Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
707/09.7TBPVZ.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: JOÃO BERNARDO
Descritores: CHEQUE REVOGADO
FALTA DE PROVISÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL
DANO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 11/20/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO BANCÁRIO - ACTOS BANCÁRIOS EM ESPECIAL / CHEQUE.
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / REPONSABILIDADE CIVIL / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
Doutrina:
- Almeida Costa, Direito das Obrigações, 6.ª ed. 660.
- Evaristo Mendes, Direito e Justiça, XIII, Tomo 1, 199.
- Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7.ª ed. 417.
- Grumecindo Bairradas, O Cheque sem Provisão, Regime Jurídico Civil e Penal, 156, 161.
- Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, II, Direito das Obrigações, Tomo III, 744.
- Menezes Leitão, Direito das Obrigações, I, 345.
- Paulo Olavo Cunha, Cheque e Convenção de Cheque, 556, nota de pé de página; in Cadernos de Direito Privado, n.º25.
- Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, I, 478.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 8.º, N.º3, 483.º, N.º1, 563.º.
DECRETO-LEI N.º 454/91, DE 28-12: - ARTIGOS 1.º-A, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 15.3.2005, 10.5.2012, 21.3.2013 E 26.9.2013, PROCESSOS N.ºS 05A380, 272/08 TVPRT.P3.S1, 4591/06.4TBVNG.P1.S1 E 1937/08.4TBOAZ.P3.S1, RESPECTIVAMENTE, TODOS COM TEXTO DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT.
-DE 28.2.2008, PROCESSO N.º 06A542, PUBLICADO NA I SÉRIE DO DIÁRIO DA REPÚBLICA, DE 4.4.2008, E EM WWW.DGSI.PT
-DE 8.5.2013, PROCESSO N.º 1122/10.5TVLSB.L1.S1, EM WWW.DGSI.PT

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ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE 30.11.2006, PUBLICADO NA I SÉRIE DO DIÁRIO DA REPÚBLICA, DE 14.2.1007.
Sumário : 1 . O pressuposto do dano da responsabilidade civil emergente da conduta da instituição de crédito que recusa pagar cheques apresentados a pagamento no prazo legal, com a menção, aposta em cada um, de “cheque revogado justa causa”, fica preenchido logo com esse não pagamento.

2 . Irrelevando que a conta não tivesse provisão e que, por isso, sempre ocorreria a devolução daqueles títulos de crédito.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



1 . AA, S.L., com sede em …, …, 36415 Mos, Pontevedra, Espanha intentou a presente ação declarativa contra:

A BB, S.A., com sede na Avenida …, nº …, Lisboa.


Alegou, em resumo, que:


É legítima portadora dos cheques identificados no artigo 1º da petição, sacados sobre uma conta da ré, que foram entregues para pagamento de uma dívida da sociedade “CC, Lda”;

Apresentados a pagamento nas datas neles apostas numa agência do réu, foram devolvidos com os seguintes dizeres apostos nos versos: “cheque revogado Justa causa – F.V.F.V”;

Todos os cheques foram apresentados a pagamento no prazo de oito dias e, na data em que foram apresentados, a conta apresentava fundos monetários suficientes que possibilitavam o seu pagamento;

A conduta do réu causou prejuízos à autora na medida em que impediu a cobrança dos cheques, privando-a dos respectivos montantes.


Pediu, em conformidade, que:

A ré seja condenada a pagar-lhe € 108 727,95, acrescidos dos juros legais contados desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.


Esta contestou.

Impugnou em grande parte os factos carreados pela autora , sustentando que:

Ela já recebeu pelo menos parte dos valores dos cheques em causa;

Não era expectável que, ao decidir aceitar a revogação de um cheque com base em falta ou vício na formação da vontade, contasse com a circunstância de o beneficiário do cheque, por causa dessa devolução, tivesse de pagar comissões que se cifravam entre os € 229,00 e os € 707,00, por cada cheque;

À data em que foi apresentado a pagamento cada um dos cheques, a conta sacada não continha fundos bastantes para permitir o respectivo pagamento;

Ao aceitar o pedido do sacador dos cheques, fê-lo convencida da veracidade da causa que o mesmo invocou;

Tais cheques eram pré-datados.


Requereu ainda a intervenção principal acessória do sacador dos cheques, DD e de “CC, Lda”, atualmente denominada “EE, Lda”.



A autora apresentou réplica, concluindo como na petição.

                                                          

Foram admitidas as requeridas intervenções acessórias, sendo os intervenientes citados para a causa e não apresentaram qualquer articulado.




2 . A ação prosseguiu a sua tramitação e, na devida oportunidade, foi proferida sentença que a julgou improcedente, absolvendo a ré do pedido.




3 . Apelou a autora, mas sem êxito, porquanto o Tribunal da Relação do Porto confirmou a decisão.


Tendo elaborado o seguinte sumário:


“I – O não pagamento indevido, pelo banco, do montante dos cheques apresentados a pagamento pelo portador do mesmo, é a causa real, efetiva, do dano sofrido pela A.;

II – A falta de aprovisionamento da conta do sacador, que sempre levaria à sua devolução, por falta de provisão, constitui a causa virtual desse mesmo dano – isto é, constitui um facto que teria produzido aquele mesmo dano, se não operasse a causa real.

III – Tal situação, alegada e provada pela Ré, leva, assim, à exoneração da responsabilidade indemnizatória do banco sacado (autor da causa real) - a chamada relevância negativa da causa virtual.”




4 .  A formação competente admitiu a revista excecional interposta pela autora.

 

Na parte relativa ao mérito do recurso, conclui esta as alegações do seguinte modo:


I) Entende o Acórdão da Relação que a matéria constante nas alíneas A) a I) das conclusões do recurso da autora da Sentença proferida pela 1 a Instância é matéria nova, que não foi oportunamente alegada pela Autora e, portanto, o Tribunal Relação não a poderá ter em conta.

J) O alegado nas referidas Conclusões e alegações de recurso são presunções ou ilações que se retiram dos documentos juntos aos autos, das regras de experiência da vida e consequência legais de factos dados como provados.

K) Ou seja, acionamento dos mecanismos constantes do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro (notificação ao sacador que se refere o artigo 1.º-A, comunicação ao Banco de Portugal a que se refere o artigo 2.º do mesmo diploma, à inclusão na listagem a que se refere o artigo 3.º do mesmo diploma, rescisão da convenção de cheque a que se refere o artigo 1.º e, ainda, exercício da acção penal prevista no artigo 11.º do mesmo diploma) é matéria de direito, que não precisa de ser alegada pela parte, já que é do conhecimento do Exmo. Senhor Juiz.

L) Igualmente, da análise do extrato bancário decorre que no período em causa, de todos os cheques emitidos pela sacadora, uns eram pagos, outros não, mas nunca ocorreu uma devolução de cheques sem provisão, donde se conclui que a sacadora movimentava e pagava os cheques conforme entendia (com o consentimento do Banco sacado).

M) O alegado nas Conclusões são, pois, ilações ou presunções que o Recorrente entende que devem ser retiradas dos documentos juntos (extratos bancários) e da prova testemunhal para concluir que nada garantia que os cheques fossem devolvidos por falta de provisão, resultando assim NÃO PROVADO o quesito 28.° da PI.

N) O Tribunal da Relação ao não reapreciar a prova conforme lhe era exigido por considerar que a matéria alegada pela Recorrente era matéria nova, não deu cumprimento ao disposto no artigo 712° n.º1 do C.P.C.

O) O Acórdão recorrido é assim nulo por omissão de pronúncia.


SEM PRESCINDIR, MANTENDO-SE A MATERIA DE FACTO INALTERADA sempre a solução de direito, face aos factos dados como provados deveria ter sido outra.

P) No Acórdão Recorrido defende-se que a prova da insuficiência de fundos que permitem o pagamento dos cheques leva à exoneração da responsabilidade indemnizatória do banco sacado que injustificadamente não pagou um cheque no período legal de apresentação a pagamento - a chamada relevância negativa da causa virtual.

Q) A irrelevância negativa da causa virtual é a regra geral no Instituto da Responsabilidade Civil Extracontratual.

R) A relevância negativa da causa virtual é excecional e está prevista expressamente na lei apenas para certo tipo de situações de culpa presumida - artigos 491°, 492°, 493° n.º1, 616, n.º 2 e 807°, n.º 2 do Código Civil- constituindo estas normas disposições excecionais.

S) Ao dar relevância negativa à causa virtual o Acórdão recorrido violou o artigo 11 ° do Código Civil, que proíbe a aplicação analógica das normas excecionais.

T) A IRRELEVÂNCIA negativa da causa virtual é, pois, uma regra, pelo que a falta de provisão de um cheque nenhuma influência pode ter na responsabilidade do sacado como autor do dano que era inerente ao não pagamento do cheque por ilícita aceitação da sua revogação.

U) Sendo certo ainda que, "Da revogação ilícita de um cheque e da consequente proibição do seu pagamento, sempre resultaria para o seu portador, independentemente do seu resultado final, a privação de determinadas oportunidades para chegar a esse resultado - o pagamento - ou seja, a perda de uma chance" Acórdão do S.T.J., proferido no processo n.º4591/06.4TBVNG.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt.

V) Esta é a orientação que mais se coaduna com as normas dos Código Civil e dos princípios subjacentes ao Instituto da Responsabilidade Civil Extracontratual e da Doutrina.

W) O ónus da prova de que os cheques não seriam pagos mesmo que devolvidos por falta de provisão, depois de acionados todos os mecanismos dos artigos 1.º-A, 3 °A e 11° do Decreto-Lei n.º 454/9l, de 28 de Dezembro, por constituir matéria de exceção que exclui a obrigação de indemnizar, compete, assim, nos termos do artigo 342 °, n.º 2 do Código Civil, ao banco R.

X) O Instituto da Responsabilidade Civil Extracontratual, além de uma componente compensatória, possui igualmente uma função sancionatória ou preventiva - em casos com o constante dos presentes autos - em que é inequívoca a existência de ato ilícito e culposo por parte do banco e a existência de prejuízo.

Y) Seguir a tese do Douto Acórdão recorrido é colocar a cargo da A./lesada, se assim quisesse ser indemnizada, a diabólica prova da não concorrência no caso de toda e qualquer causa virtual.

Z) Ou seja, obriga o autor a demonstrar, depois de provar que ainda não foi paga do valor titulado pelos cheques (ou seja, depois de comprovar o dano), a verificação de todo um conjunto de factos (trilhando o longo caminho das hipóteses) tendentes á demonstração do mesmo resultado, mas agora como se não tivesse havido atuação ilícita.

AA) Quer a Recorrente (a autora) quer a Recorrida (a ré) aceitam que, no caso concreto, a recusa de pagamento dos cheques pelo banco dentro do prazo estabelecido no artigo 29° da LUCH, com fundamento na sua revogação pelo titular da conta sacada, constitui um facto ilícito e culposo do banco, tendo a A. sofrido prejuízos com a devolução do cheque.

BB) Encontram-se, pois, verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, devendo pois o Ré ser condenado a pagar á A. o prejuízo por esta sofrido, ou seja, o valor do cheques acrescida das despesas de devolução.

CC) De resto, a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, não foram sequer colocados em causa pela R., nem pelo Acórdão recorrido.

DD) A douta Sentença, ao julgar a ação improcedente, violou o disposto nos artigos 11º, 483º, 342º, 563º, 491º, 492º, 493º, nº1, 616.º, n.º2 e 807º, n.º2 do Código Civil e 712.º do Código de Processo Civil.



Contra-alegou longamente a Caixa Geral de Depósitos, rebatendo, ponto por ponto, a argumentação da contraparte.




5 . Face às conclusões das alegações, as questões a resolver cifram-se em saber se:

A matéria constante das conclusões A a I das alegações da 1.ª para a 2.ª instância não integra matéria nova, pelo que a Relação ao abster-se de conhecer dela, com esse fundamento, cometeu nulidade por omissão;

O não aprovisionamento da conta com os montantes necessários para serem pagos os cheques, não afasta os pressupostos da responsabilidade civil do dano e do nexo de causalidade;

Não devendo relevar o efeito negativo da causa virtual.




6 . Vem provada a seguinte matéria de facto:


2.1. DD emitiu e sacou sobre a conta n.º …, por si titulada na ré, os seguintes cheques:

A) o cheque nº …, datado de 13/03/2008, no valor de € 3.730,33;

B) o cheque nº …, datado de 25/03/2008, no valor de € 3730,33;

C) e o cheque nº …, datado de 16/06/2008, no valor de € 7.856,62;

D) o cheque nº …, datado de 26/06/2008, no valor de € 6.177,55;

E) o cheque nº …, datado de 01/07/2008, no valor de € 7.645,35;

F) e o cheque nº …, datado de 15/04/2008, no valor de € 9.029,89;

G) o cheque nº …, datado de 31/05/2008, no valor de € 11.699,68;

H) o cheque nº …, datado de 15/05/2008, no valor de € 6.267,24;

I) o cheque nº …, datado de 19/05/2008, no valor de € 9.166,31;

J) o cheque nº …, datado de 07/04/2008, no valor de € 3.953,02;

K) o cheque nº …, datado de 08/05/2008, no valor de € 5.357,72;

L) o cheque nº …, datado de 25/07/2008, no valor de € 9.662,99;

M) o cheque nº …, datado de 18/07/2008, no valor de € 9.662,99.

N) e o cheque nº …, datado de 01/08/2008, no valor de € 9.115,72. (A) a N))

2.2. A autora é portadora dos cheques aludidos em 2.1., sob as alíneas A) a N). (resposta ao quesito 1º)

2.3. O cheque aludido em 2.1.-A) foi apresentado a pagamento em 19/3/2008. (O))

2.4. O cheque aludido em 2.1.-B) foi apresentado a pagamento em 31/3/2008. (P))

2.5. O cheque aludido em 2.1.-C) foi apresentado a pagamento em 24/6/2008. (Q))

2.6. O cheque aludido em 2.1.-D) foi apresentado a pagamento em 2/7/2008. (R))

2.7. O cheque aludido em 2.1.-E) foi apresentado a pagamento em 7/7/2008. (S))

2.8. O cheque aludido em 2.1.-F) foi apresentado a pagamento em 17/4/2008. (T))

2.9. O cheque aludido em 2.1.-G) foi apresentado a pagamento em 6/6/2008.(U))

2.10. O cheque aludido em 2.1.-H) foi apresentado a pagamento em 21/5/2008. (V))

2.11. O cheque aludido em 2.1.-I) foi apresentado a pagamento em 26/5/2008. (W))

2.12. O cheque aludido em 2.1.-J) foi apresentado a pagamento em 11/4/2008. (X))

2.13. O cheque aludido em 2.1.-K) foi apresentado a pagamento em 14/5/2008. (Y))

2.14. O cheque aludido em 2.1.-L) foi apresentado a pagamento em 31/7/2008. (Z))

2.15. O cheque aludido em 2.1.-M) foi apresentado a pagamento em 24/7/2008. (AA))

2.16. O cheque aludido em 2.1.-N) foi apresentado a pagamento em 7/8/2008. (BB))

2.17. O mencionado DD era sócio e gerente da sociedade “Transportes CC, Lda”. (CC))

2.18. Os cheques aludidos em 2.1.-A) a N) foram apresentados a pagamento nas datas neles apostas na agência da ré situada em A-Ver-O-Mar, Póvoa de Varzim. (DD))

2.19. Os referidos cheques foram devolvidos à autora com os seguintes dizeres apostos nos versos: “Cheque Revogado Justa causa – F.V.F.V”, correspondente a falta ou vício na formação da vontade. (EE))

2.20. A ré recusou o pagamento dos cheques aludidos em 2.1.-A) a N) (FF))

2.21. Até à presente data a autora não recebeu o montante em dinheiro inscrito nos cheques aludidos em 2.1.-A) a N). (resposta ao quesito 5º)

2.22. Para fazer face a dificuldades financeiras, a autora teve de recorrer a crédito bancário no valor de € 300.000,00. (resposta ao quesito 19º)

2.23. O crédito aludido em 2.22. teve em vista o pagamento de salários, pagamentos a fornecedores, pagamento de matérias-primas – combustíveis, sendo que com a devolução dos cheques aludidos em 2.1.-A) a N), a autora não contou com aquele montante, nem dele pode dispor. (resposta aos quesitos 20º e 21º).

2.24. Por referência a cheques sacados sobre banco espanhol e apresentados à cobrança numa das agências da CGD em Portugal, a ré cobra em média, a título de comissões e despesas de correio, entre € 50,00 a € 75,00 (resposta ao quesito 23º)

2.25. Para a ré não era expectável que ao decidir aceitar a revogação de um cheque com base em falta ou vício na formação da vontade, o beneficiário do cheque, por causa dessa devolução, tivesse de pagar comissões que se cifravam entre os € 229,00 e os € 707,00, por cada cheque. (resposta ao quesito 24º)

2.26. Ao aceitar o pedido do sacador dos cheques, de revogação dos mesmos, a ré fê-lo convencida da veracidade da causa que aquele invocou. (resposta ao quesito 25º)

2.27. O sacador dos cheques referiu que os mesmos eram pré-datados. (resposta ao quesito 26º)

2.28. A conta sacada, à data em que foi apresentado a pagamento cada um dos cheques aludidos em 2.1.-A) a N), não continha fundos bastantes para permitir o respectivo pagamento, pelo que os mesmos sempre seriam devolvidos por falta de provisão. (resposta ao quesito 28º)

2.29. Os cheques aludidos em 2.1.-A) a N) eram pré-datados. (resposta ao quesito 29º).




7 . As alíneas A a I das alegações da 1.ª para a 2.ª instância são do seguinte teor:


A) Da avaliação da prova produzida, nomeadamente dos extractos bancários juntos pelo banco R. e testemunhal, conjugados com as regras de experiência comum e da prática bancária, resulta que o tribunal deveria ter respondido de forma diferente à matéria de facto constante do quesito 28º da Base Instrutória.

B) Na resposta ao referido quesito, a Ex.Ma Senhora Juiz partiu de um pressuposto errado, ou seja, que o saldo da conta não era suficiente para pagar os cheques e que não estava autorizado o descoberto.

C) É que a falta de provisão na data da apresentação de cada um dos cheques a pagamento não é equivalente a falta absoluta de provisão.

D) Pois se os cheques apresentados a pagamento fossem recusados por falta de provisão, nada nos diz que apresentados novamente a pagamento não seriam pagos, com o accionamento dos mecanismos previstos nos artºs 1º-A, 3ºA e 11º do Decreto-Lei nº454/91, de 28 de Dezembro.

E) É sabido que muitas vezes os contratos de depósito bancário permitem que as contas fiquem a descoberto até determinados limites (convencionados entre o banco e os titulares da conta) e seja, ainda assim, possível o pagamento dos cheques, apesar das mesmas se encontrarem a descoberto e até com saldo negativo.

F) O facto de um funcionário do banco R. dizer que não estava autorizado o descoberto, não implica a resposta positiva ao quesito, pois que, atenta a relação de subordinação subjacente ao contrato de trabalho existente entre a testemunha e o Banco R. e a possibilidade de o banco vir a ser responsabilizado pelo pagamento de uma indemnização, o depoimento desse funcionário como testemunha não pode ser valorado sem quaisquer reservas.

G) O ónus da prova de que os cheques não seriam pagos mesmo que devolvidos por falta de provisão, depois de accionados todos os mecanismos dos artigos 1º-A, 3ºA e 11º do Decreto-Lei nº454/91, de 28 de Dezembro, por constituir matéria de excepção que exclui a obrigação de indemnizar, compete, nos termos do artigo 342º, nº2 do C.C., ao banco R.

H) Tudo factores que não foram considerados pela Ex.ma Senhora Juiz na resposta dada ao quesito 28º, pois caso fossem considerados, a resposta ao mesmo teria forçosamente de ser: NÃO PROVADO.

I) A alteração da matéria de facto sustenta-se na força probatória dos extractos bancários, regras de experiência comum e da prática bancária.




8 . No ponto 4.º da BI perguntava-se:


Nas datas em que os cheques aludidos em A) a N) foram apresentados a pagamento, a conta sacada apresentava fundos monetários suficientes que possibilitavam o pagamento dos mesmos?

O Sr. Juiz respondeu “não provado”.


No ponto 28.º a pergunta era a seguinte:


A conta sacada, à data em que foi apresentado a pagamento cada um dos cheques aludidos em 2.1.-A) a N), não continha fundos bastantes para permitir o respectivo pagamento, pelo que os mesmos sempre seriam devolvidos por falta de provisão?


O Sr. Juiz respondeu “provado”.


Aquele ponto 4º correspondeu ao artigo 26.º da p.i.

O ponto 28.º correspondeu ao artigo 18.º da contestação.

Este artigo 18.º foi, não obstante a pré-impugnação já existente, apelidado de “falso” no artigo 18.º da resposta. Sem que fossem carreados outros factos sobre esta matéria.


No recurso de apelação, a autora impugnou aquela resposta de “provado”, nos termos referidos no número anterior.


Nesta impugnação, há que distinguir:

A parte factual;

A parte jurídica.


Aquela ainda se pode subdividir em parte relativa à não existência de fundos e em parte reportada à devolução dos cheques.


Quanto à não existência de fundos, para pagamento de cada um dos cheques, a autora não levou a cabo qualquer impugnação da decisão de 1.ª instância.

A impugnação pretendida cifrou-se na possibilidade de haver entre o banco e o subscritor dos cheques acordo no sentido de ser efetuado o pagamento “a descoberto”. Ora, esse hipótese não consta dos articulados, constituindo um facto novo relativamente ao carreado na 1.ª instância, pelo que bem andou a Relação ao dele não conhecer.


Um cheque devolvido por falta de provisão pode ser pago, estando previstos no Decreto-Lei n.º 454/91, de 28.12 mecanismos jurídicos com esse objetivo. Mas isso não contende com a resposta dada ao ponto 28.º da BI. O ali constante até constitui pressuposto para ser acionado este mecanismo legal.


Nada temos, pois, a censurar no acórdão recorrido, quanto a esta matéria.




9 . A questão seguinte, das enumeradas em 5, é muito discutível.


No Acórdão proferido em revista ampliada das secções cíveis deste Tribunal, em 28.2.2008, processo n.º 06A542, publicado na I Série do Diário da República de 4.4.2008 fixou-se jurisprudência nos seguintes termos:


“Uma instituição de crédito sacada que recusa o pagamento de cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no artigo 29.º da LUCH, com fundamento em ordem de revogação do sacador, comete violação do disposto na 1.ª parte do artigo 32.º do mesmo diploma respondendo por perdas e danos perante o legítimo portador do cheque nos termos previstos nos arts 14.º, 2.ª parte do decreto n.º 13004 e 483.º, n.º1 do C.Civil”  

  

Esta fixação jurisprudencial não deixou margem a dúvidas sobre o carácter ilícito da atuação do banco e, bem assim, sobre o nexo de imputação.

Estão aqui dois dos pressupostos da responsabilidade civil.


As dúvidas surgem quanto aos pressupostos do dano e, inerentemente, do nexo causal.


Num modo de ver, o dano surgiria com a frustração do pagamento do cheque;

Noutro, a recusa abriria apenas caminho a que se pudesse chegar ao dano. E não se chegaria se ficasse demonstrado que o cheque não seria pago, por na conta inexistirem fundos suficientes. Não se chegando ao dano, faleceria o nexo causal e não estavam preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil, naufragando a pretensão indemnizatória.




10 . A questão prende-se, a nosso ver, com o conceito de cheque.

Se se entender este como “meio de pagamento”, a recusa de entrega do numerário respectivo constitui logo um dano.

Se se considerar como “meio de obtenção do pagamento” a recusa só constitui elemento inicial do dano, havendo necessidade, para chegar a este, de demonstrar o efetivo prejuízo. Que não se compadece, por regra, com a inexistência de fundos. O autor careceria de demonstrar, não só que o cheque não foi pago, como ainda que, não fora a conduta ilícita do banco, obteria o seu pagamento.




11 . No supra referido Acórdão Uniformizador de 28.2.2008, escreveu-se a dado passo:


“De facto, um banco que recusa o pagamento dum cheque revogado determina que, segundo as regras da experiência e a partir das circunstâncias do caso, o tomador se veja privado do respectivo montante. Da revogação resulta normalmente o afastamento do pagamento voluntário por parte do sacador e é utópico presumir-se que este disponha de outros bens acessíveis que garantam solvabilidade (se a ordem de revogação visa evitar o pagamento de um cheque validamente emitido e detido pelo tomador, naturalmente que o sacador procurará evitar outras vias de cobrança, designadamente a executiva).


Temos, então, que o banco é, em princípio, responsável pelo pagamento ao tomador de uma indemnização correspondente ao valor dos cheques ou, pelo menos, ao valor do prejuízo resultante do seu não pagamento, se se entender que o mesmo não é idêntico ao valor dos cheques não pagos.


Podia dizer-se, em contrário do supra exposto que não se verificaria o nexo causal entre o dano e o facto culposo se a conta sacada não se encontrasse provisionada quando os cheques foram apresentados a pagamento.


Porém, a ser assim, o réu teria de recusar o seu pagamento com tal fundamento, uma vez que do contrato de cheque resulta apenas para o banco a obrigação de pagar cheques regularmente emitidos e desde que a conta se encontre provisionada.


Mas, numa situação idêntica à dos autos, o banco ao aceitar ilicitamente a revogação dos cheques (uma vez que apresentado a pagamento no prazo legal) impediria que se verificasse o facto que implicava a obrigação de notificação do sacador para regularizar a situação dentro dos trinta dias referidos no art. 1.º do DL n.º 316/97 e comunicação ao Banco de Portugal, o que, na prática impediria o portador de usar um meio de pressão sobre o devedor que a lei lhe confere, sendo utópico presumir que este disponha de património que garanta solvabilidade.


Aliás, a falta de provisão na data da apresentação a pagamento de cada um dos cheques não é equivalente a falta absoluta de provisão. Se o cheque apresentado a pagamento fosse recusado por falta de provisão, nada nos diz que o cheque não pudesse ser novamente apresentado a pagamento e obtivesse provisão.” 


Este aresto teve anotação favorável de Paulo Olavo Cunha no n.º 25 dos Cadernos de Direito Privado.




12 . No Acórdão proferido pelo plenário das Secções Criminais em 30.11.2006, publicado na I Série do Diário da República de 14.2.1007, fixou-se jurisprudência como segue:


Integra o conceito de “prejuízo patrimonial” a que se reporta o n.º1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28.12, o não recebimento, para si ou para terceiro, pelo portador do cheque, aquando da sua apresentação a pagamento, do montante devido correspondente à obrigação subjacente relativamente à qual o cheque constituía meio de pagamento.


Trata-se duma fixação jurisprudencial relativa ao crime de emissão de cheque sem provisão e sempre seria discutível a extensão a questões civis do fixado pelas secções criminais.

No entanto, tal não significa que, nas decisões civis, se ignore totalmente a jurisprudência assim fixada. A imposição do n.º 3 do artigo 8.º do Código Civil deverá estar sempre presente, para além da ideia de que mal se compreenderia que uma dada realidade integrasse um dos elementos do crime de emissão de cheque sem provisão e fosse inócua (por si, sem demonstração de mais factos) no plano do direito civil.

E tanto assim é que, no Acórdão da 2.ª Secção Cível deste Tribunal, de 8.5.2013, processo n.º 1122/10.5TVLSB.L1.S1, com texto disponível em www.dgsi.pt, se considerou, expressamente, o dano derivado do não pagamento do cheque, nos termos desta fixação jurisprudencial.    

Em apreciação deste Acórdão Uniformizador de 30.11.2006, escreveu, aliás, Paulo Olavo Cunha:

“Ligando a ideia de prejuízo, no crime de emissão de cheque sem provisão, ao não pagamento da quantia inscrita no cheque, na linha do Assento 6/93, de 27 de Janeiro de 1993 (António de Sousa Guedes) e do Acórdão do STJ de 4.6.2003 (Henriques Gaspar/Proc. n.º 03P1528, www.dgsi.pt ) – para além de outro aresto, Ac. do STJ de 12 de Maio de 2005, que não está publicado –, o Acórdão enquadra devidamente a questão, considerando que o prejuízo deve resultar do não pagamento da obrigação subjacente à emissão do cheque.” (Cheque e Convenção de Cheque, 556, nota de pé de página).   


Em reforço da ideia de que o dano emerge logo da frustração do recebimento do cheque, cremos ainda podermo-nos apoiar, no que refere Evaristo Mendes (Direito e Justiça, XIII, Tomo 1, 199:

“O cheque é chamado a desempenhar e cumpre efetivamente uma importante função sócio-económica de meio de pagamento, designadamente no âmbito do tráfico jurídico de bens e serviços. Mais especificamente, enquanto a letra de câmbio continua ainda hoje, no comércio interno, a servir tipicamente de instrumento de crédito e de pagamento diferido (embora também possa funcionar como meio de pagamento a pronto), o título é essencialmente tutelado pela lei enquanto meio de pagamento a pronto ou imediato (cfr. maxime, os artigos 28.º da LUCH e 11.º, n.º3 do Decreto-lei n.º 454/91).”

E, mais adiante:

“Para que o cheque possa desempenhar convenientemente essa função sócio-económica principal e típica de meio de pagamento …, juridicamente reconhecida como merecedora de especial proteção, mostra-se crucial que o beneficiário da ordem de pagamento nele inscrita possa fundamentalmente confiar no recebimento (ou creditação) pontual do seu valor, mediante a simples apresentação do título ao destinatário dessa ordem.”

E, bem assim, em Grumecindo Bairradas, O Cheque sem Provisão, Regime Jurídico Civil e Penal, 156:

“A falta de pagamento do cheque significa, como é evidente, uma ofensa ao direito do portador e um prejuízo patrimonial.


Nesta medida, e ao contrário do que a uma primeira leitura pode parecer, não só não é chocante como faz mesmo todo o sentido, a afirmação de que a falta de pagamento do cheque envolve, por definição, um prejuízo patrimonial.”

Concluindo a páginas 161:

“Por todas estas razões, o conceito de “prejuízo patrimonial” deve ser entendido como o efeito negativo verificado no património do tomador do cheque, nas suas diversas formas – como diminuição do activo ou aumento do passivo, bem como no não aumento do activo e na não diminuição do passivo – causado directamente pela emissão e a falta de pagamento do cheque.”



Na verdade, o entendimento de que o que pretende ser ressarcido tem de demonstrar, em sede de dano, que, para além da recusa de pagamento do cheque, teve prejuízos, tem ínsita a ideia de que o cheque pode ser ou não ser pago, quando o pagamento está inerente a este título. O não pagamento constitui uma vicissitude situada, com ressalvas que aqui não importam, em terreno ilícito, a qual se afasta da normalidade que o intérprete deve ter em conta.

Acresce que, cada vez mais o numerário desempenha um papel secundário como meio de pagamento, valendo outras formas cuja credibilidade tem de ser particularmente cara ao cidadão comum. O dinheiro é cada vez mais uma realidade virtual, constituindo mesmo a tradução em numerário, em certos domínios da vida económica, uma raridade.



Do que vem sendo sustentado resulta que estamos com a jurisprudência deste Tribunal que segue o entendimento de que a frustração do recebimento do cheque já constitui um dano, ficando, por aqui logo preenchido este pressuposto da responsabilidade civil. Para além do Acórdão de 8.5.2013, supra citado, temos os de 15.3.2005, 10.5.2012, 21.3.2013 e 26.9.2013, processos n.ºs 05A380, 272/08 TVPRT.P3.S1, 4591/06.4TBVNG.P1.S1 e 1937/08.4TBOAZ.P3.S1, respectivamente, todos com texto disponível em www.dgsi.pt.




13 . De qualquer modo, no caso presente, ficou provado que:


“2.22. Para fazer face a dificuldades financeiras, a autora teve de recorrer a crédito bancário no valor de € 300.000,00. (resposta ao quesito 19º)

2.23. O crédito aludido em 2.22. teve em vista o pagamento de salários, pagamentos a fornecedores, pagamento de matérias-primas – combustíveis, sendo que com a devolução dos cheques aludidos em 2.1.-A) a N), a autora não contou com aquele montante, nem dele pode dispor. (resposta aos quesitos 20º e 21º).”

O que sempre integraria um dano, ainda que imperfeitamente caracterizado.

Só que, na construção que acolhemos, não tendo ficado demonstrado que não tiveram lugar outros danos, o prejuízo terá de se reportar ao valor dos cheques não recebidos.




14 . Conceptualmente demonstrado o dano para estes efeitos, há ainda que atentar no pressuposto do nexo de causalidade.


Provou-se que a conta bancária, à data em que foi apresentado a pagamento cada um dos cheques aludidos em 2.1- A a N, não continha fundos bastantes para permitir o respectivo pagamento, pelo que os mesmos sempre seriam devolvidos por falta de provisão.


A devolução por falta de provisão poderia vir a ser, de certo modo, colmatada com pagamento posterior, nomeadamente como resultado da notificação imposta à instituição de crédito pelo n.º 1 do artigo 1.º - A do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28.12.

Todavia, se, no entendimento que vimos sustentando, a simples devolução sem pagamento constitui já um dano, também temos de aceitar que, apesar das possibilidades de pagamento posterior, a insuficiência de fundos e consequente devolução, constitui uma causa virtual desse mesmo dano. Não fora devolução por “Cheque revogado, justa causa” o dano teria lugar com outro fundamento.




15 . Aqui só nos interessa saber se a causa virtual afasta ou, de outro modo atinge, a relação de causalidade real. Estamos, pois, perante, a figura da relevância negativa da causa virtual.

O Código Civil contém várias disposições que atribuem tal relevância no sentido de excluir a responsabilidade civil – artigos 491.º, 492.º, 493.º, n.º1, 616.º, n.º2 e 807.º.

Mas a preocupação do legislador em fixar tal regime para os casos que ali tutela surge-nos muito melhor compreendida se encararmos este como ressalva relativamente ao regime geral.

O regime geral emerge logo do artigo 483.º, n.º1, ao reportar-se aos “danos resultantes da violação”, continuando no artigo 563.º, ao dispor que a “obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.”

Traça a lei, efetivamente, um iter causal todo assente no que se verificou ou provavelmente verificaria, não fazendo intervir a relevância do que aconteceria, não fora o ato lesivo.

Assim, no plano geral onde se integra o nosso caso, a causa virtual não afeta a relação de causalidade real.

Sendo este o entendimento do comum dos autores – Menezes Leitão, Direito das Obrigações, I, 345, Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, II, Direito das Obrigações, Tomo III, 744, Almeida Costa, Direito das Obrigações, 6.ª ed. 660, Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7.ª ed. 417 e Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, I, 478.




17 . Face a todo o exposto, concede-se a revista, condenando-se a ré no pedido.

Custas aqui e nas instâncias por ela.


Lisboa, 20.11.2014

João Bernardo

Oliveira Vasconcelos

Serra Baptista