Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
323/13.9TBCVL-B.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA LOBO
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
TEMPESTIVIDADE
ARRENDATÁRIO
VENDA JUDICIAL
BEM IMÓVEL
Data do Acordão: 01/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I – São tempestivos os embargos de terceiro deduzidos pelo arrendatário de imóvel vendido em processo executivo quando apresentados após lhe ter sido solicitada a entrega do locado.

II - Como fundamento dos embargos de terceiro indica o art.º 342.º do Código de Processo Civil a possibilidade de um direito do embargante ser ofendido pela penhora ou qualquer acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens.

III - Quando se quer reagir contra a entrega de bens – neste caso a simbólica entrega do bem locado pela entrega das chaves das portas que facultam o acesso ao locado – a quem adquiriu o bem por venda judicial, neste caso o exequente, não pode exigir-se que a dedução dos embargos seja efectuada antes de os bens serem vendidos ou adjudicados.

Decisão Texto Integral:

     Recorrente: Hotestrela, L.dª, embargante.

     Recorrida: Banco BIC Português, SA, embargado /exequente.

     Valor da causa: 1 133 243,37 €


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I – Relatório

I.1 – Questões a decidir

O Banco BIC Português, SA instaurou execução para pagamento de quantia certa contra os executados C...Lda, AA e BB, onde foram vendidas as fracções autónomas do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...84 e inscrito na matriz sob o artigo ...40º, imóvel, dado em hipoteca pela executada. A embargante foi notificada para exercer o seu direito de preferência nessa venda, enquanto arrendatária dessas fracções, nas quais exerce “a sua actividade económica de exploração de hotel conhecido e designado como Hotel ...”, tendo adquirido as fracções autónomas do imóvel hipotecado designadas pelas letras M, N e O.

Não tendo sido exercido o direito de preferência relativamente às demais fracções autónomas daquele imóvel, designadas pelas letras A, C, D, E, J, G, I, P e H, foram as mesmas adquiridas pelo exequente.

No dia 29 de Agosto de 2022, a Agente de Execução notificou a embargante, por via postal, para proceder à entrega das respectivas chaves do imóvel sob pena ser requerida a entrega dos bens imóveis.

A arrendatária e aqui recorrente Hotestrela, L.dª deduziu embargos de terceiro, com função preventiva, ao abrigo do disposto nos artigos 342º, n.º 1, e 350º, ambos do CPC.

Por decisão proferida em 26 de Setembro de 2022 foram os embargos de terceiro indeferidos liminarmente com fundamento em apresentação extemporânea.

A embargante apresentou o presente recurso de revista, requerendo a revogação desta decisão, apresentando as correspondentes alegações, que terminam com as seguintes conclusões:

1. Vem a recorrente requerer que o presente recurso seja tramitado como recurso de revista, per saltum, para o STJ, pois é interposto de decisão de 1ª instância, que julgou nos termos do artigo 644º nº 1 do CPC, e o recurso é exclusivamente de direito verificarem-se, in casu, como supra referido no corpo destas alegações, todos os pressupostos legais da sua admissibilidade nos termos do preceituado no artigo 678º do CPC.

2. É hoje jurisprudência uniformizada do STJ, na sequência do acórdão de fixação de jurisprudência nº 2/2021 publicado no DR, 1ª série de 05 de Agosto de 2021, que o arrendamento constituído em data posterior à hipoteca não caduca com a venda judicial permanecendo perfeitamente válido e oponível ao comprador (novo locador), sendo já inúmeros os arestos do STJ, subsequentes ao acórdão uniformizador, que seguem tal entendimento, também, na ação executiva.

3. O Supremo Tribunal de Justiça desde o acórdão de fixação de jurisprudência, supra referido, atualizou o pensamento da jurisprudência no sentido de qualquer situação locatícia constituída após o registo de hipoteca é oponível, e, portanto válido, ao comprador e ou adjudicador, em sede de venda judicial e ou adjudicação, não existindo caducidade da posição contratual da locação.

4. Encontra-se assente, na jurisprudência, que a venda e ou adjudicação judicial não determina a caducidade do arrendamento pelo que o argumento de antanho, utilizado na sentença recorrida, de que os embargos de terceiro, com função preventiva, não podem ser utilizados, como meio processual, após a venda e adjudicação judicial não tem sentido jurídico acrescido pelo fato de aos embargos de terceiro, com função preventiva, não ser aplicável a norma do nº 2 do artigo 344º do CPC.

5. Impõe-se uma interpretação jurídica corretiva, atualista, e sistemática da norma jurídica do artigo 344º nº 2 do CPC, na sequência da jurisprudência uniformizada, e subsequente, da não caducidade do arrendamento, constituído após a hipoteca, em caso de venda e ou adjudicação judicial, no sentido de que a venda e ou adjudicação judicial não impede o recurso aos embargos de terceiro, com função preventiva, desde que exista ato lesivo e ofensa ao direito de arrendamento após a venda e ou adjudicação judicial por parte do comprador e ou adjudicante que requer na execução a entrega das chaves e a entrega das frações autónomas ao arrendatário.

6. A douta sentença judicial incorreu em erro na aplicação da lei e do direito aplicável ao caso concreto tendo violado, por deficiente interpretação os artigos 9º nº 1, 819º, 824 nº 2, 1037º nº 2, 1038º, al.h) 1057º e 1258º do Código Civil e artigos 342º, 344º nº 2 e 350º do CPC.

  Nestes termos e no mais de direito deve o presente recurso de revista, per saltum, ser julgado procedente e por via disso revogar-se a sentença da 1ª instância por outra que julgue de acordo com o direito e a lei e aceite liminarmente os embargos de terceiro, com função preventiva para defesa da posição contratual do arrendamento.

Foram apresentadas contra-alegações onde o exequente considera que deve ser confirmada a decisão recorrida.


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I.2 – Questão prévia - admissibilidade do recurso

Nos termos conjugados do disposto nos art.º 671.º, 678.º do Código de Processo Civil o recurso é admissível.

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I.3 – O objecto do recurso

Tendo em consideração o teor das conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar a seguinte questão:

1. Tempestividade dos embargos de terceiro deduzidos.


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I.4 - Os factos

Como se trata de uma decisão que indeferiu liminarmente os embargos de terceiro, com função preventiva deduzidos, não foi fixado qualquer probatório e os factos a ter em conta são os que resultam da mera tramitação do processo executivo a que foram apensos os embargos.


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II - Fundamentação

1. Tempestividade dos embargos de terceiro

Resulta até de simples consideração lógica que, se se pretende deduzir embargos com função preventiva hão-de eles ser deduzidos no período temporal que decorre entre o conhecimento do acto ofensivo que se pretende prevenir e a sua execução.

Como fundamento dos embargos de terceiro indica o art.º 342.º do Código de Processo Civil a possibilidade de um direito do embargante ser ofendido pela penhora ou qualquer acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens. Naturalmente que quando se quer reagir contra a entrega de bens – neste caso a simbólica entrega do bem locado pela entrega das chaves das portas que facultam o acesso ao locado – a quem adquiriu o bem por venda judicial, neste caso o exequente, não pode exigir-se que a dedução dos embargos seja efectuada antes de os bens serem vendidos ou adjudicados.

Com efeito o embargante não tinha qualquer fundamento para deduzir embargos antes da venda executiva na sua qualidade de arrendatário de diversas fracções do imóvel a vender.

Do ponto de vista do embargante sendo ele arrendatário das fracções adjudicadas ao exequente na sequência de venda judicial nada pode opor à venda, uma vez que não tinha condições financeiras para adquirir todas as fracções no exercício do direito de preferência nessa venda que lhe é conferido por lei, mas tem direito de se opor à entrega do locado ao seu novo proprietário, ele que é um mero detentor em nome do proprietário, mas goza de tutela possessória – 1037.º, n.º 2 do código civil -.

O embargante poderia ter esperado que o actual proprietário perante a sua recusa de entrega da coisa vendida instaurasse execução para entrega de coisa certa para deduzir oposição a tal execução. O meio que encontrou de tentar resolver a questão neste processo executivo, poupando até ao exequente a necessidade de instaurar uma outra execução e tentando obter uma mais célere resolução do litígio que divide proprietário e arrendatário nada tem de ilegal.

Além disso os embargos com função preventiva podem ser deduzidos depois de ordenada a diligência a que se refere o art.º 342.º - neste caso a entrega das fracções autónomas adjudicadas ao exequente mediante entrega das chaves que lhe dão acesso – na situação hibrida em que está regulamentada a acção executiva. A notificação efectuada pelo agente de execução para entrega das chaves satisfaz o requisito enunciado no art.º 350.º do Código de Processo Civil, que muito antecede na sua génese a regulamentação da acção executiva com intervenção do agente de execução, e sempre antes de realizada coercivamente essa entrega, circunstância que também se verifica na presente situação em que apenas existe a cominação de ser judicialmente exigida essa entrega se a mesma não for efectuada voluntariamente.

Não há, pois, qualquer fundamento para indeferimento liminar dos presentes embargos de terceiro, lidos e analisados no seu conteúdo, isto é, como meio de reacção do arrendatário contra a intimação para entrega das chaves do locado porque não foram os mesmos apresentados depois de esgotado o prazo legal para a sua dedução.

O Tribunal deve receber os embargos e processá-los em conformidade com a lei definindo, depois, se são procedentes ou improcedentes à luz do direito invocado pelo embargante na qualidade de arrendatário não habitacional das fracções de que é requerida a entrega que ele recusa fazer.

Procede, pois, a revista.


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III – Deliberação

Pelo exposto, concede-se a revista e revoga-se a decisão recorrida que deve ser substituída por outra que receba os embargos de terceiro deduzidos, se a tal nada mais obstar.

Custas da revista pelo recorrido atento o seu decaimento.

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Lisboa, 19 de Janeiro de 2023

Ana Paula Lobo (Relatora)

Afonso Henrique Cabral Ferreira

Maria Graça Trigo