Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
309/20.7T8PDL.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
DANOS PATRIMONIAIS
DANO BIOLÓGICO
DANOS FUTUROS
PERDA DE CAPACIDADE DE GANHO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
EQUIDADE
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
INCAPACIDADE PERMANENTE PARCIAL
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 03/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :

I - A indemnização fixada de acordo com a equidade, nos termos do artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil, só é passível de censura se não se contiver dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que o legitima, tendo por referência a evolução da jurisprudência e a observância do princípio da igualdade no tratamento prudencial de situações similares (cfr. Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 31-01-2023, proc. n.º 795/20.5T8LRA.C1.S1).

II - Ora, tendo em conta a idade do lesado, 20 anos à data do acidente, a esperança média de vida, o défice permanente da integridade físico-psíquica de 14 pontos, bem como a permanência e irreversibilidade das dores físicas que sofrerá ao longo da sua vida, com impacto no esforço exigível para a atividade profissional e na diminuição da capacidade de ganho, não se afigura exagerado ou desproporcional o montante de 80.000 euros, arbitrado pelo Tribunal da Relação, para compensação do dano patrimonial futuro.

III – Não se verifica qualquer violação do princípio da igualdade e do artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil, relativamente aos casos que a recorrente cita nas suas alegações, em que são atribuídas indemnizações menores pelo dano biológico.

IV – Tal diferenciação justifica-se pela mudança da conjuntura económico-social, marcada atualmente por altas taxas de inflação e pela menor rentabilidade do dinheiro, bem como por uma tendência natural para as indemnizações subirem progressivamente ao longo dos anos, por força da crescente valorização da dignidade humana e dos bens jurídicos pessoais na consciência social.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – Relatório

1. AA demandou Lusitânia - Companhia de Seguros, S.A, pedindo que a condenação da ré no pagamento da quantia de € 249.075,28, a saber:

- € 120.000,00, a título de danos não patrimoniais

- €119.611,20, a título de danos futuros

- € 9.464,08 a título de danos patrimoniais - despesas dos tratamentos ordotônticos pagos pelo autor, por não autorizados pela ré.

Alegou, em síntese que, em 13/12/2017, foi vítima de um acidente de viação, com culpa exclusiva do veículo seguro na ré, tendo sofrido, como consequência do acidente danos patrimoniais e não patrimoniais.

Na contestação, a Seguradora, aceitou a dinâmica do acidente, as fraturas sofridas pelo autor (fémur, úmero e face), a data da alta clínica (14/3/19), a incapacidade permanente parcial de 21 pontos e o quantum doloris de 6/7 graus, no mais impugnou o alegado pelo autor, mormente o valor peticionado quanto aos danos (patrimoniais e não patrimoniais) por exagerados, bem como a necessidade do tratamento ortodôntico, concluindo pela improcedência da ação e absolvição do pedido - fls. 40 e sgs.

Foi dispensada a audiência prévia, proferido despacho saneador e elencados os temas de prova - fls. 66 e sgs.

Na data de audiência o autor ampliou o pedido - € 3.002,10 - relativo a despesas realizadas após a propositura da ação, juntando aos autos os documentos comprovativos - fls. 126 v.

A ampliação foi aceite - fls. 126 v.

2. Após julgamento foi prolatada sentença que, julgando a ação parcialmente procedente, condenou a ré a pagar ao autor as seguintes quantias:

- € 72.000,00, a título de danos patrimoniais futuros, acrescida dos juros de mora, à taxa legal prevista para os juros civis.

- € 9.464,08, a título de danos patrimoniais, acrescida dos juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

- € 1.720,76, a título de danos patrimoniais, acrescida dos juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

- € 50.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida dos juros de mora, à taxa legal prevista para os juros civis.

Absolvendo a ré, no mais peticionado - fls. 126 e sgs.

3. Inconformados, apelaram a seguradora e o autor, tendo o Tribunal da Relação decidido o seguinte:

«Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação da seguradora improcedente e parcialmente procedente a apelação do autor e, consequentemente, revoga-se a sentença no segmento relativo ao quantum da indemnização, a título de dano futuro, fixando-se o seu montante, em 80.000,00 (oitenta mil euro), confirmando-se no mais a sentença.

Recurso da seguradora - Custas pela apelante/seguradora.

Recurso do autor - Custas na proporção do vencimento por apelante e apelado».

4. LUSITÂNIA – COMPANHIA DE SEGUROS S.A., notificada do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, e não se conformando com o teor do mesmo, veio, nos termos do disposto nos artigos 671.º n.º 1, 674.º, n.º 1 alínea a), 675.º, n.º 1, 676.º, todos do Código de Processo Civil (doravante CPC), interpor Recurso de Revista, no qual formulou as seguintes conclusões:

«1.º O cerne do presente recurso tem  que ver unicamente com os montantes indemnizatórios atribuídos ao Autor, ora Recorrido, a título de dano patrimonial futuro e a título de danos não patrimoniais.

2.ºA ora Recorrente, salvo o devido respeito, não pode concordar com o decidido pelo douto Acórdão no que diz respeito aos referidos montantes indemnizatórios e entende que existiu clara violação da lei substantiva, assim como, erro de aplicação e determinação da norma aplicável, para efeitos do disposto no artigo 674.º n.º 1 alínea a) do CPC.

3.º Salvo melhor opinião, a Veneranda Relação, com o devido respeito, que é muito, não cuidou de fazer uma correta interpretação e consequente aplicação do disposto nos artigos 483.º, n.º 1; 562.º; 563.º; 564.º; e n.º 3 do artigo 566.º do CC.

4.º De facto, no entendimento da ora Recorrente, se o montante de € 72.000,00 arbitrado pelo Tribunal de 1.ª Instância a título de dano patrimonial futuro já não fazia sentido com a matéria considerada como provada e não provada pela douta Sentença recorrida, agora, com a eliminação pela Veneranda Relação do facto n.º 42 do elenco dos factos provados e a alteração da formulação do facto provado n.º 55, ainda faz menos sentido.

5.º É certo que ficou provado que o Autor, ora Recorrido, ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 14 pontos, contudo, não resultou provado que tal défice fosse impeditivo ou limitasse, de alguma forma, a potencial atividade profissional do Autor.

6.º Posto isto, o défice atribuído ao Autor, ora Recorrido, diz única e exclusivamente respeito à incapacidade geral (fisiológica ou funcional), ou seja, às tarefas comuns e indiferenciadas da vida corrente e que interessa a todos os indivíduos, independentemente da sua idade ou profissão, dado que o Autor não logrou demonstrar que tivesse ficado impossibilitado de trabalhar.

7.º Relembramos que resultou provado que o Autor ficou a padecer de uma incapacidade permanente de 14 pontos, que tinha 20 anos à data do acidente, e que, considerando a sua potencial atividade (operador de câmara), tal atividade poderá ser exercida com eventuais dificuldades em caminhar em longas distâncias com material pesado e na realização de carga com o membro superior esquerdo (lado passivo).

8.º No entanto, nada mais se provou relativamente a eventuais esforços acrescidos ou limitações para o exercício da sua potencial profissão.

9.º Assim, urge reduzir a indemnização atribuída ao Autor, ora Recorrido, a título de dano patrimonial futuro, pelo facto de não ter existido uma perda efetiva de rendimento do lesado, devendo o valor a atribuir ao Autor, ora Recorrido, ter por base apenas e só a repercussão das lesões na sua vida quotidiana e já não na sua vida profissional.

10.º De facto, o ressarcimento dos danos futuros depende da sua previsibilidade e  determinabilidade, conforme disposto no artigo 564.º, n.º 2 do CC. Sendo certo que, os danos futuros previsíveis, a que a lei se reporta, são essencialmente os certos ou suficientemente previsíveis como é o caso, por exemplo, da perda ou diminuição da capacidade produtiva de quem trabalha e, consequentemente, de auferir o rendimento inerente por virtude de lesão corporal.

11.º O que, no caso do ora Recorrido não se verifica.

12.º É verdade que este Digníssimo Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que, “Consideram-se reparáveis como danos patrimoniais as consequências danosas resultantes da incapacidade geral permanente (ou dano biológico), ainda que esta incapacidade não tenha tido repercussão direta no exercício da profissão habitual. Considera-se ainda que o aumento da penosidade e esforço pode ser atendido nesse mesmo âmbito (danos patrimoniais) – e não apenas no âmbito dos danos não patrimoniais –, desde que seja provado que tal aumento de penosidade e esforço tem como consequência provável a redução da capacidade genérica de obtenção de proventos, no exercício de atividade profissional ou de outras atividades económicas.” – cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 2028/12.9TBVCT.G1.S1 de 25-05-2017.

13.º Sucede que, in casu, não resultou provado que o referido aumento de penosidade e esforço tenha como consequência provável a redução da capacidade genérica de obtenção de proventos, no exercício de atividade profissional ou de outras atividades económicas.

14.º Efetivamente, no caso vertente, estamos perante um défice funcional de utilização do corpo nas diversas atividades do dia-a-dia, independentemente da repercussão na capacidade de ganho. É uma limitação funcional que afeta as atividades gerais da vida, tornando-a mais difícil, uma vez que se torna acrescido o esforço para a obtenção de objetivos pretendidos, que antes se conseguiam de forma mais facilitada.

15.º Assim, reitera-se, o valor a arbitrar ao ora Recorrido a título de dano patrimonial futuro apenas poderá ter por base a repercussão das lesões na sua vida quotidiana e já não na sua vida profissional.

16.º Sendo certo que, no apuramento do valor indemnizatório a arbitrar ao ora Recorrido deve ter-se em consideração os fatores elencados pela Jurisprudência, designadamente, (i) a idade do lesado; (ii) o seu grau de incapacidade geral permanente; (iii) as suas potencialidades de aumento de ganho em profissão ou atividade económica alternativa, aferidas, em regra pelas suas qualificações; e (iv) outros que relevem casuisticamente – conforme Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 37/13.0TBMTR.G1.S1 de 14/12/2016.

17.ºAcresce que, deve ainda atender-se também a valores jurisprudenciais que têm vindo a ser estabelecidos. Nesse sentido, veja-se, a título de exemplo, os seguintes Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça:

- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 184/04.9TBARC.P2.S1, de 29/03/2012 – em que foi atribuída uma indemnização de € 40.000,00 a título de dano biológico, a uma lesada com 35 anos e com um grau de desvalorização de 30%;

- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 1364/06.8TBBCL.G1.S2, de 16/06/2016 – em que foi atribuída uma indemnização de € 25.000,00 a título de dano biológico, a uma lesada com 40 anos e com uma incapacidade de 6%;

- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 7614/15.2T8GMR.G1.S1., de 29/10/2019 – em que ao lesado, com 34 anos, foi atribuído uma indemnização no valor de € 36.000,00, para compensar o défice funcional de 16 pontos que ficou a padecer na sequência das lesões sofridas, sem rebate profissional mas com a subsequente sobrecarga de esforço no desempenho regular da sua atividade profissional;

- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 203/14.0T2AVR.P1.S1., de 07/03/2019 – no qual foi atribuída uma indemnização por dano biológico no valor de € 40.000,00, a uma lesada com 35 anos, com uma incapacidade avaliável em 19 pontos, compatíveis com o exercício da sua atividade profissional mas implicando esforços suplementares.

18.º Ora, conforme facilmente se constata, a indemnização atribuída ao ora Recorrido pelo Tribunal a quo foi claramente superior à atribuída nos dois últimos Acórdãos anteriormente mencionados, o que dificilmente se poderá compreender.

19.º Tanto mais que, no caso dos referidos Acórdãos havia resultado provada a verificação de esforços suplementares e sobrecarga de esforço para o exercício da profissão dos lesados – o que não se verifica nos presentes autos (até porque inexiste matéria de facto provada que permita extrair tais conclusões).

20.ºSendo certo que, nos termos do disposto no artigo 8.º do CC, a justiça do caso concreto há de procurar-se também recorrendo a casos de natureza semelhante que já tenham sido apreciados pelos Tribunais.

21.º Face ao exposto, e sob pena de clara violação do princípio da igualdade, deverá o valor atribuído a título de dano biológico ao Autor, ora Recorrido, ser reduzido, sob pena de claro favorecimento do ora Recorrido perante os lesados dos processos supra identificados.

22.º De facto, considerando-se todos os fatores relevante para o apuramento do quantum indemnizatório em apreço, nomeadamente, idade, lesões, esperança de vida e o facto de não ter havido efetiva perda de retribuição, conjugados num juízo de equidade ou justiça no caso concreto, tendo em conta um esforço de uniformidade de critérios, baseado na Jurisprudência conhecida, considera a ora Recorrente adequada a indemnização por dano patrimonial futuro em montante não superior a €35.000,00, o que desde já se alega e requer para os devidos e legais efeitos, sob pena de, a manter-se o valor atribuído pelo Acórdão ora recorrido, manter-se a errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 483.º, n.º 1; 562.º; 563.º; 564.º; e 566.º, n.º 3, todos do CC.

23.º Pelo exposto, deverá o valor atribuído a título de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica do Autor, ora Recorrido, ser reduzido para um montante consentâneo com o quadro fáctico apurado, nunca superior a € 35.000,00.

24.º Ademais, no que concerne ao valor arbitrado a título de danos não patrimoniais, entende a ora Recorrente que tendo existido alteração da matéria de facto considerada como provada e não provada, a fundamentação do douto Acórdão a este respeito é essencialmente diferente da decisão proferida pela 1.ª Instância, motivo pelo qual este segmento decisório ainda é, também ele, recorrível.

25.º E adotando o entendimento seguido pelo douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, no processo n.º 773/07.0TBALR.E1.S1, disponível in www.dgsi.pt: “considera-se que a dupla conformidade se encontra descaracterizada pela existência de fundamentação essencialmente diferente (art. 671º, nº 3, do CPC) a respeito dos critérios adotados para fixar a indemnização”.

26.º Não existe o obstáculo da dupla conforme, quanto à ora Recorrente, quando a Veneranda Relação, apesar de ter mantido a indemnização fixada pelo Tribunal de Primeira instância, a título de danos não patrimoniais, adotou fundamentação essencialmente diferente no que respeita aos critérios seguidos para fixar essa indemnização, sendo, como tal, o recurso de revista admissível (art. 671.º, n.º 3, do CPC).

27.ºA Recorrente não rejeita que o Autor tenha sofrido danos não patrimoniais que, atenta a sua gravidade, são merecedores da tutela do Direito, ao abrigo do artigo 496.º, n.º 1 do CC.

28.º Sucede que, a ora Recorrente não pode (de todo) aceitar é o valor de € 50.000,00 atribuído ao Autor a título de danos não patrimoniais, uma vez que o mesmo afigura-se de manifestamente excessivo face aos danos concretamente sofridos pelo Autor e não tem sustentação na prova que o Tribunal considerou para proferir tal decisão.

29.º De facto, os danos não patrimoniais (à semelhança dos danos patrimoniais) não se presumem, devendo resultar de factos materiais devidamente alegados e provados em juízo, dos quais se possa retirar o “sofrimento”, a “angústia” ou o “desespero” habitualmente associados ao dano “moral”.

30.ºE, se alegados e provados, a sua satisfação ou indemnização deverá ser calculada, em qualquer caso (haja dolo ou mera culpa do lesante), segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado e demais circunstâncias do caso (sendo a referência, feita na parte final do artigo 494.º do Código Civil, entendida como indicativa de um numerus apertus – neste sentido, ver Rui Rangel, A Reparação dos Danos na Responsabilidade Civil: um olhar sobre a jurisprudência, Almedina, 2002, p. 31), a que acresce a necessidade de comparação com situações análogas equacionados noutras decisões judiciais (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26-06-1991; Relator: Tato Marinho).

31.º Ora, julgar segundo a equidade significa que o Tribunal deve atender à necessidade de adequada compensação da vítima sem, com isso, violar o princípio constitucional e legalmente acolhido da proporcionalidade, à luz do qual a restrição, indemnização ou sanção operada deve ser a estritamente necessária (e apenas essa) à salvaguarda dos direitos e/ou interesses ofendidos.

32.ºPara esse efeito, e continuando a acompanhar a jurisprudência, o julgador deverá ter em conta “todas as regras de boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida” e servir-se dos padrões usuais de indemnização judicialmente estabelecidos para contornar, na medida do possível, a “dificuldade e delicadeza da operação de quantificação dos danos não patrimoniais” (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12-04-2011; Relator: Fonte Ramos).

33.º Neste sentido, veja-se,a título meramente exemplificativo, os seguintes Acórdãos (entre muitos outros encontrados):

Acórdão do STJ de 30/09/2010 (processo 935/06.7TBPTL.G1.S1): relativamente a uma jovem de 17 anos, que foi atropelada, ficando afetada de uma IPP de 20%, considerou-se adequado, a título de indemnização por danos não patrimoniais, o montante de € 25.000,00;

Acórdão da Relação de Coimbra, de 06/03/2012 (processo 1679/04.0TBPBL.C1); Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 05/02/2004;

34.º Em face do exposto, a compensação a atribuir ao Autor, ora Recorrido, por danos não patrimoniais terá de ser consideravelmente menor à atribuída pelas Instâncias anteriores.

35.º Desde logo porque, o valor indemnizatório atribuído, quando comparado com as situações dos Acórdãos supra referidos, afigura-se manifestamente injusto e desigual. Veja-se que, muitos dos casos supra referidos são, inclusivamente, mais gravosos do que o do ora Recorrido. Pelo que, o valor a atribuir ao ora Recorrido tem de ser consideravelmente inferior, porquanto, são menores os seus danos.

36.º Considera, de facto, a ora Recorrente que, ao decidir do modo supra mencionado, o douto Tribunal da Relação, violou as normas legais previstas nos artigos 483.º, 494.º, 496.º, 506.º, 562.º, 563.º, 564.º e 566.º do CC, motivo pelo qual deve ser revogado nos termos supra requeridos».

5. AA, notificado da interpo­sição de Recurso de Revista por parte da Lusitânia - Companhia de Seguros S.A., vem contra-alegar, pugnando pela não admissibilidade do recurso e pela manutenção do decidido, nos seguintes termos:

«I. O douto acórdão ora recorrido não merece qualquer tipo de censura porquanto cumpre a Lei, está devidamente fundamentado, não tem contradições, erros ou insuficiências, que

mereçam qualquer tipo de reparo, não é passível de novo recurso, nomeadamente o de Revista apresentado, pelo que, o recurso a que ora se responde carece em absoluto de fundamento.

Contudo, e por dever de ofício sempre se dirá que sempre lhe falharia razão porquanto:

II. a recorrente estriba a fundamentação da legalidade do seu recurso na inexistência de dupla conforme. Fá-lo, sem, desde logo, destrinçar, ou pelo menos sem o fazer com a minúcia que lhe seria exigível, qual ou quais os segmentos da decisão ora em crise que são recorríveis por não estarem preenchidos os ante referidos pressupostos da dupla conforme.

III. A recorrente refere estar a recorrer dos montantes indemnizatórios atribuídos a título de danos patrimoniais futuros e a titulo de danos não patrimoniais, mas a verdade é que dúvidas não há de que, pelo menos, quanto ao segmento referente a danos não patrimoniais, há dupla conforme.

IV. Tal acontece, não só pelo facto do Venerando Tribunal da Relação ter decido manter “tout court” a decisão da 1.ª instância, como por ter decidido fazê-lo sem proceder a qualquer alteração à matéria de facto, à fundamentação e, por maioria de razão, ao montante atribuído.

V. No caso particular dos danos não patrimoniais, na esteira do já muitas vezes decidido pelo Venerando STJ e também do preconizado na obra do Venerando Juiz Conselheiro Abrantes Geraldes, “Recursos do Novo Código de Processo Civil”, 5.ª edição, pág..370, “Deste modo, se quanto a determinado segmento se verificar a plena confirmação do resultado declarado na 1.ª instância, sem qualquer voto de vencido e com fundamentação essencialmente idêntica, fica eliminada, nessa parte, a interposição de recurso “normal” de revista””, isto é, pela não aceitação do recurso a que ora se contra alega por existência de dupla conforme, o que, desde já, se requer.

VI. Sempre se dirá que o montante atribuído a título de indemnização por danos não patrimoniais ficou aquém não só do pedido como dos danos efectivamente sofridos pelo agora recorrido e ainda mais da intensidade dos mesmos. Atente-se, desde logo, no quantum doloris de 6 em 7. Mas atente-se também às intervenções cirúrgicas, que foram 3, e à forma como estas decorreram, isto sem olvidar a enorme ansiedade porque passou o recorrido, quer aquando da intervenção cirúrgica com anestesia epidural, sujeito a transfusão sanguínea, em que assistiu à intervenção por estar acordado (factos provados 11,12 e 13), quer quando os médicos aventaram a possibilidade de ficar com sequelas permanentes na face por ter de ser submetido a uma intervenção em que lhe seria “descolada” a pele do rosto (facto provado 23). Acresce a tudo isto que o recorrido foi “preparado" 3 vezes (jejum e comprimidos) para realizar uma operação que foi adiada outras tantas vezes (facto provado 18). Imagine-se, por todos estes factos provados, aos vinte anos a angústia sentida!

VII. Já quanto ao segmento do recurso referente à indemnização atribuída a título de danos patrimoniais futuros também aqui deve capitular o recurso porque não houve, conforme infra se explanará, fundamentação essencialmente diferente nem voto de vencido. Facto que só por si levaria à não aceitação daquele pressuposto necessário ao recurso - inexistência de dupla conforme.

VIII. O ora recorrente lançou mão de uma alteração operada pela Veneranda Relação de Lisboa que entendeu dar como não provado o facto 42 do elenco dos factos provados e alterar a reformulação do facto provado 55, para nele incluir o essencial do vertido no anterior facto provado 42, para daí retirar que houve uma alteração essencial na fundamentação no, aliás, douto acórdão, respaldando assim a legalidade do recurso que agora se discute.

IX. Contudo, esta tentativa não pode senão conduzir ao fracasso porquanto não houve qualquer alteração quanto à essencialidade da matéria de facto provada que legitimasse como consequência decorrente o direito invocado pelo recorrente.

X. O facto 42 da sentença de 1.º instância dava como provado que: - "42. É que o curso profissional que frequenta, Técnico Multimédia, tem entre as suas principais saídas profissionais, a de operador de câmara, profissão essa que atendendo às limitações que resultaram do acidente (mormente à dificuldade de mobilidade do braço esquerdo, e dificuldade em andar longas distância com peso e a falta de sensibilidade nos dedos), será assaz difícil para o Autor prosseguir”. Passou a ser dado como não provado por conclusivo. Porém, o Venerando Tribunal da Relação reformulou o facto provado 55 de tal forma que este acolheu num seu segmento o essencial do anteriormente considerado provado no facto 42. “Na atribuição do parâmetro de dano na Repercussão Permanente na Actividade Profissional considerou-se ponderar a sua potencial actividade (operador de câmara), como podendo ser exercida com eventuais dificuldades em caminhar longas distância com material pesado e na realização de carga com o membro superior esquerdo (lado passivo)”.

XI. Conforme ante dito estamos perante fundamentação idêntica porquanto o “podendo ser exercida com eventuais dificuldades”, constante do facto provado 42, e o “será assaz difícil para o autor prosseguir”, constante do 55, não pode ser entendido como coisa diversa, sob pena de se fazer entrar pela janela o que não coube pela porta. Ainda menos, ser diferença suficiente para colocar em causa uma decisão tomada em 1.º instância, alicerçada no princípio da imediação, onde a meritíssima juiz pôde em confronto com os elementos de prova, de onde sobressaí as declarações de parte do ora recorrido, decidir como decidiu. Decisão essa posteriormente sindicada pela Veneranda 8.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa que a considerou amplamente bem decidida, atribuindo ainda um acréscimo indemnizatório.

XII. Pelo qual inexiste qualquer fundamento legal, para vir requerer novamente reapreciação por V. Excias. Venerandos Juízes Conselheiros, daquilo que já foi pacifica e duplamente apreciado e mandado por duas instâncias judiciais diferentes, isto porque, e como está bom de ver, não há da parte do recorrente nenhuma questão de legalidade onde radique o seu inconformismo devendo-se este apenas e verdadeiramente ao entender excessivo o “quantum indemnizatório”. Sendo que isso, não é critério.

Termos em que a presente contra-alegação deve ser admitida, e considerada procedente por provada, nomeadamente na invocação de que o Acórdão do Venerando Tribunal da Relação ora em crise não é passível de recurso, como é de JUSTIÇA».

6. A Relatora a quem o processo foi distribuído notificou as partes, para, querendo, se pronunciarem, ao abrigo do artigo 655.º do CPC, sobre a questão prévia da admissibilidade do recurso por dupla conformidade.

7. No termo do prazo, decidiu a Relatora não admitir o recurso da seguradora, no que diz respeito à indemnização por danos não patrimoniais, por se verificar uma situação de dupla conformidade parcial, prosseguindo o processo para revisão do acórdão da Relação no que diz respeito aos danos patrimoniais futuros.

8. Foi este o teor do despacho:

«Ouvida a recorrente sobre a questão da dupla conformidade como obstáculo ao recurso de revista, decide-se que dada a segmentação dos montantes indemnizatórios – danos patrimoniais futuros e danos não patrimoniais – no pedido do autor, no dispositivo das decisões e na respetiva fundamentação – verifica-se dupla conforme relativamente ao quantum dos danos não patrimoniais, que ambas as instâncias valoraram em 50.000,00 euros.

A alegação de fundamentação essencialmente diversa não colhe, uma vez que ambas as instâncias basearam a sua decisão na equidade, na situação económica do lesado, no grau de culpa do lesante e nas circunstâncias do caso (artigos 496.º, n.º 1 e n.º 4 e 494.º, ambos do Código Civil), aferindo a esta luz a gravidade de factos substancialmente idênticos, na medida em que as modificações a que procedeu o acórdão recorrido na matéria de facto assumiram uma natureza meramente acessória ou secundária, sem relevo para a solução do caso e não quebrando, portanto, a dupla conformidade.

Assim, não se admite o recurso de revista da ré quanto ao segmento relativo ao montante dos danos não patrimoniais.»

9. O thema decidendum é, pois, o valor da indemnização por danos patrimoniais futuros, que a recorrente seguradora propõe que seja reduzida para 35.000 euros, em vez dos 80.000,00 euros arbitrados pelo acórdão recorrido.

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A – Os factos

O Tribunal da Relação, após o exercício do seu poder modificativo dos factos, fixou a seguinte matéria de facto provada e não provada:

1 - No dia 13 de Dezembro de 2017 pelas, 17h55m, o veículo conduzido pelo Autor, um motociclo, de matricula ..-..-ZT, circulava, na Rua ..., na faixa de rodagem direita, sentido norte-sul.

2 - Sendo que o veículo segurado da Ré, um veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula ..-JN-.., que antes se encontrava parado na parte direita daquela mesma faixa de rodagem, sentido norte-sul, na baía de estacionamento de viaturas, dali saiu invadindo inopinadamente a faixa de rodagem onde circulava o motociclo conduzido pelo Autor.

3 - Na verdade, o veículo segurado da Ré, fazia uma manobra, isto é, uma inversão de marcha, partindo daquela baía, pretendendo colocar-se de imediato em circulação na faixa de rodagem contrária, sentido sul-norte.

4 - Razão pela qual o embate se deu sensivelmente a metade da faixa de rodagem direita indo o motociclo embater a meio da viatura segurada pela Ré que no momento do embate estava em posição perpendicular ao sentido de marcha.

5 - Em resultado disso, o Autor embateu com o seu corpo no referido veículo tendo de seguida caído ao solo ficando com as lesões que infra se descreverão.

6 - Era dia, trata-se de uma via com cerca de 7,5 metros de largura em piso asfáltico, a visibilidade era boa e não chovia

7- O condutor do veículo segurado da Ré sabia, e não tinha como deixar de saber, que ao proceder daquela forma, sem se certificar que a sua manobra causava perigo aos utentes da via, não só infringia as regras estradais como colocava em causa a segurança de outros condutores, tendo mesmo assim decidido encetar aquela manobra, dando assim, por culpa exclusivamente sua, causa ao acidente.

8 - Do acidente resultaram politraumatismos para o Autor, nomeadamente: a) fractura dos ossos próprios do nariz e da lamina perpendicular do etmóide; b) fractura do prato cribiforme do etmóide no sentido transverso, paredes superiores, laterais externas dos seios maxilares bilateralmente e lateral interna à direita; c) fractura da porção frontal do zigomático à direita e fractura das apófises pterigoidas bilateralmente; d) opacificação dos seios perinasais e ar na cavidade orbitaria esquerda; e) fractura da parede medial da orbita esquerda; f) fractura diáfase no fémur direito (transversal 1/3 médio), e fractura ipsilateral da diálise úmero esquerdo; g) perda de 3 peças dentárias - n°s. 32,31 e41 e fractura do dente 21.

9 - Para o tratamento das lesões supra referidas o Autor foi sujeito a 3 (três) intervenções cirúrgicas: uma de ortopedia, no Hospital D..., outra maxilo-facial e outra ainda de ortopedia, ambas estas últimas realizadas no Hospital S..., em ....

10 - A 15 de Dezembro de 2017, o Autor foi submetido à intervenção cirúrgica no Hospital D..., em ..., nomeadamente à fractura diáfase no fémur direito (transversal 1/3 médio), e fractura ipsilateral da diálise úmero, posicionamento em dec. dorsal, abordagem trasnrotuliana, redução fechada e encavilhamento retrogrado rimado.

11- Esta operação foi realizada com anestesia epidural uma vez que as lesões do rosto do Autor impediam a sua realização com recurso a anestesia geral.

12- O Autor foi sujeito a uma transfusão sanguínea no decurso da supra referida cirurgia.

13- Nessa sequência, o Autor experimentou períodos de grande ansiedade e medo uma vez que "assistiu" a toda a intervenção, ouvindo os sons dos materiais a impactarem no seu corpo (nomeadamente o martelar do encavilhamento).

14 -  Após esta intervenção cirúrgica, mais precisamente, a 20 de Dezembro de 2017, o Autor foi transferido para o Hospital S..., em ..., viagem aérea que fez em maca e algaliado.

15 - Essa viagem foi realizada com muita dificuldade, sentindo dor em virtude da algalia e de não poder mudar de posição.

16 - Entre o dia 21 de Dezembro e o dia 8 de Janeiro, o Autor esteve a aguardar tempo de bloco operatório para realizar nova intervenção cirúrgica (informaram-no que a equipa médica necessitaria de 6 a 9 horas de disponibilidade de bloco operatório).

17 - Assim, o Autor passou o Natal de 2017, a passagem de ano 2017/2018 e o seu aniversário (dia 28/12), em ..., hospitalizado, apenas na companhia da sua progenitora, situação que muito o entristeceu, experimentando sentimentos de revolta e de profunda solidão.

18 - Acresce a tudo isto que o AA foi "preparado" (jejum e comprimidos), 3 vezes para esta operação que foi adiada por outras tantas vezes, isto é 3.

19 - Factos também estes que causaram ao Autor grande ansiedade e tristeza.

20 - Sempre que a cirurgia era adiada o Autor sentia que teria que reviver todo aquele momento novamente sendo que tal significava o adiar do regresso a casa.

21 - Neste ínterim, o Autor viveu ainda momentos de grande ansiedade porquanto a equipa médica disse-lhe que ponderava "desprender" a pele da sua face para o operar o que traria certamente um elevado dano estético e risco de desfiguração permanente.

22 - O Autor, foi então finalmente submetido a novamintervenção cirúrgica, no serviço de cirurgia maxilo-facial, do Hospital S..., a 8 de Janeiro de 2018, cirurgia esta que durou cerca de 7 horas e na qual foram realizados os seguintes actos médicos: a) transposição submentoniana de tudo orotraqueal; b) colocação de barras vestibulares de Erich; c) abordagem vestibular superior, mediopalpebral bilateral e na cauda da sobrancelha direita; constataram-se focos de fractura em consolidação , sem mobilidade; d) osteologia dos focos de fractura, sem no entanto ser possível desimpactação do terço médio facial; e) osteotomia tipo Le Fort 1, desimpactação do terço médio com pinças de Rowe, IIMM após reprodução do articulado dentário; f) contenção por osteossíntese com placas Jeill 2.0 e 1.6 nos rebordos infra-orbitários bilateralmente, na região fronto-malar direita, no pé do malar bilateralmente e na região casomaxilar bilateralmenente; g) encerramento por planos.

23 - Numa primeira fase, em ..., o braço esquerdo (do ombro até à mão) foi imobilizado com recurso a gesso, porém, o Autor continuava a apresentar inúmeras queixas e após novos exames complementares de diagnóstico foi submetido, a 12 de Janeiro de 2018, a nova intervenção cirúrgica, desta feita no serviço de ortopedia do Hospital S..., em ..., com anestesia geral, para: a) fractura da diáfase do úmero esquerdo, cominutiva com mais de 4 semanas de evolução); b) decúbito ventral; c) via posterior com isolamento do nervo radial e vasos satélites; d) isolamento de fragmentos ósseos e remoção de calo fibrótico; e) redução aberta; f) fixação de fragmentos com fios K; g) osteossíntese com placa DCP de grandes fragmentos, larga, com parafusos 4.5 + parafuso compressivo extraplaca; h) encerramento por planos agrafes na pele.

25- O Autor sofreu de fortes dores pós-operatórias para as quais teve que tomar medicação.

26 - Para recuperação das lesões sofridas, o Autor realizou 125 sessões de fisioterapia, a princípio, naturalmente, muito dolorosas, entre o dia 1 de Março de 2018 e o dia 5 de Fevereiro de 2019.

27 - Esteve imobilizado até primeira de semana de Fevereiro quando iniciou a marcha com canadianas.

28 - O Autor ficou a padecer, de forma permanente e irreversível, de: a) limitação na extensão do cotovelo com menos 20° com flexão completa; b) Cicatriz operatória no braço esquerdo com 30 cm na face posterior; c) cicatriz no joelho direito; d) alteração na sensibilidade na face interna Dl e externa D2 da mão esquerda; d) impossibilidade de se colocar de joelhos (por sentir dor forte).

29 - Em função disso, o relatório médico de avaliação do dano corporal em direito civil efectuado pela seguradora, em 13.12.2017, atribuiu-lhe uma Incapacidade Permanente de 21 pontos em 100 e um quantum doloris, de 6 numa escala de 7.

30 - O mesmo relatório médico considerou que o Autor esteve 365 dias com incapacidade total geral, 30 referentes a internamento, 335 dias a repouso absoluto, 60 dias de incapacidade temporária parcial.

31 - A data dos factos o Autor tinha 20 anos.

32- O Autor gozava de boa saúde e não era portador de qualquer defeito físico.

33 -  O Autor era praticante de futebol, onde ocupava a posição de guarda-redes, frequentou a escola de futebol do ..., desde os 7 anos e mais tarde praticou futebol nos escalões dos iniciados aos juniores no Clube Desportivo e ....

34 - Nos últimos dois anos, o Autor tinha interrompido a prática de futebol federado mas continuava a jogar quer nos intervalos da escola quer fora desta nos campos disponíveis no concelho, nomeadamente nos ....

35 - Nestas partidas amadoras, o Autor convivia com os amigos gozando de momentos de confraternização e felicidade.

36- O Autor sente grande dor e frustração em virtude da limitação de que padece.

37- O Autor, em função das limitações decorrentes do acidente, ainda não terminou o estágio profissional integrado que estava a realizar na ..., na categoria de operador de câmara e técnico multimédia, com vista a terminar a sua formação profissional.

38 - Só agora, passados quase 4 anos sobre o acidente, está o Autor em condições de retomar o estágio integrado, finalizando-o.

39- O Autor na altura do acidente estava a frequentar o estágio integrado tendo em vista a obtenção da qualificação técnico profissional de técnico de multimédia.

40 - Formação esta que, conforme o supra dito, foi interrompida acidente descrito, adiando a entrada do Autor no mercado de trabalho


41 - Além disso, as limitações permanentes com que ficou o Autor terão doravante influência nas suas opções profissionais.

42 -  Facto eliminado pelo Tribunal da Relação de Lisboa

43 - Pois, a obtenção de um emprego estável e com vínculo duradoiro é um objectivo primordial do Autor, que tal como tantos jovens da sua idade, pretende emancipar-se dos seus progenitores,  prosseguir o seu projecto de vida, encontrando o seu próprio lar, constituindo família.

44 - O Autor tem como habilitações o 11.º ano de escolaridade, pois foi a formação profissional tendente à obtenção do grau equivalente ao 12° ano - nível 4, interrompida pelo acidente descrito.

45 - Sendo, até então pessoa saudável ainda com toda uma carreira profissional para desenvolver.

46 - Na altura dos factos, o Autor estava a estudar.

47 - O Autor aquando do acidente encontrava-se a fazer tratamento ortodôntico, utilizando correcções ortodôndicas, designadamente uma removível superior e outra amovível inferior.

48 - Na verdade, estava na fase final de um tratamento que vinha a realizar desde a adolescência na clínica ....

49 - E como causa do acidente resultou uma recidiva do alinhamento, assim como do restante grupo anterior-inferior.

50 - Apesar das inúmeras comunicações enviadas pelo Autor e pelo seu mandatário, a Ré não teve em conta a situação do Autor.

51 - Tendo considerado que o Autor deveria submeter-se a tratamento na sua rede de prestadores de cuidados.

52 - E que não teria direito a qualquer outro tratamento negando autorizar o tratamento ortodôntico, por considerar que aquelas lesões nada tinham que ver com o acidente.

53 - Para voltar a ficar na situação em que se encontrava antes do acidente teve o Autor que se submeter a novo tratamento.

54 - Que fez a expensas próprias tendo a sua progenitora que recorrer a um crédito pessoal no valor de € 6.500,00 no sentido de custear aquele tratamento que terá após juros um custo de € 9.464,08.


55 - A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 04.02.2020 (tendo em conta a data da alta clínica dos tratamentos médicos de Medicina Dentária).
O período de Défice Funcional Temporário Total é fixável no período de 36 dias.
O período de Défice Funcional Temporário Parcial é fixável no período de 748 dias.
O quantum doloris é fixável em 5/7.
O Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-psíquica é fixável em 14 pontos.
Na atribuição do parâmetro de dano na Repercussão Permanente na Actividade Profissional considerou-se ponderar a sua potencial actividade (operador de câmara), como podendo ser exercida com eventuais dificuldades em caminhar em longas distâncias com material pesado e na realização de carga com o membro superior esquerdo (lado passivo).
O Dano estético permanente é fixável em 3/7, tendo em conta as cicatrizes que apresenta no membro superior esquerdo e membro inferior direito.
A repercussão Permanente nas Actividades Desportivas e de Lazer é fixável no grau 2/7, tendo em conta que deixou de jogaram futebol, no Clube ..., onde efectuava treinos duas a três vezes por semana, por queixas a nível do joelho direito
(Facto modificado pelo Tribunal da Relação).

56 - O Autor suportou despesas de transporte (avião e táxi), alojamento, alimentação e farmácia e exames na sequência do acidente de que foi vítima, num valor global de 1.720,76 (mil, setecentos e vinte euros e setenta e seis cêntimos) e que ainda não foram pagas pela Ré.

Não se provou que:

a) Após a operação mencionada em 23), o Autor teve que permanecer no Hospital S..., em ..., até dia 20 do mesmo mês a aguardar viagem para ....

b) A dor mencionada em 15) foi mais intensa na viagem de ambulância entre o aeroporto e o Hospital S....

c) Desde 5 de Fevereiro de 2019, que o plano de tratamento está concluído.

d) O Autor ficou a padecer, de forma permanente e irreversível, de: hipersensibilidade no lábio superior à esquerda; cicatriz no pé e na face; Falta de força na mão e braço esquerdo.

e) E isto porque não o podendo interromper nem reiniciar a qualquer momento aguarda indicação da Escola.

f) O Autor ainda se encontra a estudar.

B – O Direito

1. A questão decidenda reside na determinação do montante indemnizatório a título de danos patrimoniais futuros a pagar pela Seguradora ao lesado, um jovem de 20 anos à data do acidente, que gozava de boa saúde e não era portador de qualquer defeito físico (factos provados n.ºs 31 e 32), e que ficou a padecer, em virtude do acidente, de um défice permanente da sua integridade físico-psíquica de 14 pontos.

Entende a seguradora que o montante de 80.000 euros é excessivo numa dupla dimensão: por um lado, não tem base factual uma vez que não se provou qualquer incapacidade para o exercício da atividade profissional, ou limitação nesta sede, mas apenas maior dificuldade ou esforço na realização de tarefas da vida corrente, independentemente da idade e da profissão do indivíduo; por outro lado, o valor arbitrado está muito acima de outros casos semelhantes na jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, citando vários acórdãos deste Supremo, violando o princípio da igualdade entre os sinistrados e o artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil, que ordena que nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.

Por seu turno, o recorrido, pugna pela manutenção do quantum indemnizatório, defendendo que o acórdão recorrido não merece qualquer censura, está devidamente fundamentado, não tem contradições, erros ou insuficiências, e o o recurso carece em absoluto de fundamento.

Quid iuris?

2. O acórdão recorrido fundamentou a sua decisão quanto ao dano patrimonial futuro, que qualificou como dano biológico, do seguinte modo:

«A fixação do quantum indemnizatório deverá ser calculado com base na equidade (art. 566/3 CC), sopesando as circunstâncias do caso concreto, grau de gravidade das lesões sofridas e sua repercussão na capacidade económica/de ganho do lesado, considerando uma expectativa de vida activa não confinada à idade limite para a reforma - cfr. Acs. STJ de 14/1/21 e de 17/12/19, relatora Rosa Tching, in www.dgsi.pt.

In casu, face aos factos apurados - o autor tinha 20 anos, à data do acidente, frequentava um curso profissional de multi-média, estava a estagiar, estágio esse que foi abruptamente interrompido com o acidente, as lesões sofridas que acarretaram sequelas, sendo que à data da consolidação médico-legal das lesões, em 4/2/2020, o deficit funcional permanente de integridade físico-psíquica foi fixado, em 14 pontos, ainda que não tivesse entrado no mercado de trabalho, certo é que, na  atribuição  do  dano  na Repercussão Permanente da Actividade Profissional ponderou-se a sua potencial actividade (operador de câmara), como podendo ser exercida com eventuais dificuldades em caminhar em longas distâncias com material pesado e na realização de carga com o membro superior esquerdo (lado passivo), as limitações que ficou padecendo de forma permanente e irreversível, entre outras, limitação na extensão do cotovelo com menos 20° com flexão completa, alteração na sensibilidade na face interna Dl e externa D2 da mão esquerda, impossibilidade de se colocar de joelhos, a sua esperança média de vida, entende-se justo e adequado a fixação da indemnização, em € 80.000,00.»

3. Vejamos:

O primeiro argumento da seguradora – falta de impacto dos danos na atividade profissional do lesado – não está suportado pela matéria de facto que no facto n.º 55 onde ficou exarado que «Na atribuição do parâmetro de dano na Repercussão Permanente na Actividade Profissional considerou-se ponderar a sua potencial actividade (operador de câmara), como podendo ser exercida com eventuais dificuldades em caminhar em longas distâncias com material pesado e na realização de carga com o membro superior esquerdo (lado passivo)». No facto 28, descreve-se quais são as limitações de que o Autor ficou a padecer, “de forma permanente e irreversível”: “a) limitação na extensão do cotovelo com menos 20° com flexão completa; b) Cicatriz operatória no braço esquerdo com 30 cm na face posterior; c) cicatriz no joelho direito; d) alteração na sensibilidade na face interna Dl e externa D2 da mão esquerda; d) impossibilidade de se colocar de joelhos (por sentir dor forte)”. Esclarece o facto provado n.º 29 que «Em função disso, o relatório médico de avaliação do dano corporal em direito civil efectuado pela seguradora, em 13.12.2017, atribuiu-lhe uma Incapacidade Permanente de 21 pontos em 100 e um quantum doloris, de 6 numa escala de 7».

O Autor atrasou os seus estudos e o início da sua vida profissional. Segundo o facto n.º 37, o Autor, em função das limitações decorrentes do acidente, ainda não terminou o estágio profissional integrado que estava a realizar na ..., na categoria de operador de câmara e técnico multimédia, com vista a terminar a sua formação profissional. Só agora, passados quase 4 anos sobre o acidente, está o Autor em condições de retomar o estágio integrado, finalizando-o (facto provado n.º 38). Segundo o facto n.º 39, o autor na altura do acidente estava a frequentar o estágio integrado tendo em vista a obtenção da qualificação técnico profissional de técnico de multimédia e a sua formação foi interrompida pelo acidente descrito, adiando a sua entrada no mercado de trabalho (facto n.º 40). Além disso, no facto provado n.º 41 reconhece-se que as limitações permanentes com que ficou o Autor terão influência nas suas opções profissionais.

Fica assim claro que o acidente provocou sequelas físicas no autor suscetíveis de afetar a sua atividade profissional, tornando-a mais penosa e implicando mais esforço na sua execução, o que necessariamente tem por consequência uma inevitável perda de rendimentos. Não podia deixar de ser assim. Se o corpo humano fica afetado para a realização de desporto e tarefas da vida corrente, tem de se entender que também a vida profissional e a capacidade de ganho ficarão afetadas. O corpo é um só, não sendo possível nem lógico dividi-lo para efeitos profissionais e para efeitos de vida corrente. A resistência física será necessariamente menor num indivíduo que tem dores permanentes, o que implicará mais lentidão no trabalho e impossibilidade de aceitar horas extraordinárias – circunstâncias que diminuem a produtividade e também o rendimento.

4. O acórdão recorrido optou por fixar uma indemnização de acordo com a equidade, decisão à qual nada há a censurar, pois tratando-se de um jovem que ainda não tinha iniciado a carreira profissional, não seria possível aplicar fórmulas matemáticas para determinar as perdas de rendimento. Nem estas perdas podem ser calculadas de forma exata, pois, o que está em causa é a quantificação do dano biológico, traduzido na necessidade de esforços suplementares no exercício de uma atividade profissional.

A indemnização fixada de acordo com a equidade, nos termos do artigo 566.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, só é passível de censura se não se contiver dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que o legitima, tendo por referência a evolução da jurisprudência e a observância do princípio da igualdade no tratamento prudencial de situações similares (cfr. Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 31-01-2013, proc. n.º 795/20.5T8LRA.C1.S1). No mesmo sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-02-2022 (proc. n.º 899/19. 7T8VCT.G1.S1), onde se sumariou que «Na determinação do montante da justa indemnização destinada a ressarcir danos futuros, perante a constatação da impossibilidade de averiguar o valor concreto dos danos, tem a jurisprudência recorrido ao juízo de equidade a que se reporta o art. 566º, n.º 3, do Cód. Civil, a partir dos elementos de facto apurados, conjugados com diversos critérios de cálculo de natureza instrumental».

Ora, tendo em conta a idade do lesado, a esperança média de vida, o défice permanente da integridade físico-psíquica de 14 pontos, bem como a permanência e irreversibilidade das dores físicas que sofrerá ao longo da sua vida, com impacto no esforço exigível para a atividade profissional e na diminuição da capacidade de ganho, não se afigura exagerado ou desproporcional o montante arbitrado pelo Tribunal da Relação.

5. Relativamente aos casos que a recorrente cita nas suas alegações, em que são atribuídas indemnizações menores pelo dano biológico, entre os anos de 2010 e 2019, há que ter em conta a mudança de conjuntura económica, marcada atualmente por altas taxas de inflação e pela menor rentabilidade do dinheiro, bem como uma tendência natural para as indemnizações subirem progressivamente ao longo dos anos, por força da crescente valorização da dignidade humana e dos bens jurídicos pessoais na consciência social.

Assim sendo, não se verifica qualquer violação do princípio da igualdade, nem do artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil, concluindo-se pela manutenção do montante indemnizatório atribuído pelo Tribunal da Relação.

6. Anexa-se sumário elaborado de acordo com o n.º 7 do artigo 663.º do CPC:

I - A indemnização fixada de acordo com a equidade, nos termos do artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil, só é passível de censura se não se contiver dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que o legitima, tendo por referência a evolução da jurisprudência e a observância do princípio da igualdade no tratamento prudencial de situações similares (cfr. Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 31-01-2023, proc. n.º 795/20.5T8LRA.C1.S1).

II - Ora, tendo em conta a idade do lesado, 20 anos à data do acidente, a esperança média de vida, o défice permanente da integridade físico-psíquica de 14 pontos, bem como a permanência e irreversibilidade das dores físicas que sofrerá ao longo da sua vida, com impacto no esforço exigível para a atividade profissional e na diminuição da capacidade de ganho, não se afigura exagerado ou desproporcional o montante de 80.000 euros, arbitrado pelo Tribunal da Relação, para compensação do dano patrimonial futuro.

III – Não se verifica qualquer violação do princípio da igualdade e do artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil, relativamente aos casos que a recorrente cita nas suas alegações, em que são atribuídas indemnizações menores pelo dano biológico.

IV – Tal diferenciação justifica-se pela mudança da conjuntura económico-social, marcada atualmente por altas taxas de inflação e pela menor rentabilidade do dinheiro, bem como por uma tendência natural para as indemnizações subirem progressivamente ao longo dos anos, por força da crescente valorização da dignidade humana e dos bens jurídicos pessoais na consciência social.

III – Decisão

Pelo exposto, decide-se negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Lisboa, 14 de março de 2023

Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Pedro de Lima Gonçalves (1.º Adjunto)

Maria João Vaz Tomé (2.ª Adjunta)