, como poderia ter feito, atenta a data em que os mutuários deixaram de cumprir com o pagamento das prestações, dando assim origem a que os devedores se apresentasse os dois à insolvência e que o seu único bem fosse apreendido nesses processos.

Da contestação

46.     O incumprimento dos afiançados inicia-se com as prestações reportadas a 02.11.2012.

47.     Só após tal data de 02.11.2012 se constituem os afiançados em situação de mora.

48.      O R. tem como método de atuação, de início e numa fase (normalmente de 6 meses) de contactos pessoais e telefónicos com os mutuários com vista a ultrapassar aquela situação de mora em sede consensual.

49.      Sucede, porém, que no decurso de tal prazo de resolução da mora em sede consensual, os mutuários apresentaram-se à insolvência.

50.      Ora, no seguimento das reclamações de créditos apresentada pelo R. em 19.03.2013 e em 01.04.2013, logo este se apresta a notificar mutuários e fiadores, em 01.04.2013 e em 04.04.2013 respectivamente, da resolução ocorrida e valores em dívida.

51.     O A.I. solicitou ao R. avaliação atualizada do imóvel.

52.      Pedido ao que o R. acedeu, solicitando a entidade externa tal avaliação e promovendo a sua junção aos autos. Naquela avaliação, in fine, vem definido um valor comercial de € 105.000,00, próximo do invocado pelos AA., e um valor de venda rápida de € 85.317,44.


***



III – Fundamentação de direito


9. Da extinção da fiança

Nesta revista, os recorrentes sustentam que a fiança por si prestada para garantia do cumprimento das obrigações emergentes dos contratos de mútuo, a que os autos aludem, deve ser declarada extinta, ao abrigo do estatuído no art. 653º, do CC, já que a atuação da ré os impediu de exercer o direito de sub-rogação nos direitos do credor.

O Tribunal da Relação, contudo, entendeu que, em face dos factos provados, não se mostram verificados os pressupostos da liberação do fiador, ao abrigo da referida previsão legal.

Vejamos, pois.

Como resulta do estatuído no art.º 627º, nº1, do CC, o fiador garante a satisfação do direito de crédito do afiançado, ficando pessoalmente obrigado perante o credor.

Por sua vez, de harmonia com o disposto no art. 644º, do CC, o fiador que cumprir a obrigação fica sub-rogado nos direitos do credor, para quem se transmitem todas as garantias e acessórios do direito de crédito (cf. art. 582.º, n.º 1, do C.C ex vi do art. 594.º do mesmo Código).

Relacionado com este normativo há que atender ao disposto no art. 653º, CC, no qual se estipula que os fiadores, ainda que solidários, ficam desonerados da obrigação que contraíram, na medida em que, por facto positivo ou negativo do credor, não puderam ficar sub-rogados nos direitos que a este competem.

O facto positivo ou negativo do credor terá de ser um facto voluntário, mas não necessariamente culposo. Nesta sede, o que deve exigir-se é que “o credor perca a vantagem da fiança na medida em que a perda do direito lhe seja imputável.”[2]

No que concerne à questão de saber a que «direitos» se refere aquele normativo, diz-nos o Prof. Januário da Costa Gomes que “não sofre dúvidas que o regime plasmado no art. 653º tem aplicação aos casos de garantias associadas ao crédito como são as hipotecas, os penhores, os privilégios ou as fianças; o mesmo se dirá das posições ativas de garantia e segurança decorrentes de uma penhora ou de um direito de retenção.”.

Porém, nos casos em que ocorra uma (mera) impossibilidade prática de realização do direito de cobrança do crédito, por via da sub-rogação, maxime quando o devedor se tenha tornado insolvente, entende aquele Professor que “o credor não tem um dever para com o fiador de zelar pela solvabilidade do devedor, tendo em vista a futura recuperação do crédito por parte do fiador, quando sub-rogado. Centrando-nos no âmbito de aplicação do art. 653º, é irrelevante que o credor “feche os olhos” à gestão patrimonial do devedor ou mesmo à alienação de bens (…). Tais omissões do credor não põem em causa a consistência jurídica, mas apenas económica, do crédito. Pressupostos base de aplicação do regime plasmado no art. 653º é que o fiador não possa ficar sub-rogado nos direitos do credor. Ora, nenhuma impotência patrimonial superveniente do devedor, impede que o fiador, cumprindo, fique sub-rogado na posição de credor.”.

Tal como se escreveu no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 21.1.2014, proferido no proc. nº 6466/05.5TVLSB.L1.S1, relatado pelo Exmo. Juiz Conselheiro Gabriel Catarino, “a fiança, sendo embora, caracteristicamente, a nível de fisionomia e regime, uma garantia de cumprimento, é também uma garantia de solvência do devedor: é uma garantia de consecução do resultado do cumprimento.

Um exemplo dessa consideração do fim de garantia ou de segurança está na tendencial insensibilidade dos termos da responsabilidade fidejussória à sobrevinda impotência económica do devedor. Não faria qualquer sentido que o fiador, que garante a solvência do devedor, pudesse escusar-se a satisfazer o crédito no caso de o devedor não estar em condições, por incapacidade económica, de solver o crédito. A fiança seria, então, uma mera figura de decoração que em nada aproveitaria ao credor.”.[3]

Acolhendo esta doutrina, impõe-se, assim, concluir que a insolvência do devedor principal em nada contende com a sub-rogação do crédito do credor primitivo, traduzindo-se diversamente numa potencial impossibilidade de cobrança do crédito sub-rogado.

Dito isto, e uma vez que importa apurar casuisticamente em que medida é que, face ao art. 653º, do CC., o facto do credor é de molde a provocar a liberação do fiador, afigura-se-nos incontestável que, no caso em apreço, a factualidade dada como provada pelas instâncias, de forma alguma permite imputar à credora, ora ré, uma atuação que torne os fiadores, ora autores, merecedores da tutela ínsita naquele normativo.

Com efeito:

Os autores tiveram conhecimento da situação de insolvência dos mutuários, pelo menos com a notificação da sentença que a decretou.

Não obstante, não se dispuseram a pagar a dívida, caso em que, demonstrado esse facto no processo, assumiriam a posição do credor originário (cf. art. 47º, nº3, do CIRE).

Por sua vez, confrontada com a apresentação à insolvência pelos mutuários, a ré, oportunamente, reclamou o seu crédito, o qual veio a ser reconhecido.

A venda do bem hipotecado por determinado preço teve lugar no âmbito do processo de insolvência, não resultando da matéria apurada nos autos que tivesse havido desrespeito pelas normas insolvenciais aplicáveis.

Também não é de estranhar que o preço da venda (EUR 85.500,00) não corresponda ao valor da avaliação bancária (EUR 175.000,00), realizada aquando da celebração dos contratos de mútuo, tendo em conta o lapso de tempo decorrido entre a outorga desses contratos (2006 e 2009) e a venda (2015). Note-se, aliás, que a avaliação levada a cabo pela Autoridade Tributária, em 2012, para efeitos de IMI, já apontava para um valor muito inferior ao daquela avaliação (EUR 97.240,00).

Ou seja: eventual desfasamento entre o valor obtido na venda judicial do imóvel dado em garantia e o valor deste, terá sido o resultado de uma ausência de melhor oferta, não se tendo apurado qualquer deficiência no exercício do direito hipotecário que possa constituir motivo para que se declare extinta a fiança, nos termos do artigo 653.º do Código Civil.

Por sua vez, decorre do elenco factual que, numa fase em que a ré ainda tentava consensualizar junto dos mutuários uma via alternativa à resolução dos contratos, estes, não obstante terem decorrido escassos meses após a sua entrada em mora, apresentaram-se à insolvência, circunstância que a ré, naturalmente, não poderia impedir, nem controlar.

Compreende-se, assim, que os autores só tenham sido interpelados pela ré para proceder ao pagamento da dívida após a prolação da sentença que declarou a insolvência dos mutuários, na medida em que o «incumprimento definitivo» dos contratos de mútuo ocorreu já na pendência da insolvência.

De todo modo, com a publicação da sentença que declarou a insolvência os autores consideram-se notificados, com as consequências legais que daí advêm, designadamente a do vencimento de todas as obrigações do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva (cf. art. 91º, do CIRE), abrindo-lhes a possibilidade de, querendo, pagar a dívida, a fim de poderem exercer, em sub-rogação, os direitos inerentes no processo de insolvência.

Diga-se, por fim, que, mesmo que a ora ré tivesse instaurado ação executiva contra os mutuários, a declaração de insolvência determinaria inevitavelmente a sua suspensão, nos termos previstos no art. 88º, nº1, do CIRE.

Por conseguinte, não se vislumbra fundamento para desonerar os recorrentes da obrigação que contraíram, enquanto fiadores, perante a recorrida.

Improcede, pois, o recurso.


***


IV – Decisão

10. Nestes termos, negando provimento à revista, acorda-se em confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.


Lisboa, 12/2/2019


Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado (Relatora)

José Sousa Lameira

Hélder Almeida

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[1] Para além daquelas que devam ser conhecidas oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC), o STJ conhece de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações de recurso, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução, entretanto dada a outra ou outras (arts. 608.º, n.º 2, 635.º e 639.º, n.º 1, e 679º, do mesmo diploma), sendo de ter presente que, para este efeito, as «questões» a conhecer não se confundem com os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, aos quais o tribunal o tribunal não se encontra sujeito (art. 5.º, n.º 3, também do CPC).
[2] Cf. Manuel Januário Costa Gomes, Assunção Fidejussória de Dívida, Almedina, pág. 925.
[3] Neste sentido, decidiram também os acs. da Rel de Guimarães de 31.3.2016, proc. nº 85/09.4TBBGC-A.G1 e de 23.2.2017, proc. nº 484/13.7BBRG.G1 e o ac. da Rel de Coimbra de 8.11.2016, proc. nº 1343/14.1TBFIG-A.C1.