Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3493/16.0T8LRA.C1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
ARRENDAMENTO PARA COMÉRCIO OU INDÚSTRIA
NULIDADE POR FALTA DE FORMA LEGAL
ABUSO DO DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
LICENÇA DE UTILIZAÇÃO
NULIDADE DO CONTRATO
INDEMNIZAÇÃO POR FALTA DE AVISO PRÉVIO
Data do Acordão: 09/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / ABUSO DO DIREITO – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL / LOCAÇÃO / OBRIGAÇÕES DO LOCATÁRIO / PAGAMENTO DA RENDA OU ALUGUER / ARRENDAMENTO DE PRÉDIOS URBANOS / DISPOSIÇÕES ESPECIAIS DO ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO / DURAÇÃO / CONTRATO COM PRAZO CERTO / DISPOSIÇÕES ESPECIAIS DO ARRENDAMENTO PARA FINS NÃO HABITACIONAIS.
Doutrina:
- Baptista Machado, RLJ Ano 117/118, p. 169 e ss.;
- Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil V, Parte Geral, Almedina, 2011, p. 310-311 ; O Levantamento da Personalidade Colectiva no Direito Civil e Comercial, Almedina, 2000, p. 95-97;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, Coimbra Editora, 4.ª Edição, 1977, p. 399.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 334.º, 1041.º, N.º 1, 1098.º, N.º 6, 1100.º, N.º 4 E 1110.º, N.º 1.
DL N.º 329/81, DE 04 DE DEZEMBRO.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 10-04-2014, PROCESSO N.º 1301/11.8 TBFLG.G1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :   
I. Não aproveita ao arrendatário a invocação da nulidade fundada na inobservância de escritura pública na celebração de contrato de arrendamento urbano para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal, quando aquele tenha adotado comportamentos suscetíveis de ser qualificados em sede de abuso de direito, mormente na modalidade do venire contra factum proprium.

II. Num caso em que foram celebrados, em 1986 e 1989, contratos de arrendamento urbano com destino a fins industriais mediante escrito particular, no âmbito dos quais ambas as partes se comportaram como se estivessem juridicamente vinculadas ao acordado naqueles escritos, sem quaisquer focos de litigiosidade relevante, sedimentando a estabilidade e a permanência da relação contratual de modo a gerar a confiança recíproca na sua perduração, tendo a arrendatária acabado por denunciar tais contratos sem observância do prazo legal de aviso prévio, em 2014, o facto de esta arrendatária, em ação proposta pela senhoria com vista a obter o pagamento das rendas correspondentes ao período do prazo em falta, vir invocar a nulidade desses contratos por carência de escritura pública integra uma situação de abuso de direito nos termos do artigo 334.º do CC.

III. A celebração de contrato de arrendamento urbano destinado a comércio, indústria ou exercício de profissão liberal, sem licença de utilização do locado, no domínio de vigência do Dec.-Lei n.º 329/81, de 04-12, não importa a nulidade desse contrato.

IV. Em caso de denúncia de contrato de arrendamento para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal, por parte do arrendatário, com inobservância do respetivo prazo legal de pré-aviso, assiste ao senhorio o direito à indemnização moratória agravada de 50%, prevista no artigo 1041.º, n.º 1, do CC, sobre as rendas correspondentes ao prazo em falta, não obstante a cessação do contrato, nos termos do artigo 1098.º, n.º 6, aplicável por remissão sucessiva dos artigos 1100.º, n.º 4, e 1110.º, n.º 1, do mesmo Código.

V. Sendo essa indemnização moratória agravada a especialmente devida pelas rendas em falta, não haverá lugar a juros moratórios.

Decisão Texto Integral:
I – Relatório


1. A União de Freguesias de AA, BB, CC e DD (A.) intentou, em 16/11/2016, ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra a sociedade EE (R.), alegando, em síntese, que:

. Em 1986 e 1989, a então Junta de Freguesia de BB, posteriormente integrada na União de Freguesias ora A., deu de arrendamento à R., com duração ilimitada, dois armazéns sitos nessa freguesia, no município de AA, mediante escritos particulares, respetivamente, datados de 01/03/1986 e 01/02/ 1989, pelas rendas anuais de 600.000$00 e de 1.200.000$00, a pagar em duodécimos no primeiro dia útil do mês anterior a que dissesse respeito.

. Nesses contratos, ficou estipulado que a inquilina não poderia efetuar, nos referidos armazéns, sem consentimento escrito da senhoria, quaisquer benfeitorias, não lhe assistindo o direito de retenção ou de indemnização por elas ou por quaisquer outras que fizesse, as quais seriam, desde logo, consideradas pertences do prédio.  

. Ficou também ali estipulado que, findo o arrendamento, a inquilina era obrigada a entregar os locados limpos e reparados com todos os pertences em bom estado de conservação e funcionamento.

. No dia 31/07/2014, a R. denunciou, unilateralmente os sobreditos contratos com efeitos a partir de 31/08/2014.

. Nessa data e desde o mês de setembro de 2012, a renda total dos dois armazéns era de € 1.754,51, tendo a renda referente a agosto de 2014 sido a última paga em outubro do mesmo ano.

. A mencionada denúncia não foi precedida de aviso prévio com a antecedência mínima legal de 120 dias, sendo assim devidas as rendas correspondentes ao período de 3 meses do aviso prévio em falta, no total de € 5.263,53.

. Tem ainda a A. direito a uma indemnização equivalente a 50% das rendas em atraso, no valor de € 2.631,77, nos termos do artigo 1041.º do CC.

. Além disso, os locados foram entregues em estado degradado e sujo, importando para a A. um custo com a necessária reparação no valor total de € 38.221,02.

Concluiu a A. a pedir a condenação da R. a pagar-lhe a quantia global de € 46.116,32, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde 31/08/2014 até efetivo e integral pagamento.

2. A R. apresentou contestação-reconvenção, em que:

. Invocou a nulidade dos alegados contratos de arrendamento com fundamento na inobservância da forma legal então prescrita (escritura pública), bem como na falta de licença de utilização dos locados para o fim industrial a que os contratos se destinavam e que era o de reparação de equipamentos e acessórios para a indústria transformadora de plásticos.

. Impugnou uma boa parte dos factos aduzidos na petição inicial, em especial relativamente aos danos alegados.

. Deduziu pretensão reconvencional dirigida ao pagamento das benfeitorias por ela realizadas nos locados, para criar as condições necessárias ao exercício da atividade visada, equivalentes a um enriquecimento sem causa da A., no montante global de € 11.633,99, quer se considerem nulos ou não os contratos ajuizados.

Concluiu a R. pela improcedência da ação e procedência da reconvenção, pedindo a condenação da A. a pagar-lhe o sobredito valor de € 11.633,99, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a data da apresentação da contestação até efetivo pagamento.

3. A A. apresentou réplica, em que, no essencial, respondeu à matéria das exceções e da reconvenção, invocando o abuso de direito, por parte da R., na arguição das nulidades dos contratos e sustentando que os armazéns locados se encontravam, como tal, licenciados, não lhe sendo imputável, mas sim à R., o uso para outros fins, embora com a autorização da A..

Invoca ainda a A. a prescrição ou a caducidade do peticionado direito da R. à indemnização pela benfeitorias realizadas pelo decurso do prazo de três anos.

Concluiu a A. pela reiteração do petitório e pela improcedência da pretensão reconvencional.

4. Findos os articulados, foi fixado à causa o valor de € 57.750,31 (despacho de fls. despacho de fls. 59-61) e, subsequentemente, proferido saneador tabelar, identificado o objeto de litígio e enunciados os temas da prova, conforme despacho de fls. 63-64).    

5. Realizada a audiência final, foi proferida a sentença de fls. 141 a 148/v.º, datada de 11/07/2018, a julgar:

a) – A ação parcialmente procedente com a condenação da R. a pagar à A. a quantia de € 12.730,34, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação, a título de indemnização pelas deteriorações feitas pela mesma R. nos locados e absolvendo-a dos pedidos das rendas respeitantes a 3 meses do aviso prévio pretensamente em falta, no valor de € 5.263,53 e da indemnização por atraso dessas rendas, no valor de € 2.631,77, bem como dos respetivos juros de mora;

b) – A reconvenção improcedente com a consequente absolvição da A./reconvinda deste pedido.

   6. Inconformadas com essa decisão, ambas as partes recorreram dela para o Tribunal da Relação de Coimbra, tendo sido proferido o acórdão de fls. 384 a 412/v.º, datado de 26/03/2019, aprovado por unanimidade, a julgar:

   A – Improcedente a apelação interposta pela R.;

  B – Parcialmente procedente a apelação interposta pela A., alterando-se a decisão da 1.ª instância no sentido de condenar a R. a pagar à A.:

  a) - A quantia de € 8.772,56, correspondente à soma das rendas respeitantes a 3 meses do aviso prévio em falta, no valor de € 5.263,53, da indemnização pelo atraso dessas rendas, na proporção de 50%, no valor de € 2.631,77 e da indemnização pelo atraso no pagamento da renda referente a agosto de 2014, na mesma proporção de 50%, no valor de € 877,26, bem como os respetivos juros de mora sobre aquela quantia total, desde a citação;

   b) – A quantia de € 13.894,63, acrescida de IVA a 6% e de juros de mora desde a citação, a título de indemnização pelas deteriorações feitas pela R. nos locados.

   7. Desta feita, mais uma vez inconformado a R. vem pedir revista para o que formulou extensíssimas conclusões, de teor excessivamente argumentativo, mas que se confinam às seguintes questões:

1.ª - Vício consistente no atendimento do facto dado como provado sob o ponto 19 da sentença da 1.ª instância;

2.ª - Omissão da 1.ª instância da apreciação dos factos alegados nos artigos 25.º e 26.º da contestação/reconvenção;

3.ª - Nulidade dos contratos de arrendamento em causa por inobservância de escritura pública e por falta de licença de utilização para o fim industrial visado;

4.ª – Pretensa inadmissibilidade do pedido de indemnização da A. por falta de interpelação admonitória para as reparações com violação do artigo 566.º do CC; desfasamento entre o orçamento apresentado nos autos e a fatura que consubstancia as reparações;

5.ª – Falta de nexo de causalidade entre as obras executadas pela A. constantes do ponto 12 dos factos provados na sentença da 1.ª instância e os defeitos indicados no ponto 11 dos factos provados na mesma sentença e que são imputados à R.;

6.ª – Erro de julgamento no respeitante à condenação da R. no pagamento de rendas e correspetiva indemnização;

7.ª – Nulidade do acórdão recorrido por alegada violação do dever de fundamentação e do ónus da prova;

8.ª – O direito da R. à indemnização pelas benfeitorias por ela realizadas nos locados.    

      Pede a Recorrente que seja revogada a decisão recorrida e substituída por outra que julgue a ação totalmente improcedente e procedente a reconvenção.   

   8. A A. apresentou contra-alegações a sustentar, em primeira linha, a rejeição do recurso por verificação de dupla conforme e limitação de sucumbência, bem como por falta de conclusões inadequadas, pugnando, subsidiariamente, pela confirmação do julgado.  


   II – Questão prévia sobre a admissibilidade da revista


     Conforme ficou dito, a Recorrida arguiu a rejeição liminar da revista, sustentando a verificação de dupla conforme e do limite da sucumbência, bem como por falta de formulação adequada de conclusões.


    Relativamente à adequação das conclusões, é certo que elas se mostram excessivas e prolixas, incluindo indevidamente matéria argumentativa, mas tais irregularidades não obstam a que nelas se contenha e delas se extraia a definição das questões suscitadas pela Recorrente como acima se deixou enunciado.

       Relativamente à alegada verificação da dupla conforme e de limitação da sucumbência, não assiste razão à Recorrida.

Com efeito, relativamente ao pedido da A. de condenação da R. no pagamento da quantia de € 38.221,02, a título de indemnização pelas deteriorações dos locados, na 1.ª instância, aquela R. foi condenada a pagar a quantia de € 12.730,34, acrescida de juros de mora, desde a citação, sendo absolvida quanto aos pedidos das rendas respeitantes a 3 meses do aviso prévio pretensamente em falta, no valor de € 5.263,53 e da indemnização por atraso dessas rendas, no valor de € 2.631,77, bem como dos respetivos juros de mora.

Além disso, na mesma instância, foi a A./reconvinda absolvida do pedido reconvencional para pagamento da quantia de € 11.633,99, a título de indemnização pelas benfeitorias realizadas pela R. nos locados.

Nenhuma das partes se conformou com tal decisão, ambas pugnando, em sede de apelação, pela condenação nos pedidos inicialmente formulados.

Por sua vez, a Relação, dando parcial provimento à apelação interposta pela A., alterou a sentença recorrida, condenando a R. a pagar-lhe a quantia de € 8.772,56, correspondente à soma das rendas peticionadas, no valor de € 5.263,53, da indemnização pelo atraso dessas rendas, na proporção de 50%, no valor de € 2.631,77 e da indemnização pelo atraso no pagamento da renda referente a agosto de 2014, na mesma proporção de 50%, no valor de € 877,26, bem como os respetivos juros de mora sobre aquela quantia total, desde a citação. E condenou ainda a R. a pagar à A. a quantia de € 13.894,63, acrescida de IVA a 6% e de juros de mora desde a citação, a título de indemnização pelas deteriorações feitas pela R. nos locados.

Em sede da apelação interposta pela R., a Relação negou provimento ao recurso, confirmando, nessa parte, a sentença da 1.ª instância.

Todavia, a R., que não se conformou em absoluto com a condenação da 1.ª instância, vem pedir revista do acórdão da Relação sobre todos os seus segmentos condenatórios, pugnando, tal como inicialmente, pela total improcedência da ação e total procedência da reconvenção.

Assim, no que respeita à ação, cujo valor foi fixado em € 57.750,31, a R. sucumbiu em € 22.667,19 (€ 8.772,56 + 13.894,63) e portanto em valor claramente superior a metade da alçada da Relação.

De referir que o valor da sucumbência da R., quanto à indemnização de € 13.894,63, não se afere pelo diferencial entre a condenação da 1.ª instância e a da Relação, mas sim pelo total desta condenação, porquanto a R. não se conformou também com a condenação da 1.ª instância, o que está em sintonia com a jurisprudência fixada no AUJ do STJ n.º 10/2015, de 14/05/2015, proferido no processo n.º 687/10.6TVLSB.L1-A, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 123, de 26/06/2015.     

      Nessa conformidade, no que se refere à ação, tendo a R. sido condenada na 1.ª instância no pagamento da quantia de € 12.730,34 e pela Relação na quantia total de € 22.667,19, não existe, desde logo, coincidência entre as duas decisões para que se configure uma situação de dupla conforme nos termos do artigo 671.º, n.º 3, do CPC. E, sendo o valor da sucumbência da R., nessa parte, o valor da condenação total proferida pela Relação (€ 22.667,19), não se verifica também a restrição à admissibilidade da revista reportada a metade da alçada da Relação nos termos do artigo 629.º, n.º 1, do mesmo Código.

      Relativamente à pretensão reconvencional, muito embora, a Relação tenha confirmado a decisão da 1.ª instância, por unanimidade e sem fundamentação essencialmente diferente, o certo é que a procedência dessa pretensão, respeitante como é à indemnização por benfeitorias, depende da questão da invocada nulidade dos contratos de arrendamento ajuizados, questão esta que ainda se mostra controvertida na presente revista quanto à matéria da ação, não podendo ser dela destacada.

       Em suma, a revista é admissível em toda a extensão do seu objeto.


III – Delimitação do objeto do recurso


Atento o universo de questões suscitadas pela Recorrente e acima sumariado, serão as mesmas apreciadas pela seguinte ordem:

a) - Em primeiro lugar, a pretensa nulidade do acórdão recorrido por alegada falta de fundamentação e violação do ónus da prova, no respeitante ao apuramento da indemnização pela deterioração dos locados;

b) – Seguidamente, as questões, na órbita da decisão de facto, sobre a inclusão da matéria constante da 2.ª parte do ponto 19 da factualidade dada como provada na sentença da 1.ª instância e mantida pela Relação, bem como a invocada omissão de apreciação da matéria alegada sob os artigos 25.º e 26.º da contestação;

c) – A questão do invocado erro de julgamento sobre a nulidade dos contratos de arrendamento ajuizados, por inobservância de forma legal e por falta de licença de utilização para o fim visado por tais contratos; 

d) – A questão do invocado erro de julgamento respeitante à condenação da R. no pagamento de rendas e correspetiva indemnização;

e) – Os alegados erros de julgamento quanto à indemnização pela deterioração dos locados, mais precisamente sobre:

- a falta de nexo de causalidade entre as obras executadas pela A. constantes do ponto 12 dos factos provados na sentença da 1.ª instância e os defeitos indicados no ponto 11 dos factos provados na mesma sentença;

- a falta de interpelação admonitória da R. para as respetivas reparações e o pretenso desfasamento entre o orçamento apresentado nos autos e a fatura que consubstancia as reparações;

f) – Por fim, a questão do alegado erro de julgamento quanto à pretensão de indemnização pelas benfeitorias realizadas pela R. nos locados.


 IV – Fundamentação   


1. Factualidade dada por provada pelas instâncias


Vem dada como provada pelas instâncias a seguinte factualidade:

1.1. Por “contrato particular” datado de 01/03/1986, a Junta de Freguesia dos BB deu de arrendamento à R., um Armazém (armazém 1) sito na freguesia de BB e concelho de AA, inscrito na matriz predial urbana da respetiva freguesia sob o n.º 2057 da freguesia de BB (extinta) e por contrato particular datado de 01/02/1989, a mesma Junta de Freguesia dos BB deu de arrendamento à R., um outro Armazém (armazém 2) sito na freguesia de BB e concelho de AA, inscrito na matriz predial urbana da respetiva freguesia (extinta) sob o n.º 2283 e 2057 ora 4861 e 5501 da União de Freguesias e correspondendo anteriormente ao lote 2 do prédio inscrito na matriz predial rústica da freguesia de BB sob o artigo 4051 e registado a favor desta pela descrição nº 146/19860221 Ap. 20.

1.2. A renda, de acordo com o contrato, era em março de 1986 de seiscentos (600) mil escudos anuais e a resultante do contrato de fevereiro de 1989 era de 1.200.000$00 anuais, ambas pagas em duodécimos na sede do senhorio no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que dissessem respeito.

1.3. Mais se estipulou que o referido arrendamento era com prazo de duração de tempo ilimitado e que todas as obras de conservação e reparação de que os armazéns carecessem no seu interior ficavam a cargo do inquilino que responderia por toda e qualquer deterioração neles causada por sua culpa ou negligência.

1.4. Mais se acrescentou em tais contratos que o inquilino não poderia fazer nos armazéns, sem o consentimento por escrito do senhorio, quaisquer benfeitorias, não lhe assistindo o direito de retenção ou de indemnização por elas ou por quaisquer outras que fizesse, pois, desde logo seriam consideradas pertenças do prédio.

1.5. E, ainda, que findo o arrendamento o inquilino era obrigado a entregar o armazém arrendado limpo e reparado com todos os pertences em bom estado de conservação e funcionamento.

1.5-A. A R., à data da celebração dos contratos e depois, exercia e exerceu a atividade de fabricação de equipamentos para a indústria transformadora de plásticos e foi com essa finalidade de uso que a A. deu de arrendamento os imóveis à R. – facto aditado pela Relação.

1.5-B. A A. autorizou a ligação entre os dois barracões – facto aditado pela Relação.

1.5-C. À data em que a R. saiu dos pavilhões, estes não possuíam licença para o exercício da indústria – facto aditado pela Relação.

1.6. Por força da Lei n.º 11-A/2013 de 28 de janeiro, a freguesia dos BB foi integrada na União de Freguesias a que corresponde a ora A. com todos os seus direitos e deveres, ativo e passivo.

1.7. No dia 31/7/2014, a R. (arrendatária) denunciou unilateralmente ambos os contratos de arrendamento supra mencionados com efeitos a 31/08/2014.

1.8. A renda, nessa data e desde o mês de setembro de 2012, era de € 1.754,51, sendo a última renda paga referente a agosto 2014 e paga em outubro de 2014, para o total dos barracões.

1.9. Ficou ainda estipulado que era obrigação da inquilina, findo o arrendamento, entregar o local arrendado, limpo e reparado, com todos os respetivos pertences e em bom estado de conservação e funcionamento.

1.10. No início dos contratos o locado foi entregue à R. em bom estado de uso e conservação em estado praticamente novo.

1.11. Quando a R. entregou os pavilhões, as paredes estavam sujas e com buracos devido à remoção do mobiliário que havia sido por esta colocado; a instalação elétrica deteriorada; portas e portões estragados; paredes sem pintura; chão e paredes com buracos abertos; pavimento degradado, deformado e impregnado de óleos; buracos das sapatas da ponte rolante abertos; um só WC, cumprindo retificar o vão de entrada do WC do pavilhão 1, de modo a repor dois WCs (Masculino e Feminino) de acordo com o original; falta a parede entre os dois pavilhões; paredes interiores e exteriores sujas de óleos e tintas», reposição de ligações elétricas e quadros»; colocação de loiças e portas em falta nas casas de banho; remoção e substituição da copa em madeira completamente deteriorada na zona do bar; colocação do gradeamento no passadiço do 1º andar do armazém 2; buracos no reboco na parede tardoz do armazém 1 que davam apoio à ventilação das zonas de pintura; sujidade carecida de uma limpeza geral.

1.12. A A. realizou as seguintes obras nos armazéns referidos:

Pavilhão 1 - interior

2.4. Reparação do pavimento do Pavilhão 1 com fornecimento e execução de betonilha de argamassas com uma espessura média de 0,10m, separada do pavimento existente por um filme plástico e pronta a receber o acabamento final incluindo a reparação para as infraestruras da loja ……………….……………....................... € 8.250 + 6% IVA.

2.6. Fornecimento e aplicação de alvenaria de bloco de betão para fechar o vão entre os dois pavilhões, incluindo reboco de ambos os lados …………………………………………........ € 317,63 + 6% IVA.

Pavilhão 2 interior

3.3. Reparação e preparação do reboco existente para pintura, incluindo lavagem, tapamento de buracos, fissuras, remates junto à cobertura e retirar dois suportes da ponte rolante antiga ……………………...………………………….. € 825,00 + 6% IVA.

3.4. Pintura das paredes interiores do pavilhão com duas demãos de tinta plástica e uma faixa de tinta acrílica com 2,00 m de altura ……...……………………………………….. € 3.520,00 + 6% IVA.

Reabilitação de Exterior e Interior do pavilhão 1 e 2     

1.3. Substituir massa dos vidros ………….......€ 1.595,00 + 6% IVA.

2.5.Abertura vãos exteriores ……….…….…..€ 330,00 + 6% IVA.

2.7.Barramento de paredes …….……….….... € 4.015,00 + 6% IVA.

2.8.Pintura de paredes interiores ….....……. ...€ 3.080,00 + 6% IVA.

   2.10.1Fechar vãos .……………………….…. € 440,00 + 6% IVA.

   2.10.2 Execução rede águas ……………… € 1.450,00 + 6% IVA.

   2.10.3. Fornecimento e aplicação de azulejos - € 1.980,00 + 6% IVA.

   3.7. Reparação instalação elétrica …….……. € 660,00 + 6% IVA.

   3.8. Pintura instalações sanitárias …….……. € 440,00 + 6% IVA.

Reabilitação de Exterior e Interior do pavilhão 1 e 2:

1.1. Reparação e preparação de paredes exteriores para pintura ……………………………………………….. € 1.870,00 + 6% IVA.

1.2. Pintura das paredes exteriores dos dois pavilhões com tintas plásticas ……………………………………….... € 3.520 + 6% IVA.

1.4. Abertura e tapamento de esgoto pluvial - € 1.980,00 + 6% IVA.   

  1.5. Fornecimento e aplicação caixa 40x40 pré-fabricada ………… ………………………………………………… € 478,50 + 6% IVA.

1.6. Fornecimento e aplicação caixa 60x60 pré-fabricada ……………………………………………….... € 330,00 + 6% IVA.

2.1. Fornecimento e colocação de tubagem esgoto doméstico ……………………………..…………….….…. € 400,04 + 6% IVA

   2.9. Reparação da instalação elétrica ….…….. € 495,00 + 6% IVA.

   2.10.4. Fornecimento e aplicação de mosaico, colas e betumes ……………………………..………………….. € 412,50 + 6% IVA.

2.10.5. Fornecimento e aplicação de portas MDF……………..… ………………...……….…………………….. € 396,000 + 6% IVA.

2.10.6 Fornecimento e aplicação de espelho, piaçaba e porta rolos …………………………………………………. € 165,00 + 6% IVA.

2.10.7 Fornecimento e aplicação de urinol, sanitas, bases de duche e respetivas torneiras ………………………….. € 660,00 + 6% IVA.

2.12 Fornecimento e aplicação de porta com das folhas de emergência com barras antipânico .…..……….....................€385,00 + 6% IVA.

   2.13. Limpeza geral …………..…………….. € 550,00 + 6% IVA.

Pavilhão 2

3.1. Reparação do pavimento e lavagem de todo o piso: desengordurar …………………………………………........€ 1320,00 + 6% IVA.

3.2. Abertura de vãos para exterior …..……..... € 165,00 + 6% IVA.

3.5. Substituição de teto falso …….………..... € 1.222, 65 + 6% IVA.

3.6. Substituição de pavimento 1.º piso ….... € 2.380,95 + 6% IVA.

3.9. Fornecimento e montagem de portões seccionados … ………..……………………………………... € 1.485,00 + 6% IVA.

3.10. Montagem de gradeamento existente no acesso ao 1.º piso ……….…………………………………………..€440,00 + 6% IVA.

3.11. Fornecimento e montagem de porta com duas folhas de emergência com barra anti-pânico ……..…………... € 192,50 + 6% IVA.

3.12. Limpeza geral …..…………….………. € 550,00 + 6% IVA.

1.13. A R. executou obras de ligação dos dois armazéns objeto dos contratos de arrendamento e executou obras no rés-do-chão e 1.º andar que implicou a aplicação duma placa de betão entre o rés-do-chão e 1.º andar, com abertura e colocação de janelas e em alumínio em ambos os pisos e escada metálica.

1.14. Tais obras foram pagas pela R. e importaram a quantia global de € 8.129,99.

1.15. Para além destas obras, a R. instalou ainda duas divisórias contíguas à parte administrativa que também foram por ela pagas, no montante global de € 2.800,00.

1.16. A R. instalou ainda 32 metros de caleiras para águas pluviais dos telhados, com a qual despendeu € 330,00.

1.17. A R. pintou ainda o exterior dos dois barracões por duas vezes, tendo a segunda das pinturas sido solicitada a terceiro, com a qual despendeu a quantia de € 374,00.

1.18. Todas as referidas obras não são amovíveis.

1.19. As referidas obras foram realizadas com autorização verbal da A., a qual alertou sempre para a responsabilidade prevista nos contratos.

1.20. A R. submeteu em 2012 uma candidatura SI qualificações de PME, tendo em vista o incremento da atividade exportadora, com um investimento elegível de € 150.414,66 e um incentivo não reembolsável de € 92.019,50, que veio a ser cumprido pela R. com uma taxa de execução acima dos 95%, tendo sido apurado um total de incentivo de € 92.019,50.

1.21. Porém, em sede de encerramento do projeto, a R. foi obrigada a demonstrar todos os requisitos de legal funcionamento das suas instalações, nomeadamente que as mesmas dispunham de licença para o fim específico de Indústria sob pena de devolução da totalidade do incentivo recebido, o que a forçou a mudar as suas instalações para um imóvel que dispunha de tal licenciamento sito na Marinha Grande.

1.22. Por carta registada datada de 13/10/2014 a R. transmitiu à A. o seguinte:

«Com efeito, como é do V/ perfeito conhecimento, após a reunião nos armazéns nos BB, onde estiveram presentes três membros da Junta de Freguesia, o Eng. FF e o Dr. GG da parte da EE, foi colocada pela N/ empresa a questão de saber o que pretendiam que fizéssemos com as benfeitorias amovíveis, tendo os representantes da Junta afirmado que pretendiam a sua remoção. Foram ainda informados que a EE tinha efectuado benfeitorias necessárias ao longo dos anos, no montante de mais de Dez mil euros para assegurar que os locados mantinham condições necessárias para os fins para os quais foram ocupados, uma vez que a Junta de Freguesia não gastou um cêntimo para evitar que os mesmos continuassem em condições de ser utilizados pela N/empresa.

Nesta conformidade, durante o mês de Julho foi entregue ao Sr. HH, pessoa que também esteve presente na reunião atrás mencionada, as chaves dos armazéns, para eventual acompanhamento da remoção de toas as benfeitorias amovíveis, conforme exigido pelos membros da Junta de Freguesia.

E, Agosto de 2014, os locados encontravam-se totalmente livres e devolutos, conforme acordado, não mais tendo sido objeto de ocupação da N/ parte, e encontrando-se já as chaves na V/ posse.

Posto isto, tendo presente que a N/ obrigação legal, atenta o aspecto formal da ocupação dos imóveis, bem como o acordado no sentido do pôr termo à ocupação dos mesmos, temos a obrigação de pagar apenas o valor referente ao único mês em falta, o de Agosto, no qual ainda ocupámos os imóveis, uma vez que a renda era paga com um mês de adianto.

Em conformidade, considerando cessada a nossa ocupação dos Pavilhões em Agosto de 2014, data em que os imóveis ficaram livres e devolutos e na V/ disponibilidade, ora procedemos ao envio do Cheque n.º 33…1 no montante de 1.754,51€ sacado sobre o Banco II, que liquida a ocupação dos locados no mês de Agosto. Considera-se o contrato extinto nos finais do indicado mês, nada mais sendo devido com referência à ocupação que fizemos dos mesmos ao longo destes anos sem que fosse por esta respeitada Junta de Freguesia, tratado o necessário Licenciamento dos imóveis em causa para os fins a que condicionaram o contrato.

Ficamos deste modo a aguardar o envio do documento relativo ao valor de Agosto.

Sem outro assunto de momento, nos subscrevemos.».

1.23. Em julho, a R. entregou as chaves dos locados a um representante da A..


2. Do mérito do recurso


2.1. Quanto à invocada nulidade do acórdão recorrido


Neste particular, a Recorrente alega que, tendo a 1.ª instância recorrido à equidade para atribuir à A. uma indemnização correspondente a 1/3 do valor de € 38.221,02 pelas obras de reparação que esta realizou nos locados, a Relação revogou essa decisão sem a fundamentar, limitando-se a fazer uma remissão espúria para o facto provado em 11, de quais as obras que decorrem ou não da responsabilidade da recorrente, violando assim o preceituado no artigo 154.º do CPC e incorrendo na nulidade prevista nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 615.º do mesmo Código. 

Nessa linha, argumenta a Recorrente que assim a 2.ª instância se substituiu “ilegitimamente” à valoração feita pela 1.ª instância na base da imediação e da oralidade, o que não estaria ao alcance daquela instância.   

Além disso, sustenta que aquela revogação ofende a regra do ónus probatório consagrada no artigo 342.º, n.º 1, do CC.

Ora o artigo 154.º do CPC, na linha do consagrado no artigo 205.º, n.º 1, da Constituição, estatui o dever de fundamentar as decisões judiciais sobre pretensões controvertidas, determinando que não pode a respetiva justificação consistir na simples adesão aos fundamentos alegados pelas partes.

Tal fundamentação deve ser estruturada dentro dos parâmetros definidos no artigo 607.º, n.º 3 e 4, aplicável aos acórdãos da Relação por via do disposto no artigo 663.º, n.º 2, do CPC.

Assim, têm de ser especificados os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, de forma a não padecerem de ambiguidade ou obscuridade que tornem ininteligível a decisão ou de não traduzirem contradição insuperável entre os fundamentos aduzidos e esta decisão, como decorre do preceituado nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.

Nesta conformidade, só nos casos em que ocorra absoluta falta de fundamentação ou em que esta se revele manifestamente contrária à decisão tomada, numa relação de recíproca exclusão dos seus termos, inviabilizando, desse modo, qualquer pronunciamento de mérito, é que se verificarão os vícios formais de nulidade prescritos, respetivamente, nas já referidas alíneas b) e c) do n.º 1 ao artigo 615.º, também aplicável aos acórdãos da Relação por força do citado artigo 663.º, n.º 2, do CPC.    

Já a insuficiência ou a mediocridade da fundamentação exposta ou a mera inconcludência com a decisão tomada não configuram tais vícios formais, podendo traduzir-se, porventura, em erros de julgamento a apreciar em sede de mérito.


No caso vertente, sobre o ponto em referência a 1.ª instância considerou o seguinte:

«(…) ficou provado que a R. entregou o pavilhão à Autora com as paredes sujas e com buracos, com a instalação eléctrica deteriorada, portas e portões deteriorados, paredes com pintura deteriorada e chão e paredes com buracos abertos, pavimento degradado e impregnado de óleos, buracos das sapatas da ponte rolante abertos, com abertura na parede entre os dois pavilhões, deixaram uma copa em madeira deteriorada na zona do bar, falta o gradeamento no passadiço do 1.° andar do armazém 2, existem buracos no reboco na parede tardoz do armazém 1 que davam apoio à ventilação das zonas de pintura, necessitando de uma limpeza geral.

Bem como, ficou ainda provado que a Autora realizou determinadas obras nos armazéns referidos, no montante global de € 38.221,02.

No entanto, não ficou provado o nexo de causalidade adequada entre as deteriorações apresentadas nos armazéns com a totalidade das obras ali efectuadas, pois é necessário distinguir a existência de eventuais deteriorações lícitas do inquilino, de deteriorações ilícitas ou a eventual necessidade de obras de melhoramento dos armazéns para os colocar em estado como novo e assim poder dar de arrendamento a terceiros e por vezes a fronteira entre as referidas situações não é muito nítida, como sucede no caso concreto.

Além disso, é necessário atender à circunstância de terem decorrido quase 30 anos de utilização.

Deste modo, como não é possível afirmar com a necessária segurança que as todas as obras realizadas pela Autora nos armazéns em causa se destinaram exclusivamente a reparar as deteriorações feitas pela Ré, impõe-se recorrer à equidade e atribuir uma indemnização correspondente a 1/3 do valor de €38.221,02 que foi despendido pela Autora com as obras em causa, ou seja, deve tal indemnização ser fixada na quantia de €12.730,34 (doze mil, setecentos e trinta euros e trinta e quatro cêntimos), ao abrigo do disposto no art. 566.°, n.º 3, do Código Civil. »

         Tendo essa matéria sido objeto do recurso de apelação, o Tribunal da Relação empreendeu a sua análise crítica, começando por considerar o seguinte:

«Não pode seguir-se o caminho percorrido na sentença porque esta baseou-se nas obras e preços constantes do orçamento junto com a petição inicial, quando é certo que face à fatura relativa às obras, estas não atingiram os custos orçamentados, porventura por terem tido menor extensão.

Esta questão suscita algumas dificuldades dada a falta de concretização da matéria factual.

Ou seja, a Autora procedeu a uma reparação geral dos barracões com o fim de os arrendar a outros arrendatários, o que veio a conseguir.

Distinguir o que foi reparado e resultou de alterações no arrendado feitas pela Ré ou de deteriorações inerentes a uma utilização imprudente, em conformidade com os fins do contrato, daquilo que teve por fim colocar os barracões em condições de cativarem possíveis arrendatários, poderá revelar-se duvidoso em alguns casos, pelo que quando isso ocorra, será a situação valorada contra a Autora, por lhe competir o ónus da prova quanto aos danos.

Existirão outras situações em que a Autora poderá ter tido custos acrescidos por causa da ação da Ré, mas sempre teria tido custos.

É o caso da pintura das paredes, as quais carecem de renovação periódica da pintura, principalmente depois da Ré ter utilizado os pavilhões por quase 30 anos, mas a pintura não é da responsabilidade do arrendatário, deste só será responsabilidade por deterioração da pintura devida a uso imprudente.

Poderão coexistir ambas as situações, como será o caso dos autos na parte relativa às instalações onde a Ré tinha a secção de pintura, pois as paredes além da deterioração inerente à passagem do tempo continham tinta proveniente da atividade.

Mas como não é possível deslindar que custos poderão ter existido a mais imputáveis à Ré, a dúvida será valorizada em desfavor da Autora por lhe competir o ónus de provar os danos cuja indemnização pede.»

Seguidamente, tomando como referência o estado em que a R. deixou os barracões e as obras efetuadas, a Relação analisou cada uma das reparações em causa, conforme consta de fls. 410-412, apurando as despesas que se mostravam imputáveis à R. e concluindo, em síntese, que:

«Não é clara a proporção do custo da limpeza que implicariam os trabalhos a executar pela Ré e o custo daqueles que não lhe são imputáveis.

Por conseguinte, na dúvida coloca-se 1/3 deste valor a cargo da Ré.

As despesas imputáveis à Ré somam € 13.894,63 (€ 8.250,00 + € 317,63 + € 825,00 + € 660,00 + € 495,00 + € 396,000 + € 165,00 + € 660,00 + 1/3 de € 550,00 + € 1.320,00 + € 440,00 + 1/3 de € 550,00).

Acresce IVA a 6%. É este o montante da indemnização a atribuir à Autora, a que acresce a quantia acima referida a título de rendas e indemnização.»

      Nesse quadro, pode a R. discordar de tal apreciação, mas o que é inegável é que não existe falta de fundamentação nem esta revela qualquer ambiguidade, obscuridade ou contradição que tornem a decisão recorrida ininteligível.

     Por outro lado, tal apreciação contém-se no âmbito dos poderes conferidos à Relação, em sede de sindicância da decisão de facto, pelo artigo 662.º, n.º 1, do CPC, sem evidência de qualquer ofensa aos princípios da imediação e da oralidade que regem a produção da prova em 1.ª instância.

     Relativamente à alegada violação do ónus probatório, nunca esta violação se reconduzirá ao invocado vício de nulidade, podendo, quando muito, traduzir-se em erro de julgamento a apreciar em sede de mérito.

      Termos em que improcede a invocada nulidade do acórdão recorrido.


2.2. Quanto ao invocado atendimento indevido do facto constante da segunda parte do ponto 19 (supra 1.19) da factualidade provada e à omissão de apreciação da matéria alegada nos artigos 25.º e 26.º da contestação


2.2.1. Quanto ao facto constante do ponto 19 da factualidade provada

        

      Na sentença da 1.ª instância foi dado como provado sobre o ponto 19 o seguinte:

«As referidas obras foram realizadas com autorização verbal da Autora, a qual alertou sempre para a responsabilidade prevista nos contratos.»

     Tendo a R., em apelação, impugnado a inclusão da 2.ª parte daquele enunciado por considerar que essa matéria não fora alegada por nenhuma das partes, não resultava da prova produzida nem fora objeto de contraditório, sendo além disso conclusiva, a Relação considerou o seguinte:

   «Não assiste razão à Recorrente.

   Com efeito, não estamos perante um facto essencial e, por isso, pode ser adicionada se resultar da discussão da causa, como foi o caso.

   O facto resultou do depoimento da testemunha JJ (presidente da junta de freguesia (durante quatro mandatos), à data dos factos alegados, salvo quanto ao período inicial, o qual aos minutos 04:23 e 05:46 referiu que a Ré sempre solicitou autorização para as alterações que fez nos barracões e sempre lhe foram concedidas, mas a testemunha sempre disse aos representantes da Ré que tinham de repor e entregar os barracões no estado em que os recebeu e que perdiam o direito às benfeitorias que não fossem “móveis”.

   Não existiu violação do contraditório porque o Exmo. mandatário da Ré teve oportunidade de inquirir a testemunha sobre esta matéria, o que não fez, muito embora a instâncias suas a testemunha se tenha referido às benfeitorias (minuto 17:34).

   Improcede, pelo exposto, esta pretensão recursiva.»

    No entanto, a R. persiste no entendimento de que estamos perante um facto essencial que não fora alegado por qualquer das partes e que fora introduzido pela 1.ª instância após inquirição de uma testemunha sem o necessário contraditório, sendo ainda assim matéria conclusiva.

     Em primeiro lugar, dir-se-á que o enunciado em foco na parte em que refere “a qual [a A.] alertou sempre para a responsabilidade prevista nos contratos” contempla um dado factual de prática reiterada, não carecendo, para o efeito, de mais pormenorização, não consistindo, por isso, numa afirmação meramente abstrata nem conclusiva.

     E no respeitante à natureza funcional desse facto, importa distinguir os factos essenciais nucleares ou estruturantes da causa de pedir ou de exceção perentória, indispensáveis à respetiva individualização, dos factos que, embora relevantes para a sua procedência, não se traduzem em fatores dessa individualização, como são os factos complementares ou concretizadores a que se refere o artigo 5.º, n.º 1, alínea b), do CPC.  

     Ora o segundo segmento do ponto 19 dos factos dados por provados na sentença da 1.ª instância não assume, de modo algum, a feição de facto essencial que se mostre individualizador da causa de pedir ou de exceção perentória, revestindo apenas uma função concretizadora ou mesmo complementar no quadro dos termos do litígio traçados pelas partes, ainda que porventura relevante para a procedência da ação, podendo, nessa medida, ser atendido, posto que emergente da discussão da causa, conforme o disposto no citado normativo.

     Com efeito, pese embora o labor argumentativo da Recorrente com vista a exponenciar a autonomização daquele elemento de facto, não se afigura que este elemento extravase o contexto circunstancial da matéria controvertida ali versada.

      Trata-se, de resto, de uma condicionante ou ressalva feita no contexto da afirmação expressa na 1.ª parte do ponto 19 sobre a autorização verbal dada pela A. para a realização das obras em causa, à semelhança do que outrora se designava por “resposta com esclarecimento”.  

     Assim, dessa estreita conexão entre os dois segmentos daquele enunciado factual não se vê que a inclusão do sobredito segundo segmento, com função delimitadora ou concretizadora do primeiro, seja de molde a surpreender a R. sobre o seu alcance jurídico, mormente na perspetiva da invocada nulidade dos contratos ajuizados e que, por isso, incumbia à mesma ter em conta em sede de prova ou contraprova a produzir, atento o disposto no artigo 5.º, n.º 1, alínea b), do CPC.

    Foi pois nesta base que a Relação julgou lícito o seu atendimento, considerando que tal facto resultou do depoimento de uma testemunha com a possibilidade de a R. exercer sobre ele o respetivo contraditório, fosse através de inquirição de testemunhas sobre a mesma matéria, o que não fez, fosse por via das instâncias à própria testemunha inquirida, o que terá feito.

      Nestas circunstâncias, não merece censura o assim decidido pela Relação.


2.2.2. Quanto à alegada omissão de apreciação da matéria alegada sob os artigos 25.º e 26.º da contestação

 

      A R. alegou sob os artigos 25.º e 26.º da contestação o seguinte:


Art.º 25.º


A R. entregou à A. os locados em causa nos autos para que esta aí passasse a exercer a sua atividade industrial de reparação de equipamento e acessórios para a indústria transformadora de plásticos – cfr. ponto 3 dos contratos -, sem que esta possuísse licença de utilização para tal finalidade.

Art.º 26.º


Fê-lo de forma ilegal e abusiva ao longo dos anos em que perduraram os arrendamentos nunca tratou de tal licenciamento.      


Por sua vez, a A., na réplica, respondeu o seguinte:


Art.º 4.º


Ambos os imóveis locados eram armazéns tal como consta nos referidos contratos (…)

Art.º 5.º


Devidamente licenciados pela Câmara Municipal de AA para tal utilização e que a R. conhecia e conhece e cujo alvará tem o n.º 77 de 24 de janeiro de 1986. O uso para outros fins não é imputável à A. mas apenas à R.. Ou seja, a R. arrendou dois armazéns tal como consta dos documentos particulares que titulam os contratos de arrendamento embora com a autorização da A. os destinasse à reparação de equipamentos e acessórios.   

Tendo a R. suscitado, já em sede da apelação por ela interposta, a omissão de apreciação do alegado nos artigos 25.º e 26.º da contestação no elenco da factualidade provada, o Tribunal da Relação entendeu o seguinte:

«Os factos dos artigos 6.º e 7.º da contestação resultam provados nos termos que a seguir se especificam.

Resulta provado da certidão comercial junta como documento n.º 1 da contestação, do teor dos contratos de arrendamento e do depoimento da testemunha já referida JJ, a qual referiu que sempre verificou no local atividades da Ré ligadas à indústria.

Por conseguinte, aditar-se-á este facto com o n.º 5-A “A Ré à data da celebração dos contratos e depois exercia e exerceu a atividade de fabricação de equipamentos para a indústria transformadora de plásticos e foi com essa finalidade de uso que a Autora deu de arrendamento os imóveis à Ré”.

• Quanto ao facto do artigo 25.º

«...sem que esta possuísse licença de utilização para tal finalidade»;

• E 26.º «…nunca tratou de tal licenciamento»

Face ao facto provado 21, onde se deu como provado que a Ré teve de mudar de instalações porque não demonstrou perante as autoridades que aquelas onde estava estavam licenciadas para o fim específico «indústria», deve ser declarado provado o facto do artigo 25, mas referido aos últimos anos de atividade da ré no local.

Com efeito, fica a dúvida se na altura da celebração dos arrendamentos os pavilhões careciam ou não de licença específica para o exercício da indústria.

A testemunha JJ (antigo presidente da junta de freguesia) referiu que existia licença de utilização da Câmara (minuto 08:57), retirando-se do contexto das declarações que a licença seria para indústria, mas também disse que mais tarde a lei exigiu outra modalidade de licença de utilização e quanto a esta a testemunha deu a entender que nunca foi obtida, mas também por falta de promoção do arrendatário (minutos 09:05 – 10:38).

Trata-se de prova que tem de ser feita através do respetivo documento.

Apesar de ser debatida nos autos esta matéria desde a contestação da Ré, nunca foi junta aos autos qualquer licença.

Isto indicia que a licença ou licenças (neste caso se existiu sucessão no tempo de mais de um tipo de licença de utilização) nunca terão existido, mas, por outro lado, tratando-se de matéria cuja prova interessava à Ré, para beneficiar da alegada nulidade, não se pode colocar de parte a hipótese de ter existido ou existir alguma licença e da Autora não ter promovido a sua junção, porquanto não tinha o ónus de fazer tal prova e daí a sua passividade.

Aliás, a Autora nunca foi intimada no sentido de juntar aos autos a licença ou licenças que existissem à data da celebração dos contratos de arrendamento, ou depois, se de facto existia alguma.

Se não a juntasse, tratando-se de prova de um facto negativo a cargo da Ré, de prova difícil, portanto, o tribunal concluiria que não existiam.

Por conseguinte, resulta apenas provado que «À data em que a Ré saiu dos pavilhões estes não possuíam licença para o exercício da indústria».

   Em síntese, o tribunal a quo, considerando que incumbia à R. provar a falta de licença de utilização dos locados para os fins industriais consignados nos contratos de arrendamento em causa, como fundamento da invocada nulidade dos mesmos, mas, face à prova produzida, admitindo a hipótese de, à data da celebração desses contratos, existir alguma licença de utilização para tal relevante, sem que a R. tivesse diligenciado no sentido dessa indagação, julgou apenas provado que “à data em que a R. saiu dos pavilhões estes não possuíam licença para o exercício da indústria.”

    Significa isto que o tribunal a quo, na valoração do facto negativo alegado pela R. de que os locados não possuíam, à data da celebração dos contratos, a licença de utilização necessária para os fins a que se destinavam os arrendamentos, deu como não provado tal facto negativo, atendendo ao coeficiente de esforço probatório exigível por parte da R..

    Na verdade, recaía sobre a R. o ónus de provar esse facto negativo como fundamento da invocada nulidade daqueles contratos, nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do CC, embora, dada a natureza de tal facto, lhe bastasse demonstrar a sua indiciação ou verosimilhança, fazendo incidir sobre a A. maior exigência na respetiva contraprova.

    Todavia, em sede da valoração da prova livre, o que o tribunal a quo concluiu, em termos mais simples, foi que a R. nem tão pouco chegou a fazer prova dessa indiciação, ou seja, da verosimilhança daquele facto negativo, ao considerar subsistir a hipótese de ter existido alguma licença.

    De notar que não está aqui em causa a violação de lei sobre a repartição do ónus da prova nem sobre disposição expressa que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe força de determinado meio de prova, mas apenas a apreciação da prova livre do sobredito facto negativo.

Outrossim, não se poderá afirmar que o tribunal a quo tenha deixado de apreciar a matéria em foco, na medida em que o fez ao considerar que a R. não produziu prova suficiente tendente a indiciar sequer o facto negativo de que, à data da celebração dos contratos de arrendamento, não existissem a necessária licença de utilização dos locados.   

Sucede que a apreciação probatória daquele facto negativo estribou-se em prova testemunhal, em relação à qual não cabe a este tribunal de revista sindicar eventuais erros de valoração, como decorre do preceituado no artigo 674.º, n.º 3, a contrario sensu, do CPC.

Questão diferente seria a de saber se as instâncias fizeram uso dos poderes instrutórios ao seu alcance para esclarecer o teor da licença que, na versão da R. e da testemunha inquirida, existiria.

Mas esta questão não vem, como tal, aqui suscitada pela Recorrente, nem se divisa sequer que esta tenha, ao longo do processo, diligenciado pela obtenção dessa informação, mormente face ao alegado pela A. na réplica.

Seja como for, o que se tem por certo é que o tribunal a quo não deixou de apreciar a matéria alegada nos artigos 25.º e 26.º da contestação, ao julgar não provado, nos termos em que o fez, o facto negativo de que, à data da celebração dos contratos de arrendamento ajuizados, não existia a necessária licença de utilização dos locados, não ocorrendo, portanto, o vício de omissão de tal apreciação como pretende a Recorrente.

É quanto basta para se concluir pela improcedência das razões invocadas pela R. neste particular.

 

2.3. Quanto à questão da invocada nulidade dos contratos de arrendamento por inobservância de forma legal e por falta de licença de utilização dos locados  


Como acima ficou relatado, a R., na contestação, invocou a nulidade dos contratos de arrendamento ajuizados com fundamento quer na inobservância da forma legalmente prescrita – escritura pública – quer por falta da necessária licença de utilização.


Ora, à data da celebração dos referidos contratos, respetivamente 01/03/1986 e 01/02/ 1989, vigorava o disposto no artigo 1029.º do CC, nos termos do qual, no que aqui releva, se dispunha que:

   1 – Devem ser reduzidos a escritura pública      

  a) - -----------------------------------------------

 b) – Os arrendamentos para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal.

            (…) 

3 – No caso da alínea b) do n.º 1, a falta de escritura pública é sempre imputável ao locador e a respetiva nulidade só é invocável pelo locatário, que poderá fazer prova do contrato por qualquer meio.

   Posteriormente, o Regime de Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Dec.-Lei n.º 321-B/90, de 15-10, mantendo, no seu artigo 7.º, n.º 2, alínea b), a exigência de escritura pública para os arrendamentos para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal, revogou, no entanto, o n.º 3 do citado artigo 1029.º do CC.

    Entretanto, o Dec.-Lei n.º 64/A/2000, de 22-04, veio alterar o artigo 7.º do RAU, passando a constar dele, no que ora interessa, o seguinte:

1 – O contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito.

2 – A inobservância da forma escrita só pode ser suprida pela exibição do recibo de renda (…). 

    Desde então, o arrendamento urbano para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal deixou de estar sujeito à forma solene de escritura pública, bastando a celebração por documento particular, sem prejuízo do preceituado no transcrito n.º 2.

   Porém, esta alteração, respeitante como é à forma de celebração do contrato, não é aplicável aos contratos celebrados antes da vigência da nova lei, como decorre do regime transitório geral constante do artigo 12.º do CC.

   Em suma, os contratos de arrendamento em causa estavam sujeitos a celebração por escritura pública sob pena de nulidade, imputável ao locador, mas só invocável pelo locatário, que poderia fazer prova do contrato por qualquer meio.

   Ora, no caso vertente, os contratos de arrendamento ajuizados foram celebrados por escrito particular, padecendo assim do vício de nulidade nos termos do artigo 1029.º, n.º 1, alínea b), e n.º 3, acima transcrito com referência ainda ao artigo 220.º do CC.

   Coloca-se então a questão de saber se a nulidade fundada em inobservância da forma legalmente prescrita pode ser paralisada com fundamento em abuso de direito imputável a quem a invoque.

    Como é sabido, a doutrina e a jurisprudência têm aberto caminho no sentido de admitir a “inalegabilidade” de nulidades formais por via do abuso de direito, ao abrigo do artigo 334.º do CC, posto que o consintam as razões subjacentes à exigência da forma legal estabelecida, como tem sucedido, com alguma incidência, no domínio dos contratos de arrendamento urbano.

     A esse propósito, Menezes Cordeiro[1], embora ponderando “a natureza plena das normas formais e a estrutura aberta da invocação da nulidade”, apoiando-se em jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, observa o seguinte:

«Perante a persistência da nossa jurisprudência e confrontados com casos nos quais a via da inalegabilidade permite a solução justa e imediata, enquanto o circunlóquio pela responsabilidade civil se apresenta problemático, entendemos rever a nossa posição.  

Assim, em casos bem vincados, admitimos hoje que as próprias normas formais cedam perante o sistema, de tal modo que as nulidades derivadas da sua inobservância se tornem verdadeiramente inalegáveis.»  

     Nessa linha, considerando que, nos termos do n.º 3 do indicado artigo 1029.º do CC, a falta de escritura pública não obsta sequer a que o locatário faça prova do contrato por qualquer outro meio, não se descortinam razões ponderosas a salvaguardar que não sejam as respeitantes ao interesse das partes, em especial o interesse do locatário.

   Nessa medida, ter-se-á de entender que não aproveitará ao locatário a invocação da nulidade fundada na inobservância de escritura pública, quando tenha adotado comportamentos suscetíveis de ser qualificados em sede de abuso de direito, mormente na modalidade do venire contra factum proprium.

Segundo o ensinamento de Baptista Machado[2], a imputação das consequências do abuso de direito traduzido na proibição de venire contra factum proprium assenta nos seguintes pressupostos:

a) - verificação de uma situação objetiva de confiança induzida por uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objetivamente considerada, ainda que não culposa, é de molde a despertar em outrem a convicção de que ele aquele sujeito se comportará no futuro, coerentemente, de determinada maneira;

b) – o investimento na confiança e irreversibilidade desse investimento com o alcance de uma relação de causalidade entre o facto gerador da confiança por uma das partes e o investimento da outra parte apenas baseado nessa confiança, importando ainda que o dano ocasionado pela violação da boa fé não seja removível por outro meio jurídico satisfatório;

c) – a boa fé da parte que confiou.

Por sua vez, Menezes Cordeiro[3] aponta como pressupostos da proteção jurídica do instituto do abuso de direito, em especial, na variante aqui em destaque:

a) – a verificação de uma situação de confiança conforme ao sistema e à boa fé subjetiva e ética, própria de uma pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore estar a lesar posições alheias; 

b) – uma justificação para essa confiança alicerçada em elementos razoáveis, suscetíveis de provocar a adesão de uma pessoa normal, que atue com a cautela requerida pelas circunstâncias do contrato;

c) – um investimento de confiança no sentido de que a pessoa a proteger tenha, de forma efetiva, desenvolvido toda uma atuação baseada na própria confiança gerada, atuação essa que não possa ser desfeita sem prejuízos inadmissíveis;

d) – uma imputação da confiança por forma a implicar a oneração do responsável pela situação criada.

      É, pois, o que se verifica no caso dos autos conforme bem se ponderou no acórdão recorrido.

      Com efeito, como ali se refere, os contratos em causa vigoraram ao longo de quase 30 anos (mais precisamente 28 e 25 anos), durante os quais ambas as partes se comportaram como se estivessem juridicamente vinculadas ao acordado nos escritos particulares outorgados, “sem quaisquer focos de litigiosidade relevante”, sedimentando a estabilidade e a permanência da relação contratual de modo a gerar a confiança recíproca das partes na sua perduração.

     Diversamente do sustentado pela Recorrente, uma tal situação prolongada apresenta-se de molde a que a A. confiasse plenamente que a R. mantivesse a sua vinculação ao acordado nos contratos escritos, cumprindo também, nessa base, as suas obrigações como senhoria. E é natural que tal confiança fosse até reforçada pelo facto de, a partir do Dec.-Lei n.º 64/A/ 2000, de 22-2004, deixar de ser exigida escritura pública para os contratos de arrendamento para o comércio, indústria ou exercício de profissão liberal.

E como também se salienta no acórdão recorrido, a própria R. procedeu à declaração de denúncia dos referidos contratos no dia 31/07/2014 com efeitos a partir de 31/08 do mesmo ano, o que revela um comportamento inequívoco de se encontrar vinculada àqueles contratos.

     Nessas circunstâncias, não se mostrava equacionável, à luz dos ditames da boa fé, que, perante a pretensão da A. com vista a obter os efeitos legais emergentes da inobservância do prazo de pré-aviso para a denúncia efetuada pela R., sem qualquer comportamento imputável à mesma A. que implicasse a rutura dos contratos, viesse esta R. esgrimir o vício de nulidade destes contratos por não terem sido celebrados mediante escritura pública.

A única razão que ocorre como plausível para que a R. tenha vindo invocar a referida nulidade é a de obstar a que a A. consiga realizar o seu interesse afetado pela sobredita denúncia.

Assim, não se poderá deixar de concluir, como se concluiu no acórdão recorrido, que tal atuação da R. integra claramente uma situação de abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, à luz do disposto no artigo 334.ºdo CC, justificando, por isso, a inalegabilidade daquela nulidade por parte da mesma R..


Importa agora saber se procede também a invocada nulidade dos contratos em causa com fundamento na falta de licença de utilização dos locados e, em caso afirmativo, se tal nulidade pode, igualmente, ser passível de paralisação por via do abuso de direito.

Ora, à data da celebração dos contratos de arrendamento em referência vigorava o Dec.-Lei n.º 329/81, de 04-12, cuja vigência perdurou até à entrada em vigor do artigo 9.º do RAU.

     O artigo 1.º desse diploma condicionava a realização de escritura pública de arrendamento para comércio, indústria ou profissão liberal a apresentação pelo locador de licença camarária donde constasse ser essa a finalidade do imóvel locado ou que autorizasse a mudança para outra finalidade.

    Do preâmbulo do referido diploma consta que com ele se teve em vista criar mecanismos que permitam controlar a mudança de finalidade dos fogos então destinados à habitação e, paralelamente, introduzir um instrumento útil no sentido de permitir às câmaras municipais prosseguir uma política de ordenamento urbanístico, orientando, através da emissão de licenças, a instalação dos estabelecimentos comerciais e das zonas de serviços para determinadas áreas urbanas.

         Todavia, o artigo 4.º do mesmo Dec.-Lei dispunha que:

  A declaração de arrendamento para comércio, indústria ou profissão liberal que não tenha sido celebrado por escritura pública sem a apresentação de licença camarária ou documento que a substitua implicará insusceptibilidade de qualquer actualização de renda.

   Daí decorre que a celebração de contratos de arrendamento comercial sem apresentação de licença camarária para o fim a que se destina não implicava nulidade desses contratos.

    Posteriormente, o artigo 9.º do RAU, entrado em vigor em 01/01/ 1992 (art.º 2.º, n.º 2, do Dec.-Lei n.º 321-B/90, de 15/10), sendo aplicável apenas aos contratos celebrados para o futuro, prescrevendo a necessidade de licença de utilização para todos os arrendamentos urbanos (n.º 1), com a cominação de coima pela inobservância desse preceito imputável ao senhorio (n.º 5), veio introduzir, no seu n.º 7, uma norma inovatória no sentido de sancionar com nulidade os arrendamentos não habitacionais de locais licenciados apenas para habitação, nada estabelecendo quanto ao arrendamento de locais licenciados para outros fins.

      Atualmente, o artigo 1070.º, n.º 1, do CC, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, de 27-02, que aprovou o NRAU, prescreve que:

O arrendamento urbano só pode recair sobre locais cuja aptidão para o fim do contrato seja atestada pelas entidades competentes, designadamente através de licença de utilização quando exigível.

      Por sua vez, o artigo 5.º do Dec.-Lei n.º 160/2006, de 08/08, prescreve que:

1 – Só podem ser objecto de arrendamento urbano os edifícios ou as suas fracções cuja aptidão para o fim pretendido pelo contrato seja atestada pela licença de utilização.

(…)

4 – A mudança de finalidade e o arrendamento para fim não habitacional de prédios ou fracções não licenciados devem ser sempre previamente autorizados pela câmara municipal.

5 – A inobservância do disposto nos n.ºs 1 a 4 por causa imputável ao senhorio determina a sujeição do mesmo a uma coima (…).

(…)

7 – Na situação prevista no n.º 5, o arrendatário pode resolver o contrato, com direito a indemnização nos termos gerais.  

8 – O arrendamento para fim diverso do licenciado é nulo, sem prejuízo, sendo o caso, da aplicação da sanção prevista no n.º 5 e do direito do arrendatário a indemnização.

    Assim, face à lei atual, a celebração de contrato de arrendamento urbano para comércio, indústria ou profissão liberal sem licença ou autorização de utilização por causa imputável ao senhorio confere ao arrendatário, em alternativa, o direito a resolver o contrato ou a pedir a declaração de nulidade, em qualquer caso, com o direito a indemnização nos termos gerais. Quando a falta de licença ou autorização não seja imputável ao senhorio, poderá também o arrendatário pedir, em seu benefício, a declaração de nulidade do contrato e respetiva indemnização, a coberto do disposto nos artigos 1070.º, n.º 1, do CC e 4.º, a contrario, do Dec.-Lei n.º 160/2006.

Porém, nos casos em que o arrendatário opte pela declaração de nulidade, poderá ainda assim equacionar-se a questão do abuso de direito, na medida em que tal nulidade se encontra estabelecida em seu benefício.

Seja como for, as sobreditas inovações normativas introduzidas pelo NRAU não são aplicáveis aos contratos celebrados antes da sua entrada em vigor, como são os contratos de arrendamento aqui ajuizados. 

No entanto, a convocação destes normativos só teve em vista salientar a solução diversa anteriormente consagrada no Dec.-Lei n.º 329/81, de 04-12, esta sim aplicável ao caso dos autos, no sentido de que a falta de licença ou de autorização para o exercício de comércio, indústria ou profissão liberal nos locados não era então determinativa da nulidade dos contratos de arrendamento para tais fins.

Posto isto, além de não se ter dado com provado que, à data da celebração dos contratos de arrendamento em causa, não existisse falta da necessária licença de utilização dos locados, impõe-se concluir que mesmo a verificar-se a falta de tal licença esta não era então determinativa da nulidade dos referidos contratos, ficando assim prejudicada a questão do abuso de direito nessa sede.


Termos em que improcedem as razões da Recorrente acima apreciadas.

 

2.4. Da questão do invocado erro de julgamento respeitante à condenação da R. no pagamento de rendas e correspetiva indemnização

        

     Neste capítulo, a A. pediu a condenação da R. no pagamento de uma indemnização correspondente às rendas que seriam devidas no período de 90 dos 120 dias estabelecido para o aviso prévio da denúncia, não observado pela R., acrescida de 50%, nos termos do artigo 1041.º do CC.

     A 1.ª instância absolveu a R. desse pedido, considerando que a R. desocupou o locado devoluto de pessoas e bens logo em julho de 2014, tendo a A. recebido as chaves dos locados, pelo que teria renunciado assim tacitamente ao período de aviso prévio, além de a própria R. ter deixado de usufruir dos mesmos, o que se traduziria numa situação de abuso de direito por parte daquela A..

     Por sua vez, a Relação, diversamente, entendeu que a denúncia efetuada em 31/07/2014 só produziu efeitos em 31/11/2014 e que a receção das chaves, por parte da A., nos termos consignados na carta reproduzida no ponto 1.22 dos factos provados não pode ser entendida como renúncia ao prazo de aviso prévio.

      Em face disso, a Relação deu provimento nessa parte à apelação da A., condenando a R. a pagar-lhe uma indemnização no valor de € 8.772,56, equivalente à soma das rendas respeitantes ao período em referência no valor de € 5.263,53, de 50% desse montante na cifra de € 2.631,77 e do valor de € 877,25 relativamente ao atraso no pagamento da renda de agosto paga em outubro de 2014, bem como nos juros de mora civis sobre aquela quantia global a contar da citação.

     Vem agora a Recorrente pugnar pela sua absolvição, nessa parte, na linha do decidido na 1.ª instância, impugnando também a condenação no pagamento da quantia de € 877,25 pelo atraso da renda referente a agosto de 2014.  

        

         Vejamos.


     O artigo 1100.º, n.º 1, alínea a), do CC, na redação dada pela Lei n.º 31/2012, de 14/08, inserido nas disposições especiais do arrendamento para habitação, confere ao arrendatário o direito a denunciar o contrato de arrendamento, independentemente de qualquer justificação, mediante comunicação ao senhorio com a antecedência de 120 dias do termo pretendido do contrato, se, à data da comunicação, este tiver um ano ou mais de duração efetiva.

     Por sua vez, o n.º 4 do artigo 1100.º manda aplicar à denúncia do arrendatário, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 1098.º, respeitante à denúncia pelo senhorio habitacional, em cujo n.º 6 se consigna que:

A inobservância da antecedência prevista para a denúncia não obsta à cessação do contrato, mas obriga ao pagamento das rendas correspondentes ao período de pré-aviso em falta.

    Tais normativos são aplicáveis, na falta de estipulação pelas partes, também aos arrendamentos para fins não habitacionais por força do disposto no artigo 1110.º, n.º 1, do mesmo Código, sendo que, nos contratos de arrendamento em causa, nada foi estipulado para a denúncia dos mesmos. 

      Bem se compreendem as razões de se estabelecer um prazo para o aviso prévio da denúncia como são as de proporcionar à parte contrária (aqui a senhoria) o tempo adequado para encontrar, sem a indesejável solução de continuidade, o novo destino a dar ao locado.

         Segundo Pires de Lima e Antunes Varela[4]:

   «O estabelecimento de uma antecedência mínima para a realização da denúncia justifica-se pela necessidade de proteger tanto os interesses do locatário (…) como os interesses do locador, para que possa tirar da coisa, sem grande perda de tempo, os rendimentos ou o uso que ela é capaz de lhe proporcionar.»

     De todo o modo, não sendo observado, por parte do denunciante, o prazo de aviso prévio estabelecido, a lei determina que, embora tal não obste à cessação do contrato, fica o arrendatário obrigado ao pagamento das rendas correspondentes ao período de pré-aviso em falta (art.º 1098.º, n.º 6, do CC).


      No caso vertente, a R. efetuou a denúncia dos contratos de arrendamento em 31/07/2014 com efeitos a partir de 31/08/2014, não observando, portanto, 90 dos 120 dias legalmente previstos para o respetivo aviso prévio.

     Nessa base, atento o preceituado no n.º 6 do artigo 1098.º do CC, os contratos de arrendamento cessaram em 31/08/2014, mas a R. ficou obrigada a pagar, a título de indemnização, o valor das rendas correspondentes ao período de 90 dias em falta.

     Sucede que a R. transmitiu à A., através da carta de 13/10/2014, reproduzida no ponto 1.22 dos factos provados, que durante o mês de julho foi entregue ao Sr. HH, pessoa que também esteve presente [em reunião anterior] as chaves dos armazéns, para eventual acompanhamento da remoção de todas as benfeitorias amovíveis, conforme exigido pelos membros da Junta de Freguesia. Na mesma carta, foi ainda referido que em Agosto de 2014, os locados encontravam-se totalmente livres e devolutos, conforme o acordado, não tendo sido objeto de ocupação da N/parte, e encontrando-se já as chaves na V/posse.

     E seguidamente, na referida carta, foi assumida pela R. a obrigação de pagar o valor referente ao único mês em falta, o de Agosto, no qual ainda ocupámos os imóveis.

      Em face disso, não sofre dúvida que os contratos de arrendamento denunciados cessaram em 31/08/2014.

      Mas tal vicissitude não suprime o direito do senhorio, devido nos termos do n.º 6 do artigo 1098.º do CC, às rendas correspondentes aos 90 dias em falta respeitantes ao aviso prévio.

      Nem a receção das chaves por parte da A. representa, por si só, renúncia ao prazo de aviso prévio em falta, nem a desocupação dos locados pela R., a partir de 31/08/2014, prejudica o direito da mesma A. às rendas correspondente ao período do aviso prévio em falta.

      Tais factos refletem, quando muito, a cessação dos contratos naquela data, face ao que a segunda parte n.º 6 do citado artigo 1098.º do CC não só não impede com até confere o direito da senhoria às rendas pelo período correspondente ao prazo de aviso prévio em falta. E quanto a este direito, da factualidade provada nada consta que possa ser tido como renúncia da A. a esse direito.

      Por outro lado, sendo aquele direito devido não obstante a cessação do contrato, não se afigura lícito considerar abusivo o comportamento da A. a exigir o seu cumprimento.

      Do que fica dito resulta que assiste à A. o direito de ser indemnizada, pela inobservância do prazo de pré-aviso para a denúncia efetuada em montante equivalente às rendas correspondentes ao período de três meses em falta, valor esse que é de € 5.263,53 (cinco mil duzentos e sessenta e três euros e cinquenta e três cêntimos) - € 1.754,51 x 3 meses. 


      Ponto é saber se, nessas circunstâncias, é também devida a indemnização agravada de 50% das rendas correspondentes ao período de pré-aviso em falta, no valor de € 2.631,77, ao abrigo do artigo 1041.º, n.º 1, do CC, bem como os respetivos juros de mora desde a citação, como foi decidido no acórdão recorrido.

   A solução ali adotada radica no pressuposto de que a denúncia só produziu efeitos em 31/11/2014, ou seja, após o decurso do prazo de 120 dias, mantendo-se, portanto, em vigor os contratos de arrendamentos até essa data.

    Porém, tal pressuposto colide com o preceituado na primeira parte do n.º 6 do já citado artigo 1098. º do CC, ao consignar que a denúncia com inobservância do prazo de aviso prévio não obsta à cessação do contrato.

     Assim sendo, como acima ficou dito, os contratos de arrendamento em causa cessaram em 31/08/2014, mantendo-se, no entanto, o direito do senhorio às rendas correspondentes ao período de pré-aviso em falta.

      Mas será que é aplicável a estas rendas subsistentes após a cessação do contrato de arrendamento a indemnização moratória agravada de 50% estabelecida no n.º 1 do artigo 1041.º do CC.

      A solução que tem vindo a ser reiteradamente adotada pela jurisprudência deste Supremo Tribunal vai em sentido afirmativo.

     Assim, já no acórdão do STJ, de 03/07/1997, proferido no processo n.º 96B933, foi considerado que:

«A falta de pagamento das rendas, se não servir para resolver o contrato é sancionada com o n.º 1 do artigo 1041.º (do Código Civil), ou seja, com o dever de indemnização de 50% à qual não acrescerão juros de mora”.

      E no acórdão do STJ de 22/06/1999 (BMJ n.º 488-345) foi entendido que:

«O direito de indemnização do artigo 1041.º, n.º 1, do Código Civil existe sempre que haja situação de mora no pagamento das rendas, salvo quando o senhorio opte pela resolução do contrato com base nessa causa e o contrato for resolvido com base em tal fundamento.»

Também no acórdão do STJ de 11/10/2005, proferido no processo 04B4383, foi considerado que:

«[…] não deriva (…) da lei que o pagamento da indemnização [a prevista no artigo 1041.º, n.º 1, do CC] apenas seja obrigatório quando o locatário mantém ou pretende manter o arrendamento, pelo que o referido direito do locador se não extingue se o locatário, voluntariamente, ainda que na pendência da acção de despejo, abandonar ou entregar o locado.

(…) o locador mantém o referido direito à indemnização pela mora no pagamento de rendas, quando a resolução do contrato de arrendamento radica em acto eficaz de revogação unilateral da iniciativa do locatário»  

     Na mesma linha, o acórdão do STJ de 19/09/2006, proferido no processo n.º 06A2597[5], doutrinou que:

«A indemnização do n.º 1 do artigo 1041.º do Código Civil é consequência da mora no pagamento das rendas e só não é devida se o contrato for resolvido com esse fundamento, mantendo-se, porém, quando a resolução do contrato resulte da denúncia por iniciativa do locatário.»

      Mais recentemente, a ainda nessa linha, no acórdão do STJ de 10/04/ 2014, proferido no processo n.º 1301/11.8 TBFLG.G1.S1[6], foi entendido, conforme o ali sumariado, que:

«1.O senhorio tem direito à indemnização agravada prevista no n.º 1 do art.º 1041.º do CC, correspondente a 50% das rendas em dívida, quando, não tendo exercido o direito à resolução do arrendamento com fundamento em incumprimento contratual imputável à contraparte, a iniciativa e o interesse prioritário na cessação da relação locatícia são próprios e pessoais do inquilino que, ao entregar as chaves do locado, manifestou claramente a sua desistência na manutenção da relação de arrendamento em curso.

2. Na verdade, constituiria solução arbitrária e desprovida de fundamento material bastante a que se traduzisse, neste quadro factual, em onerar a posição do senhorio, postergando o específico direito à indemnização conferido ao locador num caso em que este opte por não resolver o contrato, cessando a relação contratual com base exclusivamente em acto da iniciativa e interesse do locatário.»


     Em suma, mostra-se firme, na jurisprudência deste Supremo Tribunal, o entendimento de que assiste ao senhorio o direito à indemnização moratória agravada de 50% previsto no artigo 1041.º, n.º 1, do CC, nos casos, como o dos presentes autos, em que forem devidas as rendas correspondentes ao período de pré-aviso em falta para a denúncia do arrendatário, não obstante a cessação do contrato, não havendo razões para divergir desse entendimento.

     Em face disso, impõe-se manter a decisão recorrida também na parte em que condenou a R. a pagar à A. a quantia de € 2.631,77 (dois mil seiscentos e trinta e um euros e setenta e sete cêntimos), a título da sobredita indemnização agravada.

    Porém, sendo essa indemnização moratória agravada a especialmente devida pelas rendas em falta, não haverá lugar a juros moratórios, conforme se entendeu no acórdão do STJ de 03/07/1997 acima citado, não sendo de manter a decisão recorrida neste particular.       

     No acórdão recorrido, foi ainda a R. condenada a pagar à A. a quantia de € 877,26 a título de indemnização pela mora no pagamento da renda referente a agosto de 2014, convocando, para tal, o facto dado como provado no ponto 1.8.

Daquele ponto da factualidade provada resulta que a última renda paga foi a referente a agosto 2014 e que o seu pagamento ocorreu em outubro do mesmo ano.

Apesar de se verificar que tal pagamento foi efetuado com atraso, o certo é que a A. não pediu o pagamento da indemnização de 50% relativamente àquela renda de agosto de 2014, confinando, como confinou, a indemnização ao valor de € 2.631,77 [€ 1.754,51 x 3 meses x 50%] equivalente a 50% das rendas correspondentes aos três meses do pré-aviso em falta.

Nessa conformidade, não se atenderá àquele valor de € 877,26.


Em suma, no respeitante ao segmento condenatório aqui em apreço, impõe-se conceder parcialmente a revista, alterando a decisão recorrida no sentido de absolver a R. quanto ao pagamento da quantia de € 877,26 pelo atraso da renda de agosto de 2014 e dos juros de mora, a contar da citação, sobre a quantia de € 8.772,56, ficando assim a condenação da R. reduzida à quantia de € 7.895,30 (sete mil oitocentos e noventa e cinco euros e trinta cêntimos) = € 5.263,53 + € 2.631,77.


2.5. Quanto aos alegados erros de julgamento em sede de indemnização pela deterioração dos locados


Neste particular, a A. peticionou o pagamento de uma indemnização no valor total de € 38.221,02., acrescida de juros de mora, correspondente às despesas que tivera com a limpeza e reparação da deterioração dos locados por parte da R..

A 1.ª instância, em face da factualidade provada nessa sede, considerou o seguinte:   

«(…) não ficou provado o nexo de causalidade adequada entre as deteriorações apresentadas nos armazéns com a totalidade das obras ali efectuadas, pois é necessário distinguir a existência de eventuais deteriorações lícitas do inquilino, de deteriorações ilícitas ou a eventual necessidade de obras de melhoramento dos armazéns para os colocar em estado como novo e assim poder dar de arrendamento a terceiros e por vezes a fronteira entre as referidas situações não é muito nítida, como sucede no caso concreto.

Além disso, é necessário atender à circunstância de terem decorrido quase 30 anos de utilização.

Deste modo, como não é possível afirmar com a necessária segurança que as todas as obras realizadas pela Autora nos armazéns em causa se destinaram exclusivamente a reparar as deteriorações feitas pela Ré, impõe-se recorrer à equidade e atribuir uma indemnização correspondente a 1/3 do valor de €38.221,02 que foi despendido pela Autora com as obras em causa, ou seja, deve tal indemnização ser fixada na quantia de €12.730,34 (doze mil, setecentos e trinta euros e trinta e quatro cêntimos), ao abrigo do disposto no art. 566.°, n.º 3, do Código Civil. »

            Por sua vez a Relação entendeu que:

«Não pode seguir-se o caminho percorrido na sentença porque esta baseou-se nas obras e preços constantes do orçamento junto com a petição inicial, quando é certo que face à fatura relativa às obras, estas não atingiram os custos orçamentados, porventura por terem tido menor extensão.

Esta questão suscita algumas dificuldades dada a falta de concretização da matéria factual.

Ou seja, a Autora procedeu a uma reparação geral dos barracões com o fim de os arrendar a outros arrendatários, o que veio a conseguir.

Distinguir o que foi reparado e resultou de alterações no arrendado feitas pela Ré ou de deteriorações inerentes a uma utilização imprudente, em conformidade com os fins do contrato, daquilo que teve por fim colocar os barracões em condições de cativarem possíveis arrendatários, poderá revelar-se duvidoso em alguns casos, pelo que quando isso ocorra, será a situação valorada contra a Autora, por lhe competir o ónus da prova quanto aos danos.

Existirão outras situações em que a Autora poderá ter tido custos acrescidos por causa da ação da Ré, mas sempre teria tido custos.

É o caso da pintura das paredes, as quais carecem de renovação periódica da pintura, principalmente depois da Ré ter utilizado os pavilhões por quase 30 anos, mas a pintura não é da responsabilidade do arrendatário, deste só será responsabilidade por deterioração da pintura devida a uso imprudente.

Poderão coexistir ambas as situações, como será o caso dos autos na parte relativa às instalações onde a Ré tinha a secção de pintura, pois as paredes além da deterioração inerente à passagem do tempo continham tinta proveniente da atividade.

Mas como não é possível deslindar que custos poderão ter existido a mais imputáveis à Ré, a dúvida será valorizada em desfavor da Autora por lhe competir o ónus de provar os danos cuja indemnização pede.»

Seguidamente, tomando como referência o estado em que a R. deixou os barracões e as obras efetuadas, a Relação analisou cada uma das reparações em causa, conforme consta de fls. 410-412, apurando as despesas que se mostravam imputáveis à R. e concluindo, em síntese, que:

«Não é clara a proporção do custo da limpeza que implicariam os trabalhos a executar pela Ré e o custo daqueles que não lhe são imputáveis.

Por conseguinte, na dúvida coloca-se 1/3 deste valor a cargo da Ré.

As despesas imputáveis à Ré somam € 13.894,63 (€ 8.250,00 + € 317,63 + € 825,00 + € 660,00 + € 495,00 + € 396,000 + € 165,00 + € 660,00 + 1/3 de € 550,00 + € 1.320,00 + € 440,00 + 1/3 de € 550,00).

Acresce IVA a 6%. É este o montante da indemnização a atribuir à Autora, a que acresce a quantia acima referida a título de rendas e indemnização.»

       Em contraposição ao assim decidido vem agora a R. sustentar que:

a) - a falta de nexo de causalidade entre as obras executadas pela A. constantes do ponto 12 dos factos provados na sentença da 1.ª instância e os defeitos indicados no ponto 11 dos factos provados na mesma sentença;

b) - a falta de interpelação admonitória da R. para as respetivas reparações com o pretenso desfasamento entre o orçamento apresentado nos autos e a fatura que consubstancia as reparações.


      No respeitante à alegada falta do nexo de causalidade entre as obras executadas pela R. constantes do ponto 1.12 da factualidade provada e os defeitos /danos indicados no ponto 11 da mesma factualidade, a Recorrente sustenta que, percorrida toda a matéria de facto provada, constata-se que nenhum facto permite estabelecer um nexo de ligação entre as deteriorações identificadas no ponto 11 e as obras referidas no ponto 12.

Na apreciação dessa mesma questão suscitada pela R., em sede de apelação, a Relação começou por considerar que as despesas a ter em conta não são as que constam do orçamento apresentado pela A., mas sim as que constam da fatura junta aos autos e havendo, entre estas, algumas que não se destinam a reparações, mas sim à adaptação do locado para outros fins, tendo em conta que neles veio a ser instalado um supermercado e empresa de pneus.

Foi também considerado que, quanto às benfeitorias que permaneceram nos barracões e tivessem sido retiradas depois pela A., os custos desta supressão não deviam ser indemnizados pela R., uma vez que aquela concordou em ficar da posse de tais benfeitorias.

Seguidamente, como acima ficou transcrito, a Relação, embora revelando alguma dificuldade em distinguir o que foi reparado e o que resultou de alterações no arrendado feitas pela R. ou de deteriorações inerentes a uma utilização imprudente, empreendeu a análise das diversas reparações e respetivos custos, identificando aquelas que, pela sua natureza, se mostravam imputáveis à R., procedendo à sua discriminação. Quanto às despesas em que a proporção do custo imputável à R. não era claro, foi considerado 1/3 do valor a cargo da R..

Foi assim que se concluiu pelo montante total de € 13.894,63 resultante da soma das seguintes verbas € 8.250,00 + € 317,63 + € 825,00 + € 660,00 + € 495,00 + € 396,000 + € 165,00 + € 660,00 + 1/3 de € 550,00 + € 1.320,00 + € 440,00 + 1/3 de € 550,00, correspondentes às despesas tidas especificamente por imputáveis à R..

Toda essa análise inscreve-se no domínio da apreciação crítica da prova livre com apoio complementar de juízos de equidade, nos limites dos factos tidos por provados. Nem se divisa que essa análise seja desproporcionada no universo de factos em presença ou contenha erro grosseiro em sede de equidade.

De resto, nem a própria Recorrente sinaliza qualquer ponto específico em que isso tenha ocorrido, limitando-se a tecer considerações genéricas.

Assim sendo, também aqui o eventual erro de apreciação dessa prova seja em sede de estabelecimento do nexo de causalidade seja em termos de equidade não é sindicável por este tribunal de revista, nos termos do artigo 674.º, n.º 3, a contrario sensu, do CPC.


No respeitante à invocada falta de interpelação admonitória da R. para proceder à reparação em espécie das deteriorações verificadas, não procedem também as razões da Recorrente.

Com efeito, a R. entregou os locados nas condições deterioradas descritas nos factos provados, sem se empenhar espontaneamente em proceder à necessária reparação conforme o estipulado nos contratos de arrendamento. E, além disso, nem tão pouco reconhece ainda a obrigação de fazer aquelas reparações.

Assim, para além do que a este respeito foi considerado pelo tribunal a quo, e que aqui se sufraga, tal comportamento é revelador de uma inequívoca recusa antecipada de cumprir, incorrendo, desde logo, numa situação equiparada a incumprimento definitivo da respetiva obrigação contratual.

Nestas circunstâncias, não restava à A. senão exigir, como veio exigir, uma indemnização por equivalente pelos custos que teve de suportar com a eliminação das deteriorações imputáveis à R. e não realizada, como se impunha, antes da restituição dos locados. 

Considera-se, pois, que a interpelação para o cumprimento dessa obrigação de indemnizar ocorreu por via da citação da R. para a presente ação.  

Termos em que improcedem as razões da Recorrente nesta parte.      

   

      2.6. Quanto à questão das benfeitorias


      Neste capítulo, em ambas as instâncias foi considerado não assistir à R. o direito a indemnização pelas benfeitorias por ela efetuadas nos locados, o que resulta inequivocamente dos contratos de arrendamento celebrados, tal como consta expressamente do ponto 1.4 dos factos provados.

      Em face disso, não se justifica mais considerações para além das expostas pelas instâncias.

      Só não seria assim caso se tivesse concluído pela nulidade dos contratos de arrendamento ajuizados como pretende a Recorrente.

      Porém, dada a improcedência das razões da Recorrente nessa parte, prejudicada fica qualquer outra apreciação sobre a pretendida indemnização por benfeitorias.   


V – Decisão


Pelo exposto, acorda-se em conceder parcialmente a revista e decide-se:

a) - Alterar a decisão recorrida no sentido absolver a R. quanto ao pagamento da quantia de € 877,26 pelo atraso da renda de agosto de 2014 e dos juros de mora, a contar da citação, sobre a quantia de € 8.772,56, ficando assim a condenação da R., nesta parte, reduzida ao montante de € 7.895,30 (sete mil oitocentos e noventa e cinco euros e trinta cêntimos), correspondente à soma das quantias de € 5.263,53 e de € 2.631,77;

   b) – Confirmar, no mais, o decidido pela Relação.

As custas da ação e dos recursos ficam a cargo das partes na proporção dos respetivos decaimentos.  



Lisboa, 19 de Setembro de 2019


        

Manuel Tomé Soares Gomes

Maria da Graça Trigo

Maria Rosa Tching

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[1] In Tratado de Direito Civil V – Parte Geral, Almedina, 2011, pp. 310-311.
[2] RLJ Ano 117/118, pags. 169 e segs (Ano 118º)..
[3] O Levantamento da Personalidade Colectiva no Direito Civil e Comercial, Almedina, 2000, pags. 95-97.
[4] In Código Civil Anotado, Vol. II, Coimbra Editora, 4.ª Edição, 1977, nota 4, p. 399.
[5] Disponível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj.
[6] Disponível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj.