Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
Relator: | CATARINA SERRA | ||
Descritores: | CONTRATO DE ARRENDAMENTO NULIDADE DO CONTRATO EFEITOS OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO RENDA VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM BOA FÉ BENFEITORIAS ABUSO DO DIREITO | ||
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Data do Acordão: | 09/15/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA PARCIALMENTE | ||
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Sumário : | I. A declaração de nulidade do contrato de arrendamento conduz à respectiva liquidação, nos termos do artigo 289.º do CC, o que implica que a locatária, para além de restituir a coisa locada, tenha de restituir o gozo da coisa e a locadora tenha e restituir as rendas pagas (o gozo da coisa versus o pagamento das rendas). II. O gozo da coisa locada não é susceptível de restituição em espécie, pelo que haverá que restituir o valor correspondente, o qual, por expressa convenção das partes, não poderá deixar de ser o da contraprestação acordada. III. A vontade das partes condiciona, deste modo, os deveres de restituição, conformando-se o conteúdo destes, no essencial, através do estipulado pelas partes no contrato inválido. IV. A aplicabilidade do abuso do direito na modalidade do venire contra factum proprium depende de uma ponderação global dos elementos presentes (número e intensidade) e de um controlo da adequação material da solução no caso concreto, com vista a averiguar se a solução é realmente necessária e adequada no plano ético-jurídico. V. Age em abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium quem, sabendo que o local arrendado não podia ser usado para o fim pretendido, celebra, ainda assim, o contrato de arrendamento e permanece como locatária por mais de cinco anos e vem arguir a nulidade do contrato por falta de licença para o fim pretendido apenas quando ocorre a resolução do contrato por falta de pagamento das rendas, o despejo e os pedidos da sua condenação no pagamento das rendas devidas e de indemnização por mora na restituição do locado. VI. Tendo a locatária acordado com a locadora, no contrato de arrendamento, que suportaria os encargos da realização de certos trabalhos ou obras no locado, não pode agora, simplesmente, “desembaraçar-se” do compromisso assumido ao abrigo da nulidade do contrato, dado que isso configuraria um venire contra factuam proprium. | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA I. RELATÓRIO 1. Fonte do Outeiro – Companhia Imobiliária Fonte do Outeiro, Lda., intentou, em 10.09.2018, a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra Carneiro e Camacho – Arquitectura e Engenharia, Lda., peticionando a sua condenação a pagar-lhe a quantia de € 22.500,00 a título de rendas devidas e não pagas (€ 17 500,00) e de indemnização pela mora na entrega do locado (€ 5 000,00), tudo com juros de mora. Tal pedido assenta nos seguintes factos (síntese): Por contrato celebrado em 1.03.2012, deu de arrendamento à ré, para fins não habitacionais, as fracções autónomas, correspondentes ao rés-do-chão (lado direito e lado esquerdo), do prédio sito na Rua ..., ..., em ..., pelo prazo de um ano, sucessivamente prorrogável por igual período, mediante a renda mensal de € 500,00 a pagar no primeiro dia útil do mês imediatamente anterior àquele a que dissesse respeito. O contrato cessou em 29.06.2017, através de resolução por si operada, com fundamento na falta de pagamento de rendas por período superior a três meses. Com efeito, a ré não pagou as rendas vencidas nos meses de Agosto a Dezembro de 2014, de Janeiro a Dezembro de 2015, de Janeiro a Dezembro de 2016 e de Janeiro a Junho de 2017, num total de 35 (trinta e cinco) rendas, perfazendo o total de € 17.500,00. Apesar de notificada, mediante notificação judicial avulsa, naquela data (29.06.2017), a ré arrendatária, não só se manteve em mora como não entregou, voluntariamente, o locado, obrigando-a a propor procedimento especial de despejo. A ré acabou por desocupar as fracções locadas, mas só o fez em 30.11.2017. A ré constituiu-se assim na obrigação de a indemnizar em valor correspondente ao dobro do valor da renda, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 1045.º do Código Civil. 2. Devidamente citada, a ré apresentou contestação e deduziu reconvenção. Contestando, a ré admite a celebração do contrato nos termos alegados pela autora e, bem assim, atrasos no pagamento de rendas. Invoca, no entanto, a nulidade do contrato porquanto as fracções locadas se destinavam à instalação e ao funcionamento de um gabinete de arquitectura e engenharia, mas a licença só permitia a sua utilização para “arrumos”. Reconvindo, a ré alega que é credora da autora pelo montante global de € 27.181,95, porquanto: - aceitou uma letra de câmbio de que a autora foi sacadora, mas sem que houvesse qualquer negócio subjacente (seria um mero favor feito à autora para que esta obtivesse crédito bancário) e, do valor titulado pela letra, pagou a quantia de € 8 840,00; - fez obras nas fracções locadas, que devem ser consideradas benfeitorias, nelas despendendo a quantia de € 16 380,82; - prestou serviços vários à autora e a respectiva retribuição monta a € 1 961,13 e não lhe foi paga. Pretende, em suma, que se opere a compensação de créditos e, tendo um saldo a seu favor no valor de € 9 681,95, pede a condenação da autora/reconvinda a pagar-lhe essa quantia. 3. Em articulado de réplica, a autora impugna todos os factos alegados pela ré/reconvinte para sustentar o seu pedido. Diz que a letra de câmbio a que se refere a ré não está assinada pela sacadora, pelo que não vale como título de crédito. Quanto às obras realizadas no locado, alega que foram obras de adaptação do espaço ao seu gosto e, eventualmente, à necessidade inerente à actividade por si desenvolvida, e não porque o imóvel se encontrasse em condições inoperacionais. Alega, ainda, que o imóvel sempre possuiu licença de utilização para arrumos e as acordaram que a Ré seria responsável pela recolha de autorizações junto das entidades competentes para o exercício da atividade que ali pretendia desenvolver. As partes acordaram, verbalmente, que a renda de € 500,00 seria devida por um período de dois anos em atenção aos custos que a Ré teria com os pedidos de licenças ou autorizações devidas. Conclui que “não deve o pedido reconvencional deduzido pela Ré ser admitido, absolvendo-se a Autora in totum do pedido contra si formulado”. 4. Por despacho de 26.02.2019, admitiu-se a reconvenção, fixou-se em € 32.181,95 o valor da causa, dispensou-se a audiência prévia porque esta se destinaria, apenas, “ao cumprimento dos fins indicados nas al.ªs d), e) e f) do n.º 1 do art.º 591.º do Código de Processo Civil”, proferiu-se despacho saneador tabelar, foi fixado o objecto do processo e foram enunciados os temas de prova e admitidas as provas oferecidas pelas partes. Notificadas as partes desse despacho, veio a ré reclamar, pretendendo que fosse ampliado o objecto do litígio, “de forma que passe a abranger a questão da invocada nulidade do contrato de arrendamento”. Realizou-se a audiência preliminar e aí foi acolhida a pretensão da ré quanto ao objecto do processo. 5. Realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: “Nestes termos, julgo a ação e a reconvenção parcialmente procedentes e, em consequência: - declaro nulo o contrato de arrendamento celebrado entre a autora e a ré em 1/3/2012; - reconheço que a ré deve restituir à autora a quantia de 20.000,00 euros (vinte mil euros); - reconheço que a autora deve restituir à ré a quantia de 16.380,82 euros (dezasseis mil trezentos e oitenta euros e oitenta e dois cêntimos); - declaro a compensação do crédito da ré sobre a autora com o crédito desta sobre aquela no montante de 16.380,82 euros (dezasseis mil trezentos e oitenta euros e oitenta e dois cêntimos); - condeno a ré a pagar à autora a quantia de 3.619,18 euros (três mil seiscentos e dezanove euros e dezoito cêntimos) acrescida de juros de mora contados desde o trânsito em julgado da presente sentença até integral pagamento e contabilizados à taxa legal, que se situa em 4%.”. 6. Inconformada com a decisão, a autora dela interpôs recurso de apelação. 7. Em 7.02.2022, proferiu o Tribunal da Relação do Porto um Acórdão em cujo dispositivo pode ler-se: “Pelo exposto, acordam os juízes desta ... Secção Judicial (... Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso de apelação interposto por “Fonte do Outeiro – Companhia Imobiliária da Fonte do Outeiro, L.da” e, em consequência, a) revogar a sentença recorrida na parte em que declara a nulidade do contrato de arrendamento que as partes celebraram entre si em 01.03.2012; b) alterar a sentença recorrida quanto ao pedido formulado pela autora, pedido que aqui se julga totalmente procedente, condenando a ré “Carneiro & Camacho – Arquitectura e Engenharia, L.da” a pagar-lhe a quantia de € 22 500,00 (vinte e dois mil e quinhentos euros), sendo € 17 500,00 a título de rendas vencidas e não pagas e € 5 000,00 a título de indemnização prevista no artigo 1045.º do Código Civil, quantias acrescidas de juros de mora; c) revogar a sentença recorrida quanto ao pedido reconvencional, do qual absolvem totalmente a autora/reconvinda”. 8. Desta vez é a ré que, inconformada, vem recorrer para este Supremo Tribunal. Termina as suas alegações com as seguintes conclusões[1]: “1 - Como decorre do Douto Acórdão de que ora se recorre, foi pelo mesmo entendido que incorreu a ora recorrente em abuso de direito, razão pela qual à mesma estaria vedada a arguição da nulidade do contrato de arrendamento derivada da inexistência de licença de utilização. 2 - Ora, entende a recorrente que não só não incorreu a mesma em abuso de direito, como também, e de igual modo, inexistem nos autos elementos factuais bastantes que sejam capazes de sustentar tal conclusão, que, assim é factualmente infundamentada, sendo que, 3 - Por outro lado, como é entendido pela doutrina e jurisprudência maioritária, em se tratando de nulidade decorrente da violação de princípios de interesse público, não terá cabimento a aplicabilidade do instituto do abuso de direito, pois que a invalidade em causa não assente em interesses privados, mas sim em outros valores que estão directamente relacionados com a preservação de um interesse público ou colectivo de maior dimensão. 4 - Com efeito, resulta da factualidade assente, e que não foi colocada em crise pela recorrida, que o arrendamento ajustado entre esta e a recorrente respeitava a duas fracções autónomas que se encontravam licenciadas para arrumos, sendo porém certo que o arrendamento se destinava à implantação de um gabinete de arquitectura. 5 - Significa isto que o objecto locado não possuía o licenciamento necessário para que nele se exercesse a actividade para o qual estava destinado, conforme era do conhecimento quer da recorrente, quer da recorrida, que eram, aliás, geridas ou co-geridas pela mesma pessoa, AA. 6 - De igual modo, resultou também assente em 1ª Instância, e mantido inalterado pela Segunda Instância, que acordaram senhoria e inquilina em que esta última executasse obras no locado, obras essas que eram necessárias para que a recorrente no mesmo pudesse instalar o seu gabinete de arquitectura. 7 - Resulta também provado que tais obras consistiriam em pinturas, aplicação de projectores, lâmpadas, suportes, campainha, tomadas, comutadores, cabos de electricidade, calhas e adaptadores de calhas, diversas obras de pichelaria, colocação de painéis, apainelados e portas em MDF e rodapés, alteração dos projectores, ao revestimento exterior em painel, e divisórias em pladur, bem como tectos falsos. 8 - Resultou também assente nos autos que as referidas obras eram necessárias para que os contratantes pudessem outorgar, tal como vieram a outorgar, o arrendamento em apreço nos autos. 9 - Consigna o nº 1 do artº 1070º do CC que “o arrendamento urbano só pode recair sobre locais cuja aptidão para o fim do contrato seja atestada pelas entidades competentes, designadamente através de licença de utilização, quando exigível.” 10 - A imposição da exigência da licença de utilização é, de novo, prevista no DL. 160/2006, de 8 de Agosto, que no nº 8 do artº 5 estipula que “o arrendamento para fim diverso do licenciado é nulo (…)” 11 - Tal invalidade decorreria de qualquer modo do disposto no nº 1 do artº 280º do CC, que expressamente estipula que “É nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável.”, bem como decorreria também do consagrado no nº 1 do artº 401º do mesmo diploma legal que preceitua que “A impossibilidade originária da prestação produz a nulidade do negócio jurídico.” 12 - A nulidade que se vem de referir é indubitavelmente uma nulidade típica, que não só permite a sua arguição por qualquer interessado, como também é do conhecimento oficioso do Tribunal. 13 - De facto, estando em causa interesses de ordem pública, a exigência da licena de utilização baseia-se na necessidade de obrigar ao cumprimento de todas as normas legais relativas à construção, à segurança, à salubridade e estética, e não a meros interesse interprivados. 14 - Assim, a falta de licença de utilização, nos casos desta natureza, constituem um vício que a lei não tolera e que faz corresponder como sanção a nulidade, conforme é entendimento dominante deste Supremo Tribunal de Justiça, sendo que, 15 - como referido, não só tal nulidade pode ser invocada por qualquer das partes, como é de conhecimento oficioso do Tribunal. 16 - Ora, contráriamente ao decidido no Douto Acórdão em recurso, a invocação da nulidade por parte da recorrente não se encontra eivada de abuso de direito. 17 - De facto, e comungando inteiramente da jurisprudência dominante deste Douto Supremo Tribunal de Justiça, deverá entende-se que para que exista abuso de direito é necessário que o titular do direito exerça de uma forma anormal quanto à sua intensidade ou à sua execução, e em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ultrapassando inequivocamente os limites referidos no artº 334º do Código Civil. 18 - O instituto do abuso de direito, de acordo com a melhor doutrina e jurisprudência, respeita pois o controlo institucional da ordem jurídica quanto ao exercício dos direitos subjectivos privados, garantindo a autenticidade das suas funções. 19 - Assim, estar-se-á perante um caso de abuso de direito, quando um determinado julgador constata que este foi exercido em termos objectivos, inequivocamente em ofensa da justiça, ou quando se tinha de uma conduta clamorosamente ofensiva da justiça, ou de uma afronta ao sentimento jurídico vigente e dominante. 20 - Para se aferir se o exercício de um direito é ou não abusivo, é necessário todavia analisar o direito em causa que é invocado, e, concretamente, saber se tal direito é subordinado a determinado fim, ou se, pelo contrário assenta o mesmo num mero interesse particular, determinado com base na liberdade contratual ou autonomia privada. 21 - Ora, no caso sub judice a invocação da nulidade resulta da inobservância ou incumprimento de obrigações relacionadas com a preservação de um interesse público. 22 - Concretamente, e invocação da nulidade do contrato de arrendamento por parte da recorrente assenta na inexistência de licença de utilização, nos termos em que a lei a tal obriga, sendo que de acordo com os preceitos que neste recurso se citaram, a invalidade determinada por tal falta é notoriamente a nulidade, motivada pela violação de um interesse público superior à liberdade contratual. 23 - De facto, sendo certo que sabia a recorrente da inexistência de licença de utilização adequada ao fim a que se destinava o locado, é também certo que sabia a recorrida dessa circunstância, com a particularidade (ignorada pelo Acórdão em recurso) de uma e outra serem geridas e administradas por AA, que é quem de facto ora representa a recorrida. 24 - Por outro lado, sabendo ambas as partes da inexistência de tal licença de utilização, o certo é também que ambas pretenderam, ainda assim, ajustar o contrato em causa. 25 - Por outro lado, ainda, é também certo que, por iniciativa da ora recorrente, tentou a mesma ajuizar da possibilidade de obter a licença de utilização em causa, tendo então retomado conhecimento do impedimento legal decorrente das normas regulamentares e legais, como constada documentação junta aos autos. 26 - Ora, neste conjunto de circunstâncias, qualificar a conduta da recorrente como abusiva, impedindo-a assim de invocar a nulidade do contrato de arrendamento e recusando-lhe assim o direito de ser ressarcida do valor das benfeitorias efectivamente realizadas, e ao mesmo tempo reconhecer à recorrida (que também ela quis contratar, sabendo da ilegalidade do contrato) o direito de receber a totalidade das rendas vencidas e não pagas, acrescida de indemnização prevista nas normas que regulam um arrendamento necessáriamente válido, será subverter o conceito de abuso de direito, e acima de tudo, retirar qualquer valia ao instituto da nulidade, e ao interesse público que a mesma protege, despindo-o de qualquer eficácia e sentido. 27 - Em todo o caso, parece evidente inexistir qualquer abuso de direito por parte da recorrente, pelo que, a solução jurídica a dar à questão sub judice será enquadrar a mesma no instituto de nulidade, tal como o fez a Douta Decisão proferida em 1ª Instância. 28 - Desse modo, um negócio ou um contrato nulo não constituirá necessáriamente um “nullum”, sendo antes em evento querido pelos contratantes que, ainda assim, é recusado pela ordem jurídica, que recusa as consequências negociais e os vínculos desejados pelos outorgantes. 29 - Como tal, o negócio nulo não gera direito interprivado, nem sequer pelas normas típicas desse tipo de contrato, nem ainda pela regulação negocial pretendida pelas partes, até porque, as consequências jurídicas de um negócio inválido não são aqueles que os seus autores lhe quiserem atribuir, mas antes as que a lei determina em consequência da nulidade. 30 - Deste modo, se deverá concluir que a ocorrência da notória nulidade do contrato de arrendamento, cuja invocação ou se encontra eivada de abuso de direito, determina, no caso sub judice, a inaplicabilidade não só do conteúdo contratual estipulado entre recorrente e recorrida, como também a não aplicabilidade das normas referentes ao arrendamento, ínsitas no nosso ordenamento jurídico. 31 - Consequentemente, e de acordo com o preceituado nos artºs 289º e 290º do Código Civil, a nulidade do contrato em apreço determinará a obrigação mútua de restituição de tudo quanto houver sido prestado, sendo que, não sendo possível a restituição em espécie, deverá ser restituído o valor correspondente. 32 - Como tal, e tal como se decidiu em 1ª Instância, como restituição em espécie deveria a recorrida restituir à recorrente as rendas recebidas, sendo porém certo que tal restituição deverá ser “anulada” pela fruição do locado por parte da recorrente, sendo que assim o valor das rendas pagas surgirá como compensação do gozo da coisa. 33 - De igual modo, e em perfeita harmonia com o doutamente decidido pelo Tribunal de Comarca, e no que concerne às rendas não pagas até à data da restituição do locado, deverão estas ser pagas à recorrida, não como o valor contratual das rendas devidas, mas sim como o seu valor locativo, correspondente ao uso da coisa pela recorrente. 34 - O mesmo não sucederá, ou não deverá suceder, todavia, à indemnização prevista no artº 1045º, nº 2 do Código Civil, pois que a sua aplicação é afastada pelo regime de nulidade do contrato de arrendamento. 35 - Por seu turno, e já em sede de pedido reconvencional, dever-se-á aplicar ao caso em apreço o regime legal vertido ao disposto nos artºs 1269º e seguintes do Código Civil, ex-vi do artº 289º, nº 3 do mesmo diploma legal, e deste nodo conceder à recorrente o direito de se ver ressarcida das benfeitorias realizadas no locado (neutralizando assim o convencionado pelas partes), pois que contrariamente ao decidido no Douto Acórdão recorrido, as benfeitorias em causa deveriam ser qualificadas como necessárias e úteis. 36 - E, assim, reconhecendo-se tal direito, deverá de igual modo reconhecer-se à recorrente o direito de efectuar a compensação de créditos e contra-créditos, como, aliás, foi decidido em 1ª Instância. 37 - Deste modo, é forçoso concluir-se que violou o Douto Acórdão recorrido o disposto nos artºs 216º, nº 1, 2 e 3; 280º, 289º, nº 1 e 3; 290º, 1070º, nº 1 e 1273º, todos do Código Civil, bem como os artºs 5º, nº 5 do DL. 160/2006, incorrendo de igual modo em errada interpretação e aplicação do disposto no artº 334º, também do Código Civil, pelo que tal Douto Acórdão deverá ser revogado, e assim substituído por outro que, em concordância com a Douta Sentença proferida em 1ª Instância, declare a nulidade do contrato de arrendamento, e deste modo reconheça à recorrente o direito de ser compensada pelo valor das benfeitorias realizadas, invocadas e reconhecidas como seu contra-crédito, para efeitos de compensação, pois que assim será feita cabal, inteira e costumada JUSTIÇA”. 9. A autora apresentou contra-alegações, insistindo em que a ré incorreu em abuso do direito[2]. 10. Em 21.04.2022 foi proferido pelo Exmo. Relator Desembargador o seguinte despacho: “A ré “Carneiro & Camacho – Arquitectura e Engenharia, L.da” veio interpor recurso do acórdão de 07.02.2022, aqui proferido, invocando como suporte legal a norma do artigo 671.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. A revista é legalmente admissível (citado artigo 671.º, n.º 1, do CPC), pelo que a admito. O recurso foi tempestivamente interposto por quem tem legitimidade (artigos 638.º, n.º 1, e 631.º, n.º 1, do CPC). Subirá nos próprios autos e tem efeito meramente devolutivo (675.º, n.º 2, e 676.º, n.º 1, a contrario, do CPC). Oportunamente, remeta ao Supremo Tribunal de Justiça”.
* Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), as questões a decidir, in casu, são a de saber: 1.ª) se a ré deve ser condenada a pagar à autora as rendas devidas e não pagas e a indemnização pela mora na restituição do locado; 2.ª) se a autora deve ser condenada a indemnizar a ré pelas benfeitorias por esta realizadas.
* II. FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido: 1. Mostram-se inscritas na AT duas fracções autónomas designadas pelas letras “A” e “B” correspondentes ao rés-do-chão do prédio situado na Avenida ..., ..., em ..., com os artigos matriciais ...08... e 1308.º-B (anterior ...06.º) e inscritas a favor da autora. 2. Na AT tais frações autónomas constam com estando afectas a “arrecadações e arrumos”. 3. Mediante acordo celebrado em 1/3/2012, a autora declarou dar de arrendamento e a ré declarou tomar de arrendamento as fracções autónomas descritas em 1. e 2, nos seguintes termos: “II – A primeira outorgante (a autora) dá de arrendamento à segunda outorgante (a ré) as referidas frações autónomas “A e B”, nos termos e condições seguintes; a) o arrendado destina-se a gabinete de arquitectura e engenharia, não lhe podendo dar outro destino sem prévio consentimento por escrito pela senhoria. b) A renda anual é de 6.000,00 Euros e será paga em duodécimos mensais de 500,00 Euros, a enviar no primeiro dia útil do mês anterior a que disser respeito par a sede da senhoria. c) Este contrato tem início em 1 de Março de 2012 e é feito pelo prazo de um ano, prorrogável por períodos iguais, enquanto não houver denúncia por qualquer das partes, com antecipação legal. d) Fica da responsabilidade da inquilina obras de adaptação, arranjo e transformação própria à sua atividade, bem como a autorização das entidades competentes para o exercício a que se destina, sem que dela a inquilina possa exigir da senhoria qualquer pagamento, responsabilidade ou indemnização para o efeito. e) (…) f) O rés-do-chão respeitante às frações (A e B) está dividido em 6 salas. Todas as salas estão divididas por divisórias em alumínio e forradas a painéis de madeira e vidro. Está instalada uma central de alarme g) Findo o arrendamento deverá o local arrendado ser entregue à senhoria em bom estado de conservação e sem deterioração, a não ser as inerentes a uma prudente utilização, ficando estipulado que as obras que fizerem de beneficiação ficam pertença do senhorio não podendo a segunda alegar no fim do contrato, retenção ou pedir por elas qualquer indemnização. h) (…)”. 4. A ré não entregou à autora as quantias acordadas referentes aos meses de Agosto a Dezembro de 2014, Janeiro a Dezembro de 2015, Janeiro a Dezembro de 2016 e Janeiro a Junho de 2017. 5. A autora requereu, em 27/6/2017, a notificação judicial avulsa da ré comunicando-lhe que considerava “resolvido o contrato de arrendamento celebrado em 01 de Março de 2012”, que a ré deveria “proceder à entrega do locado devoluto de pessoas e bens, limpo e em estado de conservação, com a entrega das respetivas chaves, no prazo de 5 dias após a concretização da presente notificação” e que a ré deveria “proceder ao pagamento imediato das rendas vencidas no valor de €17.500,00 (…) e respetivos juros de mora vencidos e vincendos.” 6. A ré foi notificada em 29/6/2017. 7. Em 14/11/2017 a autora instaurou contra a ré um PED requerendo a desocupação do locado e o pagamento das rendas em dívida, o qual veio a ser declarado extinto por as partes terem acordado na entrega do locado. 8. As frações autónomas identificadas foram entregues pela ré à autora em 30/11/2017. 9. A Câmara Municipal ... emitiu o alvará de licença n.º 395 de utilização do prédio onde se inserem as duas frações autónomas identificadas, datado de 27/5/1981, estando estas licenciadas para arrumos e o restante prédio para habitação. 10. A autora e a ré acordaram na execução de obras nos imóveis locados, as quais foram executadas pela ré antes do início do acordo referido em 3, as quais consistiram em pinturas, aplicação de projetores, lâmpadas, suportes, campainha, tomadas, comutadores, cabos de eletricidade, calhas e adaptadores de calhas, pichelaria, colocação de painéis, apainelados e portas em MDF e rodapés, no valor global de 5.428,26 euros, que liquidou. 11. Na vigência do acordo referido em 3, a ré procedeu à alteração dos projetores, ao revestimento exterior em painel, executou divisórias em pladur e colou tetos falsos, no valor global de 9.110,00 euros, que liquidou. 12. Os trabalhos descritos em 10 e 11 não podem ser retirados do arrendado sem o estragarem. 13. A Câmara Municipal ... na sequência de “esclarecimentos solicitados sobre o licenciamento das frações A e B da Rua ..., (…) ...” a pedido da ré, atestou, em 21/7/2017, relativamente às frações identificadas que “(…) as mesmas possuem a licença de utilização n.º ...1, destinadas a arrumos. 3. No que se refere ao pé direito mínimo obrigatório para os estabelecimentos destinado à prestação de serviços, informa-se que de acordo com o artigo 65.º do RGEU o mesmo é de 3m”. 14. No ano de 2006 os imóveis identificados estiveram arrendados à sociedade A..., SA, pelo montante mensal de 1.007,88 euros. E são seguintes os factos considerados não provados no Acórdão recorrido (tal como vêm enunciados no Acórdão recorrido): 1. Os factos alegados nos artigos 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 12.º, 13.º, 16.º, 17.º da contestação. 2. O facto alegado no artigo 21.º da contestação. 3. Os factos alegados nos artigos 25.º, 27.º, segunda parte, 37.º, 38.º, 53.º da contestação. 4. Os factos alegados nos artigos 20.º, 25.º e 34.º da réplica.
O DIREITO É indiscutível que o contrato de arrendamento em causa foi celebrado com desconsideração do fim que lhe estava destinado e para o qual a Câmara Municipal ... emitiu o alvará de licença. Tal pode ser ilustrado através do confronto entre o facto provado 9, do qual resulta que a Câmara Municipal ... emitiu o alvará de licença n.º 395 de utilização do prédio onde se inserem as duas frações autónomas identificadas, datado de 27/5/1981, estando estas licenciadas para arrumos, e o facto provado 3, segundo o qual, mediante acordo celebrado em 1/3/2012, o arrendado se destina a gabinete de arquitectura e engenharia. Significa isto que, sendo o arrendamento para fim diverso do licenciado, o contrato é nulo nos termos do disposto no artigo 5.º, n.º 8, do DL n.º 160/2006, de 8 de Agosto. Como se sabe, a nulidade desencadeia os efeitos previstos no artigo 289.º do CC. Dispõe-se no n.º 1 desta norma que deve ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente. O ordenamento jurídico visa, nestes casos, o regresso ao statu quo ante, reconstituindo-se a situação que existiria se o contrato se o negócio nulo ou anulável não tivesse sido celebrado e executado. Há, então, que proceder à chamada “liquidação do contrato inválido”, ou seja, ao cálculo do valor do dever de restituição. A liquidação do contrato implicaria aqui, em princípio, que a ré, para além de restituir a coisa locada (entretanto, já cumprida), restituísse o gozo da coisa e que a autora restituísse as rendas pagas (o gozo da coisa versus o pagamento das rendas). Sucede que o gozo da coisa é um dois casos em que a restituição em espécie não é viável. Como se procederia à restituição do gozo da coisa? Sobre estes casos pronuncia-se António Menezes Cordeiro, dizendo que “nos contratos de execução continuada, em que uma das partes beneficie do gozo da coisa – como no arrendamento – (…) a restituição em espécie não é, evidentemente possível. Nessa altura, haverá que restituir o valor correspondente o qual, por expressa convenção das partes, não poderá deixar de ser o da contraprestação acordada. Isto é: sendo um arrendamento declarado nulo, deve o 'senhorio' restituir as rendas recebidas e o 'inquilino' o valor relativo ao gozo que desfrutou e que equivale, precisamente, às rendas. Ambas as prestações restitutórias se extinguem, então, por compensação, tudo funcionando, afinal, como se não houvesse eficácia retroactiva, nestes casos”[3]. É importante salientar o papel da vontade das parte na conformação os efeitos da declaração de nulidade e, em particular, dos deveres de restituição. Convocando de novo António Menezes Cordeiro, pode dizer-se que “[o ato inválido] vai produzir alguns efeitos, variáveis consoante as circunstâncias. Tais efeitos são imputáveis à lei. Todavia, devemos estar prevenidos para o facto de eles dependerem, primacialmente, da vontade das partes (…). Ela condiciona, também, os próprios deveres de restituição, resultantes, no essencial, da conformação do contrato viciado” [4]. Em sentido convergente, Maria Clara Sottomayor afirma que “[m]esmo reconhecendo que os efeitos do negócio nulo são imputáveis à lei, a vontade das partes condiciona os deveres de restituição cujo conteúdo resulta, no essencial, da estipulação das partes no contrato inválido”[5]. Concretizando, diz a autora adiante: “[e]m regra, o critério para calcular o gozo da coisa (…) será aquele que foi adoptado no próprio contrato inválido que fixou o valor da contraprestação, o que tem por consequência que cada uma das partes retém a prestação recebida, equivalendo, na prática, a liquidação do contrato inválido à execução do mesmo”[6] [7]. Do dever da ré de pagamento à autora do valor das rendas devidas e não pagas e de indemnização pela mora na restituição do locado Aplicando os critérios e as orientações acima referidas, conclui-se que à autora assiste o direito de exigir à ré as rendas devidas e ainda não pagas. Isto porque a ré existe uma equivalência económica entre o valor do gozo e o valor das rendas acordadas. Dito de outro modo, as rendas devidas à autora correspondem ao valor económico do gozo do locado usufruído pela ré durante certo período. Deve, portanto, condenar-se a ré no pagamento da quantia global de € 20.000,00 (€ 17.500,00, correspondente ao uso do locado nos meses de Agosto a Dezembro de 2014, Janeiro a Dezembro de 2015, Janeiro a Dezembro de 2016, Janeiro a Junho de 2017, e correspondente ao uso do locado nos meses de Julho a Novembro de 2017). Mas isto é tudo quanto a autora tem direito. Quer dizer: apesar de, na liquidação do contrato inválido, se valorizar a vontade das partes, não é possível aplicarem-se normas cuja aplicabilidade pressupõe uma relação contratual arrendatícia validamente constituída. Este é o caso do artigo 1045.º do CC, que constitui o locatário no dever de indemnização (pagamento da renda em singelo e, porventura, em dobro) em caso de atraso na restituição do locado. Este é um dever de indemnização em sentido próprio e um dever de indemnização que, como dizem Pires de Lima e Antunes Varela, tem “natureza claramente contratual”[8], não se confundindo, portanto, com os deveres de restituição ou outros que possam resultar da declaração de nulidade do contrato[9]. Em face disto, o pedido da autora de indemnização pelo valor das rendas de Julho a Novembro de 2017 em dobro não pode deixar de improceder. Do dever da autora de pagamento à ré das benfeitorias por ela realizadas Compulsando a factualidade provada verifica-se que foram efectuadas pela ré benfeitorias no local arrendado (realizadas despesas feitas para conservar e melhorar a coisa, conforme se diz no artigo 216.º, n.º 1, do CC) e que estas não podem ser levantadas sem risco de prejuízos. Veja-se, mais precisamente, o que se apurou: 10. A autora e a ré acordaram na execução de obras nos imóveis locados, as quais foram executadas pela ré antes do início do acordo referido em 3, as quais consistiram em pinturas, aplicação de projetores, lâmpadas, suportes, campainha, tomadas, comutadores, cabos de eletricidade, calhas e adaptadores de calhas, pichelaria, colocação de painéis, apainelados e portas em MDF e rodapés, no valor global de 5.428,26 euros, que liquidou. 11. Na vigência do acordo referido em 3, a ré procedeu à alteração dos projetores, ao revestimento exterior em painel, executou divisórias em pladur e colou tetos falsos, no valor global de 9.110,00 euros, que liquidou. 12. Os trabalhos descritos em 10 e 11 não podem ser retirados do arrendado sem o estragarem. Como é sabido, há várias categorias de benfeitorias: as benfeitorias necessárias, que são “as que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa”, as benfeitorias úteis, que são “as que, não sendo indispensáveis para a [] conservação [do prédio], lhe aumentam, todavia, o valor”, e as benfeitorias voluptuárias, que são “as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação nem lhe aumentando o valor, servem apenas para recreio do benfeitorizante” (cfr. artigo 216.º, n.ºs 2 e 3, do CC). Não sendo seguro que todas as concretas benfeitorias se integrem nas necessárias e úteis, como entende a recorrente, o certo é que se trata, aparentemente, de benfeitorias tendentes a adaptar o locado à actividade da ré, realizadas, portanto, no seu interesse. Umas benfeitorias foram realizadas antes da celebração do contrato e outras depois. Mas umas e outras haviam sido previstas e reguladas pelas partes: as primeiras no quadro de acordo (cfr. facto provado 10) e as segundas, genericamente, no próprio contrato de arrendamento, tendo, em qualquer caso, as partes regulado a questão da respectiva responsabilidade. Voltando a convocar o facto provado 3 verifica-se que, numa das cláusulas do contrato de arrendamento, se prevê: “d) Fica da responsabilidade da inquilina obras de adaptação, arranjo e transformação própria à sua atividade (…) sem que dela a inquilina possa exigir da senhoria qualquer pagamento, responsabilidade ou indemnização para o efeito. (…) g) Findo o arrendamento deverá o local arrendado ser entregue à senhoria em bom estado de conservação e sem deterioração (…), ficando estipulado que as obras que fizerem de beneficiação ficam pertença do senhorio não podendo a segunda alegar no fim do contrato, retenção ou pedir por elas qualquer indemnização”. A ré invoca a nulidade do contrato e a consequente invalidade destas cláusulas, pretendo com isso furtar-se a certos efeitos do contrato que considera indesejáveis. Acontece que a invocação da nulidade do contrato pela ré configura um comportamento contraditório com a sua conduta anterior. Se não veja-se. A ré tomou conhecimento, em data indeterminada, mas que não é impossível que seja anterior à celebração do contrato (no curso da respectiva negociação), de que o local arrendado não dispunha de licença de utilização para o fim por ela pretendido e para o qual foi arrendado. Parece poder concluir-se isto das seguintes conclusões: “23 - De facto, sendo certo que sabia a recorrente da inexistência de licença de utilização adequada ao fim a que se destinava o locado, é também certo que sabia a recorrida dessa circunstância, com a particularidade (ignorada pelo Acórdão em recurso) de uma e outra serem geridas e administradas por AA, que é quem de facto ora representa a recorrida. 24 - Por outro lado, sabendo ambas as partes da inexistência de tal licença de utilização, o certo é também que ambas pretenderam, ainda assim, ajustar o contrato em causa”. Um argumento decisivo retira-se do facto provado 3, do qual resulta que, numa das cláusulas do contrato de arrendamento, se prevê expressamente: d) Fica da responsabilidade da inquilina (…) a autorização das entidades competentes para o exercício a que se destina, sem que dela a inquilina possa exigir da senhoria qualquer pagamento, responsabilidade ou indemnização para o efeito. A inclusão de uma cláusula deste tipo só faz sentido se, de facto, tiver sido previamente assumida a (falta de) autorização das entidades competentes para o exercício no local arrendado da actividade respeitante a gabinete de arquitectura e engenharia e discutida pelas partes a responsabilidade pela resolução dessa desconformidade. Seja como for, o contrato esteve “activo” entre 1.03.2012 e 29.06.2017 (cfr. factos provados 3, 5 e 6), ou seja, esteve “activo” durante tempo suficiente para que a ré tomasse conhecimento da dissonância entre o fim previsto na e o fim por ela prosseguido. Comprovando isto, veja-se que a ré pediu à Câmara Municipal ... “esclarecimentos solicitados sobre o licenciamento das frações A e B da Rua ..., (…) ...”, sabendo, então, que, relativamente às fracções identificadas, “(…) as mesmas possuem a licença de utilização n.º ...1, destinadas a arrumos. 3. No que se refere ao pé direito mínimo obrigatório para os estabelecimentos destinado à prestação de serviços, informa-se que de acordo com o artigo 65.º do RGEU o mesmo é de 3m” (cfr. facto provado 13). Este facto é reconhecido pela recorrente conforme se vê na conclusão seguinte: “25 - Por outro lado, ainda, é também certo que, por iniciativa da ora recorrente, tentou a mesma ajuizar da possibilidade de obter a licença de utilização em causa, tendo então retomado conhecimento do impedimento legal decorrente das normas regulamentares e legais, como constada documentação junta aos autos”. A despeito disto tudo, só na sequência da resolução pela autora e do pedido de indemnização, a ré vem arguir a nulidade do contrato – o que é incompreensível e, sobretudo, incompatível com um uso conforme da possibilidade de arguir a nulidade. Mais claramente: a oportunidade da arguição de nulidade do contrato de arrendamento pela ré demonstra que tal arguição não serve o propósito a que se dirige – se deve dirigir – a arguição de nulidade; indicia que a ré invocou a nulidade do contrato, inflectindo no seu anterior comportamento, só por causa das circunstâncias em que se sentiu colocada, ou seja, a resolução do contrato, o procedimento de despejo e os consequentes pedidos deduzidos pela autora. Configura-se, assim, um comportamento contraditório da ré – um abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium[10]. É do conhecimento geral que, enquanto expressão da confiança, o venire contra factum proprium concretiza a boa fé. Recorda Menezes Cordeiro que “a locução venire contra factum proprium traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente”[11]. De acordo com este autor, existe venire contra factum proprium numa de duas situações: “quando uma pessoa, em termos que, especificamente, não a vinculem, manifeste a intenção de não ir praticar determinado acto e, depois, o pratique e quando uma pessoa, de modo, também, a não ficar especificamente adstrita, declare pretender avançar com certa actuação e, depois se negue” [12]. Não obstante não ser possível falar, rigorosamente, em “pressupostos” do venire contra factum proprium, os casos abrangidos são susceptíveis de ser identificados por referência a determinados elementos. A presença e a intensidade destes varia de caso para caso, funcionando eles num “sistema móvel”, em que a falta de um é susceptível de ser suprida pela intensidade especial que assumam os / alguns dos restantes[13]. Seguindo Paulo Mota Pinto, deve, em primeiro lugar, existir um “comportamento anterior do agente – o factum proprium a que se refere a expressão –, que seja susceptível de fundar uma situação objectiva de confiança” [14]. Este será um pressuposto cuja presença é essencial para a configuração do venire contra factum proprium, não obstante o grau de intensidade ser variável. Em segundo lugar, deve existir “a imputação ao agente, quer desse comportamento, quer do actual comportamento” [15], o que, em regra, envolve um juízo de censura culposa sobre o agente. Em terceiro lugar, deve verificar-se “a necessidade e o merecimento da protecção do atingido com a conduta contraditória” [16], o que significa que o atingido deve estar de boa-fé, tendo confiado na situação criada pelo acto anterior e não esperando nem podendo esperar um comportamento contrário por parte do agente. Em quarto lugar, deve apurar-se o “investimento de confiança”. Como diz Carneiro da Frada, “como princípio, a ordem jurídica apenas reclama dos sujeitos que respeitem os próprios compromissos e não lesem os bens dos demais. Observados estes limites, há liberdade de comportamento. A cada um assiste evidentemente a faculdade de modificar a sua conduta, quando e como lhe aprouver. Deste modo, aquilo que verdadeiramente se visa no venire é tão-só a protecção da confiança criada, melhor, a tutela do investimento do sujeito feito na convicção de um comportamento alheio"[17]. Relativamente a este “investimento de confiança”, deve notar-se que alguns autores exigem “[a] sua “irreversibilidade ou a eventual 'afectação da situação existencial' daquele que confiou por virtude da frustração desse 'investimento'” [18]. Conta-se entre eles Canaris[19]. Por fim, é preciso que possa afirmar-se “a contrariedade directa entre o anterior e o actual comportamento” [20], sob pena de não se distinguir o venire contra factum proprium de outras formas de tutela da confiança e de ser duvidosa a sua autonomia dogmática. Todos estes elementos – repita-se – funcionam num sistema móvel, podendo variar em número e em força consoante o caso concreto. Isto obriga a que, em cada caso a decidir, se proceda sempre a uma valoração global de todos os elementos e a um controlo da adequação material da solução. Tudo visto, é altura de concluir. Sendo ponto assente que a ré aceitou, ex voluntate, perante a autora que suportaria os encargos da realização de certos trabalhos ou obras no locado, não pode agora, simplesmente, “desembaraçar-se” ou furtar-se ao compromisso assumido sob pretexto da nulidade do contrato. O abuso do direito desempenha, neste caso, uma função negativa, que impõe um “dever especial de corresponder às expectativas”[21] e, consequentemente, paralisa o direito de arguir a nulidade do contrato como meio de evitar o cumprimento do acordado quanto à realização de benfeitorias no locado. O pedido reconvencional deve, portanto, improceder. * III. DECISÃO Pelo exposto, concede-se parcial provimento à revista, revogando-se o Acórdão recorrido nos seguintes termos: 1.º) declara-se a nulidade do contrato de arrendamento; 2.ª) julga-se parcialmente procedente o pedido da autora, condenando-se a ré a pagar à autora o valor das rendas vencidas e não pagas, no montante global de € 20.000 acrescido de juros de mora contados desde a citação até ao integral pagamento e contabilizados à taxa legal; 3.º) julga-se totalmente improcedente o pedido reconvencional. * Custas pela recorrente e pela recorrida na proporção do respectivo decaimento. * Lisboa, 15 de Setembro de 2022 Catarina Serra (Relatora) Rijo Ferreira Cura Mariano ______ [1] Aqui numeradas para facilitar a referência a elas. |