Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5957/12.6TBVFR-C.P1.S2
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: ACÓRDÃO
ERRO DE ESCRITA
ERRO DE JULGAMENTO
Data do Acordão: 10/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO E CORRIGIDO UM LAPSO CALAMI.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
Ocorre erro de escrita (ou erro material) quando a vontade declarada pelo juiz diverge da sua vontade real, ou seja, quando o teor não coincide com o que se tinha em mente; ocorre erro de julgamento quando o juiz, no processo interno de formação do juízo expresso na decisão, escreve o que realmente pretende, mas decide mal, ou porque decide contra legem ou contra os factos apurados.
Decisão Texto Integral:




PROC. N.º 5957/12.6TBVFR-C.P1.S2

                                                                       *

ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

AA, recorrente nos autos, veio reclamar do nosso acórdão de 27.02.2020, que julgou improcedente o recurso de revista que apresentara, alegando, em síntese, o seguinte:
- o reclamante suscitou no recurso de revista a violação do princípio da intangibilidade do caso julgado, por entender que as decisões proferidas nos apensos D e E teriam necessariamente de vincular o julgador quanto aos mesmos factos constantes deste apenso C;
- aliás, ainda em primeira instância o tribunal deu sinais inequívocos de sufragar esse entendimento, exteriorizados no despacho proferido em 22.10.2013, e mais tarde no despacho proferido em 09.01.2017, tendo sido neste último que se determinou o aproveitamento da prova produzida nos apensos D e E;
- tendo, naturalmente, criado no reclamante a legítima expectativa de que as decisões proferidas nesses apensos D e E, circunscritas embora aos factos comuns aos referidos apensos, se aplicariam, tout court, ao apenso C;
- nas alegações da revista, o reclamante referiu o seguinte:
Porque na sequência da resolução dos negócios que a devedora celebrou com a Dikalofer esta instaurou acções de impugnação de resolução, por despacho proferido no dia 22/10/2013 determinou-se a suspensão da instância do incidente de qualificação até que transitassem em julgado as sentenças a proferir nessas acções, por ser nelas que se iriam analisar e discutir todos os pormenores dos negócios que foram invocados pelas credoras, AI, e Ministério Público para justificar, em parte, o pedido de qualificação de insolvência como culposa.
Após trânsito das sentenças proferidas nos apensos D e E (impugnação de resolução) foi proferido despacho pelo qual se determinou, ao abrigo do disposto no artigo 11º do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas, que a factualidade aí dada como provada seria aproveitada nestes autos, tendo sido dada a possibilidade aos diversos intervenientes processuais para, quanto a tais factos, exercerem o direito ao contraditório (…)
- O despacho a que se alude no segundo parágrafo do excerto transcrito não é, ao contrário do que consta a fls. 20 e 23 do acórdão sob reclamação, o despacho datado de 22.10.2013, antes sim o despacho datado de 09.01.2017;
- O acórdão não incorreu em erro de escrita, mas, atenta a argumentação expendida, desconsiderou em absoluto os argumentos vertidos pelo reclamante no recurso de revista;
- Por isso, o acórdão deve ser reformulado, julgando-se a revista procedente.

Respondeu a recorrida “SLEM – Sociedade Luso-Espanhola de Metais, Lda.”, defendendo a manutenção do decidido, embora com a correcção da data do despacho indicado a fls. 20 e 23 do acórdão, que, por manifesto lapso de escrita, não corresponde à que se queria assinalar.

Apreciando:

Ocorre erro de escrita (ou erro material) quando a vontade declarada pelo juiz diverge da sua vontade real, ou seja, quando o teor não coincide com o que se tinha em mente; ocorre erro de julgamento quando o juiz, no processo interno de formação do juízo expresso na decisão, escreve o que realmente pretende, mas decide mal, ou porque decide contra legem ou contra os factos apurados[1].
Esclarecida esta distinção, considera-se útil situar a questão colocada na reclamação no contexto da matéria apreciada no acórdão sob reclamação, o que se fará após transcrição da parte desse acórdão na qual se alude à data de tal despacho.

“Continua o recorrente a sustentar que existe violação do caso julgado, por o tribunal ter desconsiderado o despacho de 22.10.2013, proferido neste apenso C, no qual se determinou que fosse aproveitada para os autos a factualidade dada como provada nos apensos D) e E). E – prossegue –, como nesses apensos foi dado como não provado que o recorrente era gerente de facto da devedora, esse facto deveria ter sido contemplado na decisão final do incidente de qualificação de insolvência.

Não cremos que tenha razão.

Decorre da leitura dos nºs 2 e 3 do artigo 635º do CPC que é a parte dispositiva que vincula tanto os destinatários, como o tribunal.
No entanto, como a parte dispositiva constitui a conclusão decorrente de silogismos internos de uma decisão, nos quais os fundamentos de facto ou de direito são as premissas, tem-se entendido que a parte dispositiva vincula enquanto conclusão dos fundamentos respectivos.
Deste modo, a força do caso julgado material abrange, para além das questões directamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado.
Teixeira de Sousa é bem claro na defesa desta tese: ‘não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão’.
O mesmo autor precisa, num outro escrito: ‘(…) numa sentença de um processo dominado pela disponibilidade objectiva das partes, nem o facto vale sem qualificação jurídica nem a qualificação jurídica vale sem o facto, pelo que o âmbito do caso julgado material é a extensão fáctico-jurídica da decisão judicial; nenhum dos fundamentos que não é dedutivamente reconstituível através da decisão jurisdicional está englobado no caso julgado material, e todo o fundamento dedutivamente recomponível através da decisão jurisdicional  está incluído no caso julgado material’.
O que isto significa é que a decisão, contida na parte dispositiva, tem a eficácia vinculativa da fundamentação que a implica.
Os fundamentos de facto da decisão anterior apenas formam caso julgado enquanto integradores da causa de pedir aí invocada, não podendo ser retirados desse específico contexto para valer, autonomamente, em acção posterior.
(…)

Haverá, no entanto, situações em que a relação de prejudicialidade entre um objecto decidido e um outro objecto implique a projecção, neste, dos fundamentos de facto de caso julgado anterior. É o que preconiza Teixeira de Sousa, ‘(…) também se verificam situações em que os fundamentos de facto, considerados em si mesmos (e, portanto, desligados da respectiva decisão), adquirem valor de caso julgado. Esses fundamentos possuem um valor próprio de caso julgado sempre que haja que respeitar e observar certas conexões entre o objecto decidido e um outro objecto (…). Essas conexões podem ser várias: sem excluir outras possíveis, (…) as relações de prejudicialidade (…)’.

Portanto, se a discussão do objecto de uma acção posterior (objecto dependente) mantiver conexão com um núcleo factual parcial ou totalmente integrado em decisão anterior (objecto prejudicial), transitada em julgado, impondo-se como pressuposto indiscutível da segunda decisão (relação de prejudicialidade), não se vê razão para, nessas condições, não se estender a autoridade de caso julgado aos fundamentos de facto.

Com base nestes princípios, afigura-se não ter condições para proceder, como já referido, a pretensão do recorrente.

Sem perder de vista que os apensos D) e E) da insolvência diziam respeito a duas acções de impugnação de resolução instauradas pela “Dikalofer” (adquirente dos bens da devedora) contra a massa insolvente da sociedade “Floriano Mendes, Lda.” e que os presentes autos (apenso C) se reportam ao incidente de qualificação de insolvência dessa mesma sociedade, parece-nos dispensável, face ao que adiante se dirá, a análise sobre a relevância, para o caso, da tríplice identidade de que fala o n.º 1 do artigo 581º do CPC

O que deve realçar-se é que o despacho de 22.10.2013 apenas determinou que fosse considerada e aproveitada, para o incidente de qualificação, a factualidade dada como provada nos apensos D) e E) e que, em ambos, foi julgado não provado que o sócio AA fosse gerente de facto da devedora.

Parece residir aqui, neste preciso ponto, o equívoco do recorrente: um facto não provado não se confunde com a prova de um facto negativo, isto é, não se pode extrair da factualidade não provada que esteja assente o facto negativo que lhe seja simétrico. Assim, a circunstância de não se ter provado que o sócio AA fosse gerente de facto da devedora não equivale à demonstração de que não era gerente de facto da devedora.

Quando um determinado facto é considerado não provado isso corresponde à sua não alegação, à sua inexistência no contexto processual específico.

Portanto, como o facto não provado, aqui em causa, não constitui um verdadeiro fundamento de facto, nunca se configuraria a tal relação de prejudicialidade de que fala Teixeira de Sousa, que, no limite, poderia obrigar à projecção dos efeitos de caso julgado neste apenso C”.

Salta à vista o lapso de escrita em que incorremos na aposição da data do despacho que efectivamente releva. Não há a menor dúvida de que a data de 22.10.2013 é a do despacho que suspendeu a instância do incidente de qualificação de insolvência (conforme referido a fls. 4 do relatório do acórdão), não correspondendo à do despacho que determinou que a matéria de facto dada como provada nos apensos D e E fosse aproveitada neste apenso C.

A menção feita a fls. 20 do acórdão, reporta-se, como aí expressamente se diz, ao despacho proferido neste apenso C, no qual se determinou que fosse aproveitada para os autos a factualidade dada como provada nos apensos D) e E). E a menção feita a fls. 23, como também expressamente se diz, reporta-se ao despacho que determinou que fosse considerada e aproveitada a factualidade dada como provada nos apensos D) e E).

Nenhuma dúvida pode, assim, subsistir sobre a identificação do despacho que relevou para a decisão: não se tratou, obviamente, do despacho que suspendeu a instância do incidente de qualificação de insolvência (esse, sim, datado de 22.10.2013), mas antes do despacho que determinou o aproveitamento para estes autos da factualidade apurada nos apensos D) e E). Querer ver mais nisto do que um manifesto lapso de escrita é profundamente desleal, no plano processual.

Detectado o lapso, importa corrigi-lo, ao abrigo das disposições dos artigos 614º, n.º 1, 666º e artigo 685º, todos do CPC.

Deste modo, procede-se à seguinte rectificação do acórdão de 27.02.2020:

- na página 20 do acórdão, onde se escreveu “ter desconsiderado o despacho de 22.10.2013, proferido neste apenso C, no qual se determinou que fosse aproveitada para os autos a factualidade dada como provada nos apensos D) e E)”, deve passar a constar “ter desconsiderado o despacho proferido neste apenso C, no qual se determinou que fosse aproveitada para os autos a factualidade dada como provada nos apensos D) e E);

- na página 23 do acórdão, onde se escreveu ”O que deve realçar-se é que o despacho de 22.10.2013 apenas determinou que fosse considerada e aproveitada, para o incidente de qualificação, a factualidade dada como provada nos apensos D) e E) (…)”, deve passar a constar ”O que deve realçar-se é que o despacho atrás referido apenas determinou que fosse considerada e aproveitada, para o incidente de qualificação, a factualidade dada como provada nos apensos D) e E) (…)”.

Tendo o tribunal apenas incorrido em claro erro de escrita e não tendo ocorrido, ao contrário do que sustenta o reclamante, erro de julgamento, improcede a reclamação.

                                                          

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Proceda-se a rectificação do acórdão, nos sobreditos termos.

                                                                       *

Custas pelo reclamante.

                                                                       *

LISBOA, 13 de Outubro de 2020

Henrique Araújo (Relator)

Maria Olinda Garcia

Raimundo Queirós

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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[1] Cfr. Anselmo de Castro, “Direito Processual Civil Declaratório”, Volume III, página 146, e Paula Costa e Silva, “Acto e Processo”, página 68.