Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
319/06.7TVLSB.L2.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA VASCONCELOS
Descritores: RESPONSABILIDADE BANCÁRIA
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
CHEQUE
ENDOSSO
DEVER DE LEALDADE
DEVER DE INFORMAÇÃO
BOA FÉ
CONSUMIDOR
JUROS DE MORA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 06/04/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA DO RÉU E CONCEDIDA EM PARTE A DA AUTORA
Área Temática:
DIREITO BANCÁRIO - ACTOS BANCÁRIOS EM ESPECIAL ( ATOS BANCÁRIOS EM ESPECIAL ) / CHEQUES.
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / MORA DO DEVEDOR.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 805.º, N.º 2, AL. B) E N.º 3.
LEI UNIFORME SOBRE CHEQUES (LUCH): - ARTIGOS 14.º, 16.º, 37.º, 38.º
Sumário :
I - A atividade bancária rege-se, de um modo especial, pela confiança pessoal entre os bancos e os seus clientes, assumindo, desse modo, muito peso os deveres de lealdade e de probidade.

II - O princípio da boa fé impõe-se neste âmbito de forma peculiar, orientando a conduta das partes segundo as regras de lealdade, propícias ao estabelecimento de um clima de mútua confiança.

III - Um dos afloramentos destas regras, é o dever de informar, na medida em que haja algo para informar a contraparte, e que, segundo as regras do bom senso, esta deva conhecer, tendo sempre esse dever de informação de ser equacionado dentro do contexto da situação concreta

IV - Tal dever de prestar informações é cada vez mais intenso, dada a tendência atual de proteção do consumidor, sem que com tal tendência se tenha como reconhecido um direito à passividade por parte do consumidor.

V - Tenda a autora emitido diversos cheques cruzados à ordem do réu banco, não podia este, atento o disposto no art. 38.º da LUCh, creditar diretamente esses cheques na conta de um outro réu quando este não se tratava de um banqueiro, nem constava dos cheques como seu beneficiário.

VI - Para um cheque ser transmissível por via de endosso, este deve ser escrito no cheque ou numa folha ligada a este e deve ser assinado pelo endossante, conforme dispõe os arts. 14.º e 16.º da LUCh.

VII - Não estando demonstrada a existência de qualquer declaração deste tipo feita pelo beneficiário da ordem de pagamento, mas constando apenas no verso dos cheques uma assinatura de quem não era beneficiário dos mesmos, não se pode concluir pela existência de um endosso.

VIII - Face às repetidas transferências que o réu banco ia fazendo para a conta do co-réu, é razoável admitir que este devesse informar a autora dessa prática reiterada – da qual não tinha qualquer confirmação por parte desta – e se certificado que ela correspondia à vontade da mesma.

IX - Nos termos conjugados do art. 805.º, n.º 2, al. b) e n.º 3, do CC, os juros de mora são devidos desde a data da citação no caso do crédito, porque controvertido, só se tornar líquido quando se apura o objecto da prestação, sendo esse apuramento feito com a citação no caso de haver responsabilidade por facto ilícito, a não ser que a falta de liquidez seja imputável ao devedor.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



Em 2006.01.06, Na então 16ª Vara Cível de Lisboa, AA Laboratório Dental, Lda instaurou contra os réus BB e Banco CC, S.A., a presente ação declarativa de condenação com processo ordinário.

Pediu

a condenação solidária dos réus a pagar-lhe a quantia de EUR 1.106.749,98, acrescida dos juros de mora vencidos desde a data da instauração da ação e até efetivo pagamento, bem como todos os montantes que a autora venha a suportar ou que lhe venham a ser imputados, na sequência da falta de pagamento das suas dívidas, quantitativo a ser liquidado posteriormente.

Alegou

em resumo, que

 - em finais de 1992, o 1º réu (responsável pela contabilidade e gestão financeira da autora) sugeriu à autora que o pagamento das suas obrigações fiscais e também da segurança social fosse feito através de cheques emitidos à ordem da 2ª ré, sacados sobre a sua conta junto deste Banco, o qual, por sua vez, procederia ao pagamento daquelas dívidas, em nome da autora;

- esta aceitou o esquema de pagamento proposto pelo 1ºréu;

- desta forma, desde Janeiro de 1993 a Abril de 2004 a autora entregou ao 1º réu 266 cheques "cruzados", isto é, com a aposição de duas linhas paralelas na sua frente, sacados sobre o banco réu e emitidos diretamente à ordem deste banco, no montante global de EUR 1.364.586,23 (cf. doc. n° 7, junto com a p.i.].

- durante o mesmo período, a A. emitiu também cheques à ordem das entidades tributárias e à ordem do 1º réu;

- em Abril de 2004, tomou conhecimento de que todos os cheques emitidos à ordem e sobre o banco réu foram depositados diretamente na conta bancária que o 1º réu tinha aberta no mesmo banco;

- os referidos cheques têm aposta no verso a assinatura do 1º réu e o número da sua conta bancária;

- a autora, porém, nunca autorizou nenhum dos réus a proceder da forma atrás descrita;

- e se o 1º réu não podia ter-se apropriado de quantias que pertenciam à autora, também a 2ª ré não podia ter transferido as quantias tituladas pelos cheques para a conta do 1º réu, uma vez que o Banco era o beneficiário dos cheques;

- além disso, e apesar de os cheques terem sido emitidos em seu nome, o Banco não podia ignorar que inexistia motivo justificado para receber e fazer suas as importâncias tituladas pelos cheques, pelo que, ao creditar diretamente na conta do 1º réu as quantias tituladas pelos cheque, sem previamente ter obtido esclarecimentos e/ou autorização da autora, violou não só a lei, mas também os mais elementares deveres de diligência e prudência a que, enquanto instituição bancária, estava obrigado;

- o 1º réu assinou e entregou à autora um documento de confissão de dívida no montante de EUR 214.540,17;

- com base nesse documento, a autora já instaurou contra o 1º réu ação executiva para ser ressarcida daquele montante;

- a autora está, porém, convicta de que não vai conseguir obter o pagamento da totalidade da quantia exequenda, dado o valor do único bem nomeado à penhora;

- por seu turno, os danos sofridos pela autora são muito superiores ao montante "confessado" pelo 1º réu, pelo que se justifica a propositura da presente ação também contra aquele;

- efetivamente, em consequência da conduta dos réus, a autora sofreu danos que, à data da propositura da ação, discrimina e quantifica da seguinte forma:

a) - EUR 513.712,80, correspondente à diferença entre a quantia global dos cheques emitidos à ordem de ambos os réus e das entidades tributárias, (ou seja, EUR l.642.612,64), desde 1993 a 2004, para pagamento de dívidas tributárias da autora e a quantia que, no aludido período, foi efetivamente paga (ou seja, EUR 1.128.983,30);

b) - EUR 250.253,17, a titulo de juros de mora, sobre a quantia referida em a), calculados com referência a 31 de Dezembro de cada ano até à data da propositura da ação;

c) - EUR 30.949,34, correspondente a juros de mora já vencidos, por falta de pagamento atempado de contribuições devidas à Segurança Social;

d) - EUR 141.908,77, correspondente ao montante indemnizatório que a autora ficou obrigada a pagar aos seus trabalhadores, com os quais celebrou acordos de cessação dos contratos individuais de trabalho, por ter sido forçada a encerrar a sua atividade, por falta de capacidade financeira;

e) - EUR 2.363,85, correspondente aos juros de mora que a autora vai ter que pagar aos seus trabalhadores por não ter conseguido cumprir o acordo com ele celebrado;

f) - EUR 167.562,06, correspondente ao montante dos empréstimos feitos pelos sócios à sociedade autora, e que a autora terá que lhes pagar por ter sido obrigada a encerrar a sua atividade, pois devido à atuação dos réus não conseguiu vencer a conjuntura económica desfavorável, por falta de meios financeiros;

g) - para além destes danos, a autora imputa ainda aos réus todos os demais que venha a sofrer, em consequência da conduta destes, designadamente, os derivados da falta de pagamento atempado das obrigações tributárias da autora que venham ainda a ser liquidadas pelas autoridades competentes.


Apenas contestou o réu Banco CC

que, também em resumo, alegou que

- a autora e o 1º R. combinaram, entre si, que os cheques sacados sobre e à ordem do Banco réu se destinavam a ser creditados na conta do 1º R. para que este, a partir da sua conta, procedesse diretamente ao pagamento das obrigações tributárias da autora;

- este procedimento (confessado pelo 1º réu, em documento junto aos autos) foi seguido durante anos e anos, com total conhecimento e assentimento da autora, sem que esta alguma vez o tenha contestado, tanto mais que recebia mensalmente os extratos de conta que refletiam explicitamente os movimentos de débito e crédito dos ditos cheques;

- em todo o caso, ao abrigo do disposto no artigo 38º da LUCH, nada obstava a que a 2ª ré depositasse os cheques de que era beneficiária na sua conta, ou na conta de terceiro, desde que este fosse seu cliente, como era o caso do 1º réu, podendo ainda transmiti-los por endosso, já que o Banco era simultaneamente sacado e beneficiário.

Proferido despacho saneador, fixada a matéria assente e elaborada a base instrutória, foi realizada audiência de discussão e julgamento.


Em 2013.07.19, foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente e, assim:  

- condenou o réu BB a pagar à autora a quantia de EUR 513.834,06, acrescida de juros de mora, à taxa de 4% ao ano, desde a citação até integral pagamento, bem como o montante correspondente a juros de mora e multas que a autora tenha pago e venha a pagar a título de impostos que deveriam ter sido pagos pela autora, e não foram, no período compreendido entre 2000 e Abril de 2004, a liquidar posteriormente;

- absolveu o réu BB do demais peticionado;

- absolveu o "Banco CC, SA" do pedido.

A autora apelou, com parcial êxito, tendo a Relação de Lisboa, por acórdão de 2014.11.25, proferido a seguinte decisão:

- revogar a sentença recorrida na parte em que, relativamente ao montante de EUR, 214.540,17 e respetivos juros, absolveu da instância o réu BB (subsistindo, quanto a este réu, e nos seus precisos termos, a sentença proferida a fIs. 1576 e seguintes. por, nessa parte, ter transitado em julgado);

- revogar a sentença recorrida, na parte em que absolveu a 2ª ré do pedido e, consequentemente, em condenar a ré Banco CC, SA, solidariamente com o 1º réu, a pagar à autora a quantia, a liquidar posteriormente, correspondente à diferença entre o montante global dos cheques emitidos à ordem da ré e creditados na conta do 1º réu, entre Janeiro de 1993 e Abril de 2004, e o montante que, no aludido período, e relativo a "dívidas tributárias" da autora, foi efetivamente pago, com o limite do pedido concretamente formulado nesta ação;

- no mais confirmar a sentença recorrida.


Inconformados, quer a autora, quer o réu Banco CC, deduziram as presentes revistas, apresentando as respetivas alegações e conclusões.

Cumpre decidir.

As questões

Tendo em conta que

- o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões nelas insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº3 e 690º do Código de Processo Civil;

- nos recursos se apreciam questões e não razões;

- os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido

são os seguintes os temas das questões propostas para resolução:

A) – Responsabilidade civil do réu Banco CC

B) – Liquidação

C) – Juros de mora.


Os factos

São os seguintes os factos que foram dados como provados nas instâncias:

A) A autora é uma sociedade comercial que se dedica à produção e comercialização de próteses dentárias e faciais e à comercialização de produtos, equipamentos e materiais dentários, tendo iniciado a sua atividade em 1990. Alínea A) dos Factos Assentes

B) De 1991 em diante, a gerência da autora foi exercida pela Sra. D." DD, de nacionalidade alemã, com base numa procuração que lhe foi conferida em Junho de 1991, por um dos gerentes da autora, o Sr. EE, igualmente de nacionalidade alemã. Alínea B) dos Factos Assentes

C) A partir de 1998, com a renúncia do gerente EE, a referida Sra. D." DD passou, com base na mencionada procuração, a exercer a gerência da autora por si só e exclusivamente. Alínea C) dos Factos Assentes.

D) O Senhor FF, gerente da autora desde a sua constituição, nunca exerceu qualquer ato de gerência da sociedade. Alínea D) dos Factos Assentes

E) A procuração referida em B conferia poderes à mandatária para ( ... ) "em nome e por conta da referida sociedade, praticar todos os atas de gestão corrente da sociedade, designadamente, abrir contas bancárias, proceder ao resgate de documentos à cobrança por via bancária, assinar ordens de pagamento e transferências bancárias (. . .) celebrar contratos de trabalho ou prestação de serviços e o mais necessário para esse fim" . Alínea E) dos Factos Assentes

F) Foi à referida mandatária que, pelo menos desde a data da outorga da mencionada procuração até recentemente, coube a prática e implementação de todos os atos necessários ao desenvolvimento da atividade diária da autora, tais como a gestão corrente da mesma, o apoio à produção e comercialização dos seus produtos e a contratação e pagamento de trabalhadores e fornecedores. Alínea F) dos Factos Assentes

G) A autora é titular da conta bancária com o número … junto do 2° réu Banco CC. Alínea G) dos Factos Assentes

H) Foi a mandatária referida em B) que em nome da autora disponibilizou os meios financeiros desta para pagamento das respetivas obrigações através da movimentação da conta bancária da autora referida na alínea anterior e assinatura dos respetivos cheques e demais meios de pagamento necessários à atividade da mesma. Alínea H) dos Factos Assentes

I) Até muito recentemente e desde a renúncia do gerente Senhor EE, as únicas pessoas com autorização da autora para movimentar a sua conta bancária junto do 2° réu foram o Senhor FF, gerente da autora e a referida mandatária. Alínea I) dos Factos Assentes

J) Em 1990 a autora contratou o 1º réu para desempenhar serviços de contabilidade e apoio à gestão financeira daquela. Alínea J) dos Factos Assentes

L) O referido réu foi contratado pela autora por ser altamente recomendado ao Senhor Mõgle, como sendo um bom profissional, competente e sério. Alínea L) dos Factos Assentes

M) O mesmo desempenhou, durante o período compreendido entre 1990 e Abril de 2004, as funções de Técnico Oficial de Contas da autora. Alínea M) dos Factos Assentes

N) Durante todo o tempo em que desempenhou essas funções foi confiada ao 1º réu a responsabilidade pela contabilidade da autora e pela liquidação das respetivas obrigações tributárias, designadamente, perante a Segurança Social e o Fisco. Alínea N) dos Factos Assentes

O) O 1º réu assegurou até Abril de 2004, não só a preparação da contabilidade da autora, como também, o cálculo, liquidação e pagamento efetivo das suas obrigações contributivas. Alínea Q) dos Factos Assentes

P) Inicialmente, para proceder ao pagamento das dívidas tributárias da autora, o 1º réu confrontava-a, primeiro, com os comprovativos da liquidação das importâncias devidas, solicitando, de seguida, os respetivos meios de pagamento. Alínea R) dos Factos Assentes

Q) Posteriormente, o 1º réu demonstrava o pagamento da importância solicitada através da exibição do correspondente comprovativo, devidamente carimbado pelas entidades competentes. Alínea S) dos Factos Assentes

R) Atenta a relação de confiança entretanto estabelecida entre a autora e o 1º réu, foi-se generalizando a prática segundo a qual os meios de pagamento necessários para que este procedesse ao pagamento das dívidas tributárias da autora lhe eram entregues mediante sua mera solicitação, sem necessidade do comprovativo da prévia liquidação. Alínea T) dos Factos Assentes

S) O 1º réu limitava-se, assim, uma vez efetuado o cálculo dos tributos devidos ou de os mesmos serem liquidados pelas entidades competentes, a solicitar à autora as importâncias necessárias para o pagamento, entre outras, das dívidas daquela às autoridades fiscais, bem como à Segurança Social. Alínea U) dos Factos Assentes

T) A autora estava ciente que tal sistema de pagamento era possível relativamente a determinadas dívidas tributárias, mediante o preenchimento dos formulários emitidos pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social e pela Direção de Impostos, nomeadamente os impressos modelo 41 e 70, os quais eram entregues aos balcões dos Bancos, normalmente da Caixa GG, sendo o pagamento dessas importâncias feito através do débito em conta do cliente. Alínea Z) dos Factos Assentes

U) A autora nunca prestou ao 2° réu autorização para este efetuar o pagamento das suas dívidas tributárias. Alínea DD) dos Factos Assentes

V) A autora que, no princípio, confirmava, pelo menos, a maioria das guias de pagamento e recibos relativos aos pagamentos efetuados pelo 1 ° réu em seu nome, com o passar do tempo e aumento da confiança naquele outro, foi deixando de o fazer. Alínea FF) dos Factos Assentes

X) Todos os cheques eram assinados pela mandatária referida em B, ou, até 1998, também pelo Sr. EE. Alínea II) dos Factos Assentes

Z) Quando a autora procedia a pagamentos de importâncias por ela devidas ao 1° réu, pagava-lhe com cheques emitidos diretamente à sua ordem. Alínea JJ) dos Factos Assentes

AA) Quando o 1º réu adiantava importâncias suas para pagar despesas da autora, era reembolsado, após a exibição do respetivo recibo comprovativo de tal despesa, por cheque emitido diretamente à sua ordem. Alínea LL) dos Factos Assentes

BB) Entre 1993 e 2004, houve uma parte das dívidas tributárias da autora que foram pagas mediante cheques emitidos diretamente à ordem das entidades beneficiárias (Direção Geral do Tesouro "DGT" , Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social "IGFSS" e Serviços da Administração do IVA - "SAI") e não do 2° réu, o que se motivava pela ausência ocasional do 1º réu ou pela liquidação tardia ou errada do tributo. Alínea NN) dos Factos Assentes

CC) Entre Janeiro de 1993 e Abril de 2004 inclusive, a Autora emitiu cheques diretamente à ordem da 2a Ré, entregues ao 1º Réu, no total de 266 e perfizeram a quantia global de €1.364.586,23. Alínea PP) dos Factos Assentes

DD) No dia 27 de Abril de 2004 a autora recebeu do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social duas citações em processos executivos por dívidas nos montantes de Euros 53.153,96 e Euros 24.649,46, relativas a quotizações e contribuições que não se encontravam pagas. Alínea QQ) dos Factos Assentes

EE) O 1° réu prestou as declarações que constam do escrito junto de fls. 271 a 275, que aqui se dá por reproduzido, no qual, além do mais, declarou deter uma dívida perante a autora e obrigar-se a pagá-la através da transmissão da fração, de que era proprietário, correspondente ao 9°F do prédio urbano sito na Rua …, em Almada e de prestações mensais periódicas. Alínea RR) dos Factos Assentes

FF) Após a data desse escrito o 1 ° réu cessou a prestações dos serviços de contabilidade à autora. Alínea SS) dos Factos Assentes

GG) A autora instaurou contra o mesmo réu, com base no referido escrito, uma ação executiva que corre os seus termos junto do 4° Juízo Cível do Tribunal Judicial de Almada, sob o n° 5955f05.6TBALM. Alínea IT) dos Factos Assentes

HH) A fração referida em RR) dos factos assentes [ora supra em EE)] encontra-se onerada com uma hipoteca até ao montante de Euros 57.156,50 constituída a favor de terceiro. Alínea UU) dos Factos Assentes

II) Dos cheques emitidos conforme referido em pp dos Factos Assentes [ora supra em Código Civil) o 2° réu não devolveu à autora qualquer quantia. Alínea WW) dos Factos Assentes

JJ) Os cheques emitidos pela autora em nome do 2° réu foram creditados diretamente na conta nº …, dependência da Lapa, de que é titular o 1° réu junto daquele outro, tendo o 1º réu gerido por sua conta e iniciativa os pagamentos das dívidas tributárias da autora. Alínea ZZ) dos Factos Assentes

LL) Nos mesmos cheques foi aposta a assinatura e o número da conta bancária do 1 ° réu no respetivo verso. Alínea AAA) dos Factos Assentes

MM) Esses cheques foram emitidos pela autora com a aposição de duas linhas paralelas traçadas na respetiva frente. Alínea BBB) dos Factos Assentes

NN) Em 08 de Junho de 2004, a autora foi citada da instauração de outros dois processos de execução por dívidas de contribuições e quotizações à Segurança Social, nos montantes respectivos de €35.439,17 e €16.422,32. Alínea CCC) dos Factos Assentes

00) Em 20 de Maio do 2005, a autora foi citada para outros dois processos de execução fiscal, por dívidas de idêntica natureza à Segurança Social, nos montantes de €10.264,48 e € 4.770,36. Alínea DDD) dos Factos Assentes

PP) No âmbito dos referidos processos executivos, o saldo da conta bancária da autora junto do 2° réu foi penhorado pelas autoridades tributárias. Alínea EEE) dos Factos Assentes

QQ) A Srª Da DD quando assumiu a gerência da autora, bem como o Sr. EE, desconheciam, por completo, o funcionamento do sistema fiscal português. Resposta ao facto controvertido sob 1 ° da base instrutória

RR) Perante o que lhe foi dito pelo 1º réu a autora ficou convencida que a entidade que deveria constar como beneficiária dos cheques referidos em AA) era a 2ª ré. Resposta ao facto controvertido sob 2° da base instrutória

SS) E que a responsabilidade pelo pagamento das dívidas tributárias passaria da autora para a 28. ré. Resposta ao facto controvertido sob 3° da base instrutória

TI) A autora aceitou o sistema proposto pelo 10 réu por estar absolutamente convicta que os cheques que emitisse à ordem da 28. ré somente poderiam ser pagos a esse beneficiário concreto. Resposta ao facto controvertido sob 6° da base instrutória

UU) E acreditou que a 2ª ré, com os cheques que eram emitidos à sua ordem, pagava efetiva e integralmente as suas dívidas tributárias. Resposta ao facto controvertido sob 7° da base instrutória

VV) A mesma acreditou, ainda, que caso se verificasse qualquer irregularidade ou desconformidade em relação ao sistema de pagamento de dívidas proposto pelo 10 réu, tal informação lhe seria prontamente comunicada pela 2ª ré.

VV) A mesma acreditou, ainda, que caso se verificasse qualquer irregularidade ou desconformidade em relação ao sistema de pagamento de dívidas proposto pelo 10 réu, tal informação lhe seria prontamente comunicada pela 2ª ré. Resposta ao facto controvertido sob 8° da base instrutória

XX) Os valores das quotizações referidas em QQ) dos Factos Assentes [ora supra em DD)] foram descontados nos vencimentos dos trabalhadores da autora. Resposta ao facto controvertido sob 9° da base instrutória

ZZ) Após ter recebido as citações referidas na mesma alínea a autora inquiriu, de imediato, o 1 ° réu acerca das causas de tais processos. Resposta ao facto controvertido sob 1 0° da base instrutória

AAA) Este, inicialmente negou qualquer responsabilidade, alegando tratar-se de erros de liquidação por parte das autoridades da Segurança Social. Resposta ao facto controvertido sob 11 ° da base instrutória

BBB) Face à inexistência de comprovativos do pagamento das importâncias em falta para com a Segurança Social, o mesmo acabou por assumir que as dividas resultavam da sua atuação. Resposta ao facto controvertido sob 12° da base instrutória

CCC) O mesmo explicou que o sistema de pagamentos das dívidas tributárias da autora mediante a emissão do cheque à ordem da 2ª ré lhe permitia depositar os cheques diretamente na sua conta bancária, também junto da 2ª ré. Resposta ao facto controvertido sob 13° da base instrutória

DDD) Apenas alguns dos cheques que a Autora emitira em nome do 2° Réu foram depositados na conta bancária do 1° Réu, não tendo sido utilizados para pagar diretamente as dívidas tributárias da Autora. Resposta ao facto controvertido sob 14° da base instrutória

EEE) O 1° Réu pagou a totalidade das dívidas tributárias da Autora liquidadas até ao ano de 2000. Resposta ao facto controvertido sob 15° da base instrutória

FFF) A partir de 2000, o 1° Réu deixou de proceder à totalidade dos pagamentos devidos às autoridades tributárias. Resposta ao facto controvertido sob 16° da base instrutória

GGG) E fez suas as importâncias que a Autora lhe entregara através dos cheques emitidos em nome do 2° Réu. Resposta ao facto controvertido sob 17° da base instrutória

HHH) Posteriormente ao declarado no escrito referido em RR) dos factos Assentes [ora supra em EE)] o 1° réu procedeu a 5 pagamentos de € 350,00, cada, à autora, para esta entregar junto da Segurança Social por conta dos processos referidos em QQ) [ora supra em DD)]. Resposta ao facto controvertido sob 19° da base instrutória

III) Os montantes desses pagamentos foram utilizados pela autora para pagar parte da sua dívida à Segurança Social. Resposta ao facto controvertido sob 20° da base instrutória

JJJ) O único bem conhecido ao 10 réu é a fração referida em RR) dos Factos Assentes [ora supra em EE)]. Resposta ao facto controvertido sob 21 ° da base instrutória

LLL) A mesma tem um valor de mercado que não excede os € 125.000,00. Resposta ao facto controvertido sob 22° da base instrutória

MMM) A autora recebeu com perplexidade o facto de os cheques referidos em PP) dos Factos Assentes [ora supra em CC)] terem sido creditados diretamente na conta do 1º réu. Resposta ao facto controvertido sob 23° da base instrutória

NNN) O total dos cheques emitidos pela Autora entre 1993 e 2004 para pagamento das suas dívidas tributárias, constituído pelos referidos em PP) dos Factos Assentes [ora supra em CC], pelos emitidos à ordem das entidades tributárias e pelos emitidos à ordem do 1º Réu para o reembolsar de despesas tributárias da mesma, perfaz €1.642.612,64. Resposta ao facto controvertido sob 24º da base instrutória

000) Desse valor foi efetivamente paga a quantia total de €1.128.983,30 de dívidas tributárias da autora. Resposta ao facto controvertido sob 25° da base instrutória

000) Em consequência da penhora referida em EEE) dos Factos Assentes [ora supra em PP)] a autora encontra-se impossibilitada de pagar as suas demais dívidas. Resposta ao facto controvertido sob 26° da base instrutória

PPP) A autora enfrentou nos últimos anos uma quebra da procura por parte do seu cliente na Alemanha. Resposta ao facto controvertido sob 27° da base instrutória

QQQ) A autora constatou, pelas suas contas, que não iria conseguir pagar mais as suas dívidas nomeadamente, aos seus trabalhadores, razão pela qual, em Agosto de 2005, encerrou a sua atividade. Resposta aos factos controvertidos sob 29° e 300 da base instrutória

RRR) E procedeu a negociações com os seus trabalhadores para despedimentos dos mesmos. Resposta ao facto controvertido sob 31º da base instrutória

SSS) Tendo, no dia 5 de Agosto de 2005, assinado acordos de cessação dos contratos de trabalho daqueles. Resposta ao facto controvertido sob 32° da base instrutória

TTT) Nos termos desses acordos, a autora declarou obrigar-se a pagar aos seus trabalhadores a quantia total de €141.908,77. Resposta ao facto controvertido sob 33° da base instrutória

UUU) A qual, não pode, na altura, pagar. Resposta ao facto controvertido sob 34° da base instrutória

VW) Perante esse facto, o sócio e gerente da autora acedeu em alienar o imóvel do qual é proprietário em Portugal. Resposta ao facto controvertido sob 35° da base instrutória

XXX) Nos acordos de cessação dos contratos de trabalho, com exceção do relativo a DD, as partes convencionaram que metade do resultado dessa venda serviria para pagar as indemnizações estipuladas nesses escritos. Resposta ao facto controvertido sob 36° da base instrutória

ZZZ) A referida venda não se realizou até à data. Resposta ao facto controvertido sob 37° da base instrutória

AAAA) Um dos sócios da autora emprestou a esta quantia não inferior a €160.000,OO. Resposta ao facto controvertido sob 38° da base instrutória

BBBB) A qual não poderá ser paga em virtude do encerramento da atividade da autora. Resposta ao facto controvertido sob 39° da base instrutória

CCCC) Em [mais de 1992, o 1° réu disse à autora que esta teria toda a vantagem, quer do ponto de vista contabilístico, como sobretudo, ao nível da sua responsabilidade perante o Estado, de ver as suas dívidas à Segurança Social e às autoridades fiscais pagas por intermédio de uma instituição financeira, nomeadamente, por intermédio da 2ª ré. Resposta ao facto controvertido sob 42° da base instrutória (anterior alínea X eliminada) Resposta ao facto controvertido sob 40° da base instrutória (anterior alínea V eliminada)

DDDD) Segundo referido pelo 1º réu, tratar-se-ia de um meio disponibilizado pela 26. ré que permitia centralizar e agilizar os pagamentos das dívidas dos contribuintes ao Estado. Resposta ao facto controvertido sob 41º da base instrutória (anterior alínea W eliminada)

EEEE) Conforme o pelo mesmo referido, na prática, as dívidas tributárias seriam pagas pela autora, não junto das tesourarias da Fazenda Pública ou do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, mas sim, junto do banco, o qual comprovaria o pagamento/recebimento da importância em questão, mediante aposição de carimbo respectivo no documento de pagamento. Resposta ao facto controvertido sob 42° da base instrutória (anterior alínea X eliminada)

FFFF) Segundo afirmado pelo 1º réu, porém, para que as dívidas tributárias da autora pudessem ser pagas por intermédio da 2ª ré, a autora deveria emitir cheques sacados sobre a sua conta junto deste último, no valor das mesmas dívidas, cujo beneficiário, em vez de ser a Direção Geral do Tesouro ou o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, seria o próprio banco, o qual, por sua vez e segundo afirmado pelo 1º réu, procederia ao pagamento da dívida em nome da autora. Resposta ao facto controvertido sob 43° da base instrutória (anterior alínea AA eliminada)

GGGG) De acordo com o dito 1º réu, uma vez emitidos os cheques em questão, o mesmo encarregar-se-ia de os fazer chegar à 26. ré, que, segundo o por aquele afirmado, ficaria incumbido, através da movimentação da conta bancária da autora referida em G), de proceder, em nome daquela, ao pagamento das dividas. Resposta ao facto controvertido sob 44° da base instrutória (anterior alínea BB eliminada)

HHHH) Segundo afirmado pelo 1° réu, a hipótese da autora efetuar o pagamento das suas dívidas à Fazenda Publica através da emissão de cheques à ordem da 2ª ré seria possível sem recurso a qualquer tipo de autorização específica da autora a esta última. Resposta ao facto controvertido sob 45° da base instrutória (anterior alínea CC eliminada)

IIII) A mesma concordou com o sistema de pagamento dessas dívidas que lhe foi proposto pelo 1º réu. Resposta ao facto controvertido sob 46° da base instrutória (anterior alínea EE eliminada) Resposta ao facto controvertido sob 47° da base instrutória (anterior alínea GG eliminada)

JJJJ) Ao 1° réu nunca foi dada qualquer autorização de movimentação da conta da autora junto da 2ª ré. Resposta ao facto controvertido sob 47° da base instrutória (anterior alínea GG eliminada)

LLLL) Entre 1993 e 2004 os cheques emitidos pela autora à ordem do 10 réu para pagamento dos seus honorários e reembolso de despesas por ele suportadas perfizeram um montante total de €54.618,82. Resposta ao facto controvertido sob 480 da base instrutória (anterior alínea MM eliminada)

MMMM) No mesmo período a autora emitiu e entregou ao 1º réu cheques sacados ao Banco Réu diretamente à ordem da "DGT", IGFSS" e "SAI" num montante total de €272.026,41. Resposta ao facto controvertido sob 49° da base instrutória (anterior alínea oo) eliminada)

NNNN) Os 266 cheques referidos na alínea PP) dos Factos Assentes [ora supra em CC)] destinavam-se ao pagamento das dívidas tributárias da autora, de acordo com o sistema a esta proposto pelo 1º Réu. Resposta ao facto controvertido sob 50° da base instrutória (segmento da anterior alínea PP)

0000) A 2ª Ré nunca informou a autora que os cheques emitidos à sua ordem foram depositados na conta do 10 Réu. Resposta ao facto controvertido sob 51 ° da base instrutória (anterior alínea VV eliminada)

PPPP) O 1º réu apresentou regularmente à autora documentos comprovativos do pagamento das dívidas tributárias com o carimbo da 2ª ré neles aposto, num montante superior a meio milhão de euros. Resposta ao facto controvertido sob 52° da base instrutória (anterior alínea XX eliminada)

QQQQ) O 1º réu geriu por sua conta e iniciativa os pagamentos das dívidas tributárias da autora. Resposta aos factos controvertidos sob 53° da base instrutória (anterior alínea ZZ eliminada) e sob 59°

RRRR) A Autora entregava os cheques emitidos "sobre e à ordem do Banco 2° Réu" ao contabilista 1º Réu, que por sua vez os apresentava ao Banco para depósito na sua conta, enquanto cliente do Banco sacado. Resposta ao facto controvertido sob 54° da base instrutória

SSSS) Nalguns casos o 1º Réu procedeu depois ao pagamento das responsabilidades tributárias da Autora, através da movimentação, a débito, da sua própria conta no Banco 2° Réu. Resposta ao facto controvertido sob 55° da base instrutória

TTTT) O Banco Réu não contrariou tal procedimento. Resposta ao facto controvertido sob 56° da base instrutória

UUUU) O Banco enviava mensalmente extratos da conta bancária da Autora, os quais refletiam todos os movimentos efetuados na sua conta, nos quais se incluem os movimentos de débito e crédito dos cheques emitidos, embora no caso destes últimos apenas discriminando o respectivo número e valor, sem indicação do beneficiário de tal movimento. Resposta ao facto controvertido sob 60º da base instrutória


Os factos, o direito e o recurso

A) – Responsabilidade civil do réu Banco CC

Na sentença proferida na 1ª instância entendeu-se condenar o réu BB, nos termos acima assinalados, porque se considerou que este,”ao apropriar-se das quantias destinadas ao pagamento dos impostos devidos pela autora, determinou que esta não tivesse pago tais impostos e que, por isso, não só tenha ficado sem o dinheiro que o 1º réu se apropriou, mas também tenha ficado sujeita a ações executivas para pagamento coerciva das dívidas tributárias (…) verificando-se, pois, assim, todos os requisitos da responsabilidade civil por factos ilícitos e a correspondente obrigação de indemnizar a autora”.

E quanto ao conteúdo da indemnização, entendeu-se absolver o recorrido réu relativamente ao valor de 214.540,17 € e respetivos juros, porque se considerou que tendo a autora instaurado ação executiva contra o referido réu com base em confissão escrita do mesmo, “não lhe assiste qualquer interesse em agir, porque a declaração e condenação que requer não é meio necessário à salvaguarda e satisfação do direito que se arroga”.

Mais se entendeu absolver o réu Banco CC porque se considerou que dos factos dados como provadas não resultava que com a sua conduta tenha violado qualquer normativo legal, nomeadamente relativos ao endosso do cheque, nem que tenha violado qualquer dever de cuidado ou informação que sobre ele impendesse, por não ter nunca dado conta à autora da atuação do réu BB.

No acórdão recorrido e como já ficou referido, entendeu-se revogar a sentença proferida na parte em absolveu o ré BB quanto à condenação no valor da indemnização de 214.540,17 € porque se considerou que tal condenação já tinha transitado em julgado.

E entendeu-se condenar o réu Banco CC.

Em primeiro lugar, porque se considerou que a sua conduta foi ilícita, na medida em que, sendo os cheques cruzados, não podiam ser creditados diretamente na conta bancária do réu BB, como o foram e também na medida em que não se provou que os cheques tivessem sido endossados pelo Banco ao referido réu BB, pelo que este não podia ser considerado um portador legítimo.

Em segundo lugar, porque se considerou que a conduta do réu Banco CC foi censurável, na medida em que “sabendo, como não podia deixar de saber, que não havia causa justificativa para os cheques serem sacados à sua ordem devia, desde logo, ter informado e solicitado os pertinentes esclarecimentos à autora a fim de garantir a regularidade do pagamento dos cheques”.

Por outro lado, ao não examinar cuidadosamente os cheques, creditou indevidamente as quantias inscritas neles na conta do 1° réu, violando as supracitadas disposições da LUCH e naturalmente os deveres jurídicos de diligência, competência e fiscalização a que estava vinculado.”

O réu Banco CC entende que a sua conduta de creditar na conta do réu BB as quantias constantes dos cheques emitidos pela autora à sua ordem foi lícita, porque tal era imposto pelo disposto no artigo 38º da Lei Uniforme sobre Cheques.

E que cumpriu todos os deveres de informação, fiscalização, diligência e de competência técnica.

E que houve falta de fiscalização da autora por não ter exigido documentação do pagamento dos impostos depois de ter conhecimento do lançamento das quantias inscritas nos cheques a débito na conta.

Cremos que não tem razão e se decidiu bem.

Os cheques emitidos pela autora tinham nas suas faces traçadas duas linhas transversais e paralelas.

Trata-se, assim, de cheques cruzados, com cruzamento geral – cfr. art.º 37º da Lei Uniforme sobre Cheques.

Nos termos do disposto na primeira parte do artigo 38º da Lei Uniforme sobre Cheques, “um cheque com cruzamento geral só pode ser pago pelo sacado a um banqueiro ou a um cliente do sacado”.

Logo, os cheques em causa só poderiam ser pagos, creditados, a um “banqueiro” ou a um cliente do réu Banco CC, sacado ou entidade que devia pagar os cheques.

Ora, o réu BB nem era “banqueiro”, nem constava dos cheques como beneficiário dos mesmos, uma vez que os cheques tinham sido emitidos, não à sua ordem, mas à ordem do réu Banco CC.

Por isso, o réu BB, apesar de cliente do réu Banco CC, não podendo ser beneficiário dos cheques - estes eram nominativos e, por isso, só podiam ser pagos ao Banco CC – também não podia ser considerado como “cliente do sacado para os efeitos do disposto no artigo 38º atras transcrito.

Daí não ser lícita, por violar o disposto no citado artigo, a conduta do réu Banco CC ao creditar diretamente as quantos inscritos nos cheques na conta do réu BB.

Levanta-se a questão se os cheques podiam ser transmitidos pelo réu Banco CC ao réu BB por via de endosso.

Independentemente da questão da viabilidade e antes dela, há que apreciar se no caso concreto em apreço existiu esse endosso.

Ora, na verdade, não existiu esse endosso.

Para um cheque ser transmissível por via de endosso – artigo 14º da Lei Uniforme sobre Cheques – este deve ser escrito no cheque ou numa folha ligada a este e deve ser assinado pelo endossante – artigo 16º da Lei Uniforme sobre Cheques.

Ora, não está demonstrada a existência de qualquer declaração deste tipo feita pelo beneficiário da ordem de pagamento – o Banco CC – nos cheques ou em folha anexa e no sentido de se concluir pela existência de endosso.

Apenas existe uma assinatura do BB no verso do cheque que, por não ser o beneficiário dele, não pode, obviamente, ter qualquer efeito transmitente do mesmo.

Concluímos, pois, pela inexistência de endosso.

Em conclusão: porque os cheques não foram transmitidos para o BB, de forma alguma podiam os seus quantitativos serem creditados na conta daquele.

Daí a ilicitude da conduta do recorrente Banco CC.

Além de ilícita, a conduta do réu Banco CC é censurável.

Em primeiro lugar, porque dedicando-se o mesmo à atividade bancária, não podia desconhecer que não podia transmitir para o réu BB os montantes dos cheques em causa na presente ação da forma como o fez.

Assim, podia e devia ter agido de outra forma, ou seja, podia e devia não creditar esses montantes para a conta daquele réu.

Assinale-se, a este respeito, que a autora nunca transmitiu ao réu Banco CC qualquer autorização para o réu BB movimentar a conta dela.

Por outro lado, é sabido que a atividade bancária se rege, de um modo especial, pela confiança entre os Bancos e os clientes.

Deste modo, os deveres de lealdade e de probidade assumem muito peso, em virtude daquela atividade se basear em considerações de confiança pessoal.

Disto se conclui que o princípio da boa-fé se impõe aqui de forma bem peculiar, orientando a conduta das partes segundo regras de lealdade, propícias ao estabelecimento de um clima de mútua confiança.

Um dos afloramento dessas regras é o dever de informar e na medida em que haja algo para informar a contraparte e que segundo as regras do bom senso, esta deva conhecer e tendo sempre esse dever de informação ser equacionado dentro do contexto da situação concreta.

Tal dever de prestar informações cada vez mais tem mais intensificação dada a tendência atual de proteção do consumidor, sem que com tal tendência se tenha como reconhecido um direito à passividade por parte do consumidor.


Vejamos o caso concreto em apreço.

Provou-se que a autora nunca prestou ao réu Banco CC autorização para efetuar o pagamento das suas dívidas tributárias – alínea U) do elenco dos factos provados.

Nem nunca transmitiu ao réu Banco CC qualquer autorização para o réu BB movimentar a conta dela – alínea JJJJ)

Recebeu com perplexidade o facto de os cheques terem sido creditados diretamente na conta do réu BB – alínea. MMM)

Pelo que lhe disse o réu BB, ficou convencida que a entidade que deveria constar dos cheques como beneficiaria era o réu Banco CC, que só a este estes podiam ser pagos, que o réu Banco CC pagava efetiva e integralmente as suas dívidas tributárias e que se se verificasse qualquer irregularidade, tal informação lhe seria prontamente comunicada pelo réu Banco CC – cfr. als.RR),  TT), UU) e VV.

O réu Banco CC nunca informou a autora que os cheques emitidos à sua ordem foram depositados na conta do réu BB – alínea OOOO).

Provou-se que o réu Banco CC não contrariou a prática do réu BB de pagar as responsabilidades tributárias da autora através da movimentação, a débito, da sua própria cinta no Banco CC, sendo que não se provou que essa era prática habitual do referido réu BB – cfr. respostas aos pontos 55º e 56º da Base Instrutória.

Também não se provou que a autora tivesse conhecimento desta prática através dos extratos da conta bancaria que lhe eram enviados pelos réus Banco CC – resposta restritiva ao ponto 60 º da mesma Base Instrutória

Face aos factos dados como provados, não é razoável admitir que a autora conhecesse ou, pelo menos, tivesse o dever de conhecer, os termos concretos em que sua conta era movimentada pelo réu Banco CC para crédito na conta do réu BB.

E é razoável admitir que o réu Banco CC, face às repetidas transferências que ia fazendo para a conta do réu BB, devesse informar a autora dessa reiterada prática – da qual não tinha qualquer confirmação por parte desta - e se certificado que ela correspondia à vontade da mesma.

A isso o devia levar o tal dever de lealdade que acima referimos.


Posto isto, não podemos deixar de concluir que não tem razão o recorrente Banco CC nos pontos em que discorda do acórdão recorrido, pelo que, nessa medida, este não merece qualquer censura.


B) Liquidação

 Entende a autora recorrente que quando no acórdão recorrido se decidiu, “condenar a ré "Banco CC, SA, solidariamente com o 1º réu, a pagar à autora a quantia, a liquidar posteriormente, correspondente à diferença entre o montante global dos cheques emitidos à ordem da ré e creditados na conta do 1º réu, entre Janeiro de 1993 e Abril de 2004, e o montante que, no aludido período, e relativo a "dívidas tributárias" da autora, foi efetivamente pago, com o limite do pedido concretamente formulado nesta ação”, se devia ter logo condenando em quantia líquida de 513.629,34 €, pois tal resulta dos factos referidos nas alíneas NNN) e OOO) do elenco dos factos dados como provados.

Tem razão.

Realmente, daqueles factos resulta que aquela diferença já pode ser considerada liquidada.

Daí, a desnecessidade da liquidação.

E a condenação dos réus naquela quantia.


C) – Juros de mora

Entende também a autora, como recorrente, que os juros mora devem ser contados também até a data da citação e não só a partir desta, conforme decidiram as instâncias, invocando, para tal, o disposto na alínea b) do nº2 do artigo 805º do Código Civil e o facto de a obrigação aqui em acua provier de facto ilícito.

Não tem razão.

O princípio consignado nesta alínea tem que ser conjugado com o disposto no nº3 do mesmo artigo.

O crédito, porque controvertido, só se torna líquido quando se apura o objeto da prestação.

E de acordo com a parte final daquele nº3, esse apuramento é tido como feito com a citação no caso de haver responsabilidade por facto ilícito – o que é o caso – a não ser que a falta de liquidez seja imputável ao devedor – o que não é o caso.

Daí que bem de andou na condenação de juros de mora apenas a partir da citação.


A decisão

Nesta conformidade, acorda-se em

- negar a revista do réu Banco CC

- conceder parcial provimento à revista da autora, substituindo a condenação ilíquida constante do acórdão recorrido pela condenação no montante de 513.712,34 € (quinhentos e treze mil setecentos e doze euros e trinta e quatro cêntimos);

- no mais, manter o acórdão recorrido.

Custas da revista do réu Banco CC por este.

Custas da revista da autora, por esta e pelos réus, de acordo com o vencimento.


Lisboa, 4 de Junho de 2015


Oliveira Vasconcelos (Relator)

Fernando Bento

João Trindade