Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
14276/18.3T8PRT.P1.S2
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO ROSÁRIO MORGADO
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
ARRENDATÁRIO
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
PROPRIEDADE HORIZONTAL
INCONSTITUCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Data do Acordão: 11/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL / LOCAÇÃO / ARRENDAMENTO DE PRÉDIOS URBANOS / DIREITO DE PREFERÊNCIA.
Doutrina:
- Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 2ª reimpressão, Coimbra, 1987, p. 187 e ss.;
- Castanheira Neves, O Actual Problema Metodológico da Interpretação, RLJ, Ano 117º, p. 193 e ss.;
- Januário Gomes, Vida Judiciária, n.º 108, 2007, p. 9;
- José Pedro Carneiro Cadete, Da preferência do arrendatário habitacional, 2011, p.7-8;
- Maria Olinda Garcia, O Arrendamento Plural. Quadro Jurídico e Natureza Jurídica, p. 163;
- Menezes Cordeiro, Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, Almedina, 2014, p. 262;
- Oliveira Ascensão, Subarrendamento e Direitos de Preferência no Novo Regime de Arrendamento Urbano, ROA, Ano 51.º, I, 1991, p. 68;
- Pinto Furtado, Manual de Arrendamento Urbano, 5ª ed., Vol. II, p. 817.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 1091.º, N.º 1, ALÍNEA A).
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 13.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 21-01-2016, PROCESSO N.º 9065/12.1TCLRS.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 24-05-2018, PROCESSO N.º 1832/1524.5.2018, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 18-10-2018, PROCESSO N.º 3131/16.1T8LSB.L1.S1.
Sumário :
I – Atento o teor do artigo 1091.º, n.º1, al. a), do CC, na redação da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, o direito de preferência conferido ao arrendatário está confinado ao andar ou à parte do prédio que constitui o objeto concreto do contrato de arrendamento, o qual, para ser transacionável, deve estar juridicamente autonomizado;

II - O arrendatário de parte do prédio não constituído em propriedade horizontal, não tem direito de preferência sobre a totalidade do prédio, nem sobre a parte arrendada;

III – A interpretação da norma ínsita no art. 1091º, nº1, al. a), do CC, no sentido atrás mencionado, não viola o princípio constitucional consagrado no art. 13º, da Constituição da República Portuguesa.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




I – Relatório

1. Em 20.6.2018, “AA, Lda” instaurou a presente ação declarativa de condenação com forma de processo comum contra BB e “CC - Livros e Turismo, Lda”, pedindo que:

 - Seja reconhecido o seu direito de preferir na venda efetuada pela 1ª ré à 2ª ré do prédio urbano sito na Rua das …, nº …, …;

- Seja declarado que é titular do direito de propriedade sobre o identificado prédio, pelo valor pelo qual foi alienado à 2ª ré, ordenando-se o registo da aquisição a favor da autora;

- Seja ordenado o cancelamento da aquisição a favor da 2ª ré relativa ao mesmo prédio.

Para tanto, alegou, em síntese, que:

A ré BB foi - até ao dia 21 de Março de 2018 -, proprietária do prédio urbano sito à Rua das …, …, …, não constituído em propriedade horizontal, composto de r/c, cave e dois andares.

Por escritura pública celebrada a 31 de Janeiro de 2013, a 1ª ré deu de arrendamento à autora o r/c, cave e sobre loja do mencionado prédio, para ali exercer o seu comércio.

Por escritura pública de compra e venda celebrada no dia 21 de Março de 2018, a 1ª ré declarou vender a totalidade do prédio identificado à 2ª ré.

Por carta datada de 23 de Abril de 2018, foi dado conhecimento à autora da outorga da escritura pública de compra e venda.

Nunca à autora foi dada a oportunidade de preferir esse, apesar de ser arrendatária há mais de 3 anos.

2. A ação foi contestada. As rés sustentam, no essencial, que a autora não beneficia de qualquer direito de preferência no negócio referido, uma vez que o prédio não se encontra constituído em propriedade horizontal. A 2ª ré arguiu ainda a exceção de caducidade.  

3. Na 1ª instância, foi proferido saneador-sentença que, julgando a ação improcedente, absolveu as rés do pedido.

4. Inconformada com esta decisão, a autora interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, tendo sido proferido acórdão a confirmar integralmente a sentença recorrida.

5. De novo irresignada, veio a autora interpor recurso de revista excecional para este Supremo Tribunal, admitido pela Formação a que alude o art.º. 672º, nº 3, do CPC.

Nas suas alegações, a autora, em conclusão, disse:

I)   O Tribunal a quo fez uma incorreta interpretação da norma prevista no artigo 1091.º, n.º 1 alínea a) do CC, tendo assim esta norma sido violada pelo Tribunal a quo, o qual, consequentemente, aplicou mal o Direito ao caso concreto e objeto do litígio, tendo concluído que à Recorrente não assiste direito de preferência em caso de venda ou dação em cumprimento porque esta é arrendatária de uma parte não autonomizável do prédio alienado.


II) Entendemos, pois, que o sentido a dar à norma violada não pode ser outro a não ser o sentido de reconhecer o direito de preferência do arrendatário na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado, seja este local num prédio em regime de propriedade horizontal e, por isso, uma fração, seja este local num prédio não constituído em regime de propriedade horizontal e seja o arrendado correspondente ao prédio no seu todo, seja correspondente a uma parte não autonomizável do mesmo, ou seja, o      arrendatário tem sempre, independentemente das circunstâncias apontadas e dentro dos demais limites legais (como por exemplo o número de anos do arrendamento) direito de preferência em caso de compra e venda ou dação em cumprimento.


III) Para o efeito, partiu a sentença de pressupostos, quanto a nós, errados, e partiu o Tribunal da Relação do Porto de uma interpretação que, com elevado respeito, consideramos incorreta, sendo por isso também incorreta a decisão que consta do, aliás Douto, Acórdão recorrido.


IV) Não é o regime do prédio – propriedade horizontal ou propriedade total - onde se encontra o locado que ditará diferenças entre os respetivos arrendatários pois a acontecer esta diferença de tratamento, estaríamos perante uma violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da CRP.


V) É de realçar a este propósito o que consta da Declaração de Voto do Acórdão n.º 583/2016, de 9.12.2016, ali se expressando, como concordamos, que não existem razões materiais que justifiquem uma diferença de tratamento entre arrendatários de frações autónomas e de partes de prédios em regime de propriedade total, pois o que está na base de tais relações arrendatícias é sempre um direito pessoal de gozo expresso num contrato de arrendamento, cujo objeto e regime definem-se pelo contrato e não pelo regime em que está a propriedade do senhorio.


VI) A não ser assim, poderíamos assistir, na vida de um mesmo contrato de arrendamento, à existência do direito de preferência quando o prédio está no regime de propriedade horizontal e à sua inexistência porque o senhorio alteraria o prédio para propriedade total, deixando-se assim à livre disposição do proprietário e senhorio a possibilidade de existir, ou não, direito de preferência reconhecido ao arrendatário.


VII) É que não se vê em norma alguma de algum diploma legal a impossibilidade de o proprietário poder alterar o regime do seu prédio de propriedade horizontal para propriedade total e vice-versa.


VIII) Desde logo por esta ordem de razões, parece-nos inconcebível admitir um tratamento diferente a tais arrendatários, deixando na total liberdade dos senhorios a existência de tal direito. Admitir um tratamento diferente é, assim, admitir esta violenta solução.


IX) Numa outra perspetiva, cumpre referir que o Acórdão recorrido justifica a sua posição pelo facto de a redação do artigo 1091.º, n.º 1 a) do CC não ter mantido a redação do artigo 47.º, n,º 1 do RAU, tendo sido eliminadas as expressões “prédio urbano ou de sua fração autónoma”, afirmando que com esta eliminação, o legislador teve a intenção de reconhecer o direito de preferência apenas ao arrendatário de fração autónoma e, para o efeito, faz uso do texto da Proposta de Lei n.º 140/IX e das interpretações que um autor e alguma jurisprudência faz do mesmo. Ora,


X) Assim não nos parece ser, pois se é certo que esta Proposta de Lei pretendia eliminar o direito de preferência dos arrendatários na alienação dos prédios arrendados, com a justificação de que o exercício deste direito complicava os negócios e criava entraves à livre circulação da propriedade, assim não sucedeu e


XI)   O texto final, em vez de eliminar o direito de preferência dos arrendatários veio, antes, a mantê-lo na redação que se conhece do então artigo 1091.º, n.º 1, alínea a) do CC, alterando-se a expressão de “prédio urbano ou de sua fração autónoma” para “local arrendado”. Mas tal alteração,


XII) Não nos permite concluir que a intenção era a de (cite-se) “contrariar o sentido que a jurisprudência e a doutrina maioritárias extraíam do regime anterior”. Aliás,


XIII) Tais opiniões, com o devido respeito, são meras, assaz valiosas, interpretações mas que não têm a aptidão de substituir o legislador de 2016, através do qual nunca se conheceu tal razão para a referida alteração legal e, se tivesse sido essa a razão, pela importância prática que reveste, o legislador teria certamente explicado e não o fez, nem mesmo na Proposta de Lei indicada.


XIV) Não se conhecem também anotações ao Código Civil que venham sufragar, com grau de certeza, tal posição, bem pelo contrário, como é o exemplo de Maria Olinda Garcia, a qual expressa que não há diferenças quanto ao regime anterior fixado no artigo 47.º do RAU.


XV) Outras conclusões não se podem retirar, por falta de elementos que o permitam, da alteração das expressões em causa e a história do regime comprova isso mesmo.


XVI) Veja-se que o interesse do direito de preferência do arrendatário para fins não habitacionais foi sempre de tal forma valorizado que, num primeiro momento, ele aparece atribuído aos inquilinos comercial e industrial pela Lei n.º 1661, de 4 de setembro de 1924 e só depois aos inquilinos dos arrendamentos para exercício de profissão liberal, com a Lei n.º 2030, de 22 de junho de 1927 e apenas em 1977, 50 anos depois, é que a Lei n.º 63/77, de 25 de agosto alarga tal direito aos arrendatários habitacionais.


XVII) Ora, como ficou acima expresso, não só a jurisprudência, mas também a doutrina, divide-se no entendimento a dar a esta norma, mas para a Recorrente não se levantam quaisquer dúvidas em adotar a posição dos autores Pires de Lima e Antunes Varela, bem como a posição de Agostinho Cardoso Guedes e Maria Olinda Garcia, em detrimento da posição defendida por Oliveira Ascensão e pelo Acórdão recorrido.


XVIII) Para o exercício do direito de preferência, não interessa que parte ou quota-parte o arrendatário ocupa, pois o legislador também aqui nunca estabeleceu a quantidade da ocupação do imóvel como um critério de atribuição do direito de preferência.


XIX) A não ser assim, e considerando o arrendatário de uma parte do prédio, este nunca teria direito de preferência, ao contrário do que acontece com o arrendatário do prédio todo ou o arrendatário de uma fração num prédio em regime de propriedade horizontal, transformando assim o artigo 1091.º, n.º 1, alínea a)do CC totalmente inaplicável àquele arrendatário que apenas ocupa uma parte do prédio, para o que não encontramos qualquer fundamento ou justificação legal.


XX) Cumpre ainda referir que o Acórdão recorrido, bem como a sentença, fizeram também referência às recentes alterações do artigo 1091.º do CC, para, com isso, fortalecer a sua posição. Mas,


XXI)    A nosso ver, tal alusão às recentes alterações legislativas só pode ter o resultado contrário àquele que consta de tais decisões. Assim,


XXII) A mais recente alteração legislativa de 2018 deriva do Projeto-lei 848/XIII – consultável in https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/, e não podemos olvidar que esta alteração surge num contexto socioeconómico muito específico, o que vem, aliás, corroborar a posição defendida nestas Alegações.


XXIII) Tratou-se, como é sabido, do negócio de venda dos 271 imóveis da “Companhia de Seguros Fidelidade”, seguradora detida pelo grupo chinês Fosun, negócio que foi anunciado como uma operação única e indivisível, cujo valor global ultrapassou, ao que se sabe, os 425 milhões de euros e a questão que se colocou às dezenas de arrendatários habitacionais dos prédios, maioritariamente, senão todos, em regime de propriedade total, foi a incapacidade para, isoladamente ou em conjunto, exercer o direito de preferência sobre a venda da totalidade do imóvel, uma vez que se tratavam, maioritariamente de arrendatários com idade muito avançada e sem poder económico.


XXIV) Foi assim neste contexto que surgir a redação que temos atualmente no artigo 1091.º, n.º 8 e n.º 9 do CC, prevendo-se no n.º 8 uma proteção do direito à habitação (justificação primeira da alteração e do Projeto Lei), permitindo assim ao arrendatário preferir, sozinho (se assim entender) no que respeita apenas e só à quota-parte que ocupa no prédio como se de uma fração autónoma se tratasse o que antes lhe estava vedado pois só podia preferir na totalidade do imóvel em propriedade total – é aqui que reside a novidade e a razão de ser desta recente alteração -, e


XXV) Clarificando-se, no n.º 9, que qualquer arrendatário – seja ou não habitacional – poderá exercer os seus direitos de preferência, em conjunto, mas relativamente à totalidade do imóvel (clarificação necessária face à alteração no que respeita ao arrendatário habitacional), ou, acrescente-se e conforme já resultava da versão anterior da norma, isoladamente (possibilidade que, repete-se, o arrendatário já tinha). Por outro lado,


XXVI) Não se aceita que o senhorio de espaços não autonomizáveis veja sempre reconhecido o seu direito de preferência em caso de trespasse, e o inverso, em caso de venda pelo proprietário, não seja reconhecido ao arrendatário.


XXVII) Ao que se sabe, ninguém discute que o direito de preferência do senhorio, em caso de trespasse, existe sempre, independentemente do espaço arrendado ser autonomizável, ou não, pelo que, também por esta razão, o arrendatário do mesmo espaço não pode ter um tratamento diferente, concluindo-se que

XXVIII) Por uma questão de equilíbrio entre as partes – não se pode conceber que o senhorio que muitas vezes nada percebe do negócio que é desenvolvido no estabelecimento comercial do arrendatário tenha, apesar disso, direito de preferência e o arrendatário que ali exerce a sua atividade profissional, muitas vezes durante longos anos, não lhe veja reconhecido igual direito de preferência na venda do imóvel onde até poderá passar a desenvolver, em maior dimensão e com outras condições, aquela que é a sua atividade profissional.


XXIX) Por todo o exposto, outra interpretação não poderá resultar desta alteração legislativa, concluindo-se assim, como se anseia e seriamente se antevê que este Supremo Tribunal de Justiça venha a concluir, que o artigo 1091.º, alínea a) do CC reconhece o direito de preferência ao arrendatário habitacional e não habitacional que ocupa parte do prédio não constituído em propriedade horizontal, desde que preenchidos os demais requisitos legais, tal como reconhece ao arrendatário de uma fração autónoma num prédio em regime de propriedade horizontal, ou seja, à Recorrente deverá ser-lhe reconhecido o direito de preferência na venda do imóvel arrendado, entendimento este que, por certo, este Tribunal para o qual se recorre, corroborará, decidindo-se que


XXX) À Recorrente, enquanto arrendatária de uma parte não autonomizável do prédio alienado, assiste o direito de preferência em caso de venda ou dação em cumprimento, devendo assim a sentença proferida ser revogada e, consequentemente ser ordenada a substituição da Recorrida CC – Livros e Turismo Lda. pela Recorrente em sede de titularidade e posse do prédio aqui identificado e consequente substituição para efeitos de registo predial.


6. Nas contra-alegações, pugnou-se pela manutenção da decisão recorrida.

7. Como se sabe, o âmbito objetivo do recurso é definido pelas conclusões apresentadas[1] (arts. 608.º, n.º2, 635.º, nº4 e 639º, do CPC), importando, assim, decidir se:

a) - Face ao disposto no artigo 1091.º, nº1, al. a), do CC, assiste ao arrendatário de parte de um prédio, não constituído em propriedade horizontal, o direito de preferência na venda da totalidade do prédio ou, pelo menos, quanto à parte do prédio que corresponde ao objeto do arrendamento;


b) - Se viola o principio da igualdade consagrado no art. 13º, da CRP a  norma do artigo 1091.º, nº1, al. a), do CC se interpretada no sentido de negar o direito de preferência do arrendatário em casos como os referidos em a).


***


II – Fundamentação de facto


8. Factos provados:


1.º − A ré BB foi - até ao dia 21 de Março de 2018 -, proprietária do prédio urbano sito à Rua das …, … …, composto de R/C, cave e dois andares, não constituído em propriedade horizontal.


2.º − Por escritura pública de arrendamento celebrada a 31 de Janeiro de 2013, esta ré deu de arrendamento para comércio o R/C, cave e sobreloja do mencionado prédio à autora.


3.º − Por escritura pública de compra e venda celebrada no dia 21 de Março de 2018, a ré BB declarou vender a totalidade do prédio identificado à ré CC - Livros e Turismo, Lda.


4.º − Por carta datada de 23 de Abril de 2018, foi dado conhecimento à autora da pretérita outorga da escritura pública de compra e venda.


5.º − Nunca à autora foi dada a oportunidade de preferir esse, apesar de ser arrendatária há mais de 3 anos.


***


III - Fundamentação de Direito

9. Invocando ser titular do direito de preferência na compra e venda do prédio onde se encontra instalado o local de que é arrendatária e ter sido preterida no exercício desse direito potestativo, veio a autora instaurar a presente ação, ao abrigo do disposto no art. 1410º, do CC, aplicável ex vi do art. 1091º, nº4, do mesmo Código.

Como referido no acórdão da Formação que admitiu este recurso de revista excecional, importa reponderar a questão objeto da alegada contradição de acórdãos, qual seja a de saber se o arrendatário de uma parte (não autónoma) de prédio urbano, não constituído em propriedade horizontal, tem, ou não, direito de preferência na venda do prédio.


É entendimento unânime deste Supremo Tribunal que a lei reguladora do direito de preferência é a vigente à data da celebração do ato de alienação, pois o direito legal de preferência configura uma faculdade que integra o conteúdo do direito do arrendatário que só a prática do negócio translativo da propriedade, sem que o senhorio lhe tenha oferecido a preferência, o transforma em direito potestativo (cf., entre outros, o ac. do STJ de 21.01.2016, proc. nº 9065/12.1TCLRS.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt).

In casu, à data da outorga da escritura pública de compra e venda (21.3.2018), vigorava o disposto no art. 1091.º, n.º 1, al. a), do CC, na redação introduzida pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, que aprovou o Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU)[2], pelo que será à luz deste normativo (aplicável ex vi do disposto no art. 59º, nº1, do NRAU), que será apreciado se assiste à autora o direito de preferir, na qualidade de arrendatária comercial desde 31.1.2013 do r/c, cave e sobreloja do prédio urbano objeto do ato translativo do direito de propriedade.

No acórdão sob impugnação, confirmando-se integralmente a sentença da 1ª instância, considerou-se que, face ao disposto no art. 1091º, nº 1, al. a) do C.C, na redação aqui aplicável, isto é, a introduzida pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, o arrendatário de parte de prédio não constituído em propriedade horizontal não goza do direito de preferência em caso de venda da totalidade do prédio urbano onde está situado o local arrendado.

Por sua vez, o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em 23.6.2015, no proc. 1275/12 (e que foi invocado como fundamento para efeitos de admissibilidade da revista excecional), movendo-se no mesmo quadro normativo, perfilhou o entendimento de que o arrendatário de parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal beneficia de direito de preferência.

Adiantamos, desde já, que a tese adotada no acórdão recorrido foi sufragada no acórdão deste Supremo Tribunal proferido em 24.5.18, no processo nº 1832/1524.5.2018, disponível em www.dgsi.pt, subscrito pela ora relatora e no qual se discutia idêntica questão.

Como procuraremos demonstrar, não se vislumbram razões para não perfilhar a mesma orientação, pelo que iremos seguir, de perto, a argumentação ali expendida.

Vejamos, pois.

Confrontados com as referidas decisões em oposição, a questão em análise sobre a qual este Supremo é (de novo) chamado a pronunciar-se coloca-nos perante um problema de interpretação da lei, concretamente da norma do artigo 1091º, nº1, al. a), do CC (na redação aplicável), importando, consequentemente, trazer à colação o disposto no art. 9º, do CC, onde se prescreve que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada, não podendo, no entanto, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

Nesta tarefa interpretativa, afigura-se-nos de toda a conveniência começar por delinear, em traços gerais, os antecedentes do regime jurídico do direito legal de preferência do arrendatário consagrado no art. 1091º, do CC, a fim de percecionar melhor os contornos da questão a decidir.

Ora bem.

O direito de prelação a favor do arrendatário urbano foi introduzido pela Lei nº 1662, de 4.9.1924, em cujo art. 11º se atribuía a preferência (apenas) ao “principal locatário, comercial ou industrial, de prédios urbanos” na venda do prédio.

No âmbito da reforma da locação, Sá Carneiro defendia a extensão do direito de preferência ao arrendatário habitacional, projeto que a Câmara Corporativa não acolheu, argumentando que o direito de preferência implica uma séria restrição ao direito de propriedade, embaraçando o comércio jurídico e, por isso, só deveria ser admitido com caráter muito excecional.[3]

A Lei nº 2030, de 22.6.1948, no seu art. 66º, nº1, veio, entretanto, conferir expressamente aos titulares de arrendamentos para profissão liberal idêntico direito e incluir a “dação em pagamento” nos negócios sujeitos a preferência.

Tendo esta lei suscitado dúvidas de interpretação quanto a saber se era exigível como pressuposto do direito de preferir o facto de o inquilino exercer a sua atividade no locado há mais de um ano, o novo Código Civil veio consagrar no seu art. 1117º a posição então defendida por Pires de Lima[4], conferindo, em caso de venda ou dação em cumprimento do prédio arrendado, a preferência ao arrendatário que nele exercesse o comércio ou indústria há mais de um ano, bem como aos arrendatários que exercessem no prédio profissão liberal (cf. art. 1119º, que remete para o art. 1117º).

Por outro lado, estabeleceu-se no nº4 do art. 1117º que, quando houvesse dois ou mais preferentes, se abriria entre eles licitação, revertendo o excesso para o alienante.

Só com a aprovação da Lei n.º 63/77, de 25 de Agosto se veio reconhecer o direito de preferência ao inquilino habitacional, sem dependência de duração mínima do contrato, consignando-se no seu preâmbulo que o legislador visava desta forma dar uma contribuição para a implementação de uma política de acesso à habitação própria, consagrada no art.65.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Posteriormente, o Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, reafirmou o direito legal de preferência do arrendatário urbano, para habitação, comércio e indústria ou exercício de profissão liberal e, perante a diversidade de regimes existentes, uniformizou a matéria nos arts. 47º a 49º, daquele diploma.

Estabelecia-se, então, no art. 47º, do RAU que:

“1. O arrendatário de prédio urbano ou de sua fração autónoma tem o direito de preferência na compra e venda ou na dação em cumprimento do local arrendado há mais de um ano;

2. Sendo dois ou mais os preferentes, abre-se entre eles licitação, revertendo o excesso para o alienante.”.

A norma em questão suscitou várias dúvidas, designadamente quanto a saber se a expressão “local arrendado” fazia – ou não - supor a autonomização jurídica deste e se, não estando constituída a propriedade horizontal sobre o prédio, o direito de preferência do arrendatário podia ser exercido em caso de venda ou dação em cumprimento da totalidade do prédio.

A doutrina e a jurisprudência maioritárias entendiam que, no caso de alienação da totalidade do prédio, não subordinado ao regime da propriedade horizontal, a preferência teria que ser exercida em relação a todo o prédio e, por isso, competiria ao conjunto dos coarrendatários de partes do mesmo imóvel, abrindo-se licitação entre eles.[5]

Posteriormente, o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, manteve a preferência do arrendatário na compra e venda ou dação em cumprimento, repondo em vigor, no seu art. 3º, o art. 1091º, do CC[6], com a seguinte redação:

“1 - O arrendatário tem direito de preferência:

a) Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de três anos;

(…)

3 - O direito de preferência do arrendatário é graduado imediatamente acima do direito de preferência conferido ao proprietário do solo pelo artigo 1535.º

4 - É aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416.º a 418.º e 1410.º.”.

A terminologia utilizada não logrou, porém, sanar as dúvidas anteriormente manifestadas no seio do RAU, concretamente quanto à extensão do objeto da preferência do arrendatário, em particular nos casos em que não esteja constituída a propriedade horizontal sobre o prédio.

Tomando posição sobre a problemática em questão, é nosso entendimento que, no caso dos autos, as instâncias decidiram acertadamente.

Com efeito:


Como decorre do art. 9º, do CC, a letra da lei é, naturalmente, o ponto de partida da interpretação, cabendo-lhe, desde logo, como assinala Baptista Machado, "Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador", 2ª reimpressão, Coimbra, 1987, págs., 187 e segs., a função negativa de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou, pelo menos, qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei.


Nesta sede, ter-se-á presente, como refere Castanheira Neves, in O Actual Problema Metodológico da Interpretação, RLJ, Ano 117º, 193 e ss., que o legislador não usa palavras e exprime enunciados, que terão porventura um sentido linguístico-gramatical comum, apenas para comunicar esse sentido comum. Quer antes prescrever uma intenção jurídica através dessas palavras; ou seja, o referente do seu texto é um sentido jurídico.


Ora, o art. 1091º do C.C., então em vigor, face ao anterior art. 47º do R.A.U., deixou de fazer referência a «prédio urbano» e a «fração autónoma» (substituindo estas expressões por «local arrendado»). Além disso, eliminou qualquer referência a licitação entre os diversos arrendatários interessados em exercer concorrentes direitos de preferência.


Nesta conformidade, conhecendo o legislador a controvérsia gerada pelo art. 47º, do RAU e devendo presumir-se que soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (cf. art. 9º, do CC), ao remover – voluntária e conscientemente - do art. 1091, nº1, al. a), do CC as expressões que permitiam justificar, segundo alguns, a possibilidade do exercício da preferência sobre todo o imóvel, parece-nos que deixou bem clara a sua intenção de restringir a preferência do arrendatário na venda ou dação do local objeto do contrato de arrendamento («local arrendado») aos casos em que o mesmo seja autonomamente transacionável, o que implica necessariamente a prévia submissão do prédio ao regime da propriedade horizontal.

Acresce que:


Na fixação do sentido e alcance da lei, podem (e devem) convocar-se outros elementos que ajudem a precisar o sentido (decisivo) da norma interpretanda.


Lembremos, em primeiro lugar, que a preferência, impondo-se unilateralmente à contraparte, restringe o comércio jurídico e a liberdade de contratar, valores fundamentais do nosso ordenamento. É, assim, incontestável que, na medida em que faculta a aquisição de uma propriedade, mesmo contra a vontade do próprio titular, o instituto assume natureza excecional.


Ora, ao atribuir a preferência ao arrendatário, o legislador terá pretendido facultar-lhe o acesso à habitação ou instalações próprias, pondo termo ao arrendamento. E não mais que isso!


Sendo assim, admitir a preferência para além do local efetivamente arrendado traduzir-se-ia numa vantagem dada ao arrendatário que transcende o fim visado pela lei então em vigor.


Tal como observava Menezes Cordeiro, in Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, Almedina, 2014, pág. 262, “transformar o inquilino de um fogo em dono do prédio (só) porque este não estava em propriedade horizontal, é uma operação de todo fora do objetivo legal, que apenas visaria lucrativos negócios imobiliários.”.


Também Oliveira Ascensão perfilhava idêntica posição, in «Subarrendamento e Direitos de Preferência no Novo Regime de Arrendamento Urbano», Revista da Ordem dos Advogados, ano 51.º, I, 1991, p. 68, ao afirmar que a preferência «não tem por fim propiciar a expansão do direito para além do seu objeto».


De igual forma, sobre a extensão do direito de preferência do arrendatário, Januário Gomes, in Vida Judiciária, n.º 108, 2007, pág. 9, referia que “…num quadro de desvinculação do regime do arrendamento, a manutenção de direitos de preferência na venda não faz muito sentido.”.


Seguindo esta mesma orientação, escrevia também José Pedro Carneiro Cadete, in “Da preferência do arrendatário habitacional, 2011, págs.7-8[7], que: “… a extensão do objeto da preferência a todo o prédio indiviso levantava vários problemas, nomeadamente nos casos em que existia mais do que um arrendatário de uma parte daquele. Por outro lado, extrapolava o objetivo da preferência no arrendamento, na medida em que não se limitava a conceder ao arrendatário a propriedade da sua habitação, mas sim de todo um prédio, o que não se revela no seu interesse.”.

Idêntico caminho é seguido por Maria Olinda Garcia, in “O Arrendamento Plural. Quadro Jurídico e Natureza Jurídica”, pág. 163, aludindo ao princípio da coincidência entre o objeto do locado e o objeto da compra e venda. Em sentido contrário, pode, contudo, citar-se Pinto Furtado, in Manual de Arrendamento Urbano, 5ª ed., vol. II, pág. 817.

Em convergência com esta linha interpretativa, e na vigência do art. 1091º, do CC (na redação aplicável ao caso dos autos e que é – repete-se – a introduzida pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro), se tem pronunciado este Supremo Tribunal, designadamente nos acórdãos de 21.1.16, proc. nº 9065/12.1TCLRS.L1.S1, (Tavares de Paiva), de 24.5.18, proc. 1832/15  (relatado pela ora relatora) e de 18.10.2018, proc. nº 3131/16.1T8LSB.L1.S1, (Abrantes Geraldes).

Os arestos mencionados debruçam-se sobre a questão agora trazida à apreciação deste Supremo Tribunal, pelo que não poderiam deixar de ser por nós especialmente ponderados, designadamente por força do disposto no art. 8º, nº3, do CC, segundo o qual “nas decisões a proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.”.


Nessa medida, a solução que defendemos colhe dos mencionados acórdãos argumentos reforçados no sentido de:


- O direito legal de preferência previsto no art. 1091º, do CC, na redação em vigor em 20.3.2019, estar confinado ao local que constitui o objeto concreto do contrato de arrendamento, o qual, para ser transacionável, deve estar juridicamente autonomizado;


- Se o prédio não estiver constituído em propriedade horizontal, o arrendatário de parte dele não tem direito de preferência sobre a totalidade do prédio, nem sobre a parte arrendada.


Diremos, finalmente, que a interpretação normativa que acolhemos vai buscar ainda contributos ao disposto no art. 7º, nº3, da Lei nº 42/17, de 14 de junho, no qual se estabelece que “os arrendatários de imóvel em que esteja situado estabelecimento ou entidade reconhecidos como de interesse histórico e cultural ou social local gozam de direito de preferência nas transmissões onerosas de imóveis, ou partes de imóveis, nos quais se encontrem instalados, nos termos da legislação em vigor”.

Na verdade, como se referiu no já mencionado acórdão deste STJ de 18.10.2018, a referida estatuição legal “deixa bem evidente a necessidade que foi sentida de assegurar uma tutela específica para os arrendamentos que apresentam as especificidades previstas na citada norma, diferenciando-a da tutela geral que é alcançada pelo regime do direito legal de preferência regulado no art. 1091º do CC.

Com tal medida o legislador procurou prosseguir o objetivo de tutelar especificamente as chamadas “lojas históricas” que naturalmente, na maior parte dos casos, estão instaladas em edifícios situados nos grandes centros urbanos sobre os quais ainda não incide ou não pode incidir (por falta dos requisitos legais mínimos) o regime da propriedade horizontal.”.

De igual forma, a alteração introduzida pela Lei nº 64/2018, de 29 de outubro, consagrando em novos moldes o direito de preferência do arrendatário, demonstra inequivocamente que a lei pretérita não conferia ao arrendatário de parte de prédio não submetido ao regime da propriedade horizontal o direito de preferir em caso de venda ou dação em cumprimento do mesmo.[8]

Improcede, pois, a alegação da recorrente.


***


10. Da inconstitucionalidade

A recorrente entende que a interpretação do artigo 1091.º, nº1, al. a), do CC no sentido fixado pelas instâncias e agora acolhido por este Supremo Tribunal, viola o disposto nos arts. 13.º, da Constituição da República Portuguesa.

Sobre a constitucionalidade daquela norma, já este Supremo Tribunal se pronunciou no acórdão de 21.1.2016, a que acima fizemos referência, em termos que, dada a proximidade com a presente situação, passamos a transcrever:

“O artigo 13.º, intitulado “princípio da igualdade”, prescreve no n.º1 que todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei, e, no n.º 2 que ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.

(…)

O significado da redação de tal princípio está, por um lado, na proibição das desigualdades (sentido primário negativo), que consiste na vedação de privilégios e de discriminações, e, por outro lado, na imposição de tratamento igual de situações iguais (ou tratamento semelhante de situações semelhantes) e de tratamento desigual de situações desiguais (sentido positivo) - Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, pág. 121.

A igualdade jurídico-formal proclamada pela lei, que abrange, quaisquer direitos e deveres existentes na ordem jurídica portuguesa e o seu âmbito de proteção comporta três dimensões: (i) proibição do arbítrio, no sentido em que são inadmissíveis, quer diferenciações de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objetivos, constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais; (ii) proibição de discriminação, não sendo legítimas quaisquer diferenciações de tratamento entre os cidadãos baseadas em categorias meramente subjetivas ou em razão dessas categorias; e (iii) obrigação de diferenciação, como forma de compensar a desigualdade de oportunidades, o que pressupõe a eliminação, pelos poderes públicos, de desigualdades fácticas de natureza social, económica e cultural – J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, Coimbra Editora 2007, pág. 339.

O princípio constitucional da igualdade caracteriza-se, pois, como proibição do arbítrio, permitindo apenas que se possam estabelecer diferenciações de tratamento, razoável, racional e objetivamente fundadas, sem as quais se incorrerá nesse arbítrio, por preterição do acatamento de soluções objetivamente justificadas por valores constitucionalmente relevantes. É essencial que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a discriminação infundada – cfr. Ac. TC nº 319/00, Diário da República, II série, de 18/10/2000, pág. 16785/16786.

O princípio da igualdade reclama, essencialmente, que seja conferido tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais, asserção repetidamente salientada na jurisprudência do Tribunal Constitucional - cf. Acórdãos n.ºs 186/90, 563/96, 14/2000, 187/2001, 509/2002 e 232/2003, publicados, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 16º volume, 383 e segs., idem, 33º volume, 47 e segs., Diário da República, I Série-A, de 16 de Maio de 1996, idem, II Série, de 19 de Outubro de 2000, idem, idem, de 26 de Junho de 2001, idem, I Série-A, de 12 de Fevereiro de 2003, e de 17 de Junho de 2003.

Em concreto, ainda que possa haver coincidência entre a parte do prédio indiviso e a fração autónoma do prédio constituído em propriedade horizontal, que, quando arrendadas, não facultarão, no primeiro caso, e, facultarão, no segundo caso, direito de preferência na venda, tal coincidência é meramente física e não jurídica.

Com efeito, no primeiro caso, aquela parte não é, no mundo do direito, e mais propriamente por força do disposto nos artigos 202.º e 203.º, ambos do CC, uma coisa, e, por consequência, não tem autonomia jurídica, pelo que não pode por si ser objeto autónomo de relações juridicamente válidas, invalidando, por força do disposto no artigo 1090.º, n.º1 e 417.º, ambos do CC, o exercício do direito de preferência; já no segundo caso, inversamente, a fração autónoma decorrente da opção voluntária de constituição do prédio em propriedade horizontal tomado pelo proprietário, é uma coisa, que o sistema reputa de juridicamente autónoma, e do que faz decorrer a possibilidade de poder destacar-se de todo o prédio e ser, apenas ela, objeto de negócios jurídicos e fonte, por isso do direito de preferência a favor do arrendatário – artigos 1416.º e 1417.º, ambos do CC.

Sendo os objetos do arrendamento, no caso de um andar de um prédio não constituído e de uma fração de um prédio constituído em propriedade horizontal, realidades jurídicas diferentes, existe, na base, uma situação que o sistema diversifica e que legitima o tratamento diferenciado, e coerente, na negação e na atribuição, respectiva, do direito de preferência.

As situações não são, pois, iguais, legitimando a desigualdade jurídica do objeto o tratamento diferenciado do feixe de direitos que se lhes associam. 

Por aqui, então, não existe qualquer afronta do direito de igualdade.

Também não haverá quando esteja em causa o direito de preferência em relação à totalidade do prédio, visto que, e desde já, em passo algum se afirma a existência do direito de preferência do arrendatário de fração autónoma sobre a totalidade do prédio, antes tendo, pela nossa parte, concluído que o direito de preferência se circunscreve, originariamente, ao “local arrendado”, se passível de autonomização.

Ora, somente do reconhecimento do direito de preferência do arrendatário da fração autónoma relativamente a todo o prédio, poderia decorrer a interrogação sobre o tratamento desigualitário do arrendatário de parte do prédio indiviso, o que se negou.

Também por aqui, não ocorre qualquer inconstitucionalidade. “.

Subscrevemos, por inteiro, esta argumentação.

Aliás, a conformidade constitucional da construção interpretativa da preferência do arrendatário, adotada pelo Supremo Tribunal neste acórdão e também pelas instâncias neste processo, foi já objeto de decisão favorável pelo Tribunal Constitucional, em acórdão de 3.11.2016, publicado no DR nº 235/2016, II Série, de 9.6.2016, para cuja fundamentação remetemos.

Não vemos, pois, razões para nos afastar desta orientação, cumprindo reafirmar que a norma do art. 1091º, nº1, al. a), do CC, na interpretação adotada, não viola quaisquer princípios constitucionais, mormente o assinalado pela recorrente.

Improcede, pois, in totum, a revista.


***



IV – Decisão


11. Nestes termos, negando provimento ao recurso, acorda-se em confirmar integralmente o acórdão recorrido.


Custas pela recorrente.


Lisboa, 7.11.2019


Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado (Relator)

Oliveira Abreu

Ilídio Sacarrão Martins

______________

[1] Para além daquelas que devam ser conhecidas oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC), o STJ conhece de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações de recurso, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução, entretanto dada a outra ou outras (arts. 608.º, n.º 2, 635.º e 639.º, n.º 1, e 679º, do mesmo diploma), sendo de ter presente que, para este efeito, as «questões» a conhecer não se confundem com os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, aos quais o tribunal o tribunal não se encontra sujeito (art. 5.º, n.º 3, também do CPC).
[2] O art. 1091º, do CC foi , entretanto, alterado pela Lei nº 64/2018, de 29.10.2018.
[3] Cf, para mais desenvolvimentos, Januário Gomes, Constituição da Relação de Arrendamento Urbano, Almedina, 1980, págs. 251-252.
[4] Sobre a controvérsia, v. Pires de Lima, RLJ, ano 95º, págs. 197 e ss e Sá Carneiro, RT, ano 80º, págs. 322 e ss.
[5] Neste sentido, cf. Aragão Seia, Arrendamento Urbano Anotado e Comentado, 7ª edição, Almedina, pág. 308; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, 4ª edição, Coimbra Editora, pág. 568; Pinto Furtado, Manual de Arrendamento Urbano, 3.ª Edição, Almedina, págs. 639-640 e Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações (Parte Especial), Contratos, 2.ª edição, Almedina, pág. 266; Agostinho Cardoso Guedes, O Exercício do Direito de Preferência, Teses, Univ. Católica, Porto 2006, págs. 184 e ss. Em sentido oposto, Oliveira Ascensão, Subarrendamento e Direitos de preferência no RAU, in ROA, ano 51, pág. 68 e Januário Gomes, Arrendamentos Comerciais, 2ª edição, Coimbra, pág. 204. Na jurisprudência, podem consultar-se, entre outros, os acs. do STJ de 28.1.97, CJ/STJ, V, 1º, 77, de 13.2.97, CJ/STJ, V, 1º, 104 e de 2.6.99, CJ/STJ, VII, 2º, 129. Na jurisprudência, entre outros, cf. o Ac. do STJ de 22.10.2009, proc. 446/09, disponível in www.dgsi.pt
[6] Foi precisamente ao abrigo deste último normativo que o acórdão recorrido (confirmando a sentença) negou o direito de preferência invocado pela autora.
[7]Disponível em: https://www.google.pt/search?q=direito+de+preferencia+arrendat%C3%A1rio+Cadete&rlz=1C1VFKB_enPT768PT769&oq=direito+de+preferencia+arrendat%C3%A1rio+Cadete&aqs=chrome..69i57.7838j1j8&sourceid=chrome&ie=UTF-8
[8] Em sentido muito crítico do regime decorrente da Lei nº 64/2018, cf. Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, Almedina, 9ª edição, págs. 86-89.