Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
451/05.4JABRG.G1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: RAUL BORGES
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ACORDÃO DA RELAÇÃO
DUPLA CONFORME
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
NULIDADE
IRREGULARIDADE
CONCURSO DE INFRACÇÕES
CRIME CONTINUADO
CRIME ÚNICO
CRIME DE TRATO SUCESSIVO
CÚMULO JURÍDICO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA ÚNICA
CULPA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
CONFISSÃO
ARREPENDIMENTO
IMAGEM GLOBAL DO FACTO
PENA DE PRISÃO
PRINCÍPIO DA NECESSIDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DO EXCESSO
Data do Acordão: 07/13/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário : I - Em 1.ª instância, o recorrente foi condenado pela prática, em concurso real e efectivo, de 7 crimes de abuso sexual de criança, na pena única de 8 anos de prisão. Por sua vez, na sequência do recurso interposto, a Relação, afastando-se quer da posição do Tribunal de 1.ª instância, quer do arguido que sustentava a tese do crime continuado, negou provimento ao recurso, e, alterando a qualificação jurídica dos mesmos factos, subsumiu a conduta provada num único crime de trato sucessivo, fixando a mesma pena de 8 anos de prisão.

II - Com a entrada em vigor da Lei 48/2007, de 29-08, foi modificada a competência do STJ em matéria de recursos de decisões proferidas, em recurso, pelas Relações, restringindo-se a impugnação daquelas decisões, no caso de dupla conforme, a situações em que tenha sido aplicada pena de prisão superior a 8 anos.

III - No que ao caso presente diz respeito, o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação é, assim, recorrível para o STJ, uma vez que, pese embora a imodificabilidade da matéria de facto, a confirmação operada foi apenas parcial, por ter ocorrido uma diversa qualificação jurídica, conducente a um outro arco penal.

IV - De acordo com a alteração operada pela Lei 48/2007, de 29-08, ao n.º 3 do art. 424.º do CPP «sempre que se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na decisão recorrida ou da respectiva qualificação jurídica não conhecida do arguido, este é notificado para, querendo, se pronunciar no prazo de 10 dias». Este normativo terá aplicação no caso de o tribunal verificar, por iniciativa própria, que, face aos factos provados, o enquadramento jurídico-penal se deveria fazer por modo diverso, integrando a conduta em outro preceito incriminador e face a essa alteração, não prevista, desconhecida do arguido, a fim de evitar uma decisão surpresa, a exemplo do que ocorre no processo cível com o art. 3.º do CPC, haverá a necessidade de lhe dar a conhecer a possível alteração de qualificação.

V - No caso presente, a omissão de notificação da alteração jurídica operada não constitui nulidade de sentença, mas uma mera irregularidade prevista no art. 123.º do CPP, de que o arguido tomou conhecimento aquando da audição do acórdão.

VI - No processo penal, a vinculação temática, ao nível da facticidade, é assumida através do que constitui o objecto do processo, definido através da acusação ou da pronúncia, restando uma margem de liberdade de conformação, no que ao dizer o direito diz respeito.

VII - Havendo um efectivo impedimento quanto ao agravamento da pena aplicada – de acordo com o art. 409.º do CPP o tribunal superior não pode modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo do arguido – o tribunal superior não está, porém, inibido de proceder a requalificação jurídica, quando o entenda necessário, mesmo que o recorrente não ponha operativamente em causa a incriminação definida pelas instâncias.

VIII - Efectivamente, o juiz, em matéria criminal, como na matéria cível, é livre no plano da qualificação jurídica, e na área criminal, atentas as especificidades relevantes, desde que tenha em atenção determinados procedimentos adjectivos, tendo em vista o exercício do necessário contraditório.

IX - A distinção entre unidade e pluralidade de crimes é decisiva na determinação das consequências jurídicas do facto, para efeito de punição do agente. A regra é a de que, sendo vários os preceitos violados, ou sendo o mesmo preceito objecto de plúrimas violações, haja uma pluralidade de crimes. Esta pluralidade só fica afastada no caso de concurso aparente, ou nas formas de unificação de condutas, seja como crime continuado, como um único crime ou como crime de trato sucessivo.

X - Na situação dos autos, ficou demonstrado, para além do mais, o seguinte:
- o arguido é casado com MF, tia dos menores I, A e IS, nascidos, respectivamente, em 20-09-84, 05-03-89 e 25-06-91;
- por força desta relação de parentesco, I, A e IS, por diversas vezes, visitaram o arguido na residência deste;
- nos dias seguintes a 07-08-97, data em que faleceu a avó, I visitou o arguido;
- numa dessas ocasiões, porque I estava muito triste, o arguido mostrou-lhe imagens pornográficas, acariciou-o no pénis e beijou-o;
- depois, o arguido masturbou-se, masturbou I e praticou sexo oral com este;
- por várias vezes, o arguido tentou introduzir o seu pénis no ânus de I, não o tendo conseguido;
- quando estava com I o arguido mexia-lhe no pénis, roçava-se e praticava sexo oral com o mesmo, beijava-o na boca, acariciava-lhe o corpo, mostrava-lhe pornografia, filmava-o e fotografava-o;
- no verão de 98, em dia não apurado, o arguido exibiu a I um vídeo de sexo explícito, desceu as calças deste e acariciou-lhe o pénis;
- de seguida, introduziu na sua própria boca o pénis de I, passou o seu pénis erecto pelo corpo e pelas nádegas deste ejaculando nas suas mãos;
- depois, o arguido obrigou I a masturbá-lo e a beijar-lhe o pénis, enquanto o beijava várias vezes na boca;
- pouco tempo depois, o arguido obrigou I a masturbar-se ao mesmo tempo que gravava tais cenas em vídeo;
- em dia não apurado do ano de 96 A, na companhia da mãe, visitou o arguido;
- enquanto a mãe de A se encontrava noutra divisão com a mulher do arguido, este beijou a menor e acariciou-a na cara e no cabelo;
- de seguida inseriu jogos no computador e, aproveitando a distracção de A, colocou a mão desta no seu pénis;
- de seguida, colocou a menor no seu colo, ao mesmo tempo que roçava o seu órgão sexual nela;
- o arguido repetiu estes actos, por diversas vezes e em diversos dias;
- num dia não apurado do ano de 97 o arguido, após dizer a A que iam brincar aos médicos, percorreu o corpo desta com um estetoscópio, apalpou-a no corpo e na vagina, levantou a saia e lambeu-lhe a vagina;
- depois, introduziu o pénis na boca de A, ao mesmo tempo que lhe ordenava que «chupasse»;
- o arguido repetiu estes actos, por diversas vezes e em diversos dias;
- noutro dia não apurado do ano de 97 o arguido, tirou as roupas a A, acariciou-a e lambeu-lhe a vagina;
- em seguida, sentou-se no sofá e obrigou A a deitar-se, colocando a cabeça desta entre as suas pernas, pressionou-lhe a cabeça, introduzindo e movimentando o pénis dentro da boca da menor;
- em dia e mês não apurados do ano de 98, em casa do arguido e após A ter-se queixado de que lhe doíam os dedos, este massajou e acariciou os dedos da menor, ao mesmo tempo que a apalpava e a beijava na boca;
- em seguida, o arguido retirou o pénis das calças e introduziu-o na boca de A, ao mesmo tempo que o movimentou;
- por diversas vezes o arguido praticou estes factos com a menor A;
- noutro dia não apurado de 98 o arguido, na sua residência, exibiu a A vídeos com cenas de sexo explícito;
- após, sentou A no seu colo e pressionou contra a anca desta o seu pénis erecto;
- depois, despiu A e começou a acariciá-la, introduzindo-lhe o pénis na boca;
- em dia e mês não apurado do ano de 99 o arguido sentou A numa cadeira em frente do computador e lambeu-lhe a vagina;
- em dia não apurado de finais de 99 ou Janeiro de 2000, quando a menor IS foi de visita a casa do arguido, este, por forma a satisfazer os seus instintos sexuais, colocou-a ao colo, roçando o seu corpo para a frente e para trás e virando-a de frente e de costas.

XI - O crime continuado supõe uma diminuição sensível da culpa, que resulta de uma menor exigibilidade de conduta diversa do agente. A diminuição sensível da culpa só tem lugar quando a ocasião favorável à prática do crime se repete, sem que o agente tenha contribuído para essa repetição, isto é, quando a ocasião se proporciona ao agente e não quando ele activamente a provoca.

XII - Na situação em apreço, o arguido não se deixou arrastar por qualquer oportunidade que diminuísse a sua censurabilidade; ao invés, foi ele quem criou ou fomentou as oportunidades. Na verdade, o quadro factual identificado nada indicia sobre a ocorrência de um circunstancialismo exterior capaz de facilitar ou propiciar a repetição dos comportamentos delituosos do arguido, tornando cada vez menos exigível a opção por conduta diversa, e que de alguma maneira diminua consideravelmente a culpa daquele.

XIII - Não pode aceitar-se que o «êxito» da primeira acção criminosa e de cada uma das seguintes possa determinar a diminuição da culpa do arguido. A repetição ficou, pois, a dever-se, não uma efectiva diminuição da culpa do agente – que não existiu – mas sim a sua persistente vontade em satisfazer os seus desejos, que superou até a natural inibição inerente à relação de afinidade que o liga aos ofendidos.

XIV - É, assim, de afastar a integração do comportamento do arguido na figura do crime continuado. Pelo contrário, sempre que a repetição da conduta criminosa seja devida a uma tendência da personalidade do agente, a quaisquer razões de natureza endógena, que ocorra independentemente de qualquer solicitação externa, ou que decorra de oportunidade provocada pelo próprio agente, haverá pluralidade de crimes e não crime continuado.

XV - Em alguns casos, a situação de abuso sexual de criança tem sido enquadrada na figura do crime único de trato sucessivo, entendendo-se haver lugar a uma unificação de condutas ilícitas sucessivas, desde que essencialmente homogéneas e temporalmente próximas, quando existe uma mesma só resolução criminosa desde o início assumida pelo agente. É essa unidade de resolução, a par da homogeneidade de actuação, e da proximidade temporal, que constitui a razão de ser da unificação dos actos de tratos sucessivos num só crime; a reiteração, revelando uma resolução determinada e persistente do agente, traduz uma culpa agravada.

XVI - Na situação dos autos é de afastar tal enquadramento não se podendo ver na actuação do arguido a presença de uma única resolução, sendo evidente a falta de uma conexão temporal entre as condutas provadas e a proximidade temporal é essencial para o crime de trato sucessivo, referindo-se a situações que ocorreram em data não apurada de 96, em dia não apurado de 97, noutro dia não situado temporalmente mas ocorrido ou em 97 ou 98, em data não apurada de 98 e ainda em data não apurada de 99.

XVII - No caso em reapreciação tem-se por solução mais correcta a do concurso real, por não ser caso de crime continuado nem de trato sucessivo, concluindo-se, como na 1.ª instância, pelo concurso real de 7 crimes de abuso sexual de crianças.

XVIII - A atenuação especial da pena, consagrada no art. 72.º do CPP, resulta não só de uma diminuição acentuada do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena e, consequentemente, das exigências de prevenção. Essa atenuação corresponde a uma válvula de segurança do sistema, que só pode ter lugar em alguns casos extraordinários ou excepcionais, em que a imagem global do facto resultante da actuação das atenuantes se apresenta com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo.

XIX - O arguido invoca como factos-índice que fundamentam uma atenuação especial da pena o seu arrependimento e a sua integração social, reconduzindo às als. c) e d) do n.º 1 do art. 72.º do CP.

XX - Do elenco dos factos provados não se mostra comprovado o arrependimento do recorrente, como se passa a explicar. Se é certo que à confissão, mesmo que completa, não se segue necessariamente o arrependimento, há que reconhecer que este estará sempre conexionado com aquela, isto é, com a assunção da prática dos factos, o que no caso não sucedeu, quer pela ausência de confissão integral, quer pelo posicionamento processual que adoptou, designadamente em sede de contestação onde se limitou a oferecer o merecimento dos autos. Por outro lado, um dos actos susceptível de demonstrar o arrependimento sincero é a reparação do mal causado, que se alcança através do pagamento de uma indemnização que compense o dano não patrimoniais sofrido pelos menores nos seus afectados direitos de personalidade e de autodeterminação sexual – o que no caso também não se efectivou.

XXI - Para efeitos da al. d) do n.º 2 do art. 72.º do CP, não basta que o crime seja cometido há muito tempo e o delinquente ter mantido boa conduta; é fundamental que isso tenha mexido profundamente no facto ou no agente; que, por exemplo, o alvoroço social se tenha esfumado ou a personalidade do agente se tenha modificado para melhor. A boa conduta a que se refere o legislador não pode ser avaliado apenas com base na ausência de antecedentes criminais, mas sim a que se traduz em factos positivos, indiciadores de «regeneração» do arguido: a um imaculado certificado de registo criminal nem sempre corresponderá um comportamento imaculado, límpido e transparente, através de comportamentos positivos.

XXII - Não sendo caso de diminuição acentuada da ilicitude, da culpa, da necessidade da pena ou das exigências da prevenção, não pode o recorrente usufruir do reclamado benefício de aplicação de medida premial, não havendo lugar à atenuação especial da pena.

XXIII - Na determinação da pena única deve ter-se em consideração a existência de um critério especial na determinação concreta da pena do concurso, segundo o qual são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, o que obriga a que do teor da sentença conste uma especial fundamentação da medida da pena do concurso.

XXIV - Nessa «confecção» há ainda que ter em conta os critérios gerais contidos no art. 71.º do CP – exigências gerais da culpa e da prevenção – , conjugados com os princípios do art. 40.º – tutela de bens jurídicos ofendidos e finalidades das penas –, o que significa que o específico dever de fundamentação não pode deixar de estar associado da questão da adequação da pena à culpa concreta global, na vertente da proporcionalidade e da proibição do excesso, que deve presidir à fixação da pena conjunta, tornando fundamental a necessidade de ponderação entre a gravidade do facto global e a gravidade da pena conjunta.

XXV - As circunstâncias do caso apresentam um acentuado grau de ilicitude global, manifestado no número, na natureza e gravidade dos crimes praticados, nos bens jurídicos violados na área dos direitos dos menores abusados. O conjunto de ilícitos cometidos traduz-se em condutas violadoras da liberdade de auto-determinação sexual, do direito dos menores a um desenvolvimento físico e psíquico harmonioso.

XXVI - Haverá que ter em conta que a actuação delitual em apreciação desenvolveu-se ao longo de mais de três anos, suscitando este tipo de actuações elevado alarme social, com repercussões altamente negativas em sede de prevenção geral.

XXVII - Dentro da moldura do concurso que resulta das penas parcelares a que o arguido foi condenado pelos 7 crimes que praticou (2 anos de prisão para 2 deles; 4 anos de prisão para 4 e 2 anos e 6 meses de prisão para o outro), valorando, no seu conjunto e inter conexão, os factos e a personalidade do arguido, considera-se adequada a pena púnica de 6 anos e 6 meses de prisão [em substituição da pena única de 8 anos de prisão fixada pelo tribunal de 1.ª instância].
Decisão Texto Integral:

No processo comum com intervenção de tribunal colectivo n.º 451/05.4 JABRG, da Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, foram submetidos a julgamento os arguidos AA, casado, técnico de áudio e som, nascido em …, natural de …, Braga, residente na Rua de …, n. …, Cabanelas, Vila Verde e BB, nascido em …, filho do anterior e com ele residente.

O primeiro arguido foi acusado, a fls. 389 a 399, como autor material e em concurso real, da prática de:

- Três crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. à data dos factos, pelo artigo 172.º, n.º 1, do Código Penal e após a entrada em vigor da Lei n.º 59/2007, de 04-09, pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal.

- Quatro crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. à data dos factos, pelo artigo 172.º, n.º 2, do Código Penal e após a entrada em vigor da Lei n.º 59/2007, pelo artigo 171.º, n.º 2, do Código Penal.

- Um crime, p. p. pelo artigo 172.º, n.º 3, al. b), do C. P., e após entrada em vigor da Lei 59/2007, pelo artigo 171.º, n.º 3, al. b), do Código Penal.

O arguido BB foi acusado pela prática de um crime, p. p. pelo artigo 176.º, n.º 4, do Código Penal, na redacção da Lei n.º 59/2007.

A assistente CC acompanhou por simples adesão a acusação deduzida contra o arguido AA, deduzindo pedido de indemnização no montante global de € 40.483, 09, a título de danos patrimoniais e danos não patrimoniais, estes no valor de € 40.000,00 - fls. 416 a 421, do 2.º volume.

De acordo com a acta de leitura de acórdão de fls. 735/6, relativamente aos quatro crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. à data da prática dos factos pelo n.º 2 do artigo 172.º do Código Penal, atendendo à data da prática dos factos e o regime penal então em vigor, entendeu o tribunal colectivo que tais factos integravam a previsão do n.º 1 do artigo 172.º e não a do seu n.º 2, sendo a alteração da qualificação jurídica dos factos comunicada para efeitos do disposto nos n.º s 1 e 3 do artigo 358.º do CPP, nada tendo sido requerido.

Por acórdão da Vara de Competência Mista de Braga, datado de 4 de Dezembro de 2009, constante de fls. 684 a 734, do 4.º volume, com declaração de depósito, a condizer com a data marcada a fls. 678 e com a constante da acta de leitura, datada de 03-12-2009 (!) – cfr. ainda nota de rodapé de fls. 963 - foi deliberado:

I – Absolver:

- O arguido BB da prática do crime, p. e p. pelo artigo 176.º, n.º 4, do Código Penal;

- O arguido AA:

- da prática do crime, p. e p., à data dos factos, pelo artigo 172.º, n.º 3, alínea b), do Código Penal.

- da prática de quatro crimes previstos e punidos, à data dos factos, pelo artigo 172.º, n.º 2, do Código Penal.

II - Condenar o arguido AA, como autor de sete crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos, à data dos factos, pelo artigo 172.º, n.º 1, do Código Penal:

- Na pena de dois anos de prisão para o crime praticado em 1996, a que se reportam os pontos 27), 28), 29), 30) e 31) dos Factos Provados;
- Na pena de quatro anos de prisão para o crime praticado em 1997, a que se reportam os pontos 33), 34) e 35) dos Factos Provados;
- Na pena de quatro anos de prisão para o crime praticado em 1997, a que se reportam os pontos 38) e 39) dos Factos Provados;

- Na pena de dois anos de prisão pelo crime a que se reporta o ponto 41) dos Factos Provados;
- Na pena de quatro anos de prisão para o crime praticado em 1998, a que se reportam os pontos 42), 43) e 44) dos Factos Provados;
- Na pena de quatro anos de prisão para o crime praticado em 1998, a que se reportam os pontos 46), 47) e 48) dos Factos Provados;
- Na pena de dois anos e seis meses de prisão para o crime praticado em 1999, a que se reporta o ponto 49) dos Factos Provados.
Em cúmulo jurídico foi o arguido AA condenado na pena única de oito anos de prisão.
           
            III - Na parcial procedência do pedido de indemnização civil foi deliberado condenar o mesmo arguido a pagar à demandante CC:
- a quantia de € 303,16, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros calculados à taxa legal de 4%, desde a notificação do pedido e até integral pagamento;
- a quantia de € 25.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros calculados à taxa legal de 4%, a contar desde a data do acórdão e até integral pagamento.

          Inconformado com o assim deliberado o arguido recorreu para o Tribunal da Relação de Guimarães.

          Por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 6 de Dezembro de 2010, constante de fls. 884 a 917, foi deliberado o seguinte (em transcrição integral, incluindo realces):

          «Negar provimento ao recurso interposto pelo recorrente.

          Por razões diversas das do recorrente, decide-se alterar o acórdão recorrido devendo nele passar a constar em sede de condenação o que se decide:

Condenar o arguido recorrente pela prática de crime de trato sucessivo de abuso sexual de criança, p. p. pelo artigo 172º, n.º 1 do CP em relação à ofendida CC na pena de oito anos de prisão».

         Face à deliberação de Guimarães, o recorrente veio reclamar por nulidade deste acórdão, em requerimento de fls. 922 a 925, e em original, de fls. 926 a 927 verso, alegando que tendo o acórdão da Relação de Guimarães procedido à alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na deliberação do Colectivo de Braga, o fez sem o prévio conhecimento do arguido, não tendo procedido à notificação prevista no n.º 3 do artigo 424.º do Código de Processo Penal, incorrendo assim na nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 379.º, por remissão do n.º 4 do artigo 425.º do mesmo Código, que determina a invalidade da sentença, nos termos do artigo 122.º, n.º 1, ainda do CPP, terminando com as seguintes conclusões (em transcrição):

1 - O douto acórdão reclamado alterou a qualificação jurídica dos factos descritos na decisão recorrida, sem que tenha procedido à prévia notificação do Arguido para se pronunciar, conforme impunha o art° 424°, 3.

2 - Ficou, assim, a decisão incursa na nulidade prevista na al. b) do n° 1 do art° 379°, para onde remete o n° 4 do art° 425°,

3 - nulidade essa que determina a invalidade do acórdão - art° 122°, 1 - e que se proceda à notificação omitida,

4 - o que a Relação pode e deve fazer, ainda antes de ser interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, face ao que dispõem os arts 379°, 2, e 424°, 4.

5 - O Recorrente, em todo o caso, deixa consignado que a presente reclamação não implica renúncia, ainda que tácita, ao recurso que considera poder e pretende interpor do douto acórdão reclamado para o Supremo Tribunal de Justiça, sendo apresentada por mera cautela e para prevenir a hipótese - que não concede - de vir a entender-se que, apesar do diverso enquadramento dos factos, se verifica a dupla conforme prevista na al. f) do n° 1 do art° 400°.

Termos em que, concedendo provimento à presente reclamação, considerando inválido o douto acórdão proferido e ordenando a notificação do Arguido para se pronunciar sobre o novo enquadramento dos factos, farão Vossas Excelências a habitual Justiça!

       Seguiu-se a anunciada apresentação do recurso, com a motivação constante de fls. 931 a 960, e em original, de fls. 963 a 977 verso, suscitando o recorrente desde logo a questão prévia da recorribilidade do acórdão de Guimarães, defendendo resposta afirmativa, e rematando com as seguintes conclusões (em transcrição integral, consignando-se que a conclusão 16.ª surge em duplicado):

1 - O douto acórdão recorrido alterou a qualificação jurídica dos factos que vinha da 1ª instância, sem proceder à prévia notificação do Arguido, como determina o art° 424°, 3.

2 - Incorreu, por isso, na nulidade prevista na al. b) do n° 1 dp art° 379°, por remissão do n° 4 o que determina a  invalidade  do acórdão - art° 122º, 1.

3 - O Recorrente, por mera cautela e na previsão da hipótese - que não consente - de vir a declarar-se irrecorrível o douto acórdão da Relação, reclamou perante esta por nulidade, sob reserva do direito, a que não renunciou, de interpor o recurso que interpõe para o Supremo Tribunal de Justiça, agora e em contraponto, também sob reserva de não renunciar, como não renuncia, à reclamação apresentada.

4 - Essa reclamação não foi ainda decidida, pelo que, no âmbito deste recurso - e sem prejuízo da eventual reparação oficiosa da nulidade consentida pelo n° 2 do art° 379° - a questão tem de ser repristinada. Assim:

5 - O Tribunal Colectivo de Braga condenou o Recorrente na pena de oito anos de prisão, resultante do cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas aos sete crimes de abuso sexual de crianças que considerou terem sido cometidos por ele em autoria material.

6 - No recurso interposto perante a Relação de Guimarães, o Recorrente pugnou pelo enquadramento dos factos na figura do crime continuado.

7 - O douto acórdão agora impugnado repudiou a pretensão do Arguido, mas considerou que os factos não preenchem os requisitos do concurso real de crimes, devendo ser punidos como um só crime de trato sucessivo de abuso sexual de criança.

8 - É incontroverso que a Relação alterou a qualificação jurídica dos factos descritos na decisão recorrida.

9 - Não obstante, não procedeu à notificação prevista no n° 3 do art° 424°, tendo a alteração ocorrido sem o prévio conhecimento do Arguido e sem que lhe tivesse sido dada a oportunidade de sobre a mesma se pronunciar.

10 - Por tal motivo, o douto acórdão impugnado incorreu na nulidade prevista na al. b) do n° 1 do art° 379°, por remissão do n° 4 do art° 425°, que determina a invalidade da sentença - art° 122°, 1 -, que pode e deve ser declarada e implica o reenvio do processo para que o Tribunal da Relação repare a nulidade cometida, se o não fizer oficiosamente.

11 - O Recorrente aceita a qualificação dos factos como um só crime de trato sucessivo, feita pelo douto acórdão recorrido,

12 - Mas não pode, nesse enquadramento, concordar nem concorda com a pena de oito anos que lhe foi aplicada.

13 - O crime de abuso sexual de menores estava previsto, à data do último dos factos da consumação (1999), no art° 172°, n° 1, CP, e era punível com a pena de prisão de 3 a 10 anos.

14 - Ora:

- os factos ocorreram entre 1996 e 1999, portanto, os primeiros há mais de 14 anos e o último há mais de onze anos;

- o Arguido confessou os factos relevantes e, entretanto, manteve boa conduta e está arrependido;

 - os factos foram cometidos durante um período em que o Arguido esteva viciado em pornografia e não existe nenhum facto que suscite dúvidas sobre a sua total recuperação;

- o Arguido tem 56 anos de idade, tem uma família estável e solidária, composta de mulher e dois filhos, um dos quais menor com 9 anos de idade, e que o contributo do seu trabalho é essencial para a subsistência desse agregado;

- o Arguido está socialmente bem inserido, relacionando-se com amigos com boa posição, que respeita e por quem é respeitado; e

- não existem sinais de qualquer alarme social relacionados com este caso e processo.

15 - O decurso dum grande lapso de tempo com boa conduta configura uma atenuante especial, que não foi considerada como tal, mas devia tê-lo sido, face ao disposto na al. d) do n° 2 do art° 72 CP, e fixa a moldura penal abstracta aplicável entre 7 meses e 9 dias e 6 anos e oito meses de prisão.

16 - Assim sendo, consideradas as circunstâncias que ficaram resumidas no antecedente n° 14 e os critérios estabelecidos pelo art° 71° CP, a pena concreta a aplicar ao Arguido não deverá ser superior a dezoito meses de prisão.

16 - Essa mesma pena concreta, de resto e pelas mesma razões, deverá ser aplicada, por força do que dispõe o art° 79°, 1, CP, na hipótese de vir a considerar-se que a conduta do arguido deve ser qualificada como crime continuado de abuso sexual de menores,

17 - qualificação que, a título subsidiário, se postula para a hipótese de não se manter o enquadramento efectuado pelo douto acórdão impugnado na figura do crime único de trato sucessivo.

18 - A personalidade do Arguido, as suas condições de vida e a sua conduta anterior e posterior aos crimes - com particular incidência na confissão relevante e no arrependimento, circunscrição temporal dos factos e seu relacionamento com um vício que não subsiste, bom relacionamento familiar, essencialidade do seu contributo para a sobrevivência e estabilidade deste, boa inserção social e ausência de alarme social - justificam a conclusão de que a “simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades a punição”,

19- o que implica, nos termos do art° 50°, 1, CP, que a execução da pena que, revisto o douto acórdão recorrido, venha a ser aplicada ao Recorrente seja suspensa na respectiva execução.

20 - Ao decidir de modo diverso, o douto acórdão impugnado ofendeu os preceitos legais que ficaram citados nestas conclusões.

Pede seja dado provimento ao recurso.

O Exmo. Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação de Guimarães respondeu à arguição de nulidade, a fls. 981/2, dizendo em conclusão que “não assiste razão ao arguido quando entende que se verifica uma nulidade consistente numa alteração não substancial dos factos, pois que o tribunal ao decidir-se pela verificação dum único crime de abuso sexual de criança, na modalidade de “trato sucessivo”, não modificou a imputação concretizada, que se manteve, tendo-se verificado naquela, apenas, uma mutação numérica que corporiza, até, um mellius apreciativo que afasta a necessidade de cumprimento do disposto no art. 424, n°3 do CPPenal - vd. acórdão do STJ de 14/06/2006, proc. 06P1415, relator João Bernardo, “..., tem toda a pertinência a jurisprudência e a doutrina que vêm sustentando que no caso de alteração in mellius não se justifica qualquer comunicação prévia, incluindo ao arguido”.

A assistente CC veio pronunciar-se sobre a arguição da nulidade, a fls. 984/5, dizendo que os crimes de uma e outra decisões não são diferentes, apenas se apresentam com uma distinta forma de execução, vindo o acórdão recorrido esclarecer a forma do crime, i. e. , o modus operandi que norteou a conduta do recorrente integradora do crime de abuso sexual, não tendo havido alteração relevante.

A perfilhar-se a orientação que defende haver alteração da qualificação jurídica, no que não concede, a circunstância de esta não ter sido previamente comunicada ao arguido, para que este se pronunciasse não determinaria a respectiva nulidade, tendo antes lugar uma mera irregularidade, com as consequências previstas no artigo 123.º do CPP, defendendo que deverá soçobrar a tese do recorrente.     

            Respondendo ao recurso, o M.º P.º junto da Relação de Guimarães – de fls. 989 a 995 - reassume a posição já tomada quanto à arguida nulidade, defende não se verificar dupla conforme, sendo o presente recurso admissível, e sobre a medida da pena referiu que ao arguido terá sido aplicada a pena máxima, uma vez que a moldura penal é de 1 a 8 anos, medida de que se afasta. Mas também defende que a pena justa não passa pela satisfação da pretensão de atenuação especial da pena, tendo em vista, mormente, o decurso do tempo, por só em casos excepcionais poder ter lugar a atenuação especial, citando o acórdão do STJ de 17-06-2004, proferido pelo actual Presidente desta Secção, no processo n.º 1873/04-5.ª e o acórdão de 24-09-98, proferido no processo n.º 327/98, defendendo que não releva apenas o decurso do tempo para que se possa aplicar o instituto, sendo também necessário, imprescindível, que o arguido mantenha boa conduta, não sendo apenas objecto de consideração o seu crc. Importa, diz, afirmação da boa conduta através de comportamentos positivos.

      Termina, dizendo em conclusão (igualmente em transcrição integral):

1. O acórdão do Tribunal da Relação que confirmou a condenação do arguido na pena de 8 anos de prisão, mas que alterou a imputação criminosa ao mesmo efectuada na sentença da 1ª instância - concretamente ao condená-lo pela autoria de apenas um crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo art. 172, n.°2 do CPenal quando na 1ª instância havia sido condenado, na mesma pena, mas pela autoria de 7 daqueles crimes - ao não dar dado cumprimento ao disposto no art. 424, n.°3 do CPPenal não incorreu em nulidade pois que o procedimento havido não constitui uma alteração não substancial dos factos, apresentando-se apenas como um mellius em relação à imputação.

2. Tal circunstância não configura, contudo, a constatação duma dupla conforme criadora dum obstáculo à admissão do recurso para o STJ nos termos do art. 400, n.°1, al. f) do CPPenal, pois que se configura, efectivamente, uma alteração fáctica não substancial mas com efectivo relevo na determinação concreta da pena que deverá agora ser encontrada no âmbito de uma só conduta mas com plural variedade, afastando-se da que havia sido feita em torno de múltiplas condutas em concurso real.

3. A pena a fixar, tomando em linha de conta o disposto no art. 71 do CPenal e toda a matéria de facto dada como provada, deve ser de 6 anos e 6 meses de prisão, não se apresentando circunstâncias excepcionais que justifiquem uma atenuação especial da pena, mormente a circunstância do decurso do tempo e o bom comportamento do arguido, já que este não o demonstrou pagando, pelo menos, a indemnização devida à menor sua sobrinha pelas múltiplas agressões sexuais que, ainda infanta, a vitimaram.

4. O recurso deverá ser julgado parcialmente procedente, pelas razões expendidas.

          A assistente (e demandante cível) respondeu ao recurso, conforme fls. 997 a 1005, e em original, de fls. 1007 a 1015, reassumindo o que já expusera na resposta quanto à arguição de nulidade do acórdão recorrido, e defendendo, por outro lado, a irrecorribilidade do acórdão face ao disposto no artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP.

         No que respeita à pretensão de atenuação especial da pena, diz que, jamais poderá o alargado hiato temporal decorrido entre a prática dos factos e a actualidade funcionar como uma atenuante especial a ter em conta na aplicação da pena em sentido mais favorável. Tal conduziria à perpetuação de um intolerável estado de iniquidade; o recorrente nunca se assumiu como doente, como pedófilo, o que se não traduz em arrependimento.

         Conclui no sentido de que não deve ser admitido o recurso, sempre devendo, na hipótese adversa, ser julgado improcedente o recurso, confirmando-se o acórdão recorrido.

         A Exma. Desembargadora Relatora proferiu despacho, a fls. 1016, onde pondera que o recorrente terá arguido a aludida nulidade à cautela, para a hipótese de se considerar verificada a dupla conforme, ou seja, estando o conhecimento da nulidade na dependência da admissibilidade ou não admissibilidade do recurso, e que, sendo admitido o recurso, o conhecimento da nulidade terá lugar no Supremo Tribunal de Justiça, seguindo-se a admissão do recurso.  

        O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu então parecer, a fls. 1022, pronunciando-se pela afirmativa quanto à admissibilidade do recurso, pois o acórdão recorrido “não confirmou a decisão de 1.ª instância, a não ser quanto à pena aplicada, pois a lógica construtiva do enquadramento jurídico-legal é diversa numa e noutra instância”. 

         No que respeita à arguida nulidade do acórdão recorrido e pretendida alteração não substancial dos factos (sic), diz acompanhar a resposta do M.º P.º na Relação do Porto, para além de sufragar a posição expressa na mesma resposta, no que toca à determinação da medida da pena, defendendo que o recurso merece parcial provimento.

         Foi então ordenado o cumprimento do disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, e cumprido quanto ao arguido, este nada disse.

         Posteriormente, foi por nós, verbalmente ordenado o cumprimento (assim se justificando uma “segunda vaga” de notificação em 30 de Maio) em relação à assistente.

         A notificação feita a fls. 1025 surge, porém, dirigida ao Sr. Dr. DD “na qualidade de Mandatário do Recorrido EE”, o que corresponde a lapso manifesto, quanto a nós, sem consequências e necessidade de repetição/conserto.

         Na verdade, o Sr. Dr. DD tem procuração do ofendido EE Salgado, a fls. 166, o qual, sendo irmão da assistente, era igualmente ofendido, mas em relação ao qual foi determinado o arquivamento do processo por caducidade do direito de queixa – cfr. fls. 388 – passando a figurar como testemunha, nessa qualidade tendo sido ouvido em audiência de julgamento.

         Certo que o mesmo Sr. Advogado é mandatário constituído pela assistente (admitida como tal por despacho de fls. 380) e demandante cível CC, com procuração junta a fls. 165, que acompanhou por adesão a acusação pública e deduziu pedido de indemnização, a fls. 416 a 421.

         A notificação feita, atento o tempo e o modo como o foi, só podia ser entendida como dirigida ao mandatário referido, mas apenas enquanto advogado da assistente, não tendo havido resposta. 

         Não tendo sido requerida audiência de julgamento, o processo prossegue com julgamento em conferência, nos termos dos artigos 411.º, n.º 5 e 419.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal.

         Colhidos os vistos, realizou-se a conferência, cumprindo apreciar e decidir.

         Como é jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal - acórdão do Plenário da Secção Criminal, de 19-10-1995, no processo n.º 46580, Acórdão n.º 7/95, publicado no Diário da República, I Série - A, n.º 298, de 28-12-1995 (e BMJ n.º 450, pág. 72), que fixou jurisprudência, então obrigatória, no sentido de que “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito” e verificação de nulidades, que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2 e 410.º, n.º 3, do CPP - é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior.                                                                

          Questões a decidir

         Em primeiro lugar há que ter presente que este recurso restringe-se à parte criminal do acórdão recorrido, não dissentindo o arguido da condenação no pagamento de indemnização imposta na acção cível enxertada, a qual supõe a prática do ilícito global por si praticado, seja encarado como crime único, ou conjunto de condutas reiteradas, continuadas, ou sucessivas, ou em diverso registo, em acumulação real, para o caso pouco importa, atento o disposto no artigo 403.º, n.º s 1 e 2, alínea b), do CPP, sendo que a estrutura da pretensão recursiva e o objecto do recurso tornam inaplicável o funcionamento da disposição do n.º 3, o que confere desde logo, nesse plano, ganho de causa à demandante, que assim obtém título executivo contra o arguido/demandado – artigos 45.º, 46.º, alínea a) e 671.º do CPC – e na outra vertente, verificada a inadimplência, entrando o arguido/condenado/devedor de indemnização nas malhas do incumprimento de obrigação pecuniária, do retardamento no cumprimento da obrigação de indemnizar – artigos 798.º, 804.º, 805.º, n.º 2, alínea b), 806.º e 817.º do Código Civil.   

         Para além da questão prévia da admissibilidade do recurso, atento o teor das conclusões apresentadas pelo recorrente, que traduzem de uma forma condensada, as razões da sua divergência com a decisão impugnada, as questões suscitadas pelo impugnante propostas a debate e reapreciação no presente recurso reportam-se aos seguintes aspectos: 

I Questão – Nulidade por alteração da qualificação jurídica – conclusões 1.ª a 10.ª;

II Questão – Enquadramento jurídico-criminal: crime de trato sucessivo, ou, subsidiariamente, crime continuado - conclusões 11.ª, 16.ª e 17.ª;

III Questão - Atenuação especial da pena - conclusões 13.ª, 14.ª e 15.ª;

IV Questão -  Medida da pena - conclusões 12.ª e 16.ª;

V Questão - Suspensão da execução da pena - conclusões 18.ª e 19.ª

FACTOS PROVADOS

Foi dada como provada a seguinte matéria de facto, que é de ter-se por imodificável e definitivamente assente, já que da leitura do texto da decisão, por si só considerado, ou em conjugação com as regras de experiência comum, não emerge a ocorrência de qualquer vício decisório ou nulidade de conhecimento oficioso, mostrando-se a peça expurgada de insuficiências, erros de apreciação ou contradições que se revelem ostensivos, sendo o acervo fáctico adquirido suficiente para a decisão, coerente, sem contradição, harmonioso, e devidamente fundamentado.         

1. O arguido AA é casado com FF, irmã de GG.

2. GG é mãe de EE nascido a …, CC, nascida a … e de HH, nascida a ….

3. Por força desta relação de parentesco os menores CC, HH e EE por diversas vezes visitaram o arguido AA na residência deste sita, na altura, na Avenida …, e na Rua da …, lote …, …, ..., neste concelho e comarca de Braga.

4. O arguido AA realiza audiovisuais e era sócio-gerente da firma II, LDª (Estúdio de Publicidade Vídeo e Áudio) cuja sede era na sua residência.

5. Detém todo o tipo de aparelhagem, computador, com placa de vídeo, câmaras de vídeo, HI8mm, DVcan e outros aparelhos de apoio.

6. O arguido AA faz trabalhos em casa, onde detém um pequeno estúdio para tratar as imagens captadas no computador, tinha Internet e diversos jogos de computador.

7. O EE, por força da referida relação de parentesco, por diversas vezes, deslocava-se à residência do arguido AA para estar com o seu primo BB.

8. Porém, a maioria das vezes, o arguido AA arranjava maneira de permanecer a sós com o EE.

9. Em 7 de Agosto de 1997 faleceu a avó paterna dos menores acima referidos.

10. Nos dias seguintes ao falecimento da sua avó o EE, que ia fazer 13 anos de idade, visitou o arguido na residência deste.

11. O arguido AA, porque o EE estava muito triste, começou por consolá-lo pela morte da avó.

12. Em seguida mostrou-lhe imagens pornográficas, acariciou-o no pénis e beijou-o.

13. Depois o arguido AA masturbou-se, masturbou o EE e praticou sexo oral com este.

14. Por várias vezes o arguido AA tentou introduzir o seu pénis no ânus do EE, não o tendo conseguido.

15. Quando estava com o EE o arguido AA mexia-lhe no pénis, roçava-se e praticava sexo oral com o mesmo, beijava-o na boca, acariciava-lhe o corpo todo.

16. Mostrava-lhe pornografia através de vídeos e aproveitando-se do estúdio que tinha em casa, filmava-o e fotografava-o.

17. No verão de 1998, em dia não apurado, o arguido AA, agora já com a residência de ..., e no local onde tinha montado todo o sistema de computadores vídeos e som, porque pretendia praticar actos de cariz sexual com o menor EE e gravar os mesmos, colocou a sua câmara de vídeo no modo de gravação e virada para o local onde ele e o EE se iriam sentar.

18. Em seguida colocou um vídeo pornográfico onde se exibiam cenas de sexo explícito e exibiu-o ao EE.

19. Depois o arguido mandou o EE levantar-se da cadeira e desceu as calças do fato de treino que o EE envergava começando a acariciar-lhe o pénis.

20. Após o arguido AA introduziu o pénis do EE na sua própria boca.

21. Passou-lhe o pénis erecto pelo corpo e pelas nádegas ejaculando nas mãos do EE.

22. Depois o arguido retirou o seu próprio pénis das calças e obrigou o EE a masturbá-lo e a beijar-lhe o pénis.

23. Enquanto fazia isto o arguido por diversas vezes beijou o EE na boca.

24. Pouco tempo após o arguido obrigou o EE a masturbar-se ao mesmo tempo que continuava a gravar tais cenas na sua câmara de vídeo 8mm.

25. A CC, também ia para a residência do arguido, sita na Avenida … acompanhada da sua mãe, que ia visitar a irmã (esposa do arguido).

26. Quando o arguido AA mudou a sua residência para ... a menor CC também o visitava na companhia da mãe e, por outras vezes, o próprio arguido AA ia buscar a CC para lhe ensinar música.

27. Em data não apurada, mas se sabe situada no ano de 1996, a CC visitou o arguido AA na companhia da sua mãe à casa deste, sita na Av. ….

28. Enquanto a mãe se encontrava numa outra divisão da casa com a esposa do arguido, a menor ficou na companhia deste, no escritório dele, a colorir desenhos.

29. O arguido, enquanto a CC brincava, beijou-a, acariciou-a na cara e no cabelo.

30. Após o arguido sentou-se com a CC ao colo para satisfação dos seus desejos sexuais ao mesmo tempo que a apalpava.

31. Em seguida o arguido colocou jogos no computador e enquanto a menor jogava, aproveitando a distracção desta, o arguido AA, colocou a mão livre da CC no seu pénis, em seguida colocou a menor ao colo, ao mesmo tempo que roçava o seu órgão sexual nela.

32. O arguido AA repetiu estes factos por diversas vezes, em diversos dias.

33. Num outro dia, também não apurado mas que se sabe situado no ano de 1997, o arguido AA aproveitando uma altura em que se encontrava a sós com a CC disse-lhe que iam brincar aos médicos.

34. Em seguida, com um estetoscópio percorreu o corpo todo da CC, apalpando-a no corpo todo e na vagina, após, levantou-lhe a saia e lambeu-lhe a vagina.

35. Depois introduziu na boca da CC o seu pénis ao mesmo tempo que lhe ordenava que o “chupasse”.

36. O arguido AA repetiu estes factos por diversas vezes, em diversos dias.

37. Por tal facto a CC começou a recusar-se a usar saia.

38. Em dia também não apurado mas que se sabe situado também no ano de 1997, o arguido AA porque a CC não trazia saia, tirou-lhe as roupas que trazia e em seguida acariciou-a e lambeu-lhe a vagina.

39. Em seguida sentou-se no sofá e obrigou a CC a deitar-se colocando a cabeça da CC entre as suas pernas, depois pressionou-lhe a cabeça, introduzindo e movimentando o seu pénis dentro da boca da menor.

40. Quando mudou a sua residência para a Rua …, n.º …, …, nesta cidade de Braga, o arguido AA tinha um móvel que dividia a sala e separava a aérea de televisão da área do computador.

41. O arguido AA sentava a menor CC ao seu colo e colocava as suas mãos na vagina da menor, para satisfação dos seus desejos sexuais e quando a menor tentava sair desta posição o arguido forçava-a a permanecer ali.

42. Em dia e mês não apurada do ano de 1998, a CC deslocou-se à casa do arguido, para que este lhe ensinasse a tocar viola.

43. A determinada altura a CC queixou-se que lhe doíam os dedos por tocar viola e aproveitando tal facto o arguido AA massajou os dedos da CC, beijou-os e acariciou-os, ao mesmo tempo que a apalpava e beijava na boca.

44. Em seguida o arguido AA retirou o seu pénis das calças e introduziu-o na boca da menor CC ao mesmo tempo que o movimentou.

45. Por diversas vezes o arguido praticou estes factos com a menor CC.

46. Em dia também não apurado mas que se sabe situado em 1998, o arguido, na residência de …, e no local onde tinha montado todo o sistema de computadores vídeos e som, porque pretendia praticar actos de cariz sexual com a menor CC colocou um vídeo pornográfico onde se exibiam cenas de sexo explícito e exibiu-o à CC.

47. Após sentou a CC no colo e roçou-se nela pressionando a sua anca contra o seu pénis erecto.

48. Depois despiu a CC e começou a acariciá-la, introduzindo-lhe o pénis na boca.

49. Em dia e mês também não apurado do ano de 1999, o arguido AA sentou a CC numa cadeira em frente ao computador e sentou-se ele noutra cadeira em frente e, em seguida, lambeu-lhe a vagina.

50. A CC porque estava muito nervosa fez xixi na cadeira, molhando-a e molhando o chão o que fez com que o arguido AA ficasse zangado com ela.

51. Em todas estas ocasiões o arguido não se despia, abrindo o fecho das calças e colocando o pénis de fora e exibiu, por diversas vezes, filmes pornográficos em cassete e que passavam na televisão, onde se retratavam cenas de sexo explicito com adultos e com crianças, obrigando a menor CC a assistir aos mesmos na sua companhia.

52. Toda a situação descrita durou até inícios do ano 2000, até aos 10 anos de idade da CC.

53. Em dia não apurado de finais do ano de 1999 ou de Janeiro de 2000 quando a menor HH foi de visita a casa do arguido AA este pegou na mesma ao colo e roçou com o corpo da mesma no seu por forma a satisfazer os seus instintos sexuais, sentou-se em frente ao computador e colocou a menor HH no seu colo ao mesmo tempo que se ia roçando na mesma de cima para baixo, para a frente e para trás e virando-a de frente e de costas.

54. Perturbada com esta situação a menor HH contou à sua mãe que suspendeu as visitas à casa do arguido.

55. O EE enquanto era menor nunca teve coragem para pedir ajuda aos seus pais e a sua timidez nunca o deixou fugir do seu tio.

56. A CC entrou em depressão e o EE começou a consumir produtos estupefacientes.

57. Quando se encontrava em tratamento para a dependência de estupefaciente o EE, em Agosto de 2005, contou aos pais o sucedido com o arguido facto que levou estes a questionar a CC que, confrontada com o facto de o seu irmão também ter sido vítima do arguido resolveu contar o que se tinha passado consigo.

58. dia 28 de Setembro de 2005, na busca realizada à residência do arguido AA, sita na Rua …, lote …, …, …, nesta cidade de Braga, foi apreendido:

•Na sala comum sita no piso rés-do-chão:

•Um computador pessoal (linha branca);

•Cento e seis (106) CD-ROM e/ou DVD’s;

•Cento e oitenta e sete (187) disquetes 3 ½ próprias para computador - das quais cento e cinquenta e seis se encontravam guardadas num arquivador próprio, também apreendido;

•Quarenta e duas (42) cassetes vídeo, sistema VHS;

•Cinquenta (50) cassetes vídeo HI 8 milímetros;

•No corredor, também no piso do rés-do-chão:

•Treze (13) cassetes vídeo, sistema VHS;

•Uma (1) disquete própria para computador;

•Vinte e dois CD-ROM e /ou DVD’S;

•Oito cassetes vídeo Hi 8 milímetros;

•Uma cassete mini DVD.

59. As disquetes, cassetes VHS, Hi8mm, mini DVD, CD’S e dos DVD’S apreendidos contém conteúdo de carácter pornográfico.

60. O arguido AA ali guardou imagens de todo tipo incluindo imagens de pornografia infantil.

61. Nos referidos suportes encontram-se imagens e filmes que contém as seguintes situações:

•Sexo com crianças e animais;

•Sexo em grupo;

•Banda desenhada que só retrata sexo com crianças;

•Sofrimento demonstrado por crianças a serem abusadas;

•Actos sexuais em família;

•Actos sexuais com bebes;

•Fotos captadas pelo próprio arguido na praia, nas ruas desta cidade, a transeuntes, crianças, jovens do sexo masculino e feminino e que desconhecem estar a ser fotografados.

62. No material apreendido encontrava-se uma cassete VHS, de onde consta uma filmagem que o arguido AA efectuou no seu escritório, na residência sita na Rua da …, lote …, n.º …, …..

63. Assim, em data não apurada, mas que se sabe situada entre os anos de 1998 a 2000, uma menor cuja identificação não foi possível apurar, visitou o arguido AA na companhia da sua mãe.

64. Utilizando o mesmo modo que acima se descreveu o arguido colocou a sua câmara de vídeo no modo de gravação.

65. Enquanto a mãe da menor se encontrava numa outra divisão da casa com a esposa do arguido, esta ficou na companhia deste, no escritório dele, a colorir desenhos.

66. O arguido simulando auxiliar a menor, beijou-a, acariciou-a na cara e no cabelo e simultaneamente masturbou-se para a câmara que continuava no modo de gravação.

67. Após o arguido sentou-se com a menor ao colo para satisfação dos seus desejos sexuais e ao mesmo tempo que a apalpava virava a menor para a câmara para desta forma melhor filmar as partes íntimas da menor.

68. Enquanto fazia isto, por largo período de tempo, o arguido beijou, por diversas vezes, a menor e simulando brincar com ela apalpou-a.

69. Em seguida o arguido colocou jogos no computador e pôs a menor a jogar os mesmos.

70. Enquanto a menor jogava aproveitando a distracção desta colocou-lhe a mão no seu pénis.

71. O arguido colocou a menor ao colo, roçando o seu órgão sexual nela e posteriormente masturbou-se para a câmara, de pé e por detrás da criança.

72. Os factos acima descritos provocaram nos menores EE, CC e HH angústia e ansiedade.

73. Na altura em que tudo começou a CC, não tinha referências sexuais sendo para si tudo muito estranho e vergonhoso, não contando a ninguém o que se passava por vergonha continuando a conviver com o arguido a sujeitar-se a tudo aquilo para que não desconfiassem de nada.

74. A CC foi acompanhada pela psicóloga Dr.ª JJ, tendo sido acompanhada em sessões de psicoterapia e evidenciado angustia depressiforme concordante e reactiva e na vivência traumática “abuso sexual” continuado por parte do tio.

75. O impacto deste acontecimento causou-lhe danos na construção e organização da sua personalidade: comprometimento do sentimento do eu (baixa auto-estima), relacionamento interpessoal (anestesia efectiva e tendência para o isolamento), vivência disfuncional da sua sexualidade.

76. Os transtornos ansiosos e depressivos de que padece inserem-se no quadro de Perturbação de Stress pós-traumático.”

77. Com os comportamentos supra descritos a CC viu afectado o seu processo de crescimento e vivência nomeadamente na sua vertente sexual e afectiva.

78. A CC padece de insónias constantes em virtude das emoções que as referidas situações por si vivenciadas ainda lhe despertam e tornou-se numa pessoa introvertida.

79. A CC era uma jovem alegre convivendo normalmente com os colegas e amigos fazendo jogos e brincadeiras próprias da sua idade.

80. A CC em consultas de psicologia e medicamentos gastou a quantia de €303,16.

81. No dia 6 de Novembro de 2007 foi efectuada busca na Rua de …, n.º …, …, Vila Verde, residência dos arguidos.

82. Foi aí apreendido o seguinte:

•Um porta CD/DVD de cor vermelha com 30 DVD;

•Um disco rígido da marca “Western Digital” com o n.º de série …;

•Um disco rígido da marca “Maxtra” com o n.º de série …;

•Um disco rígido da marca “Fujitsu Limited” com o n.º de série …;

•Um disco rígido da marca “Seagate” modelo “Barracutta”, com o n.º de série …;

•Um disco externo da marca “Lacie” com o n.º ….

83. Da análise ao disco externo de marca”Lacie” com o código de barras 1121703130244KR, e que continha no seu interior um disco rígido de marca “Samsung” e modelo “HM160JC” com capacidade de 160 Gb`s e s.n. …, foi possível constatar que o mesmo continha fotografias de raparigas nuas cuja idade não foi possível em concreto apurar e banda desenhada que só retrata sexo com crianças (e que constam do apenso F).

84. Este disco externo foi encontrado no quarto do arguido BB, filho do arguido AA e era pertencente a este

85. O arguido AA agiu livre e conscientemente, com o propósito concretizado de, nos períodos temporais acima referidos, praticar os actos anteriormente descritos com a CC, – contra a vontade desta - para satisfação dos seus desejos sexuais, bem sabendo que a mesma tinha menos de 14 anos de idade.

86. O arguido AA agiu sempre a coberto de um sentimento de impunidade, propiciado pela circunstância de praticar os factos descritos contra a CC, na ausência de outras pessoas, em local fechado e reservado ao abrigo de uma relação de parentesco e abusando da inexperiência da mesma.

87. A CC dada a sua idade não tinha capacidade para perceber os intuitos do arguido AA e nem de avaliar o significado dos comportamentos descritos, o que era do conhecimento do arguido.

88. Agiu o arguido AA para satisfação dos seus desejos sexuais e com consciência e conhecimento de que os comportamentos supra descritas eram susceptíveis de prejudicar a autodeterminação sexual da CC, comprometendo a sua normal evolução, o desenvolvimento da sua maturidade sexual, no aspecto psicológico.

89. O arguido AA agiu indiferente à violação da sensibilidade da CC, quanto ao seu sentido de vergonha e de pudor.

90. Ao exibir os vídeos pornográficos à CC sabia o arguido AA que atentava contra a autodeterminação sexual da mesma.

91. O arguido AA sabia que as suas condutas eram proibidas e criminalmente puníveis, não se abstendo, não obstante, de as praticar.

92. O arguido AA confessou, em julgamento, parte da materialidade dos factos pelos quais vinha acusado.

93. Tem como habilitações literárias o 9º ano e diversos cursos técnicos na área do audiovisual.

94. O arguido AA trabalha em casa com a colaboração do seu filho mais velho, o arguido BB, em trabalhos na área do audiovisual, nomeadamente na realização de filmes musicais para bandas de música ou filmes sobre a remodelação ou construção de edifícios, auferindo um rendimento variável, cuja média mensal será de cerca de €800,00.

95. A esposa do arguido, FF, trabalha também em casa como estilista auferindo rendimento variável.

96. Para além do arguido BB tem um filho com oito anos que frequenta a escola primária; paga €350,00 de renda de casa e possui dois veículos automóveis.

97. O arguido BB tem como habilitações literárias o 12º ano, que não chegou a completar.

98. No âmbito das novas oportunidades o arguido BB fez um curso encontrando-se actualmente em estágio, o qual é remunerado, recebendo mensalmente a quantia de €400,00.

99. O arguido não tem antecedentes criminais.

                                                          

        Na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, discorreu o Colectivo de Braga nos termos seguintes:

    «C. Motivação

     A convicção do tribunal relativamente à matéria de facto integradora dos elementos do tipo de crime imputado ao arguido AA na acusação baseou-se desde logo no facto de o arguido, em audiência de discussão e julgamento, ter admitido a veracidade de parte dos factos da mesma constantes.

     No entanto, e atendendo desde logo ao depoimento da ofendida CC consideram-se provados os factos constantes da acusação para além da confissão efectuada pelo arguido.

      A ofendida CC relatou ao Tribunal, de forma circunstanciada, os actos praticados pelo seu tio referindo que os mesmos ocorreram por diversas vezes e se terão iniciado quando andava na 1ª classe e o arguido residia ainda na casa antiga (antes de se mudar para a freguesia de ...); a ofendida relatou ainda a forma como só em 2005 contou à mãe os factos, após esta a ter confrontado com os que o seu irmão EE contara, esclarecendo que no início começou a chorar tendo escrito pois na altura não conseguia falar sobre tais factos.

       A fls. 345 dos autos encontra-se efectivamente o papel onde a CC escreveu relatando pela primeira vez à mãe os factos praticados pelo arguido.

       A ofendida referiu ainda que quando a sua irmã HH contou à mãe o que se passara (o que motivou que tivessem deixado de ir a casa do tio) não conseguiu contar à mãe o que se passara consigo.

       Em sintonia com as declarações da ofendida consideraram-se os depoimentos das testemunhas EE e HH, irmãos da ofendida, e que relataram ao Tribunal os factos praticados pelo arguido relativamente aos mesmos.

       A testemunha EE referiu ainda que os actos praticados pelo arguido AA para consigo tiveram inicio em 1997, o que se recordava pelo facto que então o marcou do falecimento da sua avó paterna, ia fazer 13 anos, recordando-se que foi logo uns dias ou uma semana depois do falecimento que se iniciaram os actos praticados pelo tio; de referir que corroborando estas declarações se encontra a fls. 365 certidão do assento de óbito de KK, atestando o óbito desta em 07 de Agosto de 1997.

       Esta testemunha relatou ainda a forma como começou a consumir drogas, e como na sequência de uma recaída nesse consumo, contou aos pais em 2005 o que levou que a que a irmã CC acabasse também por contar.

       A corroborar as declarações do EE, reforçando a convicção do Tribunal, é de referir, de entre o material apreendido na residência do arguido, a filmagem que este realizou com o EE e que se mostra reproduzida em DVD.

       A testemunha HH confirmou que deixou de frequentar a casa do arguido, bem como a sua mãe e a irmã, em finais de 1999 inícios do ano de 2000, na sequência de ter contado à mãe o que o arguido lhe fizera começando por dizer que achava que o arguido, atento o comportamento que tivera, “não gostava de crianças”; referiu ainda que nessa altura a mãe não sabia nada do que se passava com a CC e que na altura a CC disse à mãe que ela não mentia mas não tinha contado nada do que se passara com ela.

       Estas declarações, bem como as da ofendida e da testemunha EE, foram confirmadas pelo depoimento de GG, mãe dos mesmos.

       Por estas testemunhas foi ainda relatado que a ofendida alterara o seu comportamento e maneira de ser, passando a ser muito mais fechada, tornando-se rebelde e até agreste; a LL referiu ainda o episódio ocorrido, ao que pensa quando a CC andava na 2ª classe, de não querer usar mais saias, salientando de que se apercebia por vezes de comportamentos estranhos na filha que na altura não percebia e nem associava aos factos objecto dos presentes autos. No mesmo sentido as declarações de MM, pai da ofendida, que salientou que ele já tinha deixado de ir a casa do arguido há mais tempo por não gostar da forma como o arguido se dirigia à sua mulher, referindo ainda que o arguido tinha comportamentos que considerava estranhos relacionados com alguma “taradice” sexual.

      Relativamente à situação da ofendida atendeu-se ainda às declarações da testemunha NN, amiga da mãe da CC e da mulher do arguido, que conhece a ofendida desde pequena, e que salientou que esta era muito doce, meiga e encantadora em pequena e que se tornara revoltada, agreste e “zangada com o mundo”.

        Mais se atendeu ao documento de fls. 378, elaborado pela Dr.ª JJ, que acompanhou a ofendida; e relativamente ao montantes gastos nas consultas de psicologia e medicamentos o teor dos documentos juntos com o pedido de indemnização civil formulado.

(…)

      No que toca à prova testemunhal de referir ainda o depoimento da testemunha OO, que conhece o arguido AA e o arguido BB desde pequeno e que, não tendo conhecimento directo dos factos em causa neste processo, relatou a situação por si própria vivida por volta do ano de 1978, teria então 13/14 anos, altura em que aconteceu a primeira abordagem sexual por parte do arguido; esta testemunha é irmã da testemunha NN, a cujo depoimento já se aludiu, e que confirmou que a irmã tinha cerca de 16 anos quando lhe contou que teria tido relações sexuais com o arguido AA por diversas vezes, não lhe tendo dito na altura desde quando tal acontecia e que só com o conhecimento deste processo lhe contara que as mesmas se teriam iniciado quando tinha cerca de 13/14 anos.(…)

      Relativamente à matéria considerada não provada resulta do facto de não ter ficado a mesma demonstrada da prova produzida, documental ou testemunhal, designadamente das próprias declarações da ofendida; assim, é de referir que a ofendida declarou não ter ideia que o arguido tivesse introduzido os seus dedos na vagina e nem ter a certeza que tivesse ejaculado na sua boca e nem confirmou com certeza que alguma vez tivesse gravado os actos praticados com ela. Da mesma forma que não resultou que o arguido AA introduzisse dedos no ânus do EE (conforme se atesta do depoimento do EE) ou que os factos praticados com a HH tivessem ocorrido por mais de uma vez, tendo esta sido peremptória ao referir que apenas acontecera uma única vez e que teria contado à mãe de imediato (ao que pensava no próprio dia)».

Apreciando.

Questão prévia - Admissibilidade do recurso

Antes do mais, há que abordar a questão da admissibilidade do presente recurso, tendo-se em consideração o regime de recursos aplicável em 4 (ou em 3?) de Dezembro de 2009, data da prolação da decisão em primeira instância, e sabendo-se que o processo se iniciou em 31 de Agosto de 2005.

O acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 4/2009, de 18-02-2009, proferido no processo n.º 1957/08-3.ª, publicado no Diário da República, n.º 55, de 19 de Março de 2009, fixou a seguinte jurisprudência: «Nos termos dos artigos 432.º, n.º 1, alínea b) e 400.º, n.º 1, alínea f) do CPP, na redacção anterior à entrada em vigor da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, é recorrível o acórdão condenatório proferido, em recurso, pela relação, após a entrada em vigor da referida lei, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão superior a oito anos, que confirme decisão de 1.ª instância anterior àquela data».   

Relembre-se que o próprio recorrente, prevenindo a hipótese de se entender verificada a dupla conforme, se viu na necessidade de arguir a nulidade, como o fez, a fim de assegurar o conhecimento das suas pretensões.

Começando pelos factos com interesse processual para a questão que nos ocupa.

O recorrente foi condenado pela prática, em concurso real e efectivo, de sete crimes de abuso sexual de crianças, p. p. pelo artigo 172.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção anterior à introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro (punidos à data dos factos com pena de prisão de 1 a 8 anos - fls. 722), na pena única de oito anos de prisão.

O acórdão recorrido, distanciando-se da posição adoptada pelo Colectivo de Braga e afastando, por outro lado, a preconizada subsunção da conduta provada na figura do crime continuado, como defendeu o arguido na motivação, negou provimento ao recurso, mas por razões diversas das invocadas pelo recorrente, tendo alterado a qualificação jurídica dos mesmos factos, subsumindo a conduta provada num único crime de trato sucessivo e aplicando exactamente a mesma pena de oito anos de prisão (coincidente com o limite máximo da moldura aplicável).  

A questão que se coloca é a de saber se no caso em reapreciação estamos perante uma dupla conforme total.

           No nosso caso decisão recorrida é o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, que em recurso negou provimento à pretensão do recorrente e confirmou a medida da pena aplicada na primeira instância, sem qualquer alteração, mínima que seja, aos factos provados, mas modificando a subsunção jurídico criminal constante da decisão do Colectivo de Braga.

Como vimos, para o M.º P.º junto da Relação, posição de resto em que é acompanhado neste STJ, não se configura uma situação de dupla conforme, enquanto a assistente defende que não há propriamente uma alteração jurídico-criminal.

           Estando ora em causa uma decisão proferida, em recurso, pela Relação, vejamos da recorribilidade desse tipo de decisão.

          É admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça nos casos contemplados no artigo 432.º do Código de Processo Penal, sem prejuízo de outros casos que a lei especialmente preveja, como explicita o artigo 433.º do mesmo diploma legal.

          No que importa ao caso presente, rege a alínea b) do n.º 1 do artigo 432.º, que estabelece que:

       “1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

       b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º”.     

       Com a entrada em vigor, em 15 de Setembro de 2007, da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, foi modificada a competência do Supremo Tribunal de Justiça em matéria de recursos de decisões proferidas, em recurso, pelas relações, restringindo-se a impugnação daquelas decisões para este Supremo Tribunal, no caso de dupla conforme, a situações em que tenha sido aplicada pena de prisão superior a oito anos.

       A partir da alteração introduzida pela aludida Lei n.º 48/2007, passou a estabelecer o artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal:

       «1 – Não é admissível recurso:

       (…)

       f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos».

(Os preceitos em causa têm-se mantido inalterados nas subsequentes modificações do Código de Processo Penal, operadas pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro, pela Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto, pela Lei n.º 115/09, de 12 de Outubro e pela Lei n.º 26/2010, de 30 de Agosto).


No que respeita ao recurso temos que o arguido foi condenado na primeira instância na pena única de 8 anos de prisão, medida da pena que o Tribunal da Relação efectivamente confirmou, mas com outros contornos, assentando numa muito diversa qualificação jurídica.

          Na tese da primeira instância estaríamos face a um concurso real de sete crimes de abuso sexual de criança, todos puníveis com uma pena de prisão de 1 a 8 anos de prisão, a que couberam as penas parcelares de 2, 4, 4, 2, 4, 4 e 2 anos e 6 meses de prisão - fls. 726, 727 e 732.

A mais elevada pena aplicada - 4 anos de prisão - verifica-se por quatro vezes pelos crimes a que correspondem os factos dados por provados n.º 33, 34, 35; 38, 39; 42, 43, 44; e 46, 47, 48, sendo a pena conjunta aplicada de 8 anos de prisão.

Atente-se que nessa decisão a moldura abstracta era de 4 anos a 22 anos e 6 meses de prisão.

No acórdão ora recorrido, para um único crime, a que cabe a moldura de 1 a 8 anos de prisão, foi aplicada a pena a coincidir com o limite máximo.         

A alteração legislativa de 2007 tem um sentido restritivo, impondo uma maior restrição ao recurso, referindo a pena aplicada e não já a pena aplicável, quer no recurso directo, quer no recurso de acórdãos da Relação que confirmem decisão de primeira instância, circunscrevendo a admissibilidade de recurso das decisões da Relação confirmativas de condenações proferidas na primeira instância às que apliquem pena de prisão superior a oito anos.

          Com efeito, à luz do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, na redacção actual, vigente à data do acórdão de primeira instância, só é possível o recurso de decisão confirmatória no caso de a pena aplicada ser superior a 8 anos de prisão.

Sendo certo que a medida da pena aplicada é o critério a tomar em conta, a verdade é que tal acontece nos casos de identidade total, integral, ou in mellius, mas no caso concreto tal impedimento não se verifica, pois pese embora a imodificabilidade da matéria de facto e a manutenção da pena, a confirmação foi apenas parcial, pois houve uma outra diversa qualificação jurídica, justificativa de intervenção deste Supremo Tribunal, pois conduz a um outro arco penal.

          Segundo o acórdão deste Supremo Tribunal de 23-04-2009, proferido no processo n.º 10/08.0GALSB.S1 - 5.ª, não há dupla conforme, sendo recorrível a decisão da Relação, quando qualifique a conduta de forma diferente, com unificação de vários actos até então considerados crimes autónomos, num só crime – no mesmo sentido, do mesmo relator, se pronunciou o acórdão de 11-02-2010, no processo n.º 516/08.0PCAMD.L1.S1 – cfr. ainda o acórdão de 27-01-2010, proferido no processo n.º  401/07.3JELSB.L1.S1-5.ª, que reconhece que não existe confirmação se, embora confirmada a condenação, ocorre uma substancial alteração da qualificação jurídica dos factos.

Conclui-se, assim, que o acórdão da Relação de Guimarães é recorrível.  

Questão I - Nulidade por não comunicação de alteração da qualificação jurídica

Nas conclusões 1.ª a 10.ª coloca o recorrente esta questão que, aliás, como vimos, propusera já cautelarmente, em antecipação, prevenindo eventual entendimento de que o acórdão da Relação era irrecorrível.

A arguição não foi conhecida por a Exma. Juíza ter entendido que sendo admitido o recurso deixava de ter de se pronunciar, cabendo a este Supremo Tribunal decidir sobre a mesma.  

Apreciando.

No caso presente não está em causa qualquer alteração factual, não tendo o arguido invocado “uma alteração não substancial dos factos”, como refere a fls. 990, o M.º P.º na resposta apresentada e “retomada” no parecer de fls. 1022, mas tão só uma alteração de qualificação jurídica.

Como se sabe, na primeira instância o recorrente foi condenado em pena única por então ter sido entendido que a conduta dada por provada integrava a prática de sete crimes de abuso sexual de crianças, em concurso real.

O acórdão recorrido, afastando a pretendida qualificação de crime continuado, o que aliás, já a primeira instância fizera, negou provimento ao recurso, mas considerou que se estava perante um crime de trato sucessivo.

Isto é, não considerou a existência de uma pluralidade de infracções, em concurso real com o entendera a então decisão sob recurso, nem a mesma pluralidade de infracções mas reconduzida a uma continuação criminosa, mas antes procedendo à redução à unidade, deixando de considerar, pois, uma pluralidade de infracções. 

No caso temos, pois, como certezas adquiridas:

- A alteração de qualificação jurídica do mesmo quadro fáctico (a efectiva pluralidade de condutas, levadas a concreto, vivenciadas pela vítima entre 1996 a 1999, consubstanciadoras de integração no tipo legal de crime de abuso sexual de crianças, por sete vezes, foi condensada, reduzida à unidade, deixando de subsistir a consideração sobre a pluralidade, sem que as plúrimas condutas tivessem sido enquadradas num quadro de crime continuado, suposta uma diminuição de culpa, que se entendeu não se verificar);

- Depois, estando-se perante uma alteração de qualificação jurídica, impunha-se a necessidade de comunicação, certo sendo igualmente o incumprimento do disposto no n.º 3 do artigo 424.º do CPP.

Fixados estes pressupostos, o que importa averiguar é qual o efeito, a consequência jurídica a retirar de tal omissão do Colectivo da Relação de Guimarães.

A nulidade, como defende o recorrente?

A mera irregularidade, como entende a assistente CC?

A razão estará, a nosso ver, do lado da assistente CC.

Vejamos porquê.

Os artigos 358.º e 359.º regulam a alteração não substancial - o primeiro – e alteração substancial  - o segundo – dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, quando feita em julgamento.

Neste contexto estabelecia o artigo 1.º, alínea f), do CPP, que alteração substancial dos factos é aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.

Na sua versão originária o artigo 358.º, prevendo apenas “Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia”, rezava:

1. Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.

2. Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.

O artigo 379.º do CPP, sobre nulidade da sentença, dispunha:

«É nula a sentença:

a) Que não contiver as menções referidas no artigo 374.º, n.ºs 2 e 3, alínea b); ou

b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º».

Como se vê, ao tempo, apenas a alteração da matéria de facto e não também a diversa qualificação estava prevista.

Com a reforma de 1998, introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, que operou a 4.ª alteração e procedeu à republicação do Código de Processo Penal, entrada em vigor em 1 de Janeiro de 1999 (artigo 10.º, n.º 1), foram alterados os artigos 358.º e 379.º.

No artigo 358.º foi aditado um n.º 3 que passou a estabelecer:

3 - O disposto n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.

O que significa que a partir de então passou o presidente a dever, oficiosamente ou a requerimento, comunicar a alteração ao arguido e conceder-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.

E no artigo 379.º, foram introduzidos a alínea c) e o n.º 2, passando o preceito sobre nulidade de sentença a dispor:

1 – É nula a sentença:

a) ………………………………………………………………………………….……….

b) ……..……………………………………………………………………………………

c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

2 – As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, sendo lícito ao tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 414.º, n.º 4.

A Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, entrada em vigor em 15 de Setembro seguinte, neste plano alterou o artigo 359.º, que para o caso não é chamado, e introduziu no artigo 424.º, o n.º 3, dizendo:

«Sempre que se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na decisão recorrida ou da respectiva qualificação jurídica não conhecida do arguido, este é notificado para, querendo, se pronunciar no prazo de 10 dias».

Antes de avançarmos, vejamos das razões que conduziram à introdução do n.º 3 do artigo 424.º do Código de Processo Penal.

O tribunal superior, sendo livre na qualificação jurídico-criminal dos factos, tem como limite a ressalva da proibição da reformatio in pejus, mas não só, pois deve comunicar a pretendida alteração ao arguido para que este se defenda.

            No fundo, em causa está a alteração da qualificação jurídica de conduta imputada ao arguido e o cumprimento do dever de comunicação ao arguido dessa modificação em tempo oportuno, para que este, atempadamente, possa preparar a sua defesa relativamente a esse dado novo, cumprindo-se o contraditório e as garantias de defesa.

Esta problemática da requalificação jurídica, de diverso tratamento subsuntivo, que normalmente se coloca na sentença relativamente ao que constava da acusação ou da pronúncia, dantes não enquadrada especificamente, já que na versão originária do Código de Processo Penal de 1987 apenas se referenciava a alteração - substancial ou não substancial - dos factos (artigos 1.º, n.º 1, alínea f), 284.º, n.º 1, 303.º, n.º 1, 309.º, n.º 1, 358.º, 359.º e 379.º, n.º 1, alínea b), do CPP), ficou clarificada a partir de 1 de Janeiro de 1999, data em que entrou em vigor a Reforma de 1998, com a extensão do princípio do contraditório ao tratamento de subsunção aos preceitos incriminadores. E mais recentemente, a partir de 15-09-2007, também no tribunal superior.

A propósito desta abordagem da alteração da qualificação jurídica da conduta do arguido dada por provada e da necessidade do prévio conhecimento por parte do arguido dessa alteração, ou se se quiser do dever de comunicação da modificação, seguiremos de perto o que expusemos, noutro contexto, no acórdão de 25-03-2009, por nós relatado, no processo n.º 314/09 e no acórdão de 18-06-2009, no processo de recurso extraordinário, nos termos do artigo 446.º do CPP, com o n.º 106/09.0YFLSB, em que em causa estava a eventual violação da jurisprudência uniformizadora fixada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2008, de 25 de Junho de 2008, publicado in DR, I Série, n.º 146, de 30-07-2008 (a propósito de dever constar ou não da acusação ou pronúncia a indicação de pena acessória de proibição de conduzir, nos ternos do artigo 69.º, n.º 1, do Código Penal).         

A questão entronca no problema da alteração do enquadramento da conduta imputada ao arguido em figura criminal mais grave e da necessidade ou não de dação de conhecimento ao arguido de tal alteração, a fim de que possa organizar a sua defesa em função da perspectivada modificação de tratamento subsuntivo.

Esta problemática constituiu uma vexata quaestio, que na perspectiva do caso concreto então em equação e que originou todos os desenvolvimentos conhecidos, tinha a ver com os poderes cognitivos do tribunal superior quanto ao enquadramento jurídico – criminal da matéria de facto assente na 1.ª instância, questão que já se colocava à luz dos artigos 447.º e 448.º do Código de Processo Penal de 1929, com a possibilidade de convolação para infracção diversa da acusação e de convolação para infracção diversa com base em factos não acusados - ver a este propósito o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 7/99, processo n.º 403/91-2.ª secção, in DR - II Série, n.º 58, de 10-03-1999.

No domínio do Código de Processo Penal de 1987, a questão conheceu vários desenvolvimentos ao longo de quase oito anos, tudo a partir, na sua expressão mais nítida e conhecida, de uma decisão da Comarca do Funchal, relativa a crime de tráfico de estupefacientes, em que o Supremo Tribunal de Justiça, na cognição de recurso directo interposto de acórdão do Colectivo do Funchal, em acórdão de 26 de Fevereiro de 1992, alterou, oficiosamente, a qualificação jurídica dos factos constantes do acórdão recorrido (quanto ao número de vezes em que o crime, já convolado na primeira instância, havia sido cometido, passando de crime continuado de tráfico agravado de estupefacientes para dois crimes de tráfico agravado) e consequente agravamento da punição imposta na 1.ª instância, tendo a solução encontrada por base o entendimento de que não correspondia a alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples modificação do enquadramento jurídico dos mesmos factos, quer em relação ao tipo legal do crime, quer em relação ao número de vezes em que o crime convolado havia sido cometido.

Desse acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-02-1992 foi interposto recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, que deu origem ao acórdão deste Supremo Tribunal, de 27 de Janeiro de 1993, o incontornável Assento n.º 2/93, publicado in Diário da República - I Série – A, n.º 58, de 10-03-1993 e no BMJ n.º 423, págs. 47 e segs., no qual se estabeleceu, com efeitos obrigatórios, a doutrina de que “Para os fins dos artigos 1º, alínea f), 120º, 284º, n.º 1, 303º, n.º 3, 309º, n.º 2, 359º, n.ºs 1 e 2 , e 379º, alínea b) do Código de Processo Penal, não constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), ainda que se traduza na submissão de tais factos a uma figura criminal mais grave”.

Nesta linha jurisprudencial, insere-se ainda o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Junho de 1995, Acórdão n.º 4/95, proferido no processo n.º 47407-3.ª, publicado in DR - I Série - A, n.º 154, de 06-07-1995 e BMJ n.º 448, pág.107 e segs., fixando jurisprudência, então obrigatória para os tribunais judiciais, no sentido de que “O tribunal superior pode, em recurso, alterar oficiosamente a qualificação jurídico - penal efectuada pelo tribunal recorrido, mesmo que para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da reformatio in pejus”.

Na abordagem desta específica questão importa ter em atenção a posição do Tribunal Constitucional, expressa em vários acórdãos, como o Acórdão n.º 279/95, de 31-05-1995, publicado in DR, II Série, de 28-07-1995 e BMJ n.º 451 (Suplemento), pág. 129, que revogou o citado Assento n.º 2/93, a fim de a decisão recorrida ser “reformulada em consonância com o decidido sobre a questão de inconstitucionalidade”, o Acórdão n.º 330/97, de 17-04-1997, proferido no processo n.º 254/95 – 1.ª secção, publicado no DR, II Série, n.º 151, de 03-07-1997 e BMJ n.º 466, pág. 115, o Acórdão n.º 445/97, de 25-06-1997, proferido no processo n.º 154/97, in DR - I Série – A, n.º 179, de 05-08-1997 e BMJ n.º 468, pág. 53, que tendo em conta o juízo de inconstitucionalidade do mencionado assento de 1993, expresso no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 279/95 já referido e ainda nos acórdãos n.º 16/97, publicado no DR, II Série, n.º 50, de 28-02-1997, e n.º 58/97, declarou inconstitucional, com força obrigatória geral - por violação do princípio constante do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição -, a norma ínsita na alínea f) do n.º 1 do artigo 1.º do CPP, em conjugação com os artigos 120.º, 284.º, n.º 1, 303.º, n.º 3, 309.º, n.º 2, 359.º, n.º s 1 e 2, e 379.º, alínea b), do mesmo Código, quando interpretada, nos termos constantes do referido Assento de 1993, a que se seguiu, como passo sequencial do mesmo processo do Funchal, o acórdão do STJ de 13-11-1997, que na sequência dos acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 279/95 e 445/97, reformulou o Assento n.º 2/93, fixando então a seguinte doutrina obrigatória: “Ao enquadrar juridicamente os factos constantes da acusação ou da pronúncia, quando esta exista, o Tribunal pode proceder a uma alteração do correspondente enquadramento, ainda que em figura criminal mais grave, desde que previamente dê conhecimento e, se requerido, prazo, ao arguido, da possibilidade de tal ocorrência, para que o mesmo possa organizar a respectiva defesa jurídica”.

Mas, por o acórdão de 13 de Novembro de 1997, para além da aludida reformulação, ter ainda decidido, quanto ao julgamento do feito penal, que “Não há lugar, pelas razões indicadas na fundamentação, a revisão da decisão recorrida”, foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, originando o Acórdão n.º 518/98, de 15-07-1998, proferido no processo n.º 45/98, publicado in DR, II Série, n.º 261, de 11-11-1998 e BMJ n.º 479, pág. 190, o qual veio então a definir o sentido e alcance da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, constante do citado Acórdão n.º 445/97, nos termos seguintes: “o tribunal que proceda a uma diferente qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, que importe a condenação do arguido em pena mais grave, antes de a ela proceder, deve prevenir o arguido de tal possibilidade, dando-lhe, quanto a ela, oportunidade de defesa”, revogando então o acórdão recorrido, a fim de ser reformulado em conformidade com essa declaração de inconstitucionalidade, com o sentido e alcance então explicitados, sendo de atender ainda ao Acórdão n.º 519/98, também de 15 de Julho de 1998, proferido no processo n.º 541/97, in DR, II Série, n.º 287, de 14-12-1998, fazendo igualmente aplicação da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do acórdão n.º 445/97, e ao Acórdão n.º 295/99, de 12-05-1999, publicado in DR, II Série, n.º 163, de 15-07-1999, fazendo do mesmo modo aplicação da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do acórdão n.º 445/97, com o sentido de dever ser dada oportunidade ao arguido para organizar a sua defesa em função da nova qualificação jurídico-penal dos factos e finalmente o “Assento” n.º 3/2000, de 15 de Dezembro de 1999, prolatado no processo n.º 43073, publicado in DR-I Série - A, n.º 35, de 11-02-2000, que reformulou o Assento n.º 2/93, fixando a seguinte doutrina: “Na vigência do regime dos Códigos de Processo Penal de 1987 e de 1995, o tribunal, ao enquadrar juridicamente os factos constantes da acusação ou da pronúncia, quando esta existisse, podia proceder a uma alteração do respectivo enquadramento, ainda que em figura criminal mais grave, desde que previamente desse conhecimento e, se requerido, prazo ao arguido da possibilidade de tal ocorrência, para o que o mesmo pudesse organizar a respectiva defesa”.

Fazendo aplicação destes acórdãos do Tribunal Constitucional, pode ver-se o Acórdão n.º 356/2005, proferido no processo n.º 535/2003, de 06-07-2005, publicado in DR, II Série, n.º 202, de 20-10-2005, em que se pode ler que “o aditamento do n.º 3 ao artigo 358º do CPP efectuado pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, veio expressamente impor, no seguimento daquela jurisprudência, a audição do arguido quando o tribunal altera a qualificação dos factos descritos na acusação ou na pronúncia”.

Nesta linha evolutiva da enunciada solução jurisprudencial se situa a alteração operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, com a introdução do n.º 3 do artigo 424º do Código de Processo Penal, o qual estabelece:

“Sempre que se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na decisão recorrida ou da respectiva qualificação jurídica não conhecida do arguido, este é notificado para, querendo, se pronunciar no prazo de 10 dias”.

 Este normativo terá aplicação no caso de o tribunal verificar por iniciativa própria, que face aos factos provados, o enquadramento jurídico – criminal se deveria fazer por modo diverso, integrando a conduta em outro preceito incriminador e face a essa alteração, não prevista, desconhecida do arguido, a fim de se evitar uma decisão surpresa, a exemplo do que ocorre no processo cível com o artigo 3.º do CPC, mas aqui com raízes e razões mais ponderosas e visando a salvaguarda de interesses mais profundos e assegurar as garantias de defesa constitucionalmente acauteladas, haverá a necessidade de dar a conhecer a possível alteração de qualificação.

Há que conciliar a possibilidade de procurar o correcto enquadramento jurídico criminal dos factos com o respeito pelas garantias de defesa, daí emergindo um dever de prevenção, de comunicação ao arguido da possível nova qualificação, de modo a propiciar o exercício do contraditório.

Em anotação ao artigo 424.º, n.º 3, do CPP, Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, pág. 1164, esclarece que o dever adicional de notificação é limitado aos casos de alteração “não conhecida do arguido”, tendo a limitação o propósito de subtrair do âmbito do dever de notificação no tribunal de recurso as situações em que a alteração já é conhecida do arguido. (A mesma posição é retomada na 4.ª edição actualizada, 2011, pág. 1169).

No caso presente a omissão de notificação da alteração operada não constitui nulidade de sentença.

          O que constitui nulidade, a omissão de comunicação que conduz a tal vício, é apenas a não dação de conhecimento de alteração de factos, tal como consta da alínea b) do artigo 379.º, isto é, a condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia.

          Como vimos, na versão originária de 1982 não se previa a alteração da qualificação jurídica, mas apenas de factos, sendo aquela introduzida com a reforma de 1998, aditando o n.º 3 no artigo 358.º.

          O legislador introduzindo um factor novo determinativo de obrigação de comunicação, se o quisesse teria incluído a novidade na alínea b), alargando o respectivo âmbito, o que não fez, deixando-a intocada, tendo apenas aditado a alínea c), que se reporta tão só a omissão ou excesso de pronúncia e o n.º 2, quanto a impugnação das nulidades, seu conhecimento oficioso e possibilidade de suprimento, incorporando no preceito soluções constantes do Código de Processo Civil – artigo 668.º, n.º 1, alínea d) e n.º s 3 e 4.

Não foi alargado o âmbito da nulidade prevista no artigo 379.º e as nulidades estão sujeitas ao princípio da legalidade como decorre do artigo 118.º, que no n.º 1 estabelece que a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei.

Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, diz o n.º 2, o acto ilegal é irregular.

Conclui-se, assim, que a omissão de comunicação reportada a mera alteração da qualificação jurídica não está ferida de nulidade, constituindo mera irregularidade - artigo 123.º do CPP – de que o arguido tomou logo conhecimento; com a audição da leitura do acórdão ficou logo ciente da modificação feita pelo Colectivo.

No entanto,

a verdade é que, pese embora a arguição, o recorrente na conclusão 11.ª diz aceitar a qualificação dos factos como um só crime de trato sucessivo, feita pelo acórdão recorrido, contraditoriamente com o que consta da conclusão 3.ª em que diz que não renuncia à arguição, embora depois a título subsidiário invoque a qualificação como crime continuado – conclusões 16.ª e 17.ª, mas sempre num quadro de “puxar” a moldura penal para prisão de 1 a 8 anos (refere o recorrente a moldura de 3 a 10 anos – fls. 970 verso  e conclusão 13.ª - mas essa penalidade é a aplicável face à redacção da Lei n.º 59/2007, que foi afastada no acórdão tendo em conta o artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal).

       Sendo a requalificação aceite, seria pura perda de tempo a realização da notificação omitida.

II Questão – Enquadramento jurídico-criminal: crime de trato sucessivo, ou, subsidiariamente, crime continuado

Como vimos, o Colectivo de Braga integrou os factos dados por provados na figura do concurso real, tendo o acórdão da Relação de Guimarães considerado estarmos perante um único crime de trato sucessivo, afastando, como o fizera aquele Colectivo, a qualificação como crime continuado por que pugnou o arguido no recurso.

Como se alcança das conclusões 11.ª, 16.ª e 17.ª, o recorrente, muito embora tivesse arguido a nulidade do acórdão da Relação por não lhe ter sido comunicada a alteração, impedindo-o de se defender da mesma, aceita a qualificação da conduta como único crime de trato sucessivo, mas subsidiariamente, apenas para a hipótese de não se manter tal enquadramento, defende a integração no crime continuado.

Compreende-se a aceitação uma vez que o arco penal se comprime em termos substanciais, passando de uma moldura penal abstracta correspondente a um concurso efectivo de crimes para a penalidade correspondente a um único crime. 

Liminarmente, dir-se-á ser de manter o afastamento do enquadramento dos factos dados por provados na figura do crime continuado, sendo por outro lado de afastar a integração num único crime de trato sucessivo, volvendo à solução da primeira instância, ou seja, ao concurso real de crimes.

Na motivação de recurso, a fls. 974 verso, diz o recorrente que a solução de vários crimes em concurso efectivo é agora indefensável, sob pena de reformatio in pejus.                     

           Não é assim, como se procurará demonstrar.

           No plano do processo civil, tendo-se em conta a actividade das partes, atento o império do princípio do dispositivo e a solicitada intervenção do juiz (definitivamente “um terceiro”, olhada a dialéctica substantivo/processual em disputa, uma figura que nada tem a ver com os interesses do litígio carecido de composição), postula o artigo 664.º do Código de Processo Civil, impondo uma forte restrição àquele princípio, acompanhada de um alargamento do princípio inquisitório, que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.

O limite a esta liberdade de apreciação e de subsunção por parte do tribunal é imposto pelo “material fáctico” de que o juiz pode lançar mão, pois, só pode servir-se dos factos articulados pelas partes (leia-se, apenas poderá ter em consideração os factos trazidos a juízo pelas partes, estando sujeito à vinculação temática factual proposta pelos pleiteantes), conforme o disposto no artigo 264.º, que rege, exactamente, sobre o sobredito princípio dispositivo.

No processo penal, a vinculação temática, ao nível da facticidade, é assumida através do que constitui o objecto do processo, definido através da acusação ou da pronúncia, restando uma margem de liberdade de conformação, no que ao dizer o direito, diz respeito.     

Havendo um efectivo impedimento quanto a agravamento de pena aplicada – de acordo com o artigo 409.º do Código de Processo Penal, o tribunal superior não pode modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo do arguido - o tribunal superior não está, porém, inibido de proceder a  requalificação jurídica, quando o entender necessário.

Nada impede este Supremo Tribunal de indagar, por iniciativa própria, da correcção e justeza da subsunção jurídica feita no acórdão recorrido, como tem sido entendido em vários arestos, sem olvidar, desde logo, o Acórdão n.º 4/95, de 07-06-1995, publicado no Diário da República, I Série, de 06-07-1995, e no BMJ n.º 448, pág. 107, que então decidiu: “O Tribunal Superior pode, em recurso, alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efectuada pelo tribunal recorrido, mesmo para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da reformatio in pejus”.           

           Mesmo quando o recorrente não ponha operativamente em causa a incriminação definida pelas instâncias, não pode nem deve o STJ dispensar-se de reexaminar a correcção das subsunções, como tem sido decidido, por exemplo, nos acórdãos seguintes:

de 02-05-1996, CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 179 - O tribunal é livre na qualificação jurídica dos factos, podendo mesmo alterar a que foi dada na acusação ou pronúncia, devendo, porém, a pena conter-se no limite máximo da incriminação dos factos atribuída na acusação ou pronúncia, sob pena de alteração substancial. Ainda que o recurso seja interposto pelo Mº Pº a pedir a agravação da pena aplicada e o tribunal superior entenda que o crime é não o de menor gravidade de que o arguido vinha acusado e condenado, mas o de tráfico do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, não pode condenar em pena superior ao limite máximo previsto no art. 25.º, a);

de 19-10-2000, processo n.º 2803/00-5.ª, (citado no acórdão de 17-01-2002) - Ainda que o recorrente não ponha concretamente em causa a incriminação definida pelo Colectivo (circunscrevendo-se o objecto do recurso à questão da medida da pena aplicada), não pode nem deve o STJ – enquanto tribunal de revista e órgão, por excelência e natureza, mentor de direito – dispensar-se de reexaminar a correcção das subsunções;

de 08-02-2001, processo 2745/00-5.ª, SASTJ, n.º 48, pág. 62;

de 04-10-2001, processo n.º 1091/01-5.ª, CJSTJ 2001, tomo 3, pág. 178  - No caso o arguido fora pronunciado por crime de associação criminosa, p. p. pelo artigo 28.º, em concurso real com um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. p. pelo artigo 24.º, alíneas b), c) e i), como aquele do Decreto-Lei n.º 15/93, e após julgamento, foi absolvido desses crimes  e condenado por um crime de tráfico, p. p. pelo artigo 21.º, na pena de 7 anos de prisão. O condenado recorreu, pretendendo o enquadramento no artigo 25.º do mesmo Decreto-Lei.

Considera o acórdão que o entendimento do colectivo não vincula o STJ que, sem prejuízo da proibição da reformatio in pejus tem, como tribunal de revista que é, plena liberdade de julgar de direito, ou seja, in casu, de qualificar juridicamente os factos, mesmo divergindo da qualificação operada no tribunal a quo, no caso o de 1.ª instância, e que tal qualificação não venha directamente posta em causa. E, até, sem necessidade de observância de quaisquer formalidades adicionais, se se tratar, a final, de repor uma qualificação já objecto do direito de contraditório do recorrente, por ter sido a perfilhada no despacho de pronúncia.

E acrescenta: “Sendo a determinação da concreta medida da pena decorrência jurídica da qualificação dos factos, não faria qualquer sentido, e seria, mesmo, absurdo, que tal (des)qualificação (inatacada pelo recorrente) levada a cabo pelo tribunal recorrido manietasse o tribunal de revista naquilo que é a sua natural área de actuação: dizer o direito em última instância”

        Defendendo o tráfico agravado pelas alíneas c) e d) do artigo 24.º, assim divergindo da qualificação levada a cabo no tribunal recorrido, e confrontando-se com a impossibilidade de modificação da pena imposta por força da proibição da reformatio in pejus, num quadro em que caberia uma pena de prisão entre os 8 e os 12 anos, confirma nesse ponto a decisão recorrida;  

de 13-12-2001, processo n.º 3745/01-5.ª;

de 17-01-2002, processo n.º 3132/01-5.ª, CJSTJ 2002, tomo 1, pág. 183 - Ainda que o recorrente não ponha em causa a incriminação definida – circunscrevendo-se o recurso à questão da medida da pena - não pode nem deve o STJ dispensar-se de reexaminar a correcção da incriminação efectuada.

      Sendo o STJ um tribunal de revista, só conhece de direito e estando em causa medida da pena irá sindicar a aplicação da lei punitiva curando saber da sua legalidade. Mas para poder exercer esse controlo necessário se torna saber se a lei aplicada ou cuja aplicação é solicitada é a que cabe ao caso.

      O mesmo é dizer que só pode apreciar da subsunção dos factos ao direito se a norma em causa for a aplicável. Se chegar à conclusão que não é a norma aplicável não pode ficcionar a sua aplicabilidade para apreciar a aplicação que teve em concreto lugar;

de 20-03-2003, processo n.º 504/03-5.ª;

de 02-10-2003, processo n.º 2606/03-5.ª, in CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 194 - Requalificando um crime continuado de coacção sexual agravado e um crime continuado de violação agravado, num único crime de trato sucessivo de violação agravada (ver infra); 

de 05-02-2004, processo n.º 151/04 - 5.ª, CJSTJ 2004, tomo 1, 195 - Altera a qualificação de dano com violência do artigo 214.º, como entendeu o acórdão recorrido, para o crime de dano simples, p. p. pelo art. 212.º do CP, justificando: “embora o recorrente não tenha levado esta questão às conclusões da sua motivação, o certo é que o Supremo Tribunal, como órgão judicial que é, é soberano na aplicação da lei, não estando subordinado à perspectiva jurídica dos diversos sujeitos processuais, seguindo nesse caminho pelo seu próprio pé. Isto não significa que o tribunal de recurso queira, possa ou deva, por seu alvedrio, alterar o objecto do recurso traçado pelo recorrente. Apenas, que o caminho para se enfrentar a discussão proposta por ele, não é necessariamente o decorrente da sua perspectiva jurídica do caso”;

de 12-05-2004, processo n.º 4220/03-3.ª; de 04-12-2004, processo n.º 3293/03-5.ª;

de 17-11-2005, processo n.º 2527/05-5.ª, CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 212 - Indagando da correcção da qualificação como tráfico de estupefacientes agravado pelas alíneas c) e j) do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 15/93, confirmando e mantendo a primeira (integração de ou pertença a um “bando”) e afastando a segunda (obtenção de avultada compensação remuneratória), justificando a “intromissão” nestes termos: «Embora os recorrentes não tenham colocado a questão da qualificação jurídica dos factos, este Supremo Tribunal de Justiça tem sempre o dever de a reavaliar, não só porque faz parte das suas atribuições zelar por uma melhor aplicação do direito, mas porque de uma eventual alteração pode resultar uma diminuição da medida concreta da pena»;

de 07-12-2005, processo n.º 2894/05-5.ª, CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 233 – O recurso para o STJ é um recurso de revista que visa o reexame da matéria de direito. Ao proceder a esse reexame, não está o STJ impedido de alterar a qualificação jurídico-penal dos factos, embora esteja limitado pelo princípio da reformatio in pejus;

de 12-07-2006, processo n.º 1709/06 -3.ª, in CJSTJ 2006, tomo 2, pág. 239, onde se pode ler “Assiste a este STJ enquanto tribunal de revista (art. 434.º, do CPP) o poder - dever de reexaminar, sem reservas, ressalvada a proibição da reformatio in pejus, o direito aplicado, melhorando a decisão, se se colocar, oficiosamente, e esse é o caso, a questão de saber se a conduta do agente configura uma unidade ou pluralidade de infracções, ajustada, como se mostra, à imagem global do facto a qualificação criminosa adoptada, respeitando ao tipo legal de tráfico de menor gravidade”;

de 24-01-2007, processo n.º 3647/06-3.ª;

de 15-02-2007, processo n.º 15/07-5.ª, onde se pode ler: “Constitui, pois, núcleo essencial da função de julgar, o enquadramento jurídico dos factos apurados, a determinação do direito, pelo que não está limitada por errado enquadramento que haja sido feito pelos interessados ou pelas partes”;

de 23-01-2008, processo n.º 4560/07-3.ª;

de 02-04-2008, processo n.º 4197/07-3.ª - caso de tráfico de estupefacientes considerado abrangido em conduta já apreciada em anterior julgamento, com verificação de caso julgado;

de 12-06-2008, processo n.º 4375/07-3.ª – convolação do crime de incêndio previsto no n.º 1 para o previsto no n.º 2 do artigo 272.º do Código Penal;

de 12-06-2008, processo n.º 1228/08-5.ª;

de 22-10-2008, processo n.º 215/08-3.ª - por estar em causa o afastamento de moldura penal abstracta mais gravosa, conheceu-se oficiosamente da (in)verificação da circunstância modificativa da reincidência;

de 21-01-2009, processo n.º 4029/08-3ª;

de 05-02-2009, processo n.º 2381/08-5.ª – O STJ, como tribunal de revista, pode alterar a qualificação dos factos feita pelas instâncias, mesmo que a questão da qualificação não constitua fundamento do recurso;

de 11-02-2009, processo n.º 4132/08-3.ª - sendo a qualificação dos factos incontestavelmente matéria de direito, essa matéria é sempre susceptível de apreciação por este STJ, oficiosamente;

 de 27-05-2009, processo n.º 484/09-3.ª;

de 24-02-2010, processo n.º 59/06.7GAPFR.P1.S1, referindo-se que sempre seria possível conhecer oficiosamente da alteração de qualificação jurídica, estando em causa matéria de direito, a permitir pronúncia desde logo pelas implicações que pode ter na medida da pena;

de 27-05-2010, processo n.º 18/07.2GAAMT.P1.S1-3.ª, requalificando em caso de tráfico de estupefacientes, o crime de associação criminosa para a qualificativa integração em bando.      

         Concluindo: o juiz, em matéria criminal, como na matéria cível, é livre no plano da qualificação jurídica, e na área criminal, atentas as especificidades relevantes, desde que tenha em atenção determinados procedimentos adjectivos, tendo em vista o exercício do necessário contraditório. 

A distinção entre unidade e pluralidade de crimes é decisiva na determinação das consequências jurídicas do facto, para efeito de punição do agente, sabido que no caso de concurso de crimes cabe a aplicação do critério especial de determinação da pena constante do artigo 77.º, extensível, nos termos do artigo 78.º, ao caso de superveniência de conhecimento da existência de relação concursal, cabendo ainda em caso de unificação do concurso, como crime continuado, tratado como uma situação ou caso de unidade de infracção, ou seja, como um só crime, um outro critério especial, este de privilegiamento punitivo, do artigo 79.º do Código Penal, sendo o crime punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação.

Como se extrai do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25-06-1986, processo n.º 38292, publicado no BMJ n.º 358, pág. 267, a realização plúrima do mesmo tipo legal pode constituir:

a) Um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido o dolo ou resolução inicial;

b) Um só crime, na forma continuada, se toda a actuação não obedecer ao mesmo dolo, mas estiver interligado por factores externos que arrastam o agente para reiteração das condutas;

c) Um concurso de infracções, se não se verificar qualquer dos casos anteriores.

A regra é a de que, sendo vários os preceitos violados, ou sendo o mesmo preceito objecto de plúrimas violações, como é o presente caso, haja uma pluralidade de crimes; esta pluralidade só fica afastada no caso de concurso aparente, ou nas formas de unificação de condutas, seja como crime continuado, ou ainda fora dos quadros do artigo 30.º, como único crime (acórdão de 02-04-2008, processo n.º 4197/07-3.ª), ou como crime de trato sucessivo, como é ponderado a nível de situações de tráfico de estupefacientes (acórdão de 17-12-2009, processo n.º 11/02.1PECTB-5.ª), ou de infracções fiscais ou contra a segurança social, que se protraem por períodos mais ou menos longos (neste tipo foi já considerada a figura denominada de “infracções contínuas sucessivas” no acórdão de 18-12-2008, processo n.º 20/07-5.ª), ou mesmo em caso de burla qualificada e falsificação de documento (acórdão de 21-02-2008, processo n.º 2035/07-5.ª), tendo sido assim qualificados alguns casos de abusos sexuais de crianças, solução que, segundo Paulo Pinto de Albuquerque, em Comentário do Código Penal, 2.ª edição, 2010, pág. 162, será de afastar, a partir da Lei n.º 40/2010, de 03-09, por estarem em causa bens eminentemente pessoais, afirmando que no caso da sucessão de vários crimes contra bens eminentemente pessoais, deve punir-se as condutas do agente em concurso efectivo.      

          A matéria de concurso de crimes não é tratada no artigo 30.º do Código Penal, de forma abrangente e esgotante, na medida em que as soluções indicadas no preceito se limitam a estabelecer um critério mínimo de distinção entre unidade e pluralidade de crimes, tratando-se de um ponto de partida estabelecido pelo legislador a partir do qual à doutrina e à jurisprudência caberá em última análise, encontrar soluções adequadas, tendo em vista a multiplicidade de casos e situações que se prefiguram e que ocorrem (assim acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04-01-2006, processo n.º 3671/03-3.ª, in CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 159, que aborda a temática da distinção entre crime continuado e crime único, num caso de falsificação de três cheques para aquisição de produto).       

Aliás, note-se que de acordo com a epígrafe do artigo 30.º, neste segmento de “formas de crime” - unidade/pluralidade - só haveria lugar ao concurso de crimes e ao crime continuado, não albergando o preceito, por exemplo, as hipóteses de crime único que o Código Penal de 1886 previa no § único do artigo 421.º para o crime de furto.

            Há outras figuras de lesividade múltipla ou repetida de bens jurídicos com tutela jurídico-criminal, que se não contêm na dicotomia do artigo 30.º.

            Isto é, para além do concurso de crimes, a punir nos termos dos artigos 77.º e 78.º, e do crime continuado, a punir de acordo com o artigo 79.º do Código Penal, há toda uma gama de situações da vida real a demandar uma específica regulamentação.

            Estabelecendo um critério, assumidamente distintivo, o artigo 30.º contém a indicação de um princípio geral de solução da problemática do concurso de crimes, sendo também uma base de trabalho, a partir da qual há que olhar outras dimensões de violações de bens jurídicos, que ficam de fora, não estando abrangidos outros casos e situações que ocorrem no dia a dia, apresentando dificuldades de integração por exemplo as hipóteses de crimes culposos emergentes de acidentes de viação, sabido que o critério vale fundamentalmente para os crimes dolosos.

Volvendo ao caso concreto.

A solução do crime continuado foi afastada na deliberação de primeira instância com a fundamentação que consta de fls. 717 a 720, com citação do acórdão de 29-10-2008, processo n.º 2874/08-3.ª, CJSTJ 2008, tomo 3, pág. 207.

Sobre a pretensão do arguido de integração da conduta provada na figura do crime continuado, pronunciou-se o acórdão recorrido, a fls. 912 e 913, nestes termos:

«3- Crime continuado

Pretende o recorrente a subsunção da sua conduta à figura do crime continuado.

Não pretendemos de modo algum fazer dissertação da doutrina a este respeito.

Apenas adiantamos a nossa posição, fazendo menção ainda de que é posição algo preponderante no nosso tribunal Superior e não vemos razão para a não acolher.

No caso em apreço entendemos que de facto existe uma homogeneidade da forma como são cometidas as condutas levadas a cabo pelo arguido e esta homogeneidade também existe em termos espaciais. Além disso assistimos á lesão do mesmo bem jurídico.

Todavia discordamos do recorrente e até do MP da primeira instância quando afloram a denominada diminuição considerável da culpa.

O agente, após a primeira actividade criminosa, aproveita a oportunidade quando se apercebe de igual circunstância favorável á prática do facto ilícito, que já foi aproveitada anteriormente; por outro lado mantém-se o meio apto para realizar o delito e o agente, depois de executar a resolução que havia tomado verifica que tem possibilidade de continuar a delinquir nas mesmas circunstâncias, alargando, desse modo a sua actividade criminosa.

Todavia entendemos que no crime continuado há uma diminuição de culpa à medida que se reitera a conduta, mas não se vê que tal diminuição exista no caso do abuso sexual de criança por actos que se sucedem no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da culpa parece aumentar à medida que os actos se repetem

Assim consideramos os vários actos criminosos apurados como constituindo um único crime mas já não como crime continuado, mas antes sim de trato sucessivo. No crime continuado há uma diminuição de culpa à medida que se reitera a conduta, mas não se vê que tal diminuição exista no caso do abuso sexual de criança por actos que se sucedem no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da culpa parece aumentar à medida que os actos se repetem.

Estando em causa um crime de abuso sexual de crianças, não pode aceitar-se que o «êxito» da primeira «operação» e das seguintes possa determinar a diminuição da culpa do arguido: este agiu determinado pela vontade de satisfazer os instintos libidinosos, e, para tanto, aproveitou as situações mais favoráveis para esse efeito. O aproveitamento calculado de situações em que a reiteração é mais propícia exclui, porque não diminui a culpa, o crime continuado. É, de resto, notório, que o arguido agiu determinado por uma única resolução, por ela levado a aproveitar todas as situações que facilitassem a prática dos actos ilícitos.

Concluindo entendemos estar perante como crime de trato sucessivo, que se caracteriza pela repetição de condutas essencialmente homogéneas unificadas por uma mesma resolução criminosa, sendo que qualquer das condutas é suficiente para preencher o tipo legal de crime. Contrariamente ao que acontece no crime continuado, não há aqui qualquer diminuição de culpa, antes a reiteração criminosa, revelando uma persistência da resolução criminosa, encerra uma culpa agravada, que será medida de acordo com o número de condutas e respectiva ilicitude».        

         Como acima referimos, é de manter o afastamento da tese do crime continuado.

         O crime continuado funciona como excepção à regra da acumulação de infracções; a pluralidade de crimes subsiste no crime continuado e este considera-se ficticiamente unificado para excluir um cúmulo material de penas ou de efeitos gravosos no tratamento daquela continuação» - cfr. acórdão do STJ de 24-01-2007, processo n.º 4347/06 - 3.ª (in www.stj.pt – Jurisprudência/Sumários de Acórdãos). – cfr. ainda, v. g.,  os acórdãos do STJ, de 04-01-2006, CJSTJ 2006, tomo 1, 157; de 24-01-2007 no processo 4061/06-3ª; de 17-05-2007, no processo 1133/07-5ª; de 13-09-2007, nos processos 2170/07-5ª e 2795/07-5ª; de 24-10-2007, no processo 3193/07-3ª.  

         Como expendeu Eduardo Correia, quando se investiga o fundamento desta diminuição da culpa ele deve encontrar-se no momento exógeno das condutas, na disposição exterior das coisas para o facto, pelo que pressuposto da continuação criminosa será, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito. A situação exterior deve ser tal que objectivamente facilite a execução do facto criminoso ou prepare as coisas para a repetição do facto.»

         Este Supremo Tribunal tem considerado que não integra a figura do crime continuado a realização plúrima do mesmo crime, se não forem as circunstâncias exteriores ao agente que o levaram a sucumbir, mas sim o desígnio inicialmente formado de através de actos sucessivos lesar a vítima .

         Como se pode ler no acórdão do STJ de 24-01-2007, processo n.º 4066/06-3.ª, pressuposto da continuação criminosa é, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de maneira considerável facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.

«A noção de crime continuado contida no art. 30.º, n.º 2, do CP é tributária do pensamento do Prof. Eduardo Correia, expressa em Direito Criminal, II, 1992, pág. 209, e pressupõe a realização plúrima do mesmo tipo legal de crime (logo de resoluções criminosas), homogeneidade na sua forma de execução, uma certa conexão temporal entre os actos individuais, na forma de proximidade temporal entre as sucessivas condutas, lesão do mesmo bem jurídico, uma unidade de dolo continuado (que se apresenta como um fracasso psíquico e sempre homogéneo do autor na mesma situação de facto, na lição de Jescheck, in Derecho Penal, Parte General, pág. 216) e a persistência, a manutenção de uma situação externa, de uma mesma situação exterior ao agente, que reduza, de forma substancial, a culpa, o juízo de censura do agente, apta “a gerar um repetido sucumbir” e a fundar um menor juízo de censura.

Para Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2008, pág. 137, nota 20, o crime continuado consiste numa unificação jurídica de um concurso efectivo de crimes que protegem o mesmo bem jurídico, fundada numa culpa diminuída, sendo seus pressupostos a realização plúrima de violações típicas do mesmo bem jurídico; a execução essencialmente homogénea das violações e o quadro de solicitação do agente que diminui consideravelmente a sua culpa. 

A diminuição sensível da culpa supõe a menor exigibilidade de conduta diversa do agente.

A fls. 139, nota 28, a propósito da diminuição sensível da culpa que supõe a menor exigibilidade de conduta diversa do agente, adverte que o abuso sexual de uma mesma criança, dado como exemplo daquela diminuição face a existência de “relação ou acordo entre os sujeitos” não é de aceitar, pois a ciência médica e a experiência da vida mostram que o abuso sexual repetido de uma criança provoca uma tortura psicológica na criança que vive no pavor constante de vir a ser mais uma vez abusada pelo seu abusador.

          E acrescenta “A consciência, o aproveitamento e até o gozo do abusador com esta tortura psicológica são incompatíveis com a informação de uma culpa diminuída do agente abusador. Quando for esse o caso, não há diminuição sensível da culpa, ao contrário há uma culpa agravada do agente do crime”.

          A diminuição sensível da culpa só tem lugar quando a ocasião favorável à prática do crime se repete sem que o agente tenha contribuído para essa repetição. Isto é, quando a ocasião se proporciona ao agente e não quando ele activamente a provoca. No caso de o agente provocar a repetição da ocasião criminosa – se ele procura de novo a vítima - não há diminuição sensível da culpa – ibidem, nota 29.

          Ao invés, a culpa pode até ser mais grave, por revelar firmeza e persistência do propósito criminoso.        

            Nos casos apreciados o arguido não se deixou arrastar por qualquer oportunidade, que diminuísse a sua censurabilidade; ao invés, foi ele quem criou ou fomentou as oportunidades, como no caso do facto provado n.º 31, aproveitando a distracção da menor enquanto esta jogava, ou o brincar aos médicos, como na situação dada provada no ponto n.º 33.

Do quadro factual apurado nada consta que, sequer, indicie a ocorrência de um circunstancialismo exterior capaz de facilitar ou propiciar a repetição dos comportamentos delituosos do arguido, tornando cada vez menos exigível a opção por conduta diversa, e que de alguma maneira diminua consideravelmente a culpa daquele.

Não pode aceitar-se que o «êxito» da primeira acção criminosa e de cada uma das seguintes possa determinar a diminuição da culpa do arguido.

A repetição criminosa ficou, pois, a dever-se, não a uma efectiva diminuição da culpa do agente – que não existiu – mas sim à sua persistente vontade em satisfazer os seus desejos, que superou até a natural inibição inerente à relação de afinidade que o liga à ofendida.

E, como se afirma no supracitado acórdão de 23-01-2008 (processo n.º 4830/07 - 3.ª), «o aproveitamento calculado de situações em que a reiteração é mais propícia exclui, porque não diminui a culpa, o crime continuado.»

Sempre que a repetição da conduta criminosa seja devida a uma tendência da personalidade do agente, a quaisquer razões de natureza endógena, que ocorra independentemente de qualquer solicitação externa, ou que decorra de oportunidade provocada ou procurada pelo próprio agente, haverá pluralidade de crimes e não crime continuado.

Esta conclusão mantém-se, apesar da redacção do n.º 3 do artigo 30.º, do Código Penal, introduzido pela Lei n.º 59/2007, de 04-09, segundo o qual «o disposto no número anterior (que prevê o crime continuado) não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, salvo tratando-se da mesma vítima», posto que tal aditamento ao preceito se limitou a consagrar o «regime que se encontra implícito no seu n.º 2 e que a doutrina e a jurisprudência sempre assumiram, mesmo antes da entrada em vigor da versão originária do Código» – cfr. acórdão do STJ de 12-06-2008, processo n.º 1771/08 - 3.ª.

Em anotação ao artigo 30.º na anterior redacção relata Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado, 12.ª edição, pág. 152, que o mesmo teve por fonte principal o artigo 33.º do Projecto de Parte Geral de Código Penal de 1963 e que na sua discussão foi aprovado um último período para o n.º 2, que seria o seguinte: A continuação não se verifica, porém, quando são violados bens jurídicos inerentes à pessoa, salvo tratando-se da mesma pessoa.

Adianta que a supressão do período não significa que outra solução deva ser adoptada, mas tão só que o legislador considerou a afirmação desnecessária, por resultar da doutrina, e até inconveniente, por a lei não dever entrar demasiadamente no domínio que à doutrina deve ser reservado.

O que a nova versão fez foi recuperar o conteúdo da proposta feita exactamente por Maia Gonçalves, há mais de 40 anos, em 1964.

Cfr. ainda a este propósito, Maria do Carmo Silva Dias, Repercussões da Lei n.º 59/2007, de 04-09, nos crimes contra a liberdade sexual (Revista do CEJ, 1.º trimestre de 2008, n.º 8 (especial), pág. 225), e Maria da Conceição Valdágua, As Alterações ao Código Penal de 1995, relativas ao crime continuado, propostas no Anteprojecto de Revisão do Código Penal, em palestra proferida em Maio de 2006, no âmbito de colóquio sobre a revisão do Código Penal de 1995 (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 16, Nº 4, Outubro-Dezembro 2006, págs. 531-533).

Atente-se que a Lei n.º 40/2010, de 03-09, que operou a 26.ª alteração ao Código Penal, entrada em vigor em 3 de Outubro de 2010, suprimiu a expressão “salvo tratando-se da mesma vítima”, do que resultou o fim da figura do crime continuado que atinja bens essencialmente pessoais, mesmo quando a vítima dos diversos actos seja a mesma pessoa. O crime continuado fica assim restringido à violação plúrima de bens não eminentemente pessoais, independentemente de haver uma ou mais vítimas.

Em alguns casos a situação de abuso sexual de criança tem sido enquadrada na figura do crime único de trato sucessivo, entendendo-se haver lugar a uma unificação de condutas ilícitas sucessivas, desde que essencialmente homogéneas e temporalmente próximas, quando existe uma mesma só resolução criminosa desde o início assumida pelo agente.

É essa unidade de resolução, a par da homogeneidade de actuação, e da proximidade temporal, que constitui a razão de ser da unificação dos actos sucessivos num só crime. O dolo do agente abarca ab initio uma pluralidade de actos sucessivos que ele se dispõe logo a praticar, para tanto preparando, se necessário, as condições de realização, estando-se no plano da unidade criminosa; a reiteração, revelando uma resolução determinada e persistente do agente, traduz uma culpa agravada.   

Há um único dolo a abranger todas as condutas sucessivamente praticadas e essa unidade de resolução, a par da homogeneidade das condutas e da sua proximidade temporal, configura o trato sucessivo.

Assim foi entendido nos seguintes acórdãos:

 de 02-10-2003, processo n.º 2606/03-5.ª, in CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 194, num quadro factual que, manifestamente, nada tem a ver com o presente, mas em que se entende haver uma conexão temporal unificadora, susceptível de integrar um único crime, se o arguido ganha a confiança dos pais de um menor de 9 anos de idade, carenciados economicamente, convence-os a deixarem o menor viver consigo e depois, ficando com o menor  em sua casa e à sua guarda, obriga-o a dormir na cama com ele, todas as noites e, depois, reiteradamente, força-o a manter relações sexuais durante cerca de um ano.

Na primeira instância o arguido fora condenado pela prática de um crime continuado de coacção sexual agravado, em concurso real com um crime de violação agravado, e em cúmulo na pena única de 12 anos de prisão.

            No STJ entendeu-se que o arguido cometeu um único crime, de trato sucessivo, e não um crime continuado, de violação agravada, ou seja, um dos crimes por que estava condenado, e manteve a condenação na pena de 12 anos de prisão, dizendo o acórdão:

“Não houve crime continuado, pois que, embora se tenha dado a realização plúrima de dois tipos de crime que fundamentalmente protegem o mesmo bem jurídico, executados por forma essencialmente homogénea e no quadro da mesma solicitação, a solicitação não foi “exterior”, mas cuidadosamente “providenciada “ pelo arguido. Por isso, não há qualquer diminuição da culpa que está na base do crime continuado. Antes pelo contrário!”.

No que respeita ao novo enquadramento, explicita o acórdão: “Não há nesta requalificação jurídica dos factos qualquer atentado aos direitos de defesa do arguido ou ao princípio da reformatio in pejus, pois o recorrente foi condenado por dois crimes continuados de coacção sexual agravada e de violação agravada e este Supremo Tribunal entende que há um único crime de violação agravada, ou seja, um desses crimes por que estava condenado, com a única diferença que este abarca toda a situação factual em causa”.  

de 14-06-2007, processo n.º 1580/07-5.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 220 - Comete um crime único, de trato sucessivo, aquele que, desde data não concretamente apurada, mas ao longo de três anos, decidiu manter e manteve com a menor, ao longo desse período, condutas de natureza sexual. 

de 23-01-2008, processo n.º 4830/07-3.ª – Referindo que o aproveitamento calculado de situações em que a reiteração é mais propícia exclui, porque não diminui a culpa, o crime continuado, afasta esta qualificação e considera a verificação de dois crimes de abuso sexual de criança (filha), em concurso real, sendo o primeiro constituído por uma conduta isolada e o segundo consistente nas diversas acções sucessivamente praticadas pelo arguido em dias diferentes, mas não podendo as três condutas ser unificadas em termos de continuação criminosa, podem sê-lo como crime de trato sucessivo, que se caracteriza pela repetição de condutas essencialmente homogéneas unificadas por uma mesma resolução criminosa, sendo que qualquer das condutas é suficiente para preencher o tipo legal de crime - Cfr. voto de vencido no acórdão de 14-05-2009, processo n.º 36/07-5.ª, CJSTJ 2009, tomo 2, pág. 221, em que fez vencimento o enquadramento como crime continuado.

No caso concreto é de afastar tal enquadramento não se podendo ver na actuação do arguido a presença de uma única resolução, sendo evidente a falta de uma conexão temporal entre as condutas provadas e a proximidade temporal é essencial para a configuração da figura de trato sucessivo, referindo-se que as situações ocorreram em data não apurada de 1996 (facto provado n.º 27), dia não apurado de 1997 (factos provados n.º s 33 e 38), outro não situado temporalmente mas ocorrido ou em 1997 ou 1998, quando mudou a residência para ..., na cidade de Braga (facto provado n.º 41), data não apurada de 1998 (factos provados n.º s 42 e 46) e ainda data não apurada de 1999 (facto provado n.º 49).   

Face à indefinição da situação temporal das datas de ocorrência dos factos defende o recorrente que podiam muito bem ter ocorrido de forma mais próxima, situando-se uma nos finais de um ano e a seguinte imediatamente a seguir no início do ano subsequente; trata-se de um exercício plausível, mas a existência dessa proximidade assim configurada e exactamente por causa dela, redundaria num maior afastamento quanto às não abrangidas; fechando-se um “ciclo” nos primeiros dias de um ano, a renovação só teria lugar nos finais desse ano, alargando o período de “inactividade”.

No caso em reapreciação tem-se como solução mais correcta a defendida na primeira instância, ou seja, a solução de concurso real, por não ser caso de crime continuado nem de trato sucessivo.

Este Supremo Tribunal tem optado pela subsunção na figura do concurso efectivo de crimes em vários acórdãos, de que se apontam como exemplos os seguintes:   

de 12-01-1994, processo n.º 45725 – CJSTJ 1994, tomo 1, pág. 190 -  Em caso de violação de “uma criança de 7 anos incompletos, que estava confiada aos cuidados do arguido, homem casado, com filhos”, considera-se que “se a conduta do agente nos revela que em cada actuação houve um renovar da sua resolução criminosa, estamos perante a prática de vários crimes, excepto se esse renovar do propósito criminoso for devido a uma situação exterior ao agente que facilite a renovação da resolução dentro de uma certa conexão temporal, tudo a revelar diminuição da culpa, caso em que se perfila a figura do crime continuado.

     Tendo sido provado que após ter esfregado o seu pénis erecto na vagina da ofendida até ejacular, o arguido voltou, nas mesmas circunstâncias, a esfregar o pénis na vulva da menor, até mais uma vez, ejacular, fica assente uma pluralidade de resoluções criminosas, tendo sido condenado por dois crimes;

de 17-10-1996, processo n.º 568/96, CJSTJ 1996, tomo 3, pág. 170 - Afasta o crime continuado em caso de dois episódios de atentado ao pudor à mesma menor, dizendo: “(…) dos factos provados não resulta que a reiteração criminosa tenha sido fruto mais de uma facilitada situação exterior (circunstâncias exógenas) do que de motivos endógenos, relativos à personalidade do arguido. (A este respeito, cfr. acórdão de 16-11-1994, processo n.º 47275, CJSTJ 1994, tomo 3, pág. 248);   

de 19-05-2005, processo n.º 890/05-5.ª CJSTJ 2005, tomo 2, pág. 2020 - Afasta a continuação criminosa em caso de crime de coacção sexual agravado, por se verificar uma pluralidade de crimes, justificando: “No caso, a repetição das condutas proibidas pelo recorrente teve a ver apenas com circunstâncias próprias da sua personalidade e, por conseguinte, dignas de maior censura”;

de 15-06-2005, processo n.º 1558/05-3.ª CJSTJ 2005, tomo 2, pág.  216 - onde se considera que tendo o arguido praticado actos de natureza sexual com a menor sua filha, por três vezes, sempre num quadro que não favorece qualquer ideia de diminuição acentuada da culpa, antes renovando a intenção criminosa, não se verifica qualquer situação de crime continuado, mas sim a prática de tantos crimes quantas as vezes que reiterou na violação do tipo legal de ilícito – três crimes de abuso sexual de crianças agravado, p. p. pelos artigos 172.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal;

de 17-11-2005, processo n.º 2760/05-5.ª, CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 217 – Em causa dois crimes de abuso sexual em que o abusador é pai da ofendida, vítima por duas vezes de abusos sexuais – duas penas de 3 anos de prisão cada, sendo em cúmulo jurídico fixada a pena conjunta de 4 anos de prisão; 

de 05-07-2007, processo n.º 1766/07-5.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 242 - Em caso de crime de abuso sexual de crianças considera-se não merecer censura o afastamento da figura de crime continuado, corrigindo apenas o número de crimes cometidos, que é reduzido de 11 para 7 crimes (um deles agravado); 

de 05-09-2007, processo n.º 2273/07-3.ª, CJSTJ 2007, tomo 3, pág. 189 - Afasta a continuação criminosa e opta pela punição pelo cometimento de 3 crimes de violação, ponderando que a presença constante da menor no âmbito familiar do arguido não constitui qualquer lastro de afirmação de uma menor inibição de comportamentos delituosos com reflexos a nível da culpa e, por isso, é de afastar a continuação criminosa e de optar pela sua punição pelo cometimento de três crimes de violação (em hipótese de consunção com abuso sexual de criança) agravados;

de 16-01-2008, processo n.º 4735/07-3.ª, com o relator do anterior - Afasta a continuação, decidindo por concurso de dois crimes de violação – não pode considerar-se que o facto de o arguido entrar com frequência na casa da ofendida ou de esta se encontrar isolada consubstancia o lastro de justificação de uma menor inibição de comportamentos com reflexo a nível de culpa. (No caso, com contornos especiais, com um voto de vencido, foi suspensa a execução da pena de 4 anos condicionada a apagamento de montante em que foi condenado por danos não patrimoniais);

de 01-10-2008, processo n.º 2872/08-3.ª - Em caso de abuso de filhos pelo pai, afirma-se: sempre que se comprove que a reiteração, menos que a disposição das coisas, fique a dever-se a uma certa tendência da personalidade do criminoso, não poderá falar-se numa atenuação da culpa e fica, portanto, excluída a possibilidade de existir um crime continuado. (Acórdão seguido no acórdão de 19-03-2009, processo n.º 483/09-3.ª);

de 05-11-2008, processo n.º 2812/08-3.ª, do mesmo relator do anterior, no mesmo sentido e afastando o n.º 3 do artigo 30.º do Código Penal, dizendo que o preceito não possui um alcance inovador, que conduziria a um chocante e absurdo resultado de ter de ver-se o agente do crime, sobretudo no caos de as vítimas serem crianças ou mentalmente incapazes, justamente os mais indefesos da sociedade, punido, apenas, por um único crime quando sobre a vítima praticou vários, ofendendo o sentimento jurídico reinante no seio da comunidade, efeito ainda mais visível no caso de crianças vivendo sob o mesmo tecto do abusador, em que, em lugar de manter contenção e respeito sobre o seu  instinto sexual, aquele exerce acção infrene e, assim, mais censurável. A ser outra a interpretação, conducente a um efeito perverso, ter-se-ia que, em nome da justiça, da lógica e do mais elementar bom senso, atalhar o alcance de quem fez a lei, lançando-se mão de uma imperiosa interpretação restritiva;    

de 25-03-2009, processo n.º 490/09-3.ª, CJSTJ 2009, tomo 1, pág. 237, ainda do mesmo relator dos dois anteriores -  No caso, na primeira instância o arguido fora condenado por sete crimes de abuso sexual de criança na pena de 6 anos cada e em cúmulo em 12 anos; a Relação condenou pela prática de um crime continuado em 9 anos de prisão; o STJ não subscreve tal entendimento e alterando a qualificação, considera repercutirem os factos descritos, a prática de sete crimes de abuso sexual de criança, e não um único crime, na forma continuada, com pena de 5 anos por cada e fixando a pena única de oito anos.

Debita ainda no mesmo sentido do anterior sobre o alcance do n.º 3 do artigo 30.º do C. Penal, aditado pelo art. 1.º da Lei n.º 59/2007, dizendo que a alteração introduzida é pura tautologia, de alcance inovador limitado ou mesmo nulo, desnecessária, em nada prejudicando a jurisprudência sedimentada ao nível deste STJ; o aditamento não permite uma interpretação perversa em termos de uma violação plúrima de bens eminentemente pessoais em que a ofendida é a mesma pessoa se reconduzir ao crime continuado, afastando-se um concurso real; só significa que este deve firmar-se esgotantemente se mostrarem preenchidos os seus pressupostos, enunciados no n.º 2, de que se não pode desligar uma interpretação sistemática e global do preceito (cita o acórdão de 8.11.2007, processo n.º 3296/07-5.ª);

de 25-06-2009, processo n.º 274/07.6TAACB.C1.S1-3.ª, CJSTJ 2009, tomo 2, pág. 247 afastando crime continuado, confirma concurso real de três crimes de abuso sexual de criança, reduzindo pena única de 8 anos e 6 meses para 8 anos de prisão.   

Pode ler-se no sumário: haverá um único crime, sempre que exista uma única resolução criminosa que domine uma acção unitária, ainda que seja reconduzível numa pluralidade de factos externamente separáveis, desde que estes se apresentem intimamente ligados no tempo e no espaço e dominados por aquela única resolução volitiva, tal sucedendo quando os actos sexuais adicionados surgirem na sequência da mesma resolução criminosa.

Mas já haverá um concurso de crimes, ainda que esteja em causa o mesmo ilícito e a mesma vítima sexualmente abusada, quando haja a reformulação do desígnio criminoso, surgindo este de modo autónomo em relação ao propósito criminoso anterior;

de 21-10-2009, processo n.º 33/08.9TAMRA.E1.S1-3.ª – Caso de concurso real de três crimes, com pena única de 6 anos de prisão;

de 07-01-2010, processo n.º 922/09.1GAABF-5.ª, CJSTJ 2010, tomo 1, pág.176 - Na comarca o arguido fora condenado pela prática de um crime de abuso sexual de crianças tentado e um outro na forma consumada, com penas de 2 e 6 anos, e em cúmulo, na pena única de 7 anos de prisão. O Tribunal da Relação de Évora considerou um único crime consumado e condenou em 6 anos e 6 meses de prisão. O STJ afasta a qualificação de crime continuado e pela prática de um só crime de abuso sexual de criança, fixa a pena em 6 anos de prisão

Afasta a continuação dizendo: Quando a repetição do mesmo crime e a utilização de procedimento idêntico num quadro temporal circunscrito resulta de uma predisposição do agente, de uma persistência de propósitos de modo a levar a conduta até ao fim, ou de oportunidades, condições para a prática de vários actos, que ele próprio cria, está afastada a possibilidade de subsumir os factos ao crime continuado, por que se trata de culpa agravada, não atenuada.

Concluindo: entende-se estarmos perante concurso real de sete crimes de abuso sexual de criança, improcedendo o recurso nesta parte.

III Questão - Atenuação especial da pena        

        Nas conclusões 14.ª e 15.ª o recorrente defende a aplicação desta medida premial.

        Relembrando, diz o recorrente na conclusão 14.ª que:

- os factos ocorreram entre 1996 e 1999, portanto, os primeiros há mais de 14 anos e o último há mais de onze anos;

- o Arguido confessou os factos relevantes e, entretanto, manteve boa conduta e está arrependido;

 - os factos foram cometidos durante um período em que o Arguido esteva viciado em pornografia e não existe nenhum facto que suscite dúvidas sobre a sua total recuperação;

- o Arguido tem 56 anos de idade, tem uma família estável e solidária, composta de mulher e dois filhos, um dos quais menor com 9 anos de idade, e que o contributo do seu trabalho é essencial para a subsistência desse agregado;

- o Arguido está socialmente bem inserido, relacionando-se com amigos com boa posição, que respeita e por quem é respeitado; e

- não existem sinais de qualquer alarme social relacionados com este caso e processo.

E na 15.ª: O decurso dum grande lapso de tempo com boa conduta configura uma atenuante especial, que não foi considerada como tal, mas devia tê-lo sido, face ao disposto na al. d) do n° 2 do art° 72 CP, e fixa a moldura penal abstracta aplicável entre 7 meses e 9 dias e 6 anos e oito meses de prisão.

Defende o recorrente na conclusão 16.ª que na sequência a pena deve ser fixada em medida não superior a dezoito meses de prisão.

Vejamos se colhe tal pretensão.

Esta pretensão aduzida pelo recorrente nas conclusões citadas deve ser analisada antes da referente à medida da pena que lhe foi aplicada, por constituir um “prius” em relação à subsequente pretensão exposta pelo recorrente, relativa à medida concreta da pena, já que, a vingar a sua procedência, estar-se-ia perante um regime de punição mais atenuada, uma moldura abstracta mais benévola, dentro da qual, sequentemente, a proceder essa pretensão, teria de encontrar-se a medida concreta da pena a aplicar ao crime cometido, fazendo assim actuar os critérios do artigo 71.º do Código Penal, já dentro de uma moldura com limites mais baixos, determinados por essa atenuação.

             Seguiremos a seguir o exposto nos acórdãos de 12-09-2007, processo n.º 2702/07; de 07-11-2007, processo n.º 3225/07; de 28-11-2007, processo n.º 3253/07; de 05-12-2007, processo n.º 3266/07; de 29-10-2008, processo n.º 1309/08; de 12-03-2009, processo n.º 3781/08; de 21-10-2009, processo n.º 360/08.5GEPTM; de 25-11-2009, processo n.º 490/07.0TAVVD; de 20-10-2010, processo n.º 845/09.6JDLSB e de 05-01-2011, processo n.º 448/09.5JELSB, por nós relatados.

Estabelece o n.º 1 do artigo 72.º do Código Penal, na redacção dada pela terceira alteração ao diploma, operada com o Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, entrado em vigor em 1 de Outubro seguinte, e mantido intocado nas alterações subsequentes ao mesmo Código, que o tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.

O n.º 2 elenca algumas de “entre outras” circunstâncias que podem ser consideradas para o efeito consignado, a saber:

a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;

b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;

c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;

d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta.

Em anotação a este artigo, Leal-Henriques e Simas Santos, Código Penal, I volume, afirmam: “Seguiu-se neste art. 72.º o caminho de proceder a uma enumeração exemplificativa das circunstâncias atenuantes de especial valor, para se darem ao juiz critérios mais precisos de avaliação do que aqueles que seriam dados através de uma cláusula geral de avaliação.

Pressuposto material da atenuação da pena, autónomo ou integrado pela intervenção valorativa das situações exemplificativamente enunciadas, é a acentuada diminuição da culpa ou das exigências de prevenção”.

Em relação à versão originária do Código Penal de 1982, a expressão do n.º 1 do então artigo 73.º «O tribunal pode atenuar» foi substituída por «O tribunal atenua», tendo sido aditada a alternativa final «ou a necessidade da pena».

Este aditamento veio esclarecer que o princípio basilar que regula a atenuação especial é a diminuição acentuada não só da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena, e consequentemente das exigências de prevenção.

Esclarece Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, págs. 302/307, a propósito do paralelismo entre o sistema (ou o «modelo») da atenuação especial do artigo 72.º e o sistema da determinação normal da pena previsto no artigo 71.º, que tal paralelismo é só aparente, pois enquanto no procedimento normal de determinação da pena são princípios regulativos os da culpa e da prevenção, na atenuação especial tudo se passa ao nível de uma acentuada diminuição da ilicitude ou da culpa, e, portanto em último termo, ao nível do relevo da culpa, pelo que seriam irrelevantes as exigências da prevenção, o que não ocorre face a alguns dos exemplos ilustrativos da situação especialmente atenuante contida na cláusula geral do n.º 1 do artigo 72.º, ou seja, das situações aí descritas só significativas sob a perspectiva da necessidade da pena (e, por consequência, das exigências da prevenção), concluindo no § 451: princípio regulativo da aplicação do regime da atenuação especial é a diminuição acentuada não apenas da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena e, portanto, das exigências da prevenção.

A atenuação especial resultante da acentuada diminuição da culpa ou das exigências da prevenção corresponde a uma válvula de segurança do sistema, que só pode ter lugar em casos extraordinários ou excepcionais, em que a imagem global do facto resultante da actuação da (s) atenuante (s) se apresenta com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo.

Daí – e continuamos a citar - estarmos perante um caso especial de determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa, com redução de um terço no limite máximo da moldura prevista para o facto e várias hipóteses na fixação do limite mínimo.

Adianta o Mestre de Coimbra, in Direito Penal Português, As Consequências (…), II, § 453, pág. 306, a propósito das circunstâncias descritas nas alíneas do artigo 72.º, n.º 2, do Código Penal, que constituem exemplos ilustrativos da situação especialmente atenuada contida na cláusula geral do artigo 73.º, n.º 1 (actual artigo 72.º) que: «passa-se aqui algo de análogo – não de idêntico - ao que sucede com os exemplos-padrão: por um lado, outras situações que não as descritas nas alíneas do n.º 2 do art. 72.º podem (e devem) ser tomadas em consideração, desde que possuam o efeito requerido de diminuir, por forma acentuada, a culpa do agente ou as exigências da prevenção; por outro lado, as próprias situações descritas naquelas alíneas não têm o efeito «automático» de atenuar especialmente a pena, só o possuindo se e na medida em que desencadeiem o efeito requerido». E conclui que a acentuada diminuição da culpa ou das exigências da prevenção constitui o autêntico pressuposto material da atenuação especial da pena.

Espelham estes ensinamentos vários arestos deste Supremo Tribunal, de que são exemplos os que se passam a citar.

O acórdão de 23-02-2000, proferido no processo n.º 1200/99-3.ª, Sumários de Acórdãos do STJ, edição anual, n.º 38, pág. 75, expressou-se nos termos seguintes: «É na acentuada diminuição da ilicitude e/ou da culpa e/ou das exigências da prevenção que radica a autêntica ratio da atenuação especial da pena. Daí que, as circunstâncias enunciadas no n.º 2 do artigo 72.º do Código Penal, não sejam as únicas susceptíveis de desencadear tal efeito, nem este seja consequência necessária ou automática da presença de uma ou mais daquelas circunstâncias».

No acórdão de 30-10-2003, processo n.º 3252/03-5.ª, in CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 208 (221-2), pode ler-se: a atenuação especial só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar, considerando-se como antiquada a solução de consagrar legislativamente a cláusula geral de atenuação especial como válvula de segurança, pois que dificilmente se pode ter tal solução por apropriada para um Código como o nosso, “moderno e impregnado pelo princípio da humanização e dotado de molduras penais suficientemente amplas”, seguindo-se aqui a lição constante do § 465 da referida obra de Figueiredo Dias.

No acórdão de 03-11-2004, processo n.º 3289/04-3.ª, in CJSTJ 2004, tomo 3, pág. 217, refere-se: “Justifica-se a aplicação do instituto de atenuação especial da pena, que funciona como instrumento de segurança do sistema nas situações em que se verifique um afastamento crítico entre o modelo formal de integração de uma conduta em determinado tipo legal e as circunstâncias específicas que façam situar a ilicitude ou a culpa aquém desse modelo”.

E no acórdão de 25-05-2005, processo n.º 1566/05-3.ª, in CJSTJ 2005, tomo 2, pág. 207: “A atenuação especial da pena só pode ser decretada (mas se puder deve sê-lo) quando a imagem global do facto revele que a dimensão da moldura da pena prevista para o tipo de crime não poderá realizar adequadamente a justiça do caso concreto, seja pela menor dimensão e expressão da ilicitude ou pela diminuição da culpa, com a consequente atenuação da necessidade da pena - vista a necessidade  no contexto e na realização dos fins das penas”.

Como se extrai do acórdão de 07-06-2006, processo n.º 1174/06 - 3.ª Secção, in CJSTJ 2006, tomo 2, pág. 207, “A atenuação especial da pena depende do concurso de circunstâncias anteriores, posteriores ou concomitantes ao crime, que façam diminuir de forma acentuada a culpa, a ilicitude e a necessidade de pena, elencando de forma não taxativa o n.º 2 do art. 72.º do CP os seus factos-índices, ligados a uma imagem global do facto favorecente do agente criminoso.

O verdadeiro pressuposto material da atenuação são exigências de prevenção, na forma de reprovação social do crime e restabelecimento da confiança na força da lei e dos órgãos seus aplicadores e não apenas a ilicitude do facto ou a culpa do agente (…).

Nessa esteira, para além dos já citados, podem ver-se ainda os acórdãos de 05-02-1997, processo n.º 47885-3.ª, SASTJ, n.º 8, Fevereiro 1997, pág. 77; de 07-05-1997, BMJ n.º 467, pág. 237; de 29-04-1998, processo n.º 449/98, in CJSTJ 1998, tomo 2, pág. 191; de 24-03-1999, in CJSTJ 1999, tomo 1, pág. 247; de 07-10-1999, BMJ n.º 490, pág. 48; de 10-11-1999, processo n.º 823/99, SASTJ, nº 35, 74; de 26-04-2000, processo n.º 82/00; de 18-10-2001, processo n.º 2137/01-5.ª, SASTJ, n.º 54, 122; de 28-02-2002, processo n.º 226/02 – 5.ª; de 18-04-2002, in CJSTJ 2002, tomo 2, pág. 178; de 22 -01- 2004, in CJSTJ 2004, tomo 1, pág. 183; de 20-10-2004, processo n.º 2824/04 - 3ª; de 06-10-2005, processo n.º 2632/05 – 5.ª; de 17-11-2005, processo n.º 1296/05 – 5.ª; de 07-12-2005, in CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 229; de 15-12-2005, processo n.º 2978/05 – 5.ª; de 06-06-2006, in CJSTJ 2006, tomo 2, pág. 204; de 07-12-2006, processo n.º 3053/06 – 5.ª; de 21-12-2006, processo n.º 4540/06 – 5.ª; de 08-03-2007, processo n.º 626/07 – 3.ª; de 06-06-2007, processos n.ºs 1403/07 e 1899/07, ambos da 3.ª secção e processo n.º 1603/07-5.ª; de 14-06-2007, processos n.ºs 1895/07 e 1908/07, ambos da 5.ª secção; de 21-06-2007, processo n.º 1581/07 – 5.ª; de 28-06-2007, processo n.º 3104/06 – 5.ª; de 17-10-2007, processo n.º 3265/07 – 3.ª; de 28-11-2007, processo n.º 3981/07 – 3.ª; de 16-01-2008, processos n.ºs 4638/07 e 4837/07, ambos da 3.ª secção; de 23-01-2008, processo n.º 4560/07 – 3.ª; de 13-03-2008, processo n.º 2589/07 – 5.ª; de 26-03-2008, processos n.ºs 105/08 e 306/08-3ª; de 17-04-2008, processo n.º 4732/07 – 5.ª; de 30-04-2008, processo n.º 1220/08 – 3.ª; de 03-07-2008, processo n.º 1226/08 – 5.ª; de 25-09-2008, processo n.º 809/08-5.ª; de 21-01-2009, processo n.º 4029/08 – 3.ª; de 05-03-2009, processo n.º 4133/08-5.ª; de 23-04-2009, processo n.º 388/09 – 5.ª; de 02-04-2009, processo n.º 93/09 – 5.ª; de 10-12-2009, processo n.º 36/08.3GABTC.P1.S1-5.ª; de 17-12-2009, processo n.º 2956/07.3TDLSB.S2-5.ª; de 27-05-2010, processo n.º 6/09.4JAGRD.C1.S1-3.ª; de 27-10-2010, processo n.º 971/06.1JAPRT.S1-3.ª CJSTJ 2010, tomo 3, pág. 237.

Revertendo ao caso concreto.

Vejamos se no caso concreto se justifica intervenção correctiva deste Supremo Tribunal no quadro da atenuação especial da pena aplicada ao recorrente.

Na análise a efectuar nestas situações há que ter sempre em atenção uma visão integral do facto praticado, devendo o mesmo ser analisado nas suas variadas componentes/vertentes e nas diferentes ligações/conexões, havendo que atender-se ao pleno das circunstâncias que enformaram o facto em apreciação, no seu específico contexto vivencial/histórico.

No n.º 2 do artigo 72.º contêm-se os exemplos padrão concretizadores da cláusula geral do n.º 1, tratando-se de circunstâncias, no caso posteriores ao crime, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.

No concreto caso, o recorrente invoca os factos-índice constantes das alíneas c) e d), que estabelecem:

  c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados; 

d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta.

            O acórdão recorrido aborda o tema a fls. 915 /6, mas já depois de ter fixado a pena, o que faz nestes termos: 

«Quanto a atenuação especial

Para o efeito alega o recorrente a favor da sua concretização o decurso de muito tempo sobre a prática do facto.

Pensamos que o preceito normativo abarca tão só as circunstâncias especiais que diminuam de forma acentuada as exigências de punição. Reporta-se a casos extraordinários ou excepcionais.

Pensamos que este facto só por si não é bastante para desencadear a aplicação de atenuação especial. A ele seria necessário que se juntassem outros, nomeadamente factores elucidativos da sua reabilitação, demonstrativos de outro homem. O decurso de tempo, pensamos, não faz accionar diminuindo de forma acentuada a ilicitude do facto.

Improcede, pois, nesta parte, a sua pretensão».

Apreciando.

Quanto ao arrependimento

O recorrente invoca o arrependimento e integração social, mas a verdade é que percorrido o elenco dos factos provados – a sede própria da enumeração dos factos dados por assentes, de acordo com o artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal - não se mostra certificado o facto do arrependimento do recorrente.

Sendo certo que à confissão, mesmo se completa, não se segue necessariamente o arrependimento, ou por outras palavras, não havendo uma relação necessária e inevitável entre a confissão e o arrependimento, por forma a que este haja de ser forçosamente extraído daquela (acórdão de 14-06-2007, processo n.º 1895/07-5.ª, CJSTJ 2005, tomo 2, pág. 214), há que reconhecer que o arrependimento estará sempre de certo conexionado com a confissão, com a assunção da prática dos factos, e no nosso caso, a confissão não foi integral, de tal modo que houve que compaginar as declarações do arguido com outros elementos como resulta da motivação acima transcrita.

Para o acórdão de 08-05-1991, processo n.º 41652-3.ª, AJ, n.º 19, a atenuante do arrependimento sincero a que se referia a al. c) do n.º 2 do artigo 73.º do Código Penal verifica-se quando o agente pratica o facto punível, mas logo depois arrepende-se e espontaneamente se esforça por impedir ou atenuar as suas consequências, ou antes do julgamento efectua a reparação completa do dano.

Para o acórdão de 09-04-1992, processo n.º 42459, o arrependimento pode inexistir ainda quando se confesse de pleno os factos cometidos.

Como diziam os acórdãos de 24-11-1993, processo n.º 45742 e de 16-02-2000, processo n.º 1189/99, o arrependimento é um acto interior revelador de uma personalidade que rejeita o mal praticado e que permite um juízo de confiança no comportamento futuro do agente por forma a que, se vierem a deparar-se-lhe situações idênticas, não voltará a delinquir. 

Referia o acórdão de 02-12-1993, processo n.º 45255, que a atenuante especial do arrependimento sincero do arguido demonstrado por actos não se satisfaz com um arrependimento meramente proclamado em audiência, desacompanhado de actos ou fenómenos exteriores que o comprovem. O legislador, na sua sabedoria das realidades da vida, não deixou de ter em conta o quanto é fácil afirmar em audiência que se está arrependido.

  Para o acórdão de 15-05-2002, processo n.º 1094/02-3.ª, “Há arrependimento relevante quando o arguido mostre ter feito reflexão positiva sobre os factos ilícitos cometidos e propósito firme de, no futuro, inflectir na sua conduta anti-social, de modo a poder concluir-se pela probabilidade séria de não recair no crime”.   

Como se afirma no acórdão de 02-03-2006, processo n.º 472/06-5.ª, a circunstância que a lei admite constituir índice de diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena, é o arrependimento sincero do agente, ou seja, o seu pesar sincero pela falta cometida, a sua contrição, o seu remorso, o que passa pela assunção do desvalor da conduta e do resultado. Mas não é qualquer arrependimento sincero que releva nesta sede, tem de ser um arrependimento que se traduz em actos concretos, nomeadamente na reparação, como demonstração objectiva do arrependimento que se propala. A propósito da diferença entre estar arrependido e mostrar arrependimento, veja-se do mesmo relator, o acórdão de 15-12-2005, processo n.º 2978/05-5.ª.

Como se refere no acórdão de 06-06-2007, processo n.º 1603/07-5.ª, manifestar arrependimento não é o mesmo que praticar os actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, que pressupõe que o agente interiorize o desvalor da sua conduta.

E como se extrai do acordão de 25-11-2009, processo n.º 490/07.0TAVVD-3 .ª, a atenuante do arrependimento sincero só pode verificar-se quando o agente pratica o facto mas logo depois arrepende-se e espontaneamente esforça-se por impedir ou atenuar as suas consequências, ou antes do julgamento efectua a reparação integral do dano.

No caso presente o proclamado arrependimento não encontra reflexo no texto do acórdão, não emerge do seio do que foi firmado como facticidade assente, nada ficando provado, como de resto, de forma clara, resulta do acórdão recorrido, que, a fls. 910, ao abordar a questão da “Nulidade da sentença por omissão de pronúncia e vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão”, suscitada pelo recorrente no recurso e através da qual pretendia fazer valer este ponto de vista, sobre o tema discorre:

«(...) Ora, os factos que o recorrente pretende sejam inclusos na sentença, como sendo o arrependimento e integração social do recorrente, não constam nem da acusação nem da defesa e também não constam do elenco dos factos apurados em função da discussão da causa.

Também não nos parece que incumbisse ao tribunal, oficiosamente, a proceder em conformidade».

Como se extrai do acórdão deste Supremo Tribunal, de 9-01-2008, processo n.º 3162/07-3.ª, o arrependimento é um acto interior revelador de uma personalidade que rejeita o mal praticado e que permite um juízo de confiança no comportamento futuro do agente, no sentido de que, se vierem a deparar-se-lhe situações idênticas, não voltará a delinquir; em sentido semelhante, o acórdão de 18-12-2008, proferido no processo n.º 2388/08 – 5.ª.

  E como se referiu no acórdão de 29-04-2009, processo n.º 6/08.1PXLSB.S1-3.ª, o arrependimento, a não ter tradução em actos objectivos e ficando-se apenas por mera afirmação verbal, pouca relevância tem, e muito menos para a atenuação especial.

A invocação de arrependimento sem mais é absolutamente irrelevante nesta sede, nada existindo sobre a matéria na decisão recorrida, sendo certo que a pretender-se pronúncia sobre esta questão o arguido sempre poderia atempadamente vincular o tribunal a debruçar-se sobre a mesma, bastando vertê-la na peça processual que alargaria o âmbito da vinculação temática do processo e sobre a qual incidiria necessária pronúncia - artigo 374.º, n.º 2, do CPP – acontecendo que na contestação apresentada o arguido se limitou a oferecer o merecimento dos autos, como se vê de fls. 491.

Tal invocação, como se referiu, não encontra o menor reflexo no texto do acórdão, no seio do que certificado foi como provado.

Nesta sede a defesa não se pode compadecer com meras declarações de princípio, que surgem apenas em momento processual aziago, como nas motivações de recurso; será necessário algo mais, fazer o trabalho de casa, e apresentar no tempo oportuno, as reais razões de que assim é efectivamente, sem apoio exclusivo em declarações, mais ou menos de circunstância, sem passarem pelo crivo do contraditório (princípio aplicável na vertente da acusação, mas também da defesa).

A propósito de conduta posterior ao facto, do cotejo da referida alínea c) com a alínea e) do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal, que estabelece poder tal conduta depor a favor do agente, “especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime”, verifica-se que assumirá relevo essa conduta e que a mesma poderá ser demonstrativa de arrependimento quando houver reparação dos danos causados (ou por outras palavras, a reparação poderá significar esse arrependimento, constituir um dos meios de expressá-lo), ou seja, no caso, o arrependimento terá de se traduzir numa acção, na adopção de um comportamento, em prestação de facere, com vista a uma efectiva reparação do mal causado, não se podendo ficar por mera declaração ou por um processo de intenções.

No que tange à reparação, que poderá funcionar como índice de arrependimento, há que dizer que não se está perante qualquer forma de reparação espontânea nem tão pouco se mostrando consumada a que imposta foi.

Um dos actos capazes, susceptíveis, de demonstrarem o arrependimento (acto demonstrativo de arrependimento sincero) era sem dúvida a reparação, não já, obviamente, encarada como acto espontâneo, mas como cumprimento de uma obrigação de facere, na sequência de uma injunção, aliás já transitada, uma vez que a presente impugnação se dirigiu apenas ao campo criminal, deixando ínsita a validade e eficácia da condenação em indemnização pelo ilícito civil - artigo 403.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b), do CPP, sendo certo não se colocar, in casu, de jeito nenhum, a possibilidade de funcionamento da previsão do n.º 3 do mesmo dispositivo.

A reparação possível só se alcançará através do pagamento de uma indemnização que compense o dano não patrimonial sofrido pela menor nos seus afectados direitos de personalidade e de autodeterminação sexual.

Conclui-se assim não estar demonstrado o arrependimento, mas há que ter em atenção que, mesmo que relevasse, restaria equacionar o problema também à luz do grau de ilicitude da conduta e da necessidade da pena, e o próprio acórdão recorrido contém os elementos suficientes para afastar tal quadro de concessão da impetrada medida premial.

Quanto ao decurso do tempo, “muito tempo” 

Para efeitos da alínea d) do n.º 2 do artigo 73.º (actual 72.º) do Código Penal, não basta ter o crime sido cometido há muito tempo e haver o delinquente mantido boa conduta; é fundamental que isso tenha mexido profundamente no facto ou no agente; que, por exemplo, o alvoroço social se tenha esfumado ou a personalidade se tenha modificado para muito melhor – neste sentido os acórdãos de 18-07-1984, BMJ n.º 338, pág. 297; de 08-05-1991, processo n.º 41652- 3.ª, AJ, n.º 19; de 13-01-1994, processo n.º 45049-3.ª; de 20-04-1995, processo n.º 46181-3.ª  

De acordo com o acórdão de 24-9-1998, processo n.º 327/98, o simples decurso de “muito tempo” sobre a prática do crime, só por si, não é suficiente para fazer desencadear a atenuação especial da pena. Com efeito, é também necessário que, entretanto, o arguido mantenha boa conduta. Só assim – boa conduta durante muito tempo após a prática do crime – pode resultar diminuída a ilicitude do facto, a culpa do arguido ou a necessidade da pena.

A boa conduta a que se refere o artigo 72.º, n.º 2, alínea b), do Código Penal, não é porém, a que se revela, simplesmente, na ausência do cometimento de ilícitos penais, mas, sim, a que se traduz em factos positivos, indiciadores de “regeneração” do arguido.

O bom comportamento não pode ser avaliado apenas com base na ausência de antecedentes criminais.  

 A um imaculado certificado de registo criminal nem sempre corresponderá um comportamento imaculado, límpido, transparente, através de comportamentos positivos, sendo certo que o arguido foi condenado em indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais e não tendo impugnado essa parte da decisão, não se mostra que tenha pago, cumprindo o imposto modo de reparar de algum jeito o mal do crime.

A falta de antecedentes judiciários, por si só, não significa bom comportamento anterior – acórdãos de 10-04-1984, BMJ n.º 336, pág. 324 e de 25-03-1998, BMJ n.º 475, pág. 531.

Conclui-se do exposto que não se mostram preenchidas, atentos os contornos do caso, as circunstâncias previstas nas alíneas c) e d) do mesmo n.º 2 do artigo 72.º do Código Penal, o mesmo acontecendo com as outras circunstâncias que pudessem dar corpo à cláusula geral do n.º 1 do citado artigo 72.º.

O legislador ao fixar a moldura sancionatória penal do artigo 172.º do Código Penal, certamente terá figurado como inteiramente cabíveis na sua amplitude casos com contornos como os do presente, maxime, a nível de ilicitude (elevada/acentuada) e de premente necessidade de pena, que nada tem de extraordinário ou excepcional, a demandar a convocação de uma moldura penal que não seja a normal.

Não sendo caso de diminuição acentuada da ilicitude, da culpa ou da necessidade da pena ou das exigências da prevenção, não se justifica a intervenção correctiva deste Supremo Tribunal no quadro da atenuação especial da pena.

Revestindo a actuação do recorrente todas as características assinaladas, não se vê como poder enquadrar a conduta provada num plano de diminuição acentuada de ilicitude e da culpa, não justificando, de todo, o quadro traçado, o ponderar de menor necessidade da pena, mantendo-se as exigências de prevenção geral em alta.

O recorrente, considerado o quadro fáctico presente, não pode usufruir do reclamado benefício de aplicação de medida premial.

Improcede assim esta pretensão do recorrente, não havendo lugar a atenuação especial da pena.

          IV Questão - Medida da pena          

          O recorrente nas conclusões 12.ª e 16.ª pugna, suposta a concessão de atenuação especial, por uma pena de 18 meses de prisão depois suspensa na execução.  

           Sobre determinação da medida da pena disse o acórdão recorrido a fls. 914/5: «Conforme se afere do supra exposto entendemos que ao arguido irão ser imputados já não sete crimes mas sim um crime de trato sucessivo de abuso sexual de crianças.

Para a determinação da medida concreta da pena feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (artigo 71º nº 1 do Código Penal), deve o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente (artigo 71º nº 1 do Código Penal) designadamente o grau de ilicitude do facto, a gravidade das suas consequências e modo de execução, a intensidade do dolo e as condições pessoais do agente. A este respeito não podemos ignorar a apreciação levada a cabo pelo tribunal de primeira instância.

Quanto a intensidade do dolo foi considerado que o arguido agiu com dolo directo. E, acrescenta aquele tribunal “Em desfavor do arguido, é de considerar ainda o acentuado grau de ilicitude e desvalor da acção; o arguido não só colocou a mão da menor no seu pénis e as suas mãos na vagina da menor como lhe lambeu a vagina e colocou o pénis na boca da menor, ordenando que o “chupasse” e movimentando-o dentro da boca da menor. Tais factos assumem manifesta gravidade, sendo de salientar que, atenta a gravidade dos mesmos, os que consistem em coito oral, viriam a partir das alterações legislativas de 1998 a ser colocados ao lado da cópula e do coito anal e como tal a ser mais severamente punidos (a moldura penal prevista passou a ser de 3 anos a 10 anos de prisão). Tais factos tiveram o seu início no ano de 1996, tinha a menor apenas 7 anos de idade e foram praticados até inícios do ano de 2000, até aos seus 10 anos, sendo que o foram por diversas vezes. Ao nível das consequências do comportamento do arguido AA é de referir que as mesmas são também graves: os factos praticados pelo arguido causaram danos na construção e organização da personalidade da CC, designadamente comprometimento do sentimento do eu (baixa auto-estima), relacionamento interpessoal (anestesia efectiva e tendência para o isolamento), vivência disfuncional da sua sexualidade. Com os comportamentos levados a cabo pelo arguido a CC viu afectado o seu processo de crescimento e vivência nomeadamente na sua vertente sexual e afectiva.

A favor do arguido apenas, e para além da admissão da prática dos factos, ainda que não integralmente, o facto de não ter antecedentes criminais. Ainda a seu favor e conforme resulta do relatório social junto aos autos estamos perante indivíduo integrado socialmente e apoiado a nível familiar. Todavia não podemos ignorar que no caso em apreço é de reduzida relevância a confissão e não podemos olvidar a extrema gravidade dos ilícitos praticados, a intensidade do dolo com que o arguido agiu, tendo apenas presente a satisfação dos seus instintos libidinosos, com brutal indiferença para a grave perturbação que as suas acções provocavam na formação e estruturação da personalidade destes seus familiares por afinidade, bem como as especiais exigências de prevenção que, no caso se fazem sentir.

Assim, em face de tais considerandos, entende-se como justa, proporcionada e adequada a pena de oito anos de prisão pela prática de crime de trato sucessivo de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artigo 172º, n.º 1 do CP em relação à ofendida CC

Atenta a pena concreta aplicada não se coloca a questão ao tribunal da suspensão da sua execução uma vez que a suspensão apenas pode ser aplicada a penas de prisão não superiores a cinco anos (artigo 50º nº 1 do Código penal).

Reposta a solução de concurso efectivo de crimes, há que efectuar o cúmulo jurídico das penas impostas.

Estabelece, quanto a regras de punição do concurso de crimes, o artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, inalterado pela Lei nº 59/07, de 4 de Setembro, que “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.

E nos termos do n.º 2, a penalidade, a moldura do concurso, a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
O que significa que no caso presente, a moldura de punição do concurso é de 2 anos a 22 anos e seis meses de prisão.

A medida da pena unitária a atribuir em sede de cúmulo jurídico reveste-se de uma especificidade própria.

Por um lado, está-se perante uma nova moldura penal, mais ampla, abrangente, com maior latitude da atribuída a cada um dos crimes.

Por outro, tem lugar, porque se trata de uma nova pena, final, de síntese, correspondente a um novo ilícito e a uma nova culpa (agora culpa pelos factos em relação), uma específica fundamentação, que acresce à decorrente do artigo 71.º do Código Penal.

               No que concerne à determinação da pena única, deve ter-se em consideração a existência de um critério especial na determinação concreta da pena do concurso, segundo o qual serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, o que obriga a que do teor da sentença conste uma especial fundamentação da medida da pena do concurso.
            Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, como se o conjunto de crimes em concurso se ficcionasse como um todo único, globalizado, que deve ter em conta a existência ou não de ligações ou conexões e o tipo de ligação ou conexão que se verifique entre os factos em concurso - cfr., i. a., acórdãos do STJ, de 17-03-2004,  03P4431; de 20-01-2005, CJSTJ 2005, tomo 1, pág. 178; de 08-06-2006, processo n.º 1613/06 – 5.ª; de 07-12-2006, processo n.º 3191/06 – 5.ª; de 20-12-2006, processo n.º 3379/06-3.ª; de 18-04-2007, processo n.º 1032/07 – 3.ª; de 03-10-2007, processo n.º 2576/07-3.ª, in CJSTJ 2007, tomo 3, pág. 198; de 09-01-2008, in CJSTJ 2008, tomo 1, pág. 181; de 06-02-2008, processos n.º s 129/08-3.ª e 3991/07-3.ª, in CJSTJ 2008, tomo I, pág. 221; de 06-03-2008, processo n.º 2428/07 – 5.ª; de 13-03-2008, processo n.º 1016/07 – 5.ª; de 02-04-2008, processos n.º s 302/08-3.ª e 427/08-3.ª; de 09-04-2008, processo n.º 1011/08 – 5.ª; de 07-05-2008, processo n.º 294/08 – 3.ª; de 21-05-2008, processo n.º 414/08 – 5.ª; de 04-06-2008, processo n.º 1305/08 – 3.ª; de 25-09-2008, processo n.º 2891/08-3.ª; de 29-10-2008, processo n.º 1309/07-3.ª; de 27-01-2009, processo n.º 4032/08-3.ª; de 29-04-2009, processo n.º 391/09 - 3.ª; de 14-05-2009, processo n.º 170/04.9PBVCT.S1-3.ª; de 27-05-2009, processo n.º 50/06.3GAVFR.C1.S1-3.ª; de 18-06-2009, processo n.º 577/06.7PCMTS.S1-3.ª; de 18-06-2009, processo n.º 8523/06.1TDLSB-3.ª; de 25-06-2009, processo n.º 274/07-3.ª, CJSTJ 2009, tomo 2, pág. 251 (a decisão que efectiva o cúmulo jurídico das penas parcelares necessariamente que terá de demonstrar fundamentando que foram avaliados o conjunto dos factos e a interacção destes com a personalidade); de 21-10-2009, processo n.º 360/08.5GEPTM.S1-3.ª; de 04-11-2009, processo n.º 296/08.0SYLSB.S1-3.ª; de 18-11-2009, processo n.º 702/08.3GDGDM.P1.S1-3.ª; de 25-11-2009, processo n.º 490/07.0TAVVD-3.ª; de 10-12-2009, processo n.º 496/08.2GTABF.E1.S1-3.ª (citado no acórdão de 23-06-2010, processo n.º 862/04.2PBMAI.S1-5.ª), ali se referindo: “Na determinação da pena única do concurso, o conjunto dos factos indica a gravidade do ilícito global, sendo decisiva a avaliação e conexão e o tipo de conexão que se verifique entre os factos concorrentes. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente importa, sobretudo, verificar se o conjunto dos factos é recondutível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira» criminosa), ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta”; de 04-03-2010, no processo n.º 1757/08.6JDLSB.L1.S1-5.ª; de 10-03-2010, processo n.º 492/07.7PBBJA.E1.S1-3.ª; de 18-03-2010, no processo n.º 160/06. 7GBBCL.G2.S1-5.ª; de 15-04-2010, no processo n.º 134/05.5PBVLG.S1-3.ª; de 28-04-2010, no processo n.º 260/07.6GEGMR.S1-3.ª; de 05-05-2010, no processo n.º 386/06.3SLSB.S1-3.ª; de 12-05-2010, no processo n.º 4/05.7TDACDV.S1-5.ª; de 27-05-2010, no processo n.º 708/05.4PCOER.L1.S1-5.ª; de 09-06-2010, processo n.º 493/07.5PRLSB-3.ª; de 23-06-2010, no processo n.º 666/06.8TABGC-K.S1-3.ª; de 20-10-2010, processo n.º 400/08.8SZLB.L1-3.ª; de 03-11-2010, no processo n.º 60/09.9JAAVR.C1.S1-3.ª; de 16-12-2010, processo n.º 893/05.5GASXL.L1.S1-3.ª; de 19-01-2011, processo n.º 6034/08.0TDPRT.P1.S1-3.ª; de 02-02-2011, processo n.º 217/08.0JELSB.S1-3.ª.
                 
            Por outro lado, na confecção da pena conjunta, há que ter presentes os princípios da proporcionalidade, da adequação e proibição do excesso.                

Cremos que nesta abordagem, há que ter em conta os critérios gerais da medida da pena contidos no artigo 71.º do Código Penal – exigências gerais de culpa e prevenção – em conjugação, a partir de 1-10-1995, com a proclamação de princípios ínsita no artigo 40.º, atenta a necessidade de tutela dos bens jurídicos ofendidos e das finalidades das penas, incluída a conjunta, aqui acrescendo o critério especial fornecido pelo artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal - o que significa que o específico dever de fundamentação de aplicação de uma pena conjunta, não pode estar dissociado da questão da adequação da pena à culpa concreta global, tendo em consideração por outra via, pontos de vista preventivos, passando pelo efectivo respeito pelo princípio da proporcionalidade e da proibição do excesso, que deve presidir à fixação da pena conjunta, tornando-se fundamental a necessidade de ponderação entre a gravidade do facto global e a gravidade da pena conjunta.
           Neste sentido, podem ver-se aplicações concretas nos acórdãos de 21-11-2006, processo n.º 3126/06-3.ª, CJSTJ 2006, tomo 3, pág. 228 (a decisão que efectue o cúmulo jurídico tem de demonstrar a relação de proporcionalidade entre a pena conjunta a aplicar e a avaliação dos factos e a personalidade do arguido); de 14-05-2009, no processo n.º 170/04.9PBVCT.S1-3.ª; de 10-09-2009, no processo n.º 26/05. 8SOLSB-A.S1-5.ª, seguido de perto pelo acórdão de 09-06-2010, no processo n.º 493/07.5PRLSB.S1-3.ª, ali se referindo que “Importa também referir que a preocupação de proporcionalidade a que importa atender, resulta ainda do limite intransponível absoluto, dos 25 anos de prisão, estabelecido no n.º 2 do art. 77.º do CP. É aqui que deve continuar a aflorar uma abordagem diferente da pequena e média criminalidade, para efeitos de determinação da pena conjunta, e que se traduzirá, na prática, no acrescentamento à parcelar mais grave de uma fracção menor das outras”; de 18-03-2010, no processo n.º 160/06. 7GBBCL.G2.S1- 5.ª, onde se afirma, para além da necessidade de uma especial fundamentação, que “no sistema de pena conjunta, a fundamentação deve passar pela avaliação da conexão e do tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifica e pela avaliação da personalidade unitária do agente. Particularizando este segundo juízo - e apara além dos aspectos habitualmente sublinhados, como a detecção de uma eventual tendência criminosa do agente ou de uma mera pluriocasionalidade que não radica  em qualidades desvaliosas da personalidade - o tribunal deve atender a considerações de exigibilidade  relativa e à análise da concreta necessidade de pena resultante da inter-relação dos vários ilícitos típicos”; de 15-04-2010, no processo n.º 134/05.5PBVLG.S1-3.ª; de 21-04-2010, no processo n.º 223/09.7TCLSB.L1.S1-3.ª; e do mesmo relator, de 28-04-2010, no processo n.º 4/06.0GACCH.E1.S1-3.ª.
           Com interesse, veja-se o acórdão de 28-04-2010, proferido no processo n.º 260/07.6GEGMR.S1-3.ª, relativamente a onze crimes de roubo simples a agências bancárias.
            Como se extrai do acórdão deste Supremo Tribunal de 6 de Maio de 2004, in CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 191, a propósito dos critérios a atender na fundamentação da pena única, nesta operação o que releva e interessa considerar é, sobretudo, a globalidade dos factos em interligação com a personalidade do agente, de forma a aquilatar-se, fundamentalmente, se o conjunto dos factos traduz uma personalidade propensa ao crime, a dar indícios de projecto de uma carreira, ou é antes, a expressão de uma pluriocasionalidade que não encontra a sua razão de ser na personalidade do arguido, mas antes numa conjunção de factores ocasionais, sem repercussão no futuro – cfr. na esteira da posição de Figueiredo Dias, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 08-07-1998, CJSTJ 1998, tomo 2, pág. 246; de 24-02-1999, processo n.º 23/99-3.ª; de 12-05-1999, processo n.º 406/99-3.ª; de 27-10-2004, processo n.º 1409/04-3.ª; de 20-01-2005, processo n.º 4322/04-5.ª, in CJSTJ 2005, tomo I, pág. 178; de 17-03-2005, no processo n.º 754/05-5.ª; de 16-11-2005, in CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 210; de 12-01-2006, no processo n.º 3202/05-5.ª; de 08-02-2006, no processo n.º 3794/05-3.ª; de 15-02-2006, no processo n.º 116/06-3.ª; de 22-02-2006, no processo n.º 112/06-3.ª; de 22-03-2006, no processo n.º 364/06-3.ª; de 04-10-2006, no processo n.º 2157/06-3.ª; de 21-11-2006, in CJSTJ 2006, tomo 3, pág. 228; de 24-01-2007, no processo n.º 3508/06-3.ª; de 25-01-2007, nos processos n.ºs 4338/06-5.ª e 4807/06-5.ª; de 28-02-2007, no processo n.º 3382/06-3.ª; de 01-03-2007, no processo n.º 11/07-5.ª; de 07-03-2007, no processo n.º 1928/07-3.ª; de 14-03-2007, no processo n.º 343/07-3.ª; de 28-03-2007, no processo n.º 333/07-3.ª; de 09-05-2007, nos processos n.ºs 1121/07-3.ª e 899/07-3.ª; de 24-05-2007, no processo n.º 1897/07-5.ª; de 29-05-2007, no processo n.º 1582/07-3.ª; de 12-09-2007, no processo n.º 2583/07-3.ª; de 03-10-2007, no processo nº 2576/07-3.ª; de 24-10-2007, no processo nº 3238/07-3.ª; de 31-10-2007, no processo n.º 3280/07-3.ª; de 09-04-2008, no processo n.º 686/08-3.ª (o acórdão ao efectuar o cúmulo jurídico das penas parcelares não elucida, porque não descreve, o raciocínio dos julgadores que orientou e decidiu a determinação da medida da pena do cúmulo); de 25-06-2008, no processo n.º 1774/08-3.ª; de 02-04-2009, processo n.º 581/09-3.ª, relatado pelo ora relator, in CJSTJ 2009, tomo 2, pág. 187; de 21-05-2009, processo n.º 2218/05.0GBABF.S1-3.ª; de 29-10-2009, no processo n.º 18/06.0PELRA.C1.S1-5.ª, in CJSTJ 2009, tomo 3, pág. 224 (227); de 04-03-2010, no processo n.º 1757/08.6JDLSB.S1-5.ª; de 10-11-2010, no processo n.º 23/08.1GAPTM-3.ª.
           
            Na expressão dos acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça, de 20-02-2008, proferido no processo n.º 4733/07 e de 8-10-2008, no processo n.º 2858/08, desta 3.ª Secção, na formulação do cúmulo jurídico, o conjunto dos factos fornece a imagem global do facto, o grau de contrariedade à lei, a grandeza da sua ilicitude; já a personalidade revela-nos se o facto global exprime uma tendência, ou mesmo uma “carreira”, criminosa ou uma simples pluriocasionalidade.
            Com interesse, veja-se o acórdão de 28-04-2010, proferido no processo n.º 260/07.6GEGMR.S1-3.ª, relativamente a onze crimes de roubo simples a agências bancárias.

           
            Como se refere no acórdão de 10-09-2009, processo n.º 26/05.8.SOLSB-A.S1, 5.ª Secção, “a pena conjunta situar-se-á até onde a empurrar o efeito “expansivo” sobre a parcelar mais grave, das outras penas, e um efeito “repulsivo” que se faz sentir a partir do limite da soma aritmética de todas as penas. Ora, esse efeito “repulsivo” prende-se necessariamente com uma preocupação de proporcionalidade, que surge como variante com alguma autonomia, em relação aos critérios da “imagem global do ilícito” e da personalidade do arguido. Proporcionalidade entre o peso relativo de cada parcelar, em relação ao conjunto de todas elas.  
            Se a pena parcelar é uma entre muitas outras semelhantes, o peso relativo do crime que traduz é diminuto em relação ao ilícito global, e portanto, só uma fracção menor dessa pena parcelar deverá contar para a pena conjunta. (Asserção repetida no acórdão do mesmo relator, de 23-09-09, no processo n.º 210/05.4GEPNF.S2 -5.ª).
            A preocupação de proporcionalidade a que importa atender resulta do limite intransponível absoluto dos 25 anos de prisão estabelecido no n.º 2 do artigo 77.º do Código Penal. É aqui que deve continuar a aflorar uma abordagem diferente da pequena e média criminalidade, face à grande criminalidade, para efeitos de determinação da pena conjunta, e que se traduzirá, na prática, no acrescentamento à parcelar mais grave de uma fracção menor das outras.
            Como se extrai dos acórdãos de 12-05-2010, processo n.º 4/05.7TACDV.S1-5.ª e de 16-12-2010, no processo n.º 893/05.5GASXL.L1.S1-3.ª, a pena única deve reflectir a razão de proporcionalidade entre as penas parcelares e a dimensão global do ilícito, na ponderação e valoração comparativas com outras situações objecto de apreciação, em que a dimensão global do ilícito se apresenta mais intensa.
                                                                                                                                                      
Retomando o caso concreto.

           

             Ao fixar a pena conjunta a deliberação do Colectivo de Braga, única a fazê-lo, sustentou-a nestes termos a fls. 727: “Ora, considerando a personalidade do arguido demonstrada nos factos já referidos, bem como atendendo aos valores que o arguido atingiu e lesou com as suas condutas o desvalor do resultado e o desvalor da acção (o grau de culpa, a intensidade do dolo e o elevado grau da ilicitude), entende-se dever fixar a pena única em oito anos de prisão”.

            As circunstâncias do caso em apreciação apresentam um acentuado grau de ilicitude global, manifestado no número, na natureza e gravidade dos crimes praticados, nos bens jurídicos violados na área dos direitos de personalidade da menor abusada.

                Sendo uma das finalidades das penas, incluindo a unitária, a tutela dos bens jurídicos, definindo a necessidade desta protecção os limites daquelas, há que, necessariamente, ter em atenção o bem jurídico tutelado no tipo legal em causa no caso em apreciação.

O conjunto de ilícitos traduz-se em condutas violadoras da liberdade de autodeterminação sexual, do direito da menor a um desenvolvimento físico e psíquico harmonioso.
Haverá que ter em consideração que a actuação delitual em apreciação desenvolveu-se ao longo de mais de três anos.

Há que ter em conta o elevado alarme social que este tipo de actuações criminosas suscita na comunidade, com repercussões altamente negativas também em sede de prevenção geral.

            Em suma: A pena unitária tem de responder à valoração, no seu conjunto e inter conexão, dos factos e personalidade do arguido, afigurando-se-nos adequado fazer intervir um factor de compressão ligeiramente superior, fixando a pena conjunta em 6 anos e 6 meses de prisão.

          V Questão – Suspensão da execução da pena  

      

       O recorrente pugnava pela aplicação de uma pena de 18 meses de prisão, suspensa na execução – conclusões 16.ª, 18.ª e 19.ª.

       Atenta a pena conjunta aplicada a questão da suspensão da execução da pena não se coloca por ultrapassado o limite até ao qual é possível a aplicação da pretendida pena de substituição. Nos termos do n.º 1 do artigo 50.º do Código Penal, a possibilidade de suspensão coloca-se em relação a penas de prisão fixadas em medida não superior a cinco anos.  

        Decisão          

          Pelo exposto, acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em julgar o recurso interposto pelo arguido AA, improcedente, no que respeita à questão da qualificação jurídica dos factos, repondo-se a qualificação jurídica da primeira instância, e igualmente no que tange à atenuação especial, e no que concerne à medida da pena, reduzir a aplicada em ambas as instâncias, fixando a pena conjunta em seis anos e seis meses de prisão.

Custas pelo recorrente, nos termos dos artigos 374.º, n.º 3, 513.º, n.º s 1, 2 e 3 e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redacção que lhes foi dada pela Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro, que aprovou o Regulamento das Custas Processuais, (rectificada pela Declaração de rectificação n.º 22/2009, de 24-04, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 43/2008, de 27-08, pelo Decreto-Lei n.º 181/2008, de 28-08, pelo artigo 156.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro (Suplemento n.º 252) e pelo artigo 163.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28-04), uma vez que de acordo com o artigo 27.º daquela Lei, o novo regime de custas processuais é de aplicar aos processos iniciados a partir de 20 de Abril de 2009 e o presente processo teve início em 31 de Agosto de 2005, fixando-se a taxa de justiça, de acordo com os artigos 3.º, n.º 1 e 8.º, n.º 5 do Regulamento, com referência à Tabela III, em sete unidades de conta, e sem prejuízo do apoio judiciário concedido.

Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Lisboa, 13 de Julho de 2011

Raul Borges (Relator)

Pires da Graça