Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
375/05.5TCSNT-E.L1.S1
Nº Convencional: 1ª. SECÇÃO
Relator: MANUEL AGUIAR PEREIRA
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
AÇÃO EXECUTIVA
VENDA JUDICIAL
BEM IMÓVEL
NULIDADE
REVISTA EXCECIONAL
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 05/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Sumário :
I. Não cabe recurso ordinário de revista do acórdão do Tribunal da Relação que julgou improcedente a arguição de nulidade da venda de uma fracção autónoma de um imóvel realizada após o falecimento de um executado pela sua herdeira habilitada e declarou não haver fundamento para a suspensão ou deserção da instância executiva, confirmando a decisão no mesmo sentido e com idênticos fundamentos, proferida em primeira instância.

II. O recurso de tal acórdão não está abrangido pela previsão normativa do artigo 671.º n.º 1 e 2 alínea a) em conjugação com o artigo 629.º n.º 2 ou do artigo 854.º, todos do Código de Processo Civil.

III. Não sendo o acórdão proferido em segunda instância recorrível de acordo com as regras gerais sobre a admissibilidade da revista, é irrelevante a ponderação dos requisitos específicos da admissibilidade a título excepcional do recurso de revista (artigo 672.º n.º 1 do Código de Processo Civil) já que uns e outros devem verificar-se de forma cumulativa.

Decisão Texto Integral:


EM NOME DO POVO PORTUGUÊS acordam em CONFERÊNCIA os Juízes Conselheiros da 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


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I – RELATÓRIO

1. AA, habilitada nos autos como herdeira de BB por sentença proferida em 16 de novembro de 2018, requereu no Juízo de Execução ..., que fosse declarada a nulidade da venda judicial da fracção autónoma sita na Rua ... em ..., a qual tinha tido lugar em 12 de dezembro de 2012.

Alegou em síntese, que a venda da fracção em causa teve lugar após a morte do executado BB, ocorrida em 1 de fevereiro de 2010, facto de que foi dado conhecimento no respectivo processo de execução, sem que tenha sido suspensa a instância, sendo certo que a instância executiva, dado o tempo decorrido até à sua habilitação como herdeira, deveria ter sido declarada deserta.

Pediu, em conformidade, a declaração de deserção da instância ou, caso assim se não entendesse, a nulidade de todos os actos praticados após a morte do executado BB, incluindo a venda judicial do imóvel de que ele era comproprietário e que foi penhorado nos autos.


2. Por despacho proferido em 16 de março de 2022 foi tal requerimento indeferido e ordenado o prosseguimento dos autos com a entrega da fracção do imóvel ao adquirente, no caso a também exequente Caixa Geral de Depósitos.


3. A requerente interpôs então recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por seu acórdão proferido em 29 de setembro de 2022, manteve integralmente e confirmou o despacho impugnado com base no mesmo núcleo de argumentação e fundamentação e sem qualquer declaração de voto divergente.


4. Ainda inconformada com o decidido em segunda instância a requerente interpôs recurso de revista, alegando que a revista é admissível a título excepcional, por estar em causa o direito à habitação constitucionalmente garantido aos cidadãos e ser de particular relevância social e económica a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça na apreciação da decisão (artigo 671.º n.º 1 alínea b) do Código de Processo Civil).

São do seguinte teor integral as conclusões das respectivas alegações de recurso:

“1. O presente processo é nulo por não ter havido notificação do executado BB e, apesar disso, terem sido praticados actos que levaram à venda da fracção sub judice à revelia dos herdeiros do de cujus habilitados nos autos.

2. Desde que foram juntos ao processo documentos pertinentes que confirmavam o decesso do executado BB o processo devia ter sido suspenso só prosseguindo após a habilitação dos seus herdeiros.

3. A habilitada CC alegou a nulidade dos actos praticados após o decesso dos seus pais, porém o tribunal a quo considerou extemporânea a referida alegação.

4. Porém, estando pendente no mesmo tribunal – TRL – um recurso que pretendia a anulação dos mesmos actos, maxime, venda da fracção pelos mesmos motivos – falta de notificação ao executado, designadamente da modalidade da venda da fracção – seria redundante a recorrente, por sua vez, invocar as mesmas razões para a anulação de todo o processado após a morte do pai.

5. A presente instância ficou deserta, por mais do que uma vez, por período superior a seis meses, logo operou a sua extinção ope legis, por aplicação do disposto no artigo 281.º n.º 5 do Código de Processo Civil.

6. O Tribunal a quo está vinculado, ex officio, a declarar a extinção da instância porque o prazo previsto no artigo 281.º n.º 5 do Código de Processo Civil inicia-se e decorre por exclusivo efeito da paralisação do processo, por inércia da parte, sendo por isso desnecessário, jurisdicionalmente e de modo expresso, que se ajuíze da existência da incúria da parte.”

Remata a recorrente as suas alegações de recurso concluindo pela procedência da revista e revogação do acórdão recorrido, devendo ser considerada extinta a instância por deserção.


5. A Caixa Geral de Depósitos, na sua qualidade de exequente e adquirente do imóvel, contestou a admissibilidade do recurso de revista que mencionou constituir um exercício claramente abusivo do direito.


6. O Juiz Conselheiro relator, ao abrigo do disposto no artigo 655.º n.º 1 do Código de Processo Civil, por se lhe afigurar que o recurso de revista interposto não podia ser conhecido, por despacho proferido a 6 de fevereiro de 2023, notificou as partes para se pronunciarem sobre a eventualidade de o recurso não ser admitido pelas razões então indicadas.


7. Ambas as partes se pronunciaram, tendo a exequente e adquirente do imóvel defendido não ser o recurso de revista admissível e pugnando a ora recorrente pela solução contrária.


8. Por decisão sumária proferida em 11 de março de 2023 o Juiz Conselheiro relator considerou que o acórdão recorrido era insusceptível de recurso ordinário de revista para o Supremo Tribunal de Justiça e indeferiu o requerimento de interposição de recurso de revista apresentado pela recorrente AA, determinando não tomar  conhecimento da revista.


9. Notificada de tal decisão sumária a recorrente vem agora pedir que sobre a matéria da admissibilidade do recurso ordinário de revista incida decisão colectiva, tal como previsto no artigo 652.º n.º 3 do Código de Processo Civil, nada mais alegando.

A parte contrária não se pronunciou sobre este último requerimento.

Os Senhores Juízes Conselheiros que, como adjuntos, intervêm neste julgamento em conferência tiveram visto nos autos.

Cumpre apreciar e decidir sendo que a questão a decidir é tão somente a da admissibilidade do recurso de revista interposto pela recorrente AA tendo por objecto o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29 de setembro de 2022.



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II - FUNDAMENTAÇÃO

1. Através do recurso de revista que interpôs a ré coloca em causa o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação no âmbito de um recurso de apelação numa acção executiva que tinha por objecto um despacho que não atendeu à invocação da nulidade do processo – em especial a declaração de nulidade da venda do bem penhorado – nem à invocada declaração de extinção da instância por deserção, feita pela ora recorrente e que ordenou o prosseguimento dos autos com a entrega do imóvel vendido ao adquirente.


2. Nos termos do artigo 671.º n.º 1 do Código de Processo Civil “Cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos”.

Acrescenta o n.º 2 do mesmo preceito que os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual só podem ser objecto de revista nos casos em que o recurso é sempre admissível ou quando haja contradição de julgados com anterior acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.


3. Não vem invocada qualquer contradição de julgados.


4. O recurso do acórdão do Tribunal da Relação que, no caso presente, considerou improcedente a invocação da nulidade da venda judicial e não haver fundamento para decretar a deserção da instância, não conhece do mérito da causa nem põe termo ao processo pelo que não está abrangido pela previsão normativa do artigo 671.º n.º 1 do Código de Processo Civil.


5. Por outro lado, apesar da abrangência da invocação dos preceitos ao abrigo dos quais foi interposto o recurso de revista, visto o teor do acórdão impugnado também não estamos perante um dos casos em que o legislador expressamente admite o recurso de acórdãos que apreciem decisões interlocutórias que recaiam sobre a relação processual e em que o recurso é sempre admissível, como previsto no artigo 671.º n.º 2 do Código de Processo Civil.


6. Desde logo porque o recurso do acórdão que aprecie a invocação de nulidades processuais alegadamente praticadas em primeira instância não é sempre admissível (artigo 671.º n.º 2 alínea a) do Código de Processo Civil).

Na ausência de disposição legal expressa, os casos em que o recurso é sempre admissível a que se refere o artigo 671.º n.º 2 alínea a) do Código de Processo Civil são genericamente os que se encontram descritos no artigo 629.º n.º 2 do Código de Processo Civil:

a) Decisão que tenha sido proferida com violação das regras de competência internacional, da matéria ou da hierarquia ou em ofensa de casos julgado;

b) Decisão sobre o valor da causa ou dos incidentes com fundamento em que ele permite a interposição do recurso;

c) Decisões contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça;

d) Contradição de julgados em relação a outro acórdão de Tribunal da Relação de que não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal.


7. Por outro lado ainda, do artigo 854.º do Código de Processo Civil resulta claro que os recursos de revista que podem ser interpostos no processo executivo são muito limitados, podendo apenas ter por objecto, ressalvados os casos em que o recurso de revista é sempre admissível, as decisões proferidas nos procedimentos ali expressamente mencionados: liquidação não dependente de simples cálculo aritmético, de verificação e graduação de créditos e de oposição contra a execução.

Assim sendo não são passíveis de revista os acórdãos da Relação que respeitem a decisões ou incidentes na instância executiva principal, sendo o recurso de revista limitado aos seus apensos declarativos.


  8. Ou seja, independentemente da dupla conformidade decisória das instâncias, não cabe recurso ordinário de revista do acórdão que julgou improcedente a invocação da nulidade da venda judicial e declarou a inexistência de fundamento para decretar a deserção da instância.


9. Ora é pacífico que “a revista excepcional só é admissível quando se verifiquem os pressupostos ou requisitos gerais de recorribilidade, pressupondo a admissibilidade deste meio processual que se verificam inteiramente os pressupostos atinentes ao valor da causa e da sucumbência, que não vigora norma especial excludente do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça na matéria controvertida e que se mostram preenchidos os demais requisitos de tempestividade e legitimidade do recorrente, tendo este cumprido adequadamente os ónus que o vinculam.

A tais pressupostos ou requisitos genéricos de recorribilidade devem aditar-se – quando ocorra dupla conformidade do decidido pelas instâncias – os requisitos específicos tipificados no artigo 672.º, implicando o preenchimento e densificação das cláusulas gerais do interesse jurídico ou da relevância social ou da invocação de um concreto e específico conflito jurisprudencial existente entre o acórdão recorrido e certo e determinado acórdão fundamento” [1].


10. Ou seja, o carácter excepcional da admissibilidade do recurso de revista a que se refere o artigo 672.º n.º 1 do Código de Processo Civil reporta-se à relevância das circunstâncias em que a revista pode ser admitida, independentemente da dupla conformidade decisória das instâncias, mas não dispensa a verificação de todos os demais requisitos de admissibilidade – em geral – do recurso de revista.

Por outras palavras, também relativamente ao recurso de revista a admitir por via do disposto no artigo 672.º do Código de Processo Civil, há que verificar a decisão impugnada é, em abstracto, recorrível.


11. No caso presente o recurso de revista não é admissível porque a decisão recorrida não é passível de recurso ordinário face ao disposto no artigo 671.º n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, não se tratando de caso em que a revista seja sempre admissível.

É, portanto, irrelevante a invocação da sua admissibilidade a título excepcional, não havendo lugar à apreciação dos fundamentos da admissão excepcional do recurso de revista interposto, a qual, se o recurso fosse admissível, ficaria a cargo da formação de Juízes Conselheiros a que alude o artigo 672.º n.º 3 do Código de Processo Civil.


12. De onde se conclui, acompanhando a decisão sumária proferida pelo Senhor Juiz Conselheiro relator em 11 de março de 2023, que o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 29 de setembro de 2022 impugnado pela recorrente AA não é susceptível de recurso ordinário de revista para o Supremo Tribunal de Justiça.

Termos em que se decidirá confirmar a decisão sumária que não admitiu o recurso de revista e condenar a recorrente nas custas do incidente respectivo, fixando no mínimo a taxa de justiça devida.



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DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto acordam em conferência, acompanhando a decisão sumária do Juiz Conselheiro relator de 11 de março de 2023, não admitir o recurso de revista que teria por objecto o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29 de setembro de 2022.

As custas do incidente a que deu causa ficam a cargo da recorrente, fixando-se no mínimo a taxa de justiça devida.

Notifique.

Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 9 de maio de 2023


Manuel José Aguiar Pereira (Relator)

Jorge Manuel Leitão Leal

Maria Clara Pereira de Sousa de Santiago Sottomayor


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[1] “Cadernos do Supremo Tribunal de Justiça – Secções Cíveis – Coordenação do Juiz Conselheiro Jubilado Carlos Lopes do Rego, a página 19.