Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
15787/15.8T8PRT.P1.S2
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: GONÇALVES ROCHA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DO ARTIGO 640º DO CPC
Data do Acordão: 09/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / ÓNUS A CARGO DO RECORRENTE QUE IMPUGNE A DECISÃO RELATIVA À MATÉRIA DE FACTO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC):- ARTIGO 640.º, N.º 1, ALÍNEA B).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 20-12-2017, PROCESSO N.º 299/13.2TTVRL.C1.S2.
Sumário :
I - A alínea b), do nº 1, do art. 640º do CPC, ao exigir que o recorrente especifique os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, exige que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respectivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos.

II - Não cumpre aquele ónus o apelante que, nas alegações e nas conclusões, divide a matéria de facto impugnada em vários blocos de factos e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna.

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

1---

AA instaurou a presente acção com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho, contra

BB, S.A., pedindo:

1) Ser considerado que a retribuição do A emergente do contrato de trabalho celebrado com a R é composta por todas as prestações referidas nos artigos 13.º a 22.º desta petição inicial, calculadas nos termos expostos na mesma, nomeadamente no seu artigo 23º, bem como pelas demais prestações, com todas as consequências legais;

2) Ser declarada a ilicitude da redução unilateral da retribuição do A efectuada pela R, com todas as consequências legais;

3) Ser a R condenada a pagar ao A a quantia global de € 128.078,68 (cento e vinte e oito mil e setenta e oito euros e sessenta e oito cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano sobre € 116.409,97, desde 23/Junho/2015 até integral pagamento;

4) Ser a R. condenada a pagar ao A. as retribuições emergentes do contrato de trabalho vincendas desde 23/Junho/2015, acrescidas de eventuais juros de mora que possam ser aplicáveis desde as datas de vencimentos das prestações em causa até integral pagamento;

5) Sem conceder, relativamente à prestação em espécie do veículo, deverá a R ser condenada a atribuir ao A um veículo em iguais condições às que existiam anteriormente ao momento em que o A foi privado do veículo ou, em alternativa, pagar ao A a quantia mensal líquida de € 500,00 (quinhentos euros), devendo a R declarar nos autos se opta pela prestação em espécie ou pelo pagamento em dinheiro nos termos peticionados.

Alegou, para tanto, e no essencial, que trabalhando para a R beneficiou, em termos retributivos, de montantes relativos a isenção do horário de trabalho, prémio de seguro, prémio anual, subsídios de Natal e de férias, e despesas de combustível, acrescidos da disponibilização de um veículo automóvel para fins profissionais e pessoais. No entanto, a R deixou de pagar a retribuição referente à isenção de horário de trabalho e ao prémio anual, deixou de lhe pagar a totalidade do prémio de seguro e as despesas de combustível e acabou por retirar-lhe a viatura que lhe disponibilizava.

Como a audiência de partes não resultou na sua conciliação, veio a Ré contestar sustentando que a retirada do montante pago a título de isenção de horário de trabalho resultou da situação económico-financeira precária com que se viu confrontada, a qual levou também a que, por força dos prejuízos detectados, tenha deixado de pagar o prémio anual.

Quanto ao veículo, este apenas foi disponibilizado ao A para efeitos profissionais; e no que se refere às despesas de combustível, a R pagou aquelas de que o A apresentou os respectivos comprovativos.

Conclui assim que a acção deve ser julgada apenas parcialmente procedente quanto a parte do prémio de seguro e a parte do subsídio de Natal de 2012.

O Autor apresentou resposta, mantendo o peticionado.

Procedeu-se à realização de audiência preliminar, tendo-se no seu decurso procedido ao saneamento do processo e à fixação do valor da causa em € 128.078,68.

E tendo-se dispensado a identificação do objecto do litígio, bem como a enunciação dos temas de prova, foi efectuada audiência de discussão e julgamento.

Por fim, foi proferida sentença, que concluiu com o dispositivo seguinte:

“Pelo exposto, julgo a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, em consequência, condeno a R, BB, S.A., a pagar ao A, AA, a quantia global de € 6 510 (seis mil quinhentos e dez euros), à qual deverão acrescer juros de mora, à taxa legal, contados desde o vencimento de cada uma das prestações que integram aquele valor, até efectivo e integral pagamento, absolvendo a R. do restante peticionado.

Condeno o A e a R nas custas do processo, na proporção do respectivo decaimento.”

Inconformado, apelou o Autor, tendo suscitado no recurso as seguintes questões:

a) Se a sentença é nula, nos termos do art.º 615º, n.º 1, al. c), do Código Processo Civil;

b) Se o tribunal a quo errou o julgamento na apreciação da prova e fixação dos factos provados;

c) Se o tribunal a quo errou o julgamento na aplicação do direito aos factos, por não ter julgado a acção totalmente procedente (deduzindo-se apenas o valor de € 668,75 relativo ao subsídio de Natal de 2012 pago na pendência da acção).

Apreciada a apelação, proferiu a Relação acórdão a julgar o recurso improcedente, assim confirmando a sentença recorrida.

Ainda inconformado, interpôs o A recurso de revista nos seguintes termos:

   “ DA ADMISSIBILIDADE DO RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL:

Em primeiro lugar, verifica-se que estamos perante interesses de particular relevância social (Art. 672.°, n.° 2, ali. b), Cód. Proc. Civil).
1) Estão em causa questões remuneratórias no âmbito de um contrato de trabalho, pelo que se discutem interesses com protecção constitucional, designadamente no art. 59.° da Constituição da Republica Portuguesa.
2) Os interesses no âmbito da relação laboral assumem particular relevância social.
3) A decisão recorrida põe em causa a eficácia do Direito e a credibilidade e confiança na Justiça.
4) Destaca-se a circunstância de, não obstante ter considerado a prestação do "prémio de seguro" como retribuição, a decisão recorrida decidiu não condenar a recorrida no seu pagamento, criando-se uma situação de instabilidade e descrença nos tribunais, colidindo as decisões proferidas directamente com os direitos do recorrente, ofendendo-os de forma grave e causando uma situação de inquietação quer no recorrente, quer naqueles trabalhadores que se vêm em situação idêntica à do recorrente.

SEM CONCEDER,

6)   Em segundo lugar, verifica-se também existirem vários Acórdãos,
já transitados em julgado, proferidos pela Relação e pelo
Supremo Tribunal de Justiça, que se encontram em contradição com o Acórdão recorrido
, melhor identificados no corpo das alegações do presente recurso ("acórdãos-fundamento").

7) No que se refere ao entendimento do Acórdão recorrido de rejeição da impugnação da matéria de facto com fundamento na forma como é feita a impugnação pelo recorrente, tal entendimento encontra-se em clara oposição com o entendimento plasmado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de Maio de 2016, Proc. 1184/10.5TTMTS.P1.S1, de acordo com o qual o ónus de alegação imposto ao recorrente nos termos do art. 640° do Cód. de Processo Civil "não pode redundar na adopção de entendimentos centrados numa visão formalista do processo por parte dos Tribunais da Relação, e que, na prática, se traduzam na recusa de reapreciação da matéria de facto, máxime da audição dos depoimentos prestados em audiência, coarctando à parte recorrente o direito de ver apreciada e, quiçá, modificada, a decisão da matéria de facto, com a eventual alteração da subsunção jurídica".

8) No que se refere ao entendimento do Acórdão recorrido de que não faz sentido invocar o ónus da prova quanto ao não pagamento das prestações que habitualmente pagava ao recorrente (em especial da prestação a título de "prémio de seguro" que o tribunal de 1ª instância considerou como parte integrante da retribuição do recorrente), tal entendimento encontra-se em oposição clara com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06/07/2006, Proc. 06B2012, que refere que é "sobre o devedor demandado que, consoante o art. 342°, n°2, do Cód. Civil, recai o ónus da prova de que esse modo de extinção da obrigação (o pagamento) efectivamente ocorreu e verificou".

9) No que se refere ao entendimento do Acórdão recorrido de que as prestações reclamadas pelo recorrente não integram o conceito de retribuição e que por isso não se encontram abrangidas pelo princípio da irredutibilidade da retribuição, tal entendimento encontra-se em oposição clara com o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 01/02/2016, Proc. 124/14.7T8VNG, que refere que é ao réu que compete demonstrar que, tendo efectuado o pagamento de certas prestações, elas não tinham carácter de retribuição.
10) No que se refere ao entendimento do Acórdão recorrido de que
a
utilização pelo recorrente de um veículo automóvel durante
mais de 15 anos não integra o conceito de retribuição
, encontra-
‑se em oposição com os
Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de
12/18/2013, Proc. 248/10.0TTBRG.P1.SI e de 30/04/2014, Proc.
714/11.0TTPRT.P1.S1
e com o Acórdão do Tribunal da Relação do
Porto de 14/05/2012, Proc. 243/10
.

B - DOS FUNDAMENTOS DA REVISTA EXCEPCIONAL

11) Em primeiro lugar, verifica-se a violação do disposto no art.
640°, n° 1, alí. a), b) e c) e do nº 2, ali. a), do Cód. de Processo Civil
, uma vez que a Relação violou o disposto quanto ao ónus de alegação que cabe ao recorrente que apresenta recurso com impugnação da matéria de facto.
12) A Relação sobrevalorizou tal ónus, reconduzindo e
interpretando a lei de forma demasiado formalista, acabando por impedir o recorrente de alcançar o segundo grau de jurisdição a que tem direito.

13)  Em segundo lugar, verifica-se também a violação do disposto no art. 342°, n° 2, do Cód. Civil quanto ao ónus da prova do pagamento, de acordo com o qual recai sobre o devedor o ónus da prova de que se verificou a extinção da sua obrigação (de pagamento).
14) Nestes autos, a recorrida não fez prova do pagamento, pelo que, pelo menos quanto à prestação denominada "prémio de seguro" que foi considerada retribuição pelo tribunal, a recorrida teria de ser condenada no pagamento dos valores que tinha de pagar e se encontram em dívida, e admitiu não ter pago.
15) Resumindo, a recorrida não provou o pagamento das quantias peticionadas, aliás, nem sequer alegou tal pagamento, e confessou o não pagamento das mesmas ao recorrente.
16) Pelo que, conforme muito bem refere o Acórdão recorrido quanto a esta parte (embora depois decida em sentido diverso), "A Ré tinha de cumprir esse ónus, mas relativamente às prestações que estivesse obrigada a pagar por integrarem o conceito de retribuição".
17) Assim, não tendo tal prova sido feita, especialmente quanto ao "prémio do seguro", ao decidirem como decidiram, os tribunais recorridos erradamente colocaram o ónus da prova do pagamento no recorrente (credor) ao não condenar a recorrida no pagamento dessas parcelas.
18) Em terceiro lugar, verifica-se a violação do disposto nos n°s 1, 2 e 3 do art. 258°, do Cód. Trabalho, uma vez que, de acordo com este artigo, a retribuição abrange todas as prestações regulares e periódicas feitas ao trabalhador, directa ou indirectamente, em dinheiro ou em espécie (n° 2).
19) Sendo que, no caso destes autos, resulta dos factos provados, que todas as prestações reclamadas pelo recorrente foram recebidas com regularidade e periodicidade e em contrapartida do trabalho prestado pelo recorrente, especialmente quanto à prestação a título de "isenção de horário de trabalho", paga 14 vezes por ano, que foi recebida pelo recorrente durante 12 anos, quanto à prestação a título de "prémio de seguro" que foi recebida pelo recorrente durante cerca de 10 anos e quanto ao veículo automóvel que foi entregue ao recorrente durante cerca de 13 anos.
20) Já no que se refere ao disposto no n.° 3 do referido preceito, os tribunais recorridos também não têm em consideração a presunção de que constitui retribuição qualquer prestação do empregador ao trabalhador, o que implica a inversão do ónus da prova, fazendo recair sobre a recorrida a prova de que as atribuições patrimoniais pagas ao recorrente não constituem contrapartida da sua actividade ou não tem natureza periódica e regular.
21) Por exemplo, quanto à prestação designada por "isenção de horário de trabalho", não resultou provado nos autos que esta estivesse relacionada com algum tempo de trabalho ou com alguma função específica do recorrente, tendo sido paga ininterruptamente desde que começou a ser paga no ano de 2000.
22) Quanto à questão do veículo automóvel disponibilizado ao recorrente durante cerca de 13 anos, é entendimento da generalidade dos tribunais que, verificando-‑se a utilização do automóvel também para uso pessoal, então este tem de integrar, inevitavelmente, o conceito de retribuição, atendendo ao benefício que traz para o trabalhador.
23) Em quarto lugar, verifica-se a violação do disposto no art.
74.°, do Cód. Processo Trabalho
, do qual resulta o princípio da
condenação
extra vel ultra petitum pelo que, atentos os elementos
constantes dos autos, inclusivamente da matéria de facto provada,
mesmo que se partisse dos pressupostos da decisão recorrida, sempre
teria a mesma de decidir pela condenação da recorrida ao abrigo
deste princípio.

ACRESCE QUE,
24) O presente recurso de revista fundamenta-se ainda nas
nulidades previstas no art. 615° do Cód. Proc. Civil
uma vez que as sentenças recorridas se mostram viciosas, já que os fundamentos constantes das mesmas conduziriam necessariamente a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente das proferidas.
25) A título de exemplo, a recorrida apenas foi condenada no pagamento da quantia de € 6.510,00, quantia essa que não corresponde aos valores peticionados pelo recorrente no que se refere à prestação denominada "prémio de seguro".
26) Tal decisão não se coaduna com a fundamentação das sentenças proferidas, que referem que a prestação denominada "prémio de seguro" integra o conceito de retribuição.
ASSIM,
27) O Acórdão recorrido viola a Lei e o Direito, em especial as normas seguintes: art. 640°, n° 1, alis. a), b) e c) e n° 2, ali. a), do Cód. de Processo Civil; art. 342°, n° 2, do Cód. Civil; o art. 258°, n°s 1, 2 e 3, do Cód. Trabalho; o art. 74° do Cód. Proc. Trabalho; e o art. 59.° da Constituição da Republica Portuguesa.
28) Em consequência, deve ser proferida decisão que julgue a presente acção totalmente procedente.”

   A Recorrida não contra-alegou.

Subido o recurso como revista excepcional, deliberou a Formação prevista no nº 3 do artigo 672º do CPC que, embora se configure uma situação de dupla conformidade, tal não acontece em relação à questão da rejeição da apelação na parte correspondente à impugnação da matéria de facto, pelo que se impõe apreciar se esta posição da Relação foi legal, tanto mais que a sua procedência implicará a anulação do acórdão recorrido e o regresso dos autos à Relação para conhecer da impugnação apresentada pelo apelante.

Por isso se ordenou a distribuição do recurso como revista nos termos gerais, cujo objecto está naturalmente circunscrito à apreciação da rejeição da impugnação da matéria de facto que fora apresentada na apelação, por alegado incumprimento dos ónus do artigo 640º do CPC.

     

E admitida esta, emitiu o Senhor Procurador Geral Adjunto parecer nos termos do nº 3 do artigo 87º do CPT, propendendo para a confirmação do acórdão recorrido em virtude do apelante não ter cumprido os ónus impostos por aquele normativo ao não indicar, em relação a cada um dos factos impugnados, os meios de prova que impõem uma decisão diversa. E mais argumentou que o recorrente não efectuou uma apreciação crítica dos elementos de prova donde se deveria concluir pelas alterações pretendidas.       

Notificadas as partes deste parecer, veio o recorrente sustentar que cumpriu os ónus impostos pelo supracitado preceito, pelo que a Relação deveria ter apreciado a matéria de facto impugnada.

Cumpre assim decidir.

2----

            As instâncias atenderam à seguinte factualidade:

1) A R é uma empresa que se dedica à consultoria e à elaboração de estudos e projectos de arquitectura e engenharia e à gestão, coordenação e fiscalização de obras e empreendimentos;
2) No exercício da sua actividade, a R celebrou com o A, licenciado em engenharia electrotécnica, um contrato de trabalho com início em 21 de Julho de 1994;
3) Nos termos desse contrato, o A foi contratado para prestar à R as funções vulgarmente designadas de “Chefe de projecto - CP”, que consistem abreviadamente na concepção de projectos e na elaboração de propostas de engenharia na especialidade de electrotecnia, funções que o A. exerceu durante cerca de dois anos a contar do início do contrato;
4) De 1995 a 1997, por indicação da R, o A exerceu as funções de “Responsável de competência técnica - RCT”, que consistem abreviadamente em chefiar a equipa de engenharia e desenho na especialidade de engenharia electrotécnica, funções que o A exerceu efectivamente nesse período;
5) De 1997 a 2008, também por indicação da R, o A exerceu cumulativamente as funções de “Responsável de competência técnica - RCT”, e de “Director de projecto - DP”, consistindo estas últimas abreviadamente em planear, organizar, controlar e liderar uma equipa interdisciplinar em todas as áreas de engenharia bem como as encomendas, funções que o A exerceu cumulativamente efectivamente nesse período;
6) Em 2008, a R informou o A que passaria a exercer as funções de “Director de projecto - DP”;
7) Contudo, desde então, também por indicação da R, o A exerceu, para além dessas funções e de forma pontual, outras funções, por exemplo, de “engenheiro de projecto”;
8) Assim executando as funções acima referidas por conta, sob as ordens, instruções e direcção da R, por exemplo, quanto a trabalhos, clientes e prazos;
9) Nos termos acordados entre A e R, o local de trabalho do A era na sua sede, no Porto;
10) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pelo A eram pertença da R, entre outros, computador, papel, impressora, tinteiros, telemóvel;
11) O A, ao longo dos tempos, auferiu a retribuição constante dos documentos de fls. 25 a 42, 555 a 570 e 595 a 681, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos;
12) A e R acordaram que, a partir de Julho de 1999, o primeiro usufruiria, para uso profissional, de um veículo automóvel;
13) Os encargos com o contrato financeiro relativo à disponibilidade do mencionado veículo automóvel (aluguer de longa duração) eram suportados integralmente pela R, bem como todos os demais encargos relativos ao mesmo, entre outros, manutenção, pneus, reparações, imposto de circulação automóvel e seguro;
14) Em Maio de 2012, os encargos com o dito veículo ascendiam a € 436,69, sendo que este valor já era o valor no final do contrato financeiro e, por isso, mais reduzido do que o valor inicial;
15) O A foi utilizando a viatura que lhe foi concedida para fins particulares, com tolerância da R;
16) Porém, dada a situação de crise, em Junho de 2012, no final do contrato de ALD da viatura que o A usava, a R deu-lhe ordem para entregar o carro, e anulou esse custo, sendo que aquele continuou a utilizar viaturas da R para as suas deslocações em serviço;
17) O A. tinha um “plafond” mensal de € 150, em doze meses por ano, para despesas de combustível (não imputadas a processos), mediante a entrega de justificativos;
18) O A foi utilizando este plafond, tendo recebido por transferência bancária, no ano de 2015, € 147,72 em Janeiro, € 140,59 em Fevereiro, € 314,17 em Abril (relativos a esse mês e ao de Março, em que nada apresentou), € 170,20 em Junho e € 139,89 em Julho;
19) Em contrapartida da actividade prestada pelo A ao R, a título de retribuição, estes acordaram que, desde o início do contrato de trabalho, o A auferiria subsídio de alimentação, o qual, na data de 23 de Junho de 2015, ascende a € 8,25 por dia de trabalho;
20) A R, a partir de 2006, obrigou-se perante o A a pagar-lhe um prémio anual (que poderia ser pago em duas prestações no ano), designado no recibo por “gratificação”, e que foi instituído para quem desempenhasse as funções de “Responsável de competência técnica - RCT” e de “Director de projecto - DP”, prémio esse cuja atribuição dependia dos lucros da R e do desempenho do trabalhador em apreço;
21) Em contrapartida da actividade prestada pelo A ao R, a título de retribuição, estes acordaram que o primeiro auferiria todas as demais prestações impostas por lei, entre outras, subsídios de Natal e de férias;
22) A prestação designada por “despesas” nos recibos correspondia ao reembolso de despesas em que o A incorresse no exercício das suas funções (por exemplo, deslocações, almoços, estadias) e nada tinham a ver com as “despesas de combustível” acima referidas;
23) A prestação designada por “isenção de horário de trabalho” foi paga desde Junho de 2000 até Março de 2012, catorze vezes por ano;
24) Por carta datada de 30 de Março de 2012, a R comunicou ao A que, a partir de Abril de 2012, não lhe iria pagar a prestação designada por “isenção de horário de trabalho”;
25) A partir de Julho de 2012 a R deixou de pagar ao A parte da prestação denominada “prémio de seguro”, concretamente deixou de pagar € 232,50 por mês;
26) A facturação da R desceu de € 17 303 660 em 2008, para € 15 710 296 em 2010, para € 9 153 596 em 2014, sendo na unidade do A (UNP – unidade de projecto) de € 6 643 859, de € 4 222 641€ e de € 1 806 799, respectivamente;
27) Essa redução de negócios foi determinante da indispensabilidade de diminuição de custos, máxime com o pessoal (em 2010 tinha 314 trabalhadores, em 2011, 289, em 2012, 235, em 2013, 177 e em 2014, 170), sob pena de a sua subsistência estar em causa por falência económico-financeira;
28) Nos exercícios de 2011, 2012, 2013 e 2014 a R sofreu prejuízos económicos de, respectivamente, € 1 462 405, € 1 817 992, € 944 622 e € 663 985;
29) Nessa medida, a R viu-se obrigada a pedir a colaboração dos trabalhadores na redução das condições remuneratórias pela redução do tempo de trabalho, temporariamente, a fim de as condições adversas de actividade serem ultrapassadas;
30) A redução de actividade da R e a subocupação do A tornaram desnecessária e injustificada a prestação de trabalho do A neste regime: a produção na sua competência de DP (direcção de projecto) em 2010 era de € 189 729, em 2014, de € 35 720 (a mais baixa da sua unidade), a produção nas encomendas de que é director de projecto baixou de € 1 075 582 em 2010, para € 283 339 em 2014 (a mais baixa da sua unidade), estando o A com um nível de produtividade de 27,2% em 2014, e de 7,2% em 2015 (a mais baixa da sua unidade);
31) Com o estrangulamento financeiro por que passou, a R deixou atrasar o pagamento do “prémio de seguro”, estando neste momento em dívida o mês de Abril de 2014 e de Dezembro de 2014 em diante;
32) O A deixou de trabalhar para a R em 31 de Outubro de 2016, por ter sido visado em despedimento colectivo promovido por aquela.

Os factos não provados:

a) o A sempre tenha prestado trabalho para além dos limites legais, de acordo com as necessidades de trabalho e ordens da R;
b) Em contrapartida da actividade prestada pelo A ao R, nos termos acordados entre estes, na sequência de vários aumentos de retribuição do A, pelo menos a partir de cerca de 2003, a título de retribuição, o A tenha passado a auferir uma quantia mensal certa e fixa, que, única e exclusivamente por conveniência e imposição da R, para efeitos de contabilidade desta, nomeadamente recibos de vencimento, surgia decomposta em quatro prestações: “Vencimento-base”, “Isenção de horário de trabalho”, “Prémio de seguro” e “Despesas de combustível”;
c) Nas circunstâncias referidas em 12), A e R tenham acordado que o primeiro usufruiria, para uso pessoal, de um veículo automóvel;
d) Desde Julho de 1999, o A utilizasse o veículo mencionado em 12) durante a semana, levando-o para casa após o horário de trabalho, fins-de-semana e férias, ficando o veículo sempre na sua posse e fruição, que o utilizava para os fins que bem entendia, entre outros, deslocações com a família e deslocações para férias;
e) Nos termos acordados, os descontos para a Segurança Social e a título de I.R.S. apenas incidissem sobre as prestações designadas por “vencimento base”, “isenção de horário de trabalho”, subsídio de alimentação (na parte sujeita), “prémio anual” e subsídios de Natal e férias, e que haja sido assegurado ao A que as demais prestações acima referidas eram líquidas de tributos, isto é, correspondiam ao valor a entregar ao A;
f) Quanto à prestação designada por “prémio de seguro”, o que acontecesse fosse que o A, no dia seguinte ao pagamento do seguro pela R directamente à seguradora, enviava, de acordo com as ordens da R, um email à seguradora para que esta transferisse o valor pago pela R para a conta bancária do A;
g) A prestação designada por “isenção do horário de trabalho” não decorresse de nenhum regime de tempo ou horário de trabalho específicos, mas sim, conforme tenha sido transmitido pela R ao A quando tal quantia lhe passou a ser paga, num aumento salarial do A e haja sido apresentada ao A como aumento salarial, mas que por conveniência da R teve esse tratamento;
h) Em Junho de 2012, a R, verbalmente, tenha retirado ao A o veículo que lhe era disponibilizado, tendo aquele recebido uma ordem para a entrega definitiva do veículo com uma antecedência não superior a um mês, e não mais a R lhe tendo entregado nenhum em substituição desse;
i) A R, a título de “prémio de seguro”, nada tenha pago ao A, nos meses de Fevereiro a Abril e Dezembro de 2014 e desde Janeiro de 2015 até Junho de 2015;
j) Desde Janeiro de 2015 até Junho de 2015 a R tenha deixado de pagar a totalidade da prestação denominada “despesas de combustível”;
k) Em relação ao veículo disponibilizado pela R ao A, o custo em que este teria de incorrer para comprar ou locar e aceder à fruição de um veículo igual àquele, fosse de € 500 líquidos;
l) Se encontre em dívida por parte da R o subsídio de Natal de 2012;
m) O A se tenha revelado sempre insensível e alheado da situação difícil da R e da boa colaboração dos colegas (e da Administração, também abrangida), que anuíram, todos, ao esforço pedido pela R.

3----

Conforme já se disse, está em causa apurar se a Relação andou bem ao rejeitar a impugnação da matéria de facto que o A havia suscitado na apelação, pois a revista foi admitida apenas para que este Supremo Tribunal se pronuncie sobre o cumprimento dos ónus a cargo do apelante quando impugna a matéria de facto.

Efectivamente, tendo a Relação rejeitado a apreciação desta questão por incumprimento dos ónus do artigo 640º do CPC, sustenta o recorrente que os mesmos foram cumpridos.

Vejamos então se tem razão.

3.1-----

Determina o supracitado normativo:

“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”

Assim, pretendendo a parte impugnar a decisão sobre a matéria de facto, tem que dar cumprimento aos ónus indicados neste preceito, sendo-lhe por isso exigível que enuncie:

- Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, conforme resulta do n.º 1, al. a);

 - Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto que foram impugnados, conforme advém do n.º 1, al. b);

- E qual a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas - n.º 1, al. c).

Diga-se ainda que, e conforme impõe o nº 2, alínea a) do supramencionado artigo 640º do CPC, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, tem o recorrente que indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, pois se o não fizer tal levará à imediata rejeição do recurso na respectiva parte.

Enfrentando a questão do cumprimento destes ónus pelo recorrente, diz o acórdão recorrido:

“O recorrente impugna a matéria de facto quanto aos factos seguintes:

i) Aos mencionados nas alíneas b), c), d), e), g), h), i), j) e k), dos factos não provados, pretendendo que sejam considerados provados;

ii) Factos alegados na petição inicial, nomeadamente, nos artigos 13.º, 26.º, 36.º, 37.º e 40.º, pretendendo que sejam aditados ao elenco da matéria de facto;

 iii) Aos factos provados sob os números 15, 17, 26, 27, 29, 30 e 31, pretendendo que se considerem não provados.”

            E continua o aresto:

“No que respeita às conclusões, o recorrente observa o que se exige como suficiente para dar cumprimento ao disposto nos artigos 639.º e 640.º do CPC, dado delas constarem quais os factos que impugna e em que sentido pretende ver alterada a decisão, nomeadamente: os provados, pretende que se considerem não provados; os não provados, entende que devem considerar-se provados; e, os que invoca ter alegado na PI e que não foram considerados relevantes, defende que devem ser aditados.

… …

Quanto ao mais, à primeira vista poderá parecer que o recorrente cumpre igualmente com o que lhe é exigível pelo art.º 640.º do CPC, dado haver indicação dos meios de prova que no seu entender deveriam conduzir a resposta diferente sobre os factos impugnados.

Contudo, assim não poderá concluir-se.

Passamos a justificar esta asserção.

A indicação dos meios de prova feita nas alegações foi praticamente trazida às conclusões, conforme logo o elucida o título sob as quais se encontram, onde se lê: “2) As CONCRETAS PROVAS QUE IMPÕEM DECISÃO DIVERSA DA RECORRIDA são as que se passam a indicar, sendo que, no que se refere aos depoimentos de parte e das testemunhas, na frente dos mesmos, indicam-se as respectivas passagens da gravação em que se funda o recurso”.

Melhor explicando, confrontando esse conjunto de conclusões com as alegações, aquelas apenas não contêm as transcrições de extractos de testemunhos ou dos depoimentos de parte invocados que se encontram nestas últimas.

Remetendo-se para as conclusões, começamos por fazer notar que a técnica seguida pelo recorrente é sempre idêntica, quer respeite:

- “aos factos que deveriam ter sido considerados provados e que foram considerados não provados na sentença (…) respeitantes, em síntese, à COMPOSIÇÃO DA RETRIBUIÇÃO DO RECORRENTE” [conclusão a), do título 2]; 

- ou,  “aos factos que deveriam ter sido considerado provados e que foram considerados não provados na sentença (…) respeitantes, em síntese, à ATRIBUIÇÃO DE UM VEÍCULO AUTOMÓVEL AO RECORRENTE” [conclusão b), do título 2];

- ou,  “ aos factos que deveriam ter sido considerado provados e que foram considerados não provados na sentença (…) respeitantes, em síntese, à PRESTAÇÃO DENOMINADA “DESPESAS DE COMBUSTÍVEL” [conclusão c), do título 2];

- ou, ainda, “aos factos que deveriam ter sido considerado provados e que foram considerados não provados na sentença (…) respeitantes, em síntese, à PRESTAÇÃO DENOMINADA “PRÉMIO DE SEGURO” [conclusão d), do título 2].

Em suma, a impugnação não é feita facto por facto, mas em blocos de factos, que foram indicados no primeiro título acima referido, conexos com as matérias “COMPOSIÇÃO DA RETRIBUIÇÃO DO RECORRENTE”, “ATRIBUIÇÃO DE UM VEÍCULO AUTOMÓVEL AO RECORRENTE”, PRESTAÇÃO DENOMINADA DESPESAS DE COMBUSTÍVEL” e “PRESTAÇÃO DENOMINADA PRÉMIO DE SEGURO”.

Em segundo lugar, a leitura das conclusões (relembrando-se que reproduzem as alegações, excepto nas transcrições), mostra que os meios de prova indicados são igualmente apresentados em conjunto para serem dirigidos à impugnação do conjunto de factos de cada grupo que se reconduzem a cada uma daquelas matérias. 

Dito por outras palavras, não se indica para cada um dos factos qual o meio de prova que justifica resposta diferente.”

Sendo estas as razões que levaram à rejeição da impugnação da matéria de facto, temos que aderir aos fundamentos invocados.

Efectivamente, o recorrente impugna a factualidade apurada pela primeira instância fazendo-o em relação a blocos de factos, não individualizando os meios de prova que em relação a cada um dos factos impugnados impõem uma decisão diversa.    

Ora, esta forma de impugnação não satisfaz as exigências formais da alínea b), do nº 1, do art. 640º do CPC, conforme doutrina emanada do acórdão desta Secção Social de 20.12.2017, no processo nº 299/13.2TTVRL.C1.S2 (Ribeiro Cardoso), onde se concluiu que:

1 - A alínea b), do nº 1, do art. 640º do CPC, ao exigir que o recorrente especifique “[o]s concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”, impõe que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respectivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos.

2 - Não cumpre aquele ónus o apelante que, nas alegações e nas conclusões, divide a matéria de facto impugnada em três “blocos distintos de factos” e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna.

Por isso, e não tendo o recorrente concretizado os meios de prova que em relação a cada um dos factos impugnados impõem uma decisão diversa, temos de concluir que não cumpriu os ónus impostos pelo mencionado preceito.

O que determina a confirmação da posição da Relação.

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            Termos em que se acorda nesta Secção Social em negar a revista.

 

Custas a cargo do recorrente.

Quanto à revista excepcional, e considerando que a Formação dela não conheceu em virtude da decisão deste acórdão ser prejudicial à sua apreciação, mantém-se o decidido no acórdão de 11 de Abril de 2018, pelo que deverá o A, caso mantenha interesse na sua apreciação, requerer o seu conhecimento.    

Anexa-se sumário do acórdão

Lisboa, 5 de Setembro de 2018

Gonçalves Rocha (Relator)

Leones Dantas

Júlio Vieira Gomes