Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
069102
Nº Convencional: JSTJ00006815
Relator: JOAQUIM FIGUEIREDO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DE PATERNIDADE LEGITIMA
MINISTERIO PUBLICO
REPRESENTAÇÃO LEGAL
LEGITIMIDADE
UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ198204160691021
Data do Acordão: 04/16/1982
Votação: MAIORIA COM 3 VOT VENC
Referência de Publicação: DR IS 1982-06-18, PÁG. 1754 A 1756 - BMJ Nº 316 ANO 1982 PÁG. 133
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O PLENO.
Decisão: PROVIDO. TIRADO ASSENTO.
Indicações Eventuais: ASSENTO DO STJ.
Área Temática: DIR CIV - DIR FAM.
DIR PROC CIV.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 13 N1 ARTIGO 1787 N2 ARTIGO 1839 N1 ARTIGO 1841 ARTIGO 1846 N1.
L 39/78 DE 1978/07/05 ARTIGO 5 N1 D N2 A.
DL 264-C/81 DE 1981/09/03 ARTIGO 3.
EJ62 ARTIGO 185 N1 E.
Sumário :
Na vigencia do artigo 5 da Lei n. 39/78, de 5 de Julho, na sua redacção inicial, o Ministerio Publico tinha competencia para, em representação de menor, propor acção de impugnação de paternidade.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, funcionando em plenario:

O acordão deste tribunal, de 10 de Janeiro de 1980, publicado no Boletim do Ministerio da Justiça, n. 293, a paginas 387 e seguintes, decidiu competir ao Ministerio Publico propor, em representação de menor, acção de impugnação da sua paternidade, ainda que não a requerimento de quem se declarar pai do filho.
Mais tarde, em acção intentada pelo Ministerio Publico, como representante dos menores A e B, contra C e D, o Supremo julgou, diversamente, que a competencia, a legitimidade do Ministerio Publico para a propositura da acção de impugnação de paternidade, "depende do pedido de quem pretendesse ser o verdadeiro pai e do reconhecimento judicial da viabilidade desse pedido"- Acordão de 22 de Maio de 1980, proferido no processo n. 68816, da 2 Secção.
Alegando que, relativamente a mesma questão fundamental de direito, os 2 acordãos assentam sobre soluções opostas, o Ministerio Publico recorreu para o tribunal pleno do de 22 de Maio.
A 1 Secção declarou existir a oposição que serve de fundamento ao recurso.
O Ministerio Publico apresentou depois a sua alegação sobre o objecto do recurso, na qual pede que se anulem as decisões das instancias, "para que na 1 se profira novo despacho a ordenar a notificação dos reus, nos termos e para os efeitos do artigo 475, n. 4, do Codigo de Processo Civil", e se lavre assento no sentido de que ao Ministerio Publico cabe, em representação dos menores, propor acção de impugnação da sua paternidade, sugerindo para o assento a seguinte formula:
O Ministerio Publico, independentemente da situação prevista no n. 1 do artigo 1841 do Codigo Civil, tem competencia para, em representação de menor, propor acção de impugnação da paternidade deste.
A parte contraria não alegou.
Corridos, como foram, os vistos de todos os juizes do Tribunal e uma vez que, conforme se escreveu a folhas 15, "e manifesto que os acordãos em referencia consagram no dominio da mesma legislação teses juridicas opostas", ha que julgar o conflito.
O artigo 1839, n. 1, do Codigo Civil, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n. 496/77, de 25 de Novembro, veio consentir que a paternidade do filho seja impugnada pelo marido da mãe, por esta, pelo filho ou, nos termos do artigo 1841, pelo Ministerio Publico. Este ultimo artigo dispõe que a acção de impugnação de paternidade pode ser proposta pelo Ministerio Publico a requerimento de quem se declarar pai do filho, se for reconhecida pelo tribunal a viabilidade do pedido. Na acção, devem ser demandados a mãe, o filho e o presumido pai, quando nela não figurem como autores (artigo 1846, n. 1).
Enquanto vigorou o Estatuto Judiciario de 1962, não era licito duvidar-se de que o Ministerio Publico tinha competencia para, em representação de filho menor, propor acção de impugnação de paternidade.
E que, nos termos do seu artigo 181, n. 1, alinea e), o Ministerio Publico intervinha nos processos como parte principal quando entendesse dever assumir a representação judiciaria dos incapazes e o declarasse no processo.
A duvida passou a ter cabimento com a entrada em vigor da Lei Organica do Ministerio Publico (Lei n. 39/78, de 5 de Julho), que não inseria disposição identica a daquele alinea e). No tocante a incapazes, o artigo
5 desta lei apenas estabelecia que o Ministerio Publico tem intervenção principal nos processos quando os representa por não ter sido deduzida oposição em nome deles [n. 1, alinea d)] e intervem acessoriamente quando, não se verificando nenhum dos casos do numero anterior, os incapazes sejam interessados na causa [n. 2, alinea a)].
A partir dai, formaram-se no Supremo Tribunal de Justiça 2 correntes jurisprudenciais, de peso sensivelmente igual, acerca da competencia do Ministerio Publico, para, em representação de menores, impugnar a paternidade destes. Os Acordãos de 10 de Janeiro e 22 de Maio de 1980 são exemplos dessas correntes.
Aconteceu que, ja depois de apresentada a douta alegação do Excelentissimo magistrado do Ministerio Publico, foi, pelo artigo 3 do Decreto-Lei n. 264-c/81, de 3 de Setembro, dada a nova redacção ao artigo 5 da Lei n. 39/78. Estipula-se agora, no n. 1, alinea e), desse artigo que o Ministerio Publico tem intervenção principal nos processos quando representa incapazes, sem se acrescentar, como na alinea d) do texto anterior, "por não ter sido deduzida oposição em nome deles". Como e bem de ver, regressou-se ao regime adoptado pelo Estatuto Judiciario. Com uma diferença: no caso de o Ministerio Publico ter assumido a representação judiciaria de incapazes, a sua atitude prevalecia, se houvesse divergencia com a do representante legal deles (citado artigo 185, n. 1, alinea e), 2 parte, do Estatuto); enquanto, actualmente, a intervenção principal do Ministerio Publico cessa se o representante legal dos incapazes a ela se opuser por requerimento no processo (n. 2 do artigo 5 da Lei n. 39/78, na sua nova redacção).
Voltou, assim, a eliminar-se a duvida de que falamos atras: se o Ministerio Publico tem intervenção principal nos processos (ou, o que significa o mesmo, intervem neles como parte principal) qundo representa incapazes, independentemente da circunstancia de estes serem autores ou reus na acção, e seguro que não carece de competencia para, em representação de menor, propor acção de impugnação da sua paternidade.
Suscita-se, por isso, a questão de saber se a nova alinea e) do artigo 5, n. 1, da Lei n. 39/78 tem caracter inovador ou meramente interpretativo. Claro que, nesta ultima hipotese, a norma tem eficacia rectroactiva - artigo 13, n. 1, do Codigo Civil.
Nem sempre e facil apurar se certa disposição legal se reveste de uma ou de outra natureza. Segundo Paul Roubier, citado pelos autores que mais adiante aludiremos, ha que distinguir duas categorias de leis interpretativos: as que o são por determinação do legislador; as que o são pela sua propria natureza. "E de sua natureza interpretativa a lei que, sobre um ponto em que a regra de direito e incerta ou controvertida, vem consagrar uma solução que a jurisprudencia, por si so, poderia ter adoptado".
Entre nos, a formula de Roubier foi aceite por Alberto dos Reis (parecer publicado na Revista da Ordem dos Advogados, ano 2, ns. 1 e 2, paginas 49 e seguintes) e pelo Professor Baptista Machado (Sobre a aplicação no tempo do novo Codigo Civil, pagina 286). Tambem de algum modo parece admiti-la o Professor Pereira Coelho, quando, na Revista de Legislação e de Jurisprudencia, ano 114, pagina 114, pagina 184, diz afigurar-se-lhe que o n. 2 do artigo 1787 do Codigo Civil, na redacção do Decreto-Lei n. 496/77, "não reveste caracter inovador, mas meramente interpretativo, limitando-se, como se limita, a fixar uma orientação ja estabelecida na jurisprudencia anterior" (Sublinhado nosso).
Alberto dos Reis (loc. cit., pagina 57) entende mesmo que lei interpretativa por natureza (ou por função, como a designa) "e a que exerce um papel semelhante ao que exercem os assentos do Supremo Tribunal de Justiça, quer dizer, e a lei que se destina a por termo a um conflito de jurisprudencia". No acordão deste Tribunal, de 5 de Maio de 1972 (Boletim, n. 217, pagina 113), da-se acolhimento a definição do eminente processualista.
Não sera necessario, para que a lei se considere interpretativa, que se tenha aberto um conflito de jurisprudencia; indispensavel e apenas que, sobre o ponto em que a norma e incerta, a jurisprudencia pudesse ter chegado a solução que a lei nova vem consagrar. Se a norma, alem de incerta, e ja controvertida, então a lei nova so pode qualificar-se de interpretativa se resolve o problema dentro dos parametros da controversia a tal respeito gerada, perfilhando uma forte corrente jurisprudencial anterior.
Observa-se que "a atribuição de natureza interpretativa a uma norma legal pode ser melindrosa, visto forçar os tribunais a decidir questões surgidas no dominio da lei anterior no sentido fixado pela lei interpretativa, sentido esse que pode não ser o melhor em face da lei interpretada, iludindo, assim, legitimas expectativas criadas ao abrigo desta" (Professor Vaz Serra, na mesma Revista de Legislação e de Jurisprudencia, ano 106, pagina 144). A isso opõe, com razão, o Professor Baptista Machado (ob. e loc. cits.) que a retroacção das leis interpretativas se justifica, alem do mais,
"por não envolver uma violação de quaisquer expectativas seguras e legitimas dos interessados. Estes podiam contar que a solução fixada pela lei nova interpretativa, visto ela corresponder a um dos varios sentidos atribuidos ja pela doutrina e pela jurisprudencia a lei nova". Ponto e que a lei nova consagre, "se não a corrente dominante, pelo menos uma corrente forte de interpretação relativa ao direito anterior".
Ora e precisamente esse o caso de que nos estamos a ocupar. Como se escreveu atras, formaram-se neste tribunal (e não so), acerca do ponto em exame, duas correntes de peso sensivelmente igual. Na sua nova redacção, o artigo 5, n. 1, alinea e), da Lei n. 39/78 consagra uma de tais correntes - aquela segundo a qual o Ministerio Publico tem competencia para, em representação de menor, propor acção de impugnação de paternidade. A norma e, por conseguinte, de sua natureza interpretativa.
Levanta-se agora um novo problema: desde que a questão posta nos acordãos em conflito se considere resolvida por via legislativa ha que lavrar assento?
Com o aplauso de Alberto dos Reis (Processos Especiais, vol I, pagina 222), decidiu-se que não no acordão de 12 de Janeiro de 1954, publicado na Revista de Legislação e de Jurisprudencia, ano 86, pagina 329.
A Revista dos Tribunais (ano 83, pagina 37) não e tão peremptoria:
"Se as disposições fossem realmente interpretativas, não haveria que tirar assento ou o mesmo tinha de ser tirado em conformidade com a interpretação autentica da lei".
Dois dos juizes que assinaram vencidos o referido acordão, os Conselheiros Lencastre da Veiga e Beça de Aragão, declararam, a proposito desse ponto, que "havia que apurar do fundo, sem embargo, evidentemente, da norma interpretativa, a qual deve haver-se como insita na interpretada; e teria de sair assento para resolver o conflito ou oposição entre os dois arestos (artigo 768 do Codigo de Processo Civil), sucedendo que, em boa forma, so quando não existe essa oposição e que o recurso deve considerar-se findo, consoante o artigo 767 do mesmo Codigo".

Tambem entendemos que, na hipotese considerada, não ha motivo para deixar de dar-se integral cumprimento ao preceituado no n. 3 do citado artigo 768. So o assento, que não o teor do acordão proferido sobre o recurso para o tribunal pleno, os seus fundamentos, tem eficacia decisoria para o caso concreto em litigio; se o recurso se considera findo, sem se chegar a lavrar assento (julgar o conflito), não e possivel confirmar-se ou revorgar-se o acordão recorrido, o qual, assim, transitara em julgado.
No caso de a lei interpretativa consagrar a solução oposta a desse acordão, o resultado seria, manifestamente, intoleravel.
Resta acrescentar que a questão suscitada não e de legitimidade do Ministerio Publico para propor acção de impugnação de paternidade, mas de competencia do orgão. Legitimidade para demandar tem-na sempre o menor, seja quem for que o represente; a duvida e sobre se pode representa-lo o Ministerio Publico.
E obvio.
Nestes termos, revogam-se o acordão recorrido e, com ele, as decisões das instancias, para que na 1 se profira despacho a ordenar a notificação a que se refere o artigo 475, n. 4, do Codigo de Processo Civil, e lavra-se o seguinte assento:
Na vigencia do artigo 5 da Lei n. 39/78, de 5 de Julho, na sua redacção inicial, o Ministerio Publico tinha competencia para, em representação de menor, propor acção de impugnação de paternidade.
Custas pelos reus, se a final ficarem vencidos.

Lisboa, 16 de Abril de 1982

Joaquim Figueiredo (Relator) - Alves Peixoto - Vasconcelos de Carvalho - Arelo Manso - Costa Ferreira - Jose Luis Pereira - Quesada Pastor - Afonso Liberal - Abel de Campos - Santos Vitor - Melo Franco - MIguel Caeiro -
- Dias da Fonseca - Amaral Aguiar - Santos Carvalho - Vitor Coelho - Mario de Brito - Santos Silveira - Lima Cluny - Anibal Aquilino Ribeiro - Furtado dos Santos - Henriques Simões - Moreira da Silva - Lopes Neves -
- Antero Pereira Leitão - Campos Costa (Vencido, votei que se tirasse assento em sentido contrario ao que triunfou, pelas razões que fiz constar do acordão da Relação de Lisboa, de 22 de Abril de 1980 (Colectanea de Jurisprudencia, 1980, tomo 2, pagina 223), sendo certo que a nova redacção dada pelo Decreto-Lei n. 264-C/81 não tem caracter interpretativo, ja que se inspirou numa filosofia totalmente oposta a que esteve na base do primitivo texto da Lei n. 39/78) - Rodrigues Bastos (vencido. Entendo que a nova redacção dada ao artigo 5 da Lei n. 39/78, de 5 de Junho, e irrelevante para a hipotese sub judice, por não ser uma norma atribuitiva de legitimidade ao Ministerio Publico. Dai, e porque a lei preve expressamente que a incapacidade judiciaria do menor sera suprida por curador especial (Codigo Civil, artigo 1881, n. 2), entendo que o Ministerio Publico so pode propor a acção de impugnação de paternidade a requerimento de quem se declarar pai do filho, nos termos dos artigos 1839, n. 1, e 1841 do Codigo Civil) - Solano Viana (Vencido pelas razões indicadas no voto do Excelentissimo Conselheiro Rodrigues Bastos).