Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2011/15.2T8PNF.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: MANDATÁRIO JUDICIAL
PERDA DE CHANCE
INTERPOSIÇÃO DE RECURSO
DEVER DE ZELO E DILIGÊNCIA
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
RECURSO DE APELAÇÃO
IMPROCEDÊNCIA
CONTRATO DE MANDATO
MANDATO FORENSE
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
LIQUIDAÇÃO ULTERIOR DOS DANOS
Data do Acordão: 07/05/2018
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / INTERPOSIÇÃO E EXPEDIÇÃO DO RECURSO / FUNDAMENTOS DA REVISTA.
DIREITO DAS SOCIEDADES – ÂMBITO DE APLICAÇÃO / PERSONALIDADE E CAPACIDADE / DELIBERAÇÃO DOS SÓCIOS.
Doutrina:
- Alberto Caeiro, RDES, XIII, p. 82 e ss.;
- António Caeiro, Temas de Direito das Sociedades, Almedina, p. 363 e ss.;
- António Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, I, 1.ª edição, Almedina, p. 191 e ss., 405 e ss., 501 e ss., 614 e ss., 643-646, 650-652 ; Direito das Sociedades, II, 1.ª edição, p. 379 e ss., 411 e ss. ; Da boa Fé em Direito Civil, 1997, Almedina p. 586 e ss, 1235 e ss. ; Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, Tomo IV, 2005, Almedina, p. 371 e ss.;
- Carlos Alberto Fernandes Cadilhe, Regime da responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, Anotado, Coimbra Editora, 2011, p. 98-99;
- João de Castro Mendes, Do Conceito de Prova em Processo Civil, Ática, p. 132 e ss.;
- Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Volume II, 1.ª edição, Almedina, p. 21;
- Paulo Mota Pinto, Perda de chance processual, RLJ Ano 145.º, Março-Abril de 2016, p. 174 e ss., 186 e ss. e 190;
- Paulo Olavo Cunha, Os direitos especiais nas sociedades anónimas: as acções privilegiadas, p. 21;
- Pinto Furtado, Código Comercial Anotado, Volume I, p. 516 e ss.;
- Raul Ventura, Sociedades Por Quotas, Volume II, Almedina, p. 85 e ss. ; Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, Sociedade por Quotas, 1996, Volume III, p. 19 e 20 ; Direitos Especiais dos Sócios, Parecer, em P Direito, Ano 121º, Jan/Março de 1989, p. 218;
- Vasco da Gama Lobo Xavier, Anulação de Deliberação Social, Almedina, p. 87 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 629.º, 671.º E 674.º.
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGOS 1.º, N.º 2, 5.º, 6.º, N.º 1, 54.º, N.º 1, 247.º, N.ºS 1 E 5, 373.º A 389.º.
ESTATUTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS (EOA): - ARTIGO 95.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 08-02-1979, IN BMJ N.º 294, 230;
- DE 22-10-2009, PROCESSO N.º 409/09. 4YFLSB, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 05-11-2009, PROCESSO N.º 381/2002.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 29-04-2010, PROCESSO N.º 2622/ 07.0TBPNF.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 26-10-2010, PROCESSO N.º 2703/05.4TBMGR.C1.S1;
- DE 28-10-2010, PROCESSO N.º 272/06.7TBMTR.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 05-02-2013, PROCESSO N.º 488/09.4TBESP.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 14-03-2013, PROCESSO N.º 78/09.5TVLSB.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 30-09-2014, PROCESSO N.º 739/09.5TVLSB.L2-A.DS1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 09-07-2015, PROCESSO N.º 5105/12.2TBSXL.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 30-11-2017, PROCESSO N.º 12198/14.6T8LSB.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 17-05-2018, PROCESSO N.º 236/14.7TBLMG.C1.S1.


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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:


- DE 23-01-1996, IN CJ, 1996, I, P. 101;
- DE 28-06-2001, IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:


- DE 17-05-1993, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 28-09-2000, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 09-06-2002, IN CJ, 2002, TOMO IV, P. 174 E 175;
- DE 25-10-2007, PROCESSO N.º 0734156.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


- DE 19-10-2012, PROCESSO N.º 757/10.0T2AVR-A.C1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I.    Ainda que não possa considerar-se estar um mandatário forense adstrito ao dever de recorrer de toda e qualquer sentença desfavorável ao seu cliente, no caso dos autos, em que a Relação deu como provado (no uso de presunções judiciais que não cabe a este Supremo Tribunal sindicar, salvo se padecendo de ilogicidade manifesta, o que, no caso, não ocorre) pretender a aqui autora interpor, em acção patrocinada pelo segurado da aqui ré, recurso da sentença que lhe fora desfavorável, tal conclusão afigura-se inteiramente adequada perante o historial de litigância entre as partes daquela outra acção.

II.  Não tendo a ré seguradora alegado e provado factos que demonstrassem ter o advogado, seu segurado, informado a respectiva cliente (aqui autora) da decisão da sentença que lhe foi desfavorável, assim como das razões que, em seu entender, justificavam que dela não fosse interposto recurso de apelação, de forma a não inviabilizar que a mesma obtivesse, em tempo útil, a assistência de outro advogado (cfr. o princípio ínsito no nº 2, do artigo 95º, do EOA), é de concluir ter o advogado actuado de forma ilícita em violação dos deveres de zelo e diligência inerentes ao contrato de mandato forense.

III.  No caso de perdas de chances processuais é “razoável aceitar que a perda de chance se pode traduzir num dano autónomo existente à data da lesão e portanto qualificável como dano emergente, desde que ofereça consistência e seriedade, segundo um juízo de probabilidade suficiente, independente do resultado final frustrado” (cfr. acórdão do STJ 30/11/2017, proc. nº 12198/14.6T8LSB.L1.S1).

IV. Não é de acompanhar a via seguida pelo acórdão recorrido que se limitou a admitir, num plano abstracto, e por isso, desligado das circunstâncias concretas da acção em causa, que o recurso teria uma probabilidade de sucesso de 50% e, em consequência, socorreu-se desta mesma percentagem como critério para a fixação equitativa do quantum indemnizatório, antes se devendo seguir uma metodologia que comece por averiguar da existência ou não de uma probabilidade, consistente e séria, do sucesso do recurso que deixou de ser interposto e, caso se venha a concluir afirmativamente, determinar o respectivo quantum indemnizatório de acordo com as circunstâncias do caso concreto.

V.   Num caso em que se considera que o recurso de apelação na acção de impugnação de deliberações sociais, se atempadamente interposto, teria uma elevada probabilidade de sucesso, mas que a probabilidade de um desfecho final da mesma acção em sentido favorável à sociedade ré (aqui autora) seria bastante menor, admite-se, ainda assim, que a chance de improcedência daquela acção se apresenta como suficiente para que a consistência da oportunidade perdida constitua uma posição favorável na esfera jurídica da lesada, cuja perda deve ser ressarcível.

VI.  Tendo a aqui autora conexionado o dano de perda de chance com o resultado das acções indemnizatórias contra si interpostas pelos autores da acção de impugnação de deliberações sociais onde o dano de perda de chance ocorreu, na ausência de um critério suficientemente densificado para a fixação equitativa da indemnização pelo acórdão recorrido, afigura-se que a apreciação das circunstâncias do caso concreto relativas à acção e das respectivas hipóteses de desfecho favorável à ali ré (aqui autora), permite suprir essa falta de densificação, devendo a indemnização a atribuir à autora ser fixada em montante correspondente a 50% dos prejuízos que vierem a ser apurados ulteriormente em função do resultado das acções indicadas nos factos 18º, 19º e 20º, até ao limite do valor do capital seguro pela ré (€ 150.000,00).

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




1. AA, filhos, Lda. intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB - Seguros, S.A.., pedindo a condenação da R. no pagamento à A. de uma indemnização, a liquidar em execução de sentença, mas nunca inferior ao limite máximo da apólice contratada, equivalente a € 150.000,00.

Para tanto, e em síntese, alega que:

A R. e a Ordem dos Advogados Portugueses contrataram um seguro de grupo de Responsabilidade Civil Profissional dos Advogados para a anuidade de 2015, do qual beneficiam todos os advogados com inscrição em vigor à data dos sinistros, até ao valor de € 150.000,00, e com retroactividade ilimitada.

A A. celebrou com o advogado Dr. CC um contrato de prestação de serviços de consulta, apoio e patrocínio, a desenvolver e a concretizar por este em nome e por conta da A., para o que esta emitiu e lhe entregou diversas procurações, designadamente para a representar na acção n.º 1114/06.9TBMCN, onde era ré, intentada pelos sócios DD e EE, e destinada a obter a declaração de nulidade das deliberações tomadas na Assembleia Geral de Sócios da autora de 22/06/2006, quanto aos pontos 1, 2 e 3 da ordem de trabalhos, e, assim não se entendendo, a anulação das deliberações tomadas na mesma Assembleia Geral de Sócios, quanto aos pontos 1, 2 e 3 da ordem de trabalhos.

Nesse processo, veio a ser proferida sentença que declarou a nulidade da deliberação constante do ponto 1 da ordem de trabalhos, com os fundamentos melhor descritos na petição inicial. 

Após descrever os fundamentos de direito em que assenta a sua discordância relativamente à supra referida sentença, sustentando a inexistência de um direito especial à gerência dos sócios DD e EE, alega que, tendo sido notificado da sentença, o advogado Dr. CC, de forma displicente e pouco cuidada, sem verificar com a devida atenção o regime processual aplicável, considerou que o prazo para a interposição do recurso era de 30 dias, quando no caso era de apenas dez dias, o que levou a que a autora perdesse o direito a recorrer daquela decisão que lhe foi desfavorável.

Alega, ainda, que, numa última tentativa, a A. mandatou outros advogados, que ainda tentaram apresentar recurso, mas o mesmo foi indeferido por intempestivo.

Mais alega que os sócios em causa, DD e EE, intentaram acção judicial contra a A., pedindo as remunerações que deixaram de auferir durante o período em que, por força da deliberação que veio a ser declarada nula, estiveram impedidos de exercer a gerência, consubstanciando a A. o dano da alegada perda de chance no facto de a A. poder vir a ter de pagar aquelas remunerações pelos montantes que aqueles reclamam naquelas acções.


Regularmente citada, a R. contestou, impugnando a maior parte dos factos alegados pela A., aceitando a existência do invocado contrato de seguro e excepcionando a exclusão de qualquer responsabilidade que lhe pudesse vir a ser assacada, exclusão esta decorrente do alegado pré-conhecimento do sinistro por parte do advogado, Dr. CC, e da existência de uma cláusula contratual (art. 3º das Condições Especiais da apólice) que exclui da cobertura da apólice as reclamações por qualquer facto ou circunstância conhecidos do segurado à data do início do período seguro e que já tenha gerado, ou possa razoavelmente vir a gerar, reclamação.

Mais alega, com base nos fundamentos melhor descritos na contestação, que não existia uma probabilidade séria de a A., naquela outra acção, obter êxito no invocado recurso.

Termina pugnando pela sua absolvição.


Através do despacho de fls. 285-287, o Tribunal solicitou à A. alguns esclarecimentos, e bem assim convidou a mesma a exercer o contraditório relativamente às excepções arguidas na contestação.

Na sequência de tal despacho, a A. exerceu o contraditório, relativamente à matéria de excepção, através do articulado de fls. 290-297 dos autos, sendo de realçar apenas a alegação de que o seguro de responsabilidade civil profissional para os advogados é obrigatório, por força do art. 104º, n.º 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados, sendo aplicáveis ao mesmo os princípios dos arts. 13º e 101º, n.º 4, da Lei do Contrato de Seguro, sendo aqui imperativa a imposição que estipula que, ainda que o contrato possa prever que a falta de participação do sinistro implique a redução da prestação do segurador ou a perda da cobertura, tais regras não são oponíveis aos lesados, em caso de seguro obrigatório de responsabilidade civil, ficando o segurador com direito de regresso contra o incumpridor relativamente às prestações a efectuar.

A fls. 1079 foi proferida sentença em que se decidiu julgar improcedente a acção, absolvendo a R. do pedido.

Inconformada, a A. interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, pedindo a alteração da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.

Por acórdão de fls. 1395 foi mantida a decisão relativa à matéria de facto e, a final, proferida a seguinte decisão:

“Na procedência parcial das alegações revoga-se a sentença recorrida, julgando-se parcialmente procedente a acção condenando-se a Ré a pagar à autora a título de indemnização, pelo incumprimento do contrato de mandato, o montante que se fixa em 50% dos prejuízos que vierem a ser apurados ulteriormente.”


2. Vem a R. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

1. A Autora sustenta a sua pretensão indemnizatória contra a Seguradora, ora Recorrente, na celebração de um contrato de mandato forense com o advogado, Dr. CC, e na alegada extemporaneidade do recurso, que afirma ter sido interposto pelo mesmo nos autos do processo n.º 1114/06.9TBMCN;

2. Sustenta assim a A. ter sofrido danos consubstanciados na possibilidade de vir a ser (futura e eventualmente) condenada a pagar as remunerações peticionadas pelos sócios, DD e EE, em decorrência da sentença proferida no processo n.º 1114/06.9TGMCN, e bem assim dos processos judiciais que contra a A. correm termos na Instância Central de Comércio da Comarca do ... Este (processos n.º 81/13.7TBMCN e n.º 409/15.5TSAMT), intentados pelos referidos sócios, e que se encontram ainda pendentes no Tribunal;

3. Fazendo assim a A. impender sobre a ora Recorrente BB, a responsabilidade pelo ressarcimento de tais pretensos prejuízos (que, saliente-se. ainda não se verificaram, e poderão nunca se vir a verificar), em decorrência da transferência de responsabilidades operada por via do contrato de seguro celebrado com a Ordem dos Advogados, do qual o advogado, entretanto falecido, Dr. CC, beneficiava na qualidade de advogado com inscrição em vigor à data da ocorrência dos factos relatados nos autos;

4. Sucede porém que, no seguimento da produção de toda a prova oferecida e requerida nos autos pelas partes, e bem assim da minuciosa apreciação e ponderação pelo douto Tribunal de Primeira Instância, de todas as questões jurídicas subsumíveis aos factos em apreço nos autos, considerou a douta sentença proferida (e bem) que não se encontram verificados todos os pressupostos de que depende a responsabilização civil do advogado, Dr. CC, perante a A.;

5. De facto, resultou claro da matéria factual julgada provada, e não provada, nos autos (a qual se dá aqui por integralmente reproduzida para os devidos e legais efeitos), a total impossibilidade de se imputar ao advogado visado, Dr. CC, qualquer conduta negligente e/ou omissiva, passível de gerar a sua obrigação de indemnizar;

6. Efectivamente, não logrou a A. demonstrar, tal como lhe impendia nos termos previstos no artigo 342.º do C.C., a ocorrência do alegado incumprimento do contrato de mandato forense por parte do advogado, Dr. CC.

7. Na verdade, e pese embora o douto Acórdão recorrido pareça fundamentar a existência do (pretenso) incumprimento do contrato de mandato, por parte do advogado, Dr. CC, nos factos considerados provados sob n.ºs 14.º, 15.º, 16.º e 17.º, resulta manifestamente claro da referida factualidade a impossibilidade de se imputar ao advogado visado, qualquer erro e/ou omissão profissional.

8. Pelo contrário, o que ficou provado foi que o recurso da sentença proferida nos autos do processo nº 914/06.9TBMCN, foi intentado fora do prazo legalmente previsto por outros advogados, munidos de poderes de representação judicial da Autora;

9. Não resultando, por outro lado, ainda demonstrado que o recurso em apreço tenha sido interposto para além do prazo legalmente previsto, por qualquer motivo imputável ao advogado, Dr. CC.

10. Sendo certo que, tal como salientou a douta sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância, "o advogado não está contratualmente obrigado a recorrer de uma sentença, designadamente se com ela concordar ou entender que não há elementos válidos, adquiridos processualmente no processo ou que o possam ser em sede de recurso, que consiga dar viabilidade ao mesmo, sendo-lhe exigível, neste coso, que aconselhe e informe o cliente nesse sentido, residindo aqui a sua autonomia,"

11. De modo que, face à factualidade julgada provada (e não provada) nos autos, não poderia o douto Acórdão recorrido considerar verificada e/ou demonstrada, a existência do primeiro requisito legal (o facto ilícito) - sob pena de frontal e expressa violação do disposto nos artigos 342.º e 483.º do Código Civil - passível de conduzir à responsabilização civil do advogado, Dr. CC, da qual pudesse emergir qualquer obrigação de indemnizar.

12. Nessa medida, não sendo possível afirmar a existência de um comportamento ilícito do advogado, Dr. CC, consubstanciador de uma qualquer violação dos deveres profissionais, deontológicos e/ou contratualmente assumidos por via do mandato forense firmado com a A., não impenderá sobre a Companhia de Seguros, ora Recorrente, qualquer obrigação indemnizatória decorrente da alegada transferência de responsabilidades,

Por outro lado, e ainda que assim não fosse, o que não se concede,

13. Da matéria de facto alegada nos autos pela A,, e bem assim dos factos dados como provados pelo douto Tribunal a quo, resulta que a Autora não liquidou aos gerentes DD e EE as remunerações que lhe poderiam ser devidas em virtude da execução da deliberação de destituição que foi declarada nula pela sentença não recorrida, o que terá dado origem a dois processos judiciais que contra a A, correm termos na Instância Central de Comércio da Comarca do Porto Este (processos n.º 81/13.7TBMCN e n.º 409/15.5T8AMT).

14. De facto, e tal como salientou (e bem) a douta decisão proferida nos autos pelo Tribunal de Primeira Instância, "As referidos acções (referidas nos pontos n.ºs 15.º e 19.º dos Factos Provados) encontram-se pendentes no tribunal e, caso venham a ser julgadas improcedentes, determinam que a autora não terá de pagar nenhuma remuneração àqueles sócios, pelo facto de os mesmos terem estado impedidos de exercer a gerência na sequência da deliberação social da autora que veio a ser declarada nula naquela citada acção.

15. De modo que, tendo a Autora reconduzido o seu (pretenso) dano autónomo, decorrente da invocada "perda de chance”, à probabilidade de ter de a pagar tais remunerações e não a qualquer outra realidade, parece-nos de liminar evidência que esse suposto dano ainda não ocorreu, podendo, aliás, nunca vir a ocorrer.

16. Efectivamente, a existir urna perda de chance decorrente da apresentação extemporânea do recurso e, considerando que esta se ficou a dever ao Dr. CC, o que não se admite mas apenas por cautela de patrocínio se refere, o certo é que ainda não existe um prejuízo efectivo decorrente daquela actuação que, caso as referidas acções venham a ser julgadas improcedentes, poderá nunca existir, porquanto a autora reconduziu a sua perda de chance à probabilidade de ter de pagar tais remuneração aos gerentes.

17. Sendo que, ainda que assim não seja, essa situação poderá ainda ser revertida na acção de destituição Judicial dos gerentes que a mesma intentou contra DD e EE que, tal como as outras duas referidas acções, ainda se encontram pendentes em Tribunal.  

18. Na verdade, e ainda que se admita a aplicação da doutrina da "perda de chance", considerada como um "dano autónomo'', imprescindível se faz a demonstração (por parte de quem se arroga ao pretenso direito) da efectiva existência de um dano, directamente decorrente da pretensa conduta ilícita e/ou omissiva, e concretamente apurado.

19. Do disposto nos artigos 563.º e 564.º do Código Civil, resulta a presença no ordenamento jurídico português do princípio da certeza dos danos, sendo consequentemente imposto ao "lesado", como condição prévia à procedência da sua pretensão indemnizatória, a alegação e prova que de que não fora o acto ou omissão ilícita o direito seria por este obtido.

20. Embora em abstracto se possa equacionar que a mera violação do direito a interpor recurso de uma sentença condenatória consubstancia um dano em si, a violação de um direito é insusceptível de ser equiparada/reconduzida à existência de dano, correspondendo à repercussão dessa violação no património material e imaterial do "lesado".

21. Não determinando o artigo 799.º, n.º 1.º do CC, quer uma presunção de nexo de causalidade, quer uma presunção de dano, sendo assim imposta ao lesado a alegação e prova dos restantes pressupostos da responsabilidade civil, a ser admitido o dano de perda de chance em face do teor dos supra citados artigos 563.º e 564.º do Código Civil, apenas quando resulte provada e quantificada a probabilidade de procedência da chance perdida, poderá a chance perdida ser ressarcida,

22. De facto, não bastará que um advogado não tenha praticado um determinado acto, para que, sem mais, nasça na esfera jurídica do seu cliente o direito à indemnização por perda de chance, sem se exigir qualquer outro requisito. Tal entendimento, de uma forma que se tem por inadmissível, afastaria os requisitos da responsabilidade civil, mormente, a necessidade de existência de danos e o nexo de causalidade entre a actuação e os danos.

23. Afigurando-se, ainda, imprescindível a demonstração da probabilidade séria, real e credível de sucesso da pretensão frustrada em consequência da (alegada) omissão.

24. De facto, permitir-se a atribuição de um direito indemnizatório à A., sem que se encontrem determinados e/ou demonstrados todos os pressupostos da responsabilidade civil (nomeadamente a existência de um facto ilícito e culposo imputável ao advogado segurado, Dr. CC, a verificação em concreto de um dano quantitativamente avaliado ou mesmo avaliável, e bem assim do nexo de causalidade entre aquela omissão e os danos sofridos), consubstanciará (salvo o devido respeito) uma entorse jurídica, absolutamente contrária aos princípios basilares da certeza do dano e das regras da causalidade adequada, previstos e prosseguidos pelo nosso ordenamento jurídico.

25. Nessa medida, ainda que se admitisse a ocorrência (e a efectiva demonstração nos autos) de uma actuação profissional omissiva incorrida pelo advogado, Dr. CC, no âmbito do pretenso patrocínio forense posto em crise nos autos pela A. (o que, de todo, e conforme acima se pretendeu explicitar, não se admite, mas agora se equaciona por mera cautela de patrocínio), não se encontra minimamente demonstrado nos autos os requisitos legais essenciais - a existência de um concreto dano, e bem assim a existência de um nexo de causalidade adequado - passível de gerar uma obrigação de indemnizar.

26. Nesta medida, e atendendo a tudo quanto ficou exposto, ao decidir do modo como decidiu, revogando a douta sentença proferida nos autos pelo Tribunal de Primeira Instância, tendo por base a aplicação da doutrina da "perda de chance", e bem assim com recurso a um (pretenso) juízo de equidade (na proporção de "50% do valor do crédito não cobrado a título de dano patrimonial"), violou a Veneranda Relação do Porto, salvo o devido respeito, as normas legais previstas nos artigos 342.º, 433.º, 563.º, 564.º n.º 2, 566.º, n.º 3, 798.º e 799.º do Código Civil, na medida em que resultava claro dos autos não se encontrarem minimamente demonstrados os pressupostos e/ou requisitos legalmente previstos, passíveis de gerar a responsabilização civil do advogado, e consequentemente uma obrigação de indemnizar.

27. Deste modo, e ressalvando novamente o devido respeito, que é muito, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, sendo o douto Acórdão proferido nos autos revogado, repristinando-se a douta sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância, absolvendo-se consequentemente a ora Recorrente dos pedidos


      A Recorrida contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:

I. Salvo o devido respeito que nos merecem a opinião e a ciência jurídica da Recorrente, afigura-se à Recorrida, por um lado, que o presente recurso de revista é inadmissível e, por outro, que o douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto não merece censura, pelo que terá necessariamente de manter-se.

II. A Recorrente interpôs recurso do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, nos presentes autos, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 674.º do Código de Processo Civil.

III. Invoca, adiante, a Recorrente "terem sido (salvo o devido respeito) incorrectamente interpretadas e/ou aplicadas, face aos factos julgados provados (e não provados) nos autos, as normas legais constantes dos artigos 342º, 483.º, 563.º, 564.º, n.º 2, 566.º, n.º 3, 798º e 799.º do Código Civil".

IV. Lidas as alegações de recurso da Recorrente, facilmente se conclui que esta insurge-se, sim, contra o juízo do Tribunal da Relação do Porto sobre a matéria de facto.

V. A Recorrente discorda do acórdão recorrido na parte em que este considera que a Autora, aqui Recorrida, demonstrou os factos que lhe competia provar e em que considera reunidos os pressupostos relativos ao facto omissivo do agente, Dr. CC, à ilicitude do facto, à culpa, ao dano, e ao nexo de causalidade.

VI. Ou seja, do que a Recorrente discorda é, isso sim, do juízo do Tribunal da Relação do Porto sobre a matéria de facto.

VII. A Recorrente não coloca em crise a bondade da aplicação da presunção de culpa prevista no artigo 799.º do Código Civil ao contrato de mandato.

VIII. Nenhuma das questões suscitadas pela Recorrente podem ser objecto de recurso de revista.

IX. Como é sabido, o Supremo Tribunal de Justiça conhece apenas de matéria de direito.

X. Não invocou a Recorrente a violação pelo Tribunal recorrido de qualquer norma que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, pelo que não estamos perante nenhum dos casos excepcionais da última parte do nº 3 do artigo 674.º que admitem a ingerência do Supremo Tribunal de Justiça em questões relacionadas com a matéria de facto.

XI. Dúvidas não existem de que a prova do facto e a imputação do facto ao agente é matéria exclusivamente de facto, e não de direito, assim como o é a apreciação da culpa.

XII. O nexo de causalidade na responsabilidade civil é matéria de facto (cfr. Acórdão de 28.09.2000, CJSTJ, Tomo II, pág. 5).

XIII. Insindicável é também, por se tratar de matéria de facto, a circunstância de ter sido dado como provada a existência de um dano (dano da perda de chance) como decorrência do facto ilícito.

XIV. Vedado está ao Supremo Tribunal de Justiça sindicar o uso das regras de experiência ou as presunções judiciais utilizadas pelo Tribunal da Relação.

XV. Não invocou a Recorrente qualquer nulidade do acórdão recorrido nem requereu a reforma do mesmo.

XVI. Em virtude do exposto, deverá ser julgado legalmente inadmissível e, nessa medida, não deverá ser sequer apreciado, o recurso de revista interposto pela Recorrente.

Sem prescindir:

XVII. Antes de mais, impõe-se esclarecer que, conforme decorre manifestamente da Petição Inicial que deu origem aos presentes autos, a causa de pedir alegada pela Autora, aqui Recorrida, no referido articulado foi (i) a não interposição tempestiva de recurso pelo Dr. CC da sentença proferida no âmbito do processo n,º 1114/06.9TBMCN; e (ii) o facto de o Dr. CC não ter dado conhecimento da referida sentença à Recorrida antes do trânsito em julgado da mesma (cfr. artigos 50.º, 52.º, 56.º, 57.º e 58.º da Petição Inicial).

XVIII. Sendo evidente e inarredável o interesse da ora Recorrida em recorrer da mencionada sentença e ver revertida a decisão proferida pelo Tribunal de Primeira Instância, atentas as relações históricas entre o Dr. CC e Recorrida, o tempo decorrido desde a interposição dessa acção judicial, a (já à época) longa série de litigância que a precedia e, por último, as sérias consequências que para a Recorrida decorriam do sentido da decisão, possibilidade que lhe foi coartada pelo Dr. CC.

XIX. Da análise do acórdão recorrido infere-se que este considerou - e bem! - a supra mencionada causa de pedir alegada pela Autora, aqui Recorrida.

XX. É que a Autora, ora Recorrida, alegou, como lhe competia, os factos essenciais constitutivos da causa de pedir em que sustentou o seu pedido.

XXI. Podendo o Tribunal ter, ainda, em consideração os factos instrumentais que resultem da instrução da causa, bem como os factos complementares ou concretizadores que resultem da instrução da causa.

XXII. Isto posto, resulta da matéria de facto dada como provada que a sentença proferida no âmbito do processo n.º 1114/06.9TBMCN transitou em julgado durante o mandato do Dr. CC.

XXIII. E, como tal, que o referido Dr. CC não apresentou, dentro do prazo legal para o efeito, qualquer recurso daquela decisão.

XXIV. Acresce que, como bem refere o acórdão recorrido, resulta da matéria de facto disponível a vontade da aqui Recorrente recorrer da decisão proferida no processo n.º 1114/06.9TBMCN (cfr. ponto 9.º dos factos dados como provados no acórdão recorrido, em especial os factos dados como provados nas alíneas BD) em diante do despacho saneador proferido no processo n.º 1114/06.9TBMCN).

XXV.     Refira-se, a este propósito, que podia o Tribunal da Relação do Porto socorrer-se de juízos de experiência e normalidade para extrair desenvolvimentos lógicos da matéria de facto dada como provada, como fez.

XXVI. Assente ficou também, além dos factos dados como provados no referido processo n.º 1114/06.9TBMCN, o teor da sentença aí proferida, de onde é possível inferir a existência de fundamento para recorrer da mesma.

XXVII. Do exposto resulta que bem andou o acórdão recorrido ao considerar que, não tendo o Dr. CC interposto recurso da sentença proferida no processo n.º 1114/06.9TBMCN, violou os seus deveres enquanto advogado e as obrigações para si decorriam do contrato de mandato celebrado com a Recorrida.

XXVIII. Com efeito, no caso concreto, e como ficou demonstrado, o Dr. CC tinha o dever de apresentar recurso dentro do prazo legal para o efeito, atentas as relações históricas entre o mesmo e Recorrida, o tempo decorrido desde a interposição dessa acção judicial, a (já à época) longa série de litigância que a precedia e, por último, as sérias consequências que para a Recorrida decorriam do sentido da decisão.

XXIX. Ou, em alternativa, era-lhe exigível que tivesse substabelecido dentro do prazo legal de apresentação do recurso, o que também ficou provado que não fez.

XXX.      Assim, é necessariamente de concluir como concluiu o acórdão recorrido, isto é, pela verificação do facto ilícito imputável ao Dr. CC.

XXXI. Acresce que, como bem refere o acórdão sob censura, a Recorrente não ilidiu a presunção de culpa que decorre do artigo 799.º do Código Civil, aplicável ao caso, uma vez que, tendo em consideração o contrato de mandato celebrado entre a Recorrida e o Dr. CC, movemo-nos no âmbito da responsabilidade contratual.

XXXII. De facto, não demonstrou a Recorrida, como lhe competia, que o Dr. CC não apresentou qualquer recurso por inexistir fundamento para tal e, como quer que seja, que disso deu conhecimento à Recorrida antes do trânsito em julgado da sentença de modo a que esta pudesse assegurar a interposição de recurso por outro mandatário.

XXXIII. Isto posto, entendeu - também muito bem - o Tribunal da Relação do Porto acolher a teoria da perda de chance, que, de resto, hoje em dia, é aceite pela maioria da doutrina e jurisprudência.

XXXIV. Falham, desde logo, as considerações da Recorrente acerca da alegada inexistência do nexo causal, porquanto o dano em causa nos presentes autos cujo ressarcimento a aqui Recorrida peticiona da Recorrente é o dano da perda de chance.

XXXV. Conforme bem defende a doutrina que propugna o dano da perda de chance, a perda de oportunidade configura um dano em si mesmo, autonomizável, quantificável e suscetível de ser ressarcido,

XXXVI. O nexo causal afere-se entre o facto ilícito e o dano da perda de chance, e não entre o facto ilícito e o dano final.

XXXVII. Sendo, por isso, indiscutível o nexo de causalidade entre a conduta ilícita do Dr. CC e o dano da perda de chance de obter ganho naquela acção judicial.

XXXVIII. No que concerne ao dano, importa sublinhar que o dano aqui em causa - dano da perda de chance - já se verificou, faltando apenas quantificar o prejuízo daí decorrente.

XXXIX. O pedido formulado pela Recorrida foi-o a liquidar em incidente de liquidação, ou seja, a Recorrida, na presente acção, não pede a condenação da Recorrente no pagamento antecipado de qualquer montante indemnizatório.

XL. Por outro lado, nos termos do n.º 2 do artigo 564.º do Código Civil, os danos futuros são indemnizáveis, desde que sejam previsíveis.

XLI. A ameaça da produção de um dano é já, ela própria, um dano!

XLII. Ora, no caso concreto, os danos não só são previsíveis, como prováveis, tendo em consideração a decisão proferida no processo n.º 1114/06.9TBMCN.

XLIII. E, ainda, porque ficaram dadas como provadas as acções judiciais que os gerentes EE e DD moveram contra a Recorrida para pagamento das remunerações pelo cargo de gerentes e que ainda se encontram pendentes (cfr. pontos 18.º e 19.º dos factos dados como provados no acórdão recorrido).

XLIV. Por outro lado, na presente acção, não peticiona a Recorrida qualquer pagamento antecipado de um montante indemnizatório, mas sim a condenação da Recorrente num montante a apurar em sede de liquidação de sentença, o que significa que a Recorrida só será indemnizada se e na medida em que tiver de pagar aos gerentes EE e DD as remunerações destes pelas funções de gerentes.

XLV. Acresce que, como bem refere o acórdão recorrido, no limite, sempre se deveria considerar a pendência das acções judiciais a que aludem os pontos 18.º e 19.º dos factos provados como causa prejudicial desta acção.

XLVI. Face a tudo quanto ficou exposto, nenhuma censura merece o acórdão recorrido, na medida em que estão verificados todos os pressupostos de que depende a responsabilidade civil do Dr. CC e, consequentemente, da Recorrente, não se verificando qualquer violação das disposições legais ínsitas nos artigos 342.º, 483.º, 563.º, 564.º, n.º 2, 566.º, n.º 3, 798.º e 799.º do Código Civil, pelo que deve o acórdão recorrido manter-se, na íntegra.


    Cumpre decidir.


3. Suscita a Recorrida a questão prévia da inadmissibilidade do recurso por, segundo alega, estarem em causa questões respeitantes à verificação dos pressupostos da responsabilidade civil – facto, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade – que corresponderiam a matéria de facto não sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça.

   Em rigor, não estão aqui em causa os requisitos de admissibilidade do recurso de revista (regulados nos arts. 629º e 671º, do Código de Processo Civil), mas antes os fundamentos de que se pode conhecer em sede de recurso de revista (art. 674º, do mesmo Código). Sendo que a falta de fundamento determina um juízo de improcedência do recurso e não de inadmissibilidade do mesmo.

     Conclui-se, assim, pela admissibilidade do recurso, sem prejuízo da apreciação dos argumentos da Recorrida em sede de decisão de mérito.


4. Vem provado o seguinte (mantêm-se a identificação e a redacção das instâncias):

1º - Entre a BB SEGUROS, S.A., e a Ordem dos Advogados de Portugal foi firmado um acordo de seguro de responsabilidade civil profissional titulado pela apólice de seguro 60…58/1, junta aos autos a fls. 227 a 270 cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos (cfr. alínea A) dos factos assentes).

2º - Em tal apólice, nas designadas condições particulares, foram indicados: como segurados, entre outros, “Advogados com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados que exerçam a actividade em prática individual ou societária, por dolo, erro, omissão ou negligência profissional”, como tomador “Ordem dos Advogados”, como segurador “BB Seguros, S.A.”, e como actividade segura exercício da actividade de advocacia conforme regulado no estatuto da Ordem dos Advogados, como garantia o eventual pagamento de indemnizações resultantes da responsabilização civil dos segurados, em decorrência de erros e/ou omissões profissionais incorridas no exercício da sua actividade, como período de cobertura da apólice as 0,00 horas do dia 01 de Janeiro de 2014 às 0,00 do dia 1 de Janeiro de 2016 (cfr. alínea B) dos factos assentes).

3º - O limite indemnizatório máximo acordado para o período de vigência/ “período seguro” daquela apólice foi de 150.000,00, tendo sido acordada uma franquia de € 5.000,00 por sinistro, não oponível a terceiros lesados (cfr. Alínea C) dos factos assentes).

4º - Na alínea a) do artigo 3.º das Condições particulares da apólice n.º 60….58/1, ficou estipulado o seguinte: “ficam expressamente excluídas da cobertura das apólices as Reclamações “por qualquer facto ou circunstância conhecidos do SEGURADO à data de início do período seguro, e que já tenha gerado, ou possa razoavelmente vir a gerar, reclamação” (cfr. Alínea D) dos factos assentes).

5º - No ponto 7 das condições particulares da referida apólice ficou estipulado o seguinte: “O segurador assume a cobertura da responsabilidade do segurado por todos os sinistros reclamadas pela primeira vez contra o segurado ou contra o tomador do seguro ocorridos na vigência das apólices anteriores, desde que participados após o início da vigência da presente apólice, sempre e quando as reclamações tenham fundamento em dolo, erro, omissão ou negligência profissional, coberta pela presente apólice, e mesmo ainda, que tenham sido cometidos pelo segurado antes da data de efeito da entrada em vigor da presente apólice e sem qualquer limitação temporal de retroactividade.

(…)” (cfr. alínea D.1) dos factos assentes – acta de fls. 888).

6º - O teor da procuração cuja cópia certificada se encontra junta aos autos a fls. 635 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (cfr. alínea E) dos factos assentes).

7º - A autora foi citada, em 27 de Dezembro de 2006, para, querendo contestar a acção de processo sumário que corria termos, à data, no 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de …, intentada contra aquela pelos sócios DD e EE, na qual este pediam a declaração de nulidade das deliberações tomadas na Assembleia Geral de Sócios da autora de 22/06/2006, quanto aos pontos 1, 2 e 3 da ordem de trabalhos daquele assembleia, e, assim não se entendendo, a anulação das deliberações tomadas na Assembleia Geral de Sócios da ora autora de 22/06/2006, tudo tendo por base a petição inicia cuja cópia certificada se encontra junta aos autos a fls. 464 a 480 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (cfr. alínea F) dos factos assentes).

8º - Nessa acção, o advogado Dr. CC em representação da aqui autora apresentou a contestação cuja cópia certificada se encontra junta aos autos a fls. 481 a 510 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (cfr. alínea G) dos factos assentes).

9º - Na acção de processo sumário n.º 1114/06.9TBMCN, foi proferido o seguintes despacho saneador:

[………..]

V.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A apreciação do objecto do processo postula, assim, a análise concatenada e sucessiva do enquadramento jurídico das deliberações e das específicas causas de invalidade aduzidas pelos Réus.


*


1) Do regime jurídico das deliberações sociais e da sua invalidade

A equação da questão supra demanda a prévia aferição dos pressupostos constitutivos das sociedades comerciais.

A sociedade é, desde logo, uma entidade que, composta por um ou mais sujeitos ou sócios, tem um património autónomo para o exercício de uma actividade económica que não é de mera fruição, a fim de, em regra, obter lucros e atribuí- los aos sócios, a título de sociedade civil ou comercial (vd. Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, vol. II, 1.ª edição, Almedina, p. 21).

Infere-se, assim, que os elementos constitutivos de uma sociedade são os sócios, o património, o objecto e a tipicidade (vd. António Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, I, 1.ª edição, Almedina, p. 191 e ss.)

No que tange especificamente à sociedade comercial, a sua noção estriba-se no pressuposto objectivo da vinculação e um objecto comercial e do pressuposto formal da adstrição a um dos tipos plasmados no art.º 1.º/2, do Código das Sociedades Comerciais (CSC), em nome colectivo, por quotas, anónima, em comandita simples ou em comandita por acções.

As sociedades comerciais são, consequentemente, entes colectivos dotados de personalidade jurídica nos termos do art.º 5.º, do CSC, sendo que a respectiva capacidade jurídica se adstringe a um princípio da especialidade em função do respectivo fim, ao abrigo do vertido no art.º 6.º/1, do CSC (idem, p. 319 e ss.).

Em sede da organização societária, as sociedades comerciais estribam-se, fundamentalmente, no órgão deliberativo, a assembleia-geral ou assembleia dos sócios, com funções constitutivas da actuação da sociedade, e no órgão executivo, a administração, com funções eminentemente directivas e representativas, os quais são centros de imputação de efeitos jurídicos na esfera societária (vd. Jorge Manuel Coutinho de Abreu e António Menezes Cordeiro, ob. cit.).

Postulando-se a apreciação, in casu, do regime das sociedades por quotas, enuncia-se, desde logo, que o art.º 246.º, do CSC, consagra um elenco de actos imperativamente sujeitos a deliberação dos sócios (n.º 1) e um acervo de actos supletivamente sujeitos a este tipo de deliberação, se o contrato social não dispuser de outra forma (n.º 2), atinentes à sociedade, aos sócios, a outros órgãos e actos externos (vd. António Menezes Cordeiro, ob. cit., II, 1.ª edição, p. 379 e ss.)

As deliberações consubstanciam, assim, actos jurídicos que exaram a vontade dos sócios, podendo revestir as seguintes formas: (i) deliberações unânimes por escrito (art.º 54.º/1 do CSC); (ii) deliberações em assembleias universais (art.º 54.º/1 do CSC); (iii) deliberações por concordância com proposta remetida por escrito (art.º 247.º/1 e 5 do CSC); (iv) deliberações em assembleia-geral (art.º 247.º/1 do CSC).

A assembleia-geral constitui o esquema primacial de deliberação dos sócios, vinculada às seguintes coordenadas (arts. 373.º a 389.º do CSC): (a) qualquer sócio por quotas pode exercer os direitos, atribuídos a minoritários nas anónimas, quanto à convocação e à inclusão de assuntos na ordem do dia; (b) a convocação pertence a qualquer dos gerentes e deve ser feita por carta registada expedida com a antecedência mínima de quinze dias; (c) a presidência compete ao sócio que detiver ou representar a maior fracção do capital, prevalecendo, em igualdade de circunstâncias, o mais velho; (d) nenhum sócio, mesmo que impedido de exercer o voto, pode ser privado de participar na assembleia; (e) as actas devem ser assinadas por todos os sócios que participaram na assembleia (vd. António Menezes Cordeiro, ob cit.).

A deliberação em assembleia demanda uma convocatória cabal, uma reunião da assembleia, com presidência, secretariado, verificação de presenças e acta, uma ou mais propostas, um debate, uma votação, com escrutínio e proclamação do resultado e a elaboração da acta (vd. António Menezes Cordeiro, ob. cit., I, p. 614 e ss.).

Procedendo-se a uma delimitação da forma e formalidades das deliberações, enunciam-se as seguintes proposições: (i) conta-se um voto por cada cêntimo do valor nominal da quota (art.º 250.º/1 do CSC), salvo a derrogação do n.º 2 do citado normativo;

(ii) salvo disposição diversa da lei ou do contrato, as deliberações consideram-se tomadas se obtiverem a maioria dos votos obtidos, não se considerando como tal as abstenções; (iii) o quórum constitutivo reveste um carácter simples, i.e., a assembleia pode deliberar, em primeira convocação, qualquer que seja o número de sócios presentes (art.º 383.º/1, ex vi do art.º 248.º/1, ambos do CSC, exceptuando-se as situações previstas no n.º 2 do referenciado normativo, as quais exigem a presença de, pelo menos, um terço do capital social, bem como as estipuladas no contrato social (iv) relativamente ao quórum deliberativo, este adstringe-se à maioria simples, salvo disposição diversa da lei ou do contrato.

Ademais, em sede de votação na assembleia, o art.º 251.º, do CSC, consigna um elenco de causas de impedimento, indexadas ao crivo do conflito de interesses entre o sócio e a sociedade, v.g., relativamente às deliberações de destituição por justa causa de gerente e de exclusão de sócio.

Explicitado o conspecto geral das normas formais e procedimentais concernentes às deliberações dos sócios, impõe-se a perscrutação do conexo regime de invalidade das mesmas.

O vício de uma deliberação pode ser formal ou substancial, sendo que, quanto às consequências jurídicas do mesmo, divisam-se deliberações aparentes, deliberações nulas, deliberações anuláveis e deliberações ineficazes stricto sensu.(idem).

As deliberações aparentes são aquelas que, conquanto registadas comercialmente, não correspondem a qualquer materialidade, sendo passíveis de produzir efeitos, exclusivamente, à luz das regras do registo e da tutela de terceiros de boa fé (ibidem).

As deliberações ineficazes stricto sensu carecem de um acto externo de perfectibilização para produzirem típicos efeitos jurídicos (vd. art.º 55.º do CSC).

Relativamente às deliberações nulas e anuláveis, plasmadas nos arts. 56.º e 58.º do CSC, reconduzem-se aos institutos civis da nulidade e anulabilidade.

Sublinhe-se que a ineficácia lato sensu dos actos e negócios jurídicos traduz a situação de improdutibilidade dos seus efeitos típicos, sub-distinguindo-se: (i) a invalidade: a existência de vícios ou desconformidades do negócio jurídico com a ordem jurídica; (ii) a ineficácia em sentido estrito: o negócio não tem vícios, mas há uma conjunção com factores extrínsecos que determina a referida não produção de efeitos (idem).

Relativamente à invalidade, divisam-se as seguintes categorias: (a) a nulidade, como tipo-matriz ou estrutural das invalidades, cominada, designadamente, para as situações de contrariedade à lei imperativa (art.º 294.º do C.C.), impossibilidade física ou legal do objecto do negócio e contrariedade à ordem pública ou aos bons costumes (art.º 280.º do C.C.), a qual pode ser invocada a todo o tempo, por qualquer interessado, e conhecida oficiosamente (art.º 286.º do C.C.); (ii) a anulabilidade, que só pode ser invocada pelas pessoas em cujo interesse a lei a preceitua e no prazo de um ano subsequente à cessação do vício (art.º 287.º do C.C.); (iii) as invalidades mistas ou atípicas, figura que comunga de notas do regime da nulidade e do regime da anulabilidade (vd. A. Menezes Cordeiro, op. cit.).

Os actos ou negócios celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei, em efectivação do consagrado no art.º 294.º, do Código Civil.

Ademais, vigorando na ordem jurídica o princípio da liberdade de forma (art.º 219.º do C.C.), a declaração negocial que careça da forma legalmente prescrita é nula, salvo quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei (art.º 220.º, do C.C.).

Em decorrência, enuncia-se que as duas grandes categorias de vícios de deliberações são a anulabilidade e a nulidade, sendo que, em sede do direito societário, aplica-se a regra da anulabilidade das deliberações inválidas, nos termos do art.º 58.º/1, al. a), do CSC, em concatenação com o princípio da taxatividade das nulidades, ao abrigo do vertido no art.º 56.º/1, do CSC.

No que concerne às deliberações nulas, reconduzem-se às seguintes factologias:

(a) Tomadas em assembleia-geral não convocada, salvo se todos os sócios tiverem estado presentes ou representados; (b) Tomadas mediante voto escrito sem que todos os sócios com direito de voto tenham sido convidados a exercer esse direito, a não ser que todos eles tenham dado por escrito o seu voto; (c)

Cujo conteúdo não esteja, por natureza, sujeito a deliberação dos sócios, perfilhando-se a tese de Menezes Cordeiro de aplicabilidade desta línea a actos que extravasem a capacidade jurídica das sociedade, em detrimento da teoria da incompetência e da teoria da impossibilidade (ibidem, p. 643-646); (d) Cujo conteúdo, directamente ou por actos de outros órgãos que determine ou permita, seja ofensivo dos bons costumes ou de preceitos legais que não possam ser derrogados, nem sequer por vontade unânime dos sócios.

Concretizando-se o segmento da al. d) atinente aos preceitos legais que não podem ser derrogados, estes adstringem-se a normas de ordem pública, normas que concretizem princípios injuntivos e normas que instituam ou defendam posições de terceiros (ibidem, p. 650-652 e Vasco da Gama Lobo Xavier, Anulação de Deliberação Social, Almedina, p. 87 e ss.).

Acresce que as nulidades processuais/procedimentais consignadas nos casos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 não podem ser invocadas quando os sócios ausentes e não representados ou não participantes na deliberação por escrito tiverem posteriormente dado por escrito o seu assentimento à deliberação, consagrando-se, assim, uma sanação das mesmas (art.º 56.º/3 do CSC).

No que se refere às deliberações anuláveis, o art.º 58.º/1, do CSC, preceitua que são anuláveis as deliberações que: (a) Violem disposições quer da lei, quando ao caso não caiba a nulidade, nos termos do artigo 56.º, i.e., normas supletivas ou dispositivas, quer do contrato de sociedade; (b) Sejam apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios de conseguir, através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente de prejudicar aquela ou estes, a menos que se prove que as deliberações teriam sido tomadas mesmo sem os votos abusivos, em correlação com o instituto do abuso do direito societário; (c) Não tenham sido precedidas do fornecimento ao sócio de elementos mínimos de informação.

A anulabilidade pode ser arguida pelo órgão de fiscalização ou por qualquer sócio que não tenha votado no sentido que fez vencimento nem posteriormente tenha aprovado a deliberação, expressa ou tacitamente (art.º 59.º/1, do CSC)

O prazo para a proposição da acção de anulação é de 30 dias contados a partir:

a) Da data em que foi encerrada a assembleia -geral; b) Do 3.º dia subsequente à data do envio da acta da deliberação por voto escrito; c) Da data em que o sócio teve conhecimento da deliberação, se esta incidir sobre o assunto que não constava da convocatória (art.º 59.º/2, do CSC).

Delimitado o enquadramento normativo das deliberações sociais e do seu regime de invalidade, postula-se a aferição das específicas arguições de invalidade aduzidas pelos Autores.


**


2) Da nulidade/anulabilidade das deliberações efectivadas na Assembleia –Geral de Sócios da Ré de 22 de Junho de 2006, quanto aos pontos 1, 2 e 3 da ordem de trabalhos e da excepção de caducidade.

Os autores invocam os seguintes vícios: (i) nulidade formal com fundamento em que os sócios ... e ... procuraram-se fazer-se acompanhar de advogada na assembleia geral, o que não foi permitido pelo Presidente da mesma, ...; (ii) nulidade ou anulabilidade substancial relativamente à falsidade dos motivos invocados para fundamentar a destituição da gerência dos autores e a sua exclusão como sócios.


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A) Da nulidade formal

Em consonância com o preceituado no art.º 379.º/1, do CSC, no que se refere ao segmento aplicável às sociedades por quotas, o direito de participação nas assembleias gerais integra o status de sócio, sendo que o n.º 4 impõe um dever de presença aos membros da administração, do conselho fiscal, do conselho geral e aos revisores oficiais de contas.

Concomitantemente, infere-se que o direito de participação dos sócios é de jaez pessoal, sendo que não congloba qualquer pretensão imperativa a acompanharse de uma terceira pessoa, e tampouco um direito fundamental ao patrocínio ou aconselhamento jurídico em sede das assembleias.

Ademais, atesta-se que incumbe ao presidente da assembleia –geral dirigir os respectivos trabalhos, ao abrigo das normas procedimentais previstas nos arts. 374 e ss., ex vi do art.º 248.º/1, ambos do CSC).

Em correlação com o referenciado, in casu, conquanto se tenha demonstrado que o sócio ... não autorizou a presença da Senhora Advogada na Assembleia Geral referida em 57), em primeira instância, não se lobriga qualquer norma exarada no CSC ou no pacto social que outorgue a um sócio o direito ao patrocínio em sede de uma assembleia, em segunda instância, constata-se que a decisão foi proferida pelo legítimo presidente da mesa, e, em última instância, os Autores não invocaram um dano concreto susceptível de lesar a sua posição na assembleia, cingindo-se a uma mera proclamação.

Em decorrência., inexistindo um ilícito societário, não se vislumbra uma causa susceptível de inquinar o procedimento da assembleia, pelo que náufraga de forma meridiana a nulidade formal alegada pelos Autores.

B) Da nulidade ou anulabilidade substancial relativamente à falsidade dos motivos invocados para fundamentar a destituição da gerência dos autores

Em convergência com o plasmado no art.º 257.º/1 e 2, do CSC, os sócios podem deliberar a todo o tempo a destituição dos gerentes, sendo que o contrato de sociedade pode exigir para a deliberação de destituição uma maioria qualificada ou outros requisitos; porém, se a destituição se fundar em justa causa, pode sempre ser deliberada por maioria simples.

Ademais, a cláusula do contrato de sociedade que atribui a um sócio um direito especial à gerência não pode ser alterada sem o consentimento do mesmo, sendo que os sócios podem deliberar que a sociedade requeira a suspensão e destituição judicial do gerente por justa causa (art.º 257.º/3).

Constituem justa causa de destituição, designadamente, a violação grave dos deveres de gerente e a sua incapacidade para o exercício normal das respectivas funções (art.º 257.º/6 do CSC).

Consagra-se, nestes termos o princípio geral da liberdade de destituição dos gerentes, como corolário do princípio da autonomia privada, o qual apenas é comprimido nas situações de direito especial à gerência, sendo que a justa causa apenas se afigura pertinente para efeitos meramente indemnizatórios (vd. António Menezes Cordeiro, ob. cit, II, p. 411 e ss. e Raul Ventura, Sociedades

Por Quotas, vol. II, Almedina, p. 85 e ss.; cf. Acórdãos do STJ de 26.10.2010, proc. n.º 2703/05.4TBMGR.C1.S1 e do TRC de 19.10.2012, proc. n.º 757/10.0T2AVR-A.C1, in www.dgsi.pt ).

Positivando-se uma análise da problemática dos direitos especiais, estes configuram posições jurídicas qualificadas dos sócios, a título de direitos de participação, direitos de permanência ou direitos patrimoniais, com o cariz de intuitu personae e intransmissíveis (vd. António Menezes Cordeiro, ob. cit., I, p. 501 e ss.).

O direito especial à gerência estriba-se na permissão normativa do art.º 24.º/1, do CSC, o qual tem de se fundar numa previsão expressa do contrato de sociedade, de forma concludente, sendo que a simples designação de gerentes no contrato de sociedade não significa a atribuição dum direito especial à gerência

(vd. Acórdãos do TRP de 25.10.2007, proc. n.º 0734156 e do TRC de 19.10.2012, proc. n.º 757/10.0T2AVR-A.C1, in www.dgsi.pt; cf. António Caeiro, Temas de Direito das Sociedades, Almedina, p. 363 e ss.).

Enfatize-se que o contrato de sociedade, ante a sua configuração a se stante, deve ser interpretado sob o crivo de cânones objectivos, derrogando-se, assim, a teoria da impressão do destinatário prevista no art.º 236.º, do Código Civil (vd. António Menezes Cordeiro, ob. cit., I, p. 405 e ss.).


*


Determinadas as coordenadas normativas para a subsunção do direito supra à factualidade sub judice, certifica-se, desde logo, que os Autores são sócios e eram gerentes da Ré à data da assembleia impugnada (vd. o registo comercial), sendo que, atesta-se, outrossim, que por escritura pública de doação e constituição de sociedade lavrada em trinta e um de Julho de mil novecentos e setenta e um, constituiu-se a sociedade “AA Filhos Limitada”, consignando-se, designadamente, que “ o capital social de mil contos é correspondente à soma das quotas dos sócios, que são: uma de cento e noventa mil escudos do sócio DD e seis de cento e trinta e cinco mil escudos, uma de cada um dos restantes sócios, FF, GG, EE, HH, II e JJ (…) “, que “(…) a gerência da sociedade fica a cargo de todos os sócios” e que “(…) as funções destes gerentes subsistirão até expressa revogação do mandato por deliberação da assembleia geral que, para este efeito, só poderá deliberar por acordo dos sócios que reúna, pelo menos, sessenta e sete e meio por cento do capital social”.

Efectivando-se uma interpretação das referenciadas cláusulas, à luz de postulados hermenêuticos objectivos, infere-se de forma linear que o pacto social constitutivo da Ré outorgou aos Autores e demais sócios um cristalino direito especial à gerência, apenas revogável por deliberação da assembleia geral que, para este efeito, só poderá deliberar por acordo dos sócios que reúna, pelo menos, sessenta e sete e meio por cento do capital social.

Neste sentido, num plano, os Autores/Gerentes não poderiam ser livremente destituídos, noutra vertente, o seu mandato só poderia ser ab-rogado com maioria qualificada e, em última instância, a destituição por justa causa só poderia operar-se por via judicial (art.º 257.º/3 do CSC).

Em decorrência, na situação concreta, compulsando-se a acta da assembleia impugnada, desde logo se constata que a deliberação de destituição foi aprovada com os votos favoráveis de HH e FF, os quais perfaziam 55,87 % do capital social (vd. fls. 155-157), i.e., conclui-se que o requisito sine qua non consignado no pacto social para a revogação do mandato de gerência dos Autores (67,5 %) não foi perfectibilizado).

Consequentemente, soçobrando a maioria qualificada, infere-se que a destituição dos Autores/gerentes com fundamento em justa causa só poderia ser positivada por decisão judicial, pelo que a deliberação atinente ao ponto um da ordem de trabalhos postergou a norma imperativa plasmada no art.º 257.º/3 do CSC.

A predita deliberação afigura-se, assim, nula, por violação de uma norma imperativa (art.º 56.º/1, al. d) do CSC), sendo que a causa de nulidade é de conhecimento oficioso (art.º 286.º do CC), impondo-se a procedência do pedido.

Esta asserção prejudica, por inerência, o conhecimento quer da excepção de caducidade da acção de anulabilidade, a qual se prefiguraria improcedente à luz da data de envio da petição inicial, quer o conhecimento da sustentabilidade dos fundamentos da justa causa.


**


C) Da nulidade/anulabilidade da deliberação no sentido de intentar uma acção judicial para exclusão dos autores como sócios.

Em convergência com o plasmado no art.º 242.º/1 e 2, do CSC, pode ser excluído por decisão judicial o sócio que, com o seu comportamento desleal ou gravemente perturbador do funcionamento da sociedade, lhe tenha causado ou possa vir a causar-lhe prejuízos relevantes, sendo que a proposição da acção deve ser deliberada pelos sócios e a sua exclusão como sócios.

Infere-se, assim, que a exclusão de um sócios se funda em sentença judicial, a qual é precedida de uma deliberação exarada em assembleia, a qual não produz os efeitos excludentes, mas tão-só prefigura um pressuposto específico de legitimação para a impetração da acção.

Em consequência, a invocação dos Autores da falsidade dos fundamentos subjacentes à deliberação atinente ao ponto dois da ordem de trabalhos é manifestamente anódina nesta sede, devendo ser dirimida na acção de exclusão.

Ademais, os Autores não invocam quaisquer outros vícios da deliberação, pelo que as alegações de nulidade/anulabilidade são insubsistentes.

Acresce que, curando-se o abuso do direito societário de uma excepção peremptória de conhecimento oficioso, impõe-se a sua equação, à luz do princípio da boa fé, o qual consubstancia um postulado normativo nuclear do direito civil e comercial, a título de corolário dos valores éticos fundamentais do sistema do direito, demandando um uma actuação no tráfego jurídico com respeito pelas posições jurídicas dos demais, com transparência, seriedade e responsabilidade, o alterum non laedere, sem insídias ou tergiversações abusivas, nem tampouco exploração injustificada das falhas ou debilidades das contra-partes (ibidem).

O princípio da boa-fé sustenta-se em dois postulados concretizadores: (i) o princípio da confiança, o qual tutela uma concreta situação de confiança traduzida na boa-fé subjectiva e ética própria da pessoa que exige a protecção da boa fé, a justificação objectiva dessa confiança, um investimento de confiança do sujeito e a imputação da confiança à parte contrária; (ii) o princípio da materialidade subjacente, segundo o qual a justiça material das situações jurídicas deve prevalecer, ao abrigo dos parâmetros da conformidade material das condutas, da idoneidade valorativa e do equilíbrio no exercício das posições jurídicas (vd. A. Menezes Cordeiro, Da boa Fé em Direito Civil, Almedina p. 1235 e seguintes).

Neste sentido, as partes estão adstritas ao dever de boa fé decorrente do princípio geral consignado no art.º 762.º/2, do Código Civil, o qual constitui matriz dos sobreditos deveres acessórios de informação, lealdade e protecção, quer em sede de pré-contratual, quer em sede contratual (vd. António Menezes Cordeiro, Da Boa Fé em Direito Civil, 1997, Almedina, p. 586 e seguintes).

Em concatenação com o enunciado, em convergência com o consignado no art.º 334.º, do CC, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

O abuso do direito estriba-se na disfuncionalidade de comportamentos jurídico subjectivos, sendo, primacialmente, uma concretização do princípio da boa fé do qual promana um juízo de valoração ético-jurídico que deslegitima a actuação do titular do direito (vd. A. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, tomo IV, 2005, Almedina, p. 371 e seguintes).

Na situação concreta, compulsando-se o teor da deliberação, conclui-se que a mesma se funda num acervo de factos imputados aos Autores, sendo, assim, minimamente fundamentada.

Concomitantemente, não se lobrigam circunstâncias passíveis de prefigurar um acto emulativo ou exclusivamente lesivo das posições dos Autores.

Em decorrência, falece a aplicação in casu da excepção de abuso de direito atinente à deliberação concernente ao ponto 2 da ordem de trabalhos.

Demanda-se, assim, a sucumbência da pretensão anulatória desta deliberação.


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D) Da nulidade/anulabilidade do ponto três da ordem de trabalhos

Os autores peticionaram a declaração de nulidade ou anulação da deliberação referente ao ponto três da ordem de trabalhos da vertente assembleia, atinente à decisão de intentar acções civis e criminais contra os mesmos.

Porém, cingiram-se a meras proclamações destituídas de factos concretos passíveis de inquinarem a deliberação, sendo que não especificaram qualquer vício da mesma.

Sublinhe-se que um dos princípios nucleares do processo civil é o princípio do dispositivo, o qual na sua veste de disponibilidade do objecto do processo, impõe às partes o ónus de alegar os factos e as questões fundamentais que consubstanciam o thema decidendum, ou seja, a alegação constitui o terminus a quo que predetermina o terminus ad quem da decisão da matéria de facto e da consequente pronúncia jurisdicional (vd. João de Castro Mendes, Do Conceito de Prova em Processo Civil, Ática, p. 132 e seguintes).

Postula-se, assim, o naufrágio do pedido anulatório desta deliberação.


***


V.

DISPOSITIVO

Pelo supra exposto, decide-se julgar a acção parcialmente procedente e consequentemente:

A) Declara-se a nulidade da deliberação de destituição dos Autores DD e EE a título de gerentes da Ré AA e FILHOS, LDA, proferida na Assembleia Geral de Sócios realizada em 22 de Junho de 2006;

B) Absolve-se a Ré AA e FILHOS, LDA do demais peticionado. (…)” - cfr. alínea J) dos factos assentes.

12º - A referida sentença foi notificada ao Dr. CC, através de notificação elaborada pelo sistema Citius no dia 3 de Setembro de 2012, e dela foi interposto, no dia 4/10/2012, o seguinte recurso subscrito pelo advogado Dr. KK:

“ALEGAÇÕES

AA, Lda., Ré nos autos supra identificados, não se conformando com a sentença proferida a final (com a referência 1977957), vem da mesma interpor recurso para o Tribunal da Relação do Porto.

O recurso é de apelação, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, nos termos dos artigos 691.º, n.º 1, 691.º-A, n.º 1, alínea a), e 692.º do Código de Processo Civil.

(…)

ALEGAÇÕES de AA, Lda.:

Exmos. Senhores Desembargadores

O presente recurso tem por objecto tão-somente a alínea B) do Ponto 2 do Título V da sentença, com a epígrafe “Da nulidade ou anulabilidade substancial relativamente à falsidade dos motivos invocados para fundamentar a destituição da gerência dos autores”, na qual se declarou a nulidade, por violação da norma imperativa do artigo 56.º, n.º 1, alínea d), do Código das Sociedades Comerciais (C.S.C.), da deliberação de destituição dos Autores/Recorridos, constante do ponto 1 da ordem de trabalhos da assembleia geral de 22 de Junho de 2006.

Salvo o muito e devido respeito, tal decisão operou o que se considera ser uma incorrecta avaliação da prova produzida em juízo, extrapolando uma interpretação dos estatutos da sociedade sem qualquer suporte factual para a conclusão extraída.

Seremos breves.

I

Como ponto prévio – e para melhor delimitar a questão sub judice –, cumpre desde logo ter por assente que são hoje doutrina e jurisprudência uniformes que, face ao estatuído nos n.os 3 e 4 do artigo 257.º do C.S.C., a destituição do cargo de gerente de um sócio que goze de um direito especial à gerência apenas poderá ser requerida judicialmente, não podendo ser feita através de “mera” decisão da assembleia geral da sociedade.

A profusão de jurisprudência neste sentido é de tal volume que nos eximiremos de aqui a indicar ou transcrever.

O presente recurso não versa, portanto, sobre esta questão. Versa, outrossim, sobre a questão de saber se, no caso concreto, existe algum direito especial à gerência por partes dos sócios Autores/Recorridos nestes autos.

Salvo o devido respeito e melhor opinião em contrário, não existe, como adiante melhor se verá.

II

É da boa prática principiar o recurso pela indicação da matéria de facto provada em que a parte recorrente sustenta uma decisão em sentido diferente da proferida.

Ora, em bom rigor, para a questão de se saber se existe ou não um direito especial à gerência foi dado como provado, apenas e só, o facto do Ponto 1 do Título

III. Fundamentação de Facto, nos termos seguintes:

1. Por escritura pública de doação e constituição de sociedade lavrada em trinta e um de Julho de mil novecentos e setenta e um constituiu-se a sociedade “AA Filhos, Limitada”, consignando-se, designadamente, que “o capital social de mil contos é correspondente à soma das quotas dos sócios, que são: uma de cento e noventa mil escudos do sócio DD e seis de cento e trinta e cinco mil escudos, uma de cada um dos restantes sócios, FF, HH, II e JJ (…)”, que “(…) a gerência da sociedade fica a cargo de todos os sócios” e que “(…) as funções destes gerentes subsistirão até expressa revogação do mandato por deliberação da assembleia geral que, para este efeito, só poderá deliberar por acordo dos sócios que reúna, pelo menos, sessenta e sete e meio por cento do capital social”.

Note-se que não se trata de uma mera opinião da Ré/Recorrente.

Compulsando o teor da referida alínea B) do Ponto 2 do Título V da sentença, pode-se constatar que foi este o único facto mencionado pelo Tribunal “a quo” como suporte factual para proferir a decisão em crise.

III

E não é de todo despiciendo o que se vem de dizer.

É que, no pacto social sob análise, não existe norma expressa e inequívoca onde tal direito especial à gerência seja concedido tal quale.

É que, em acréscimo e na ausência de cláusula expressa e inequívoca, para que o Tribunal possa declarar que existe um direito especial à gerência, é necessária a existência de factos que evidenciem que, no pacto social da Ré/Recorrente, está configurado inequivocamente a atribuição à sua pessoa de um direito especial à gerência, por parte dos outros sócios.

Desde logo, porque nestes casos, relembra-se, “a existência de um direito especial à gerência colhe-se por via interpretativa do pacto social” (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, 17/05/93, in www.dgsi.pt).

Ora: “Para se poder concluir que um sócio de uma sociedade tem o direito especial à gerência (…) não basta que seja nomeado, como os demais sócios, no pacto da sociedade, como sócio gerente, sendo antes, necessário, que se possa concluir do contexto social que os sócios quiseram atribuir-lhe esse direito especial” (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, 28/09/2000, in www.dgsi.pt) (destaque nosso).

Sendo que “(…) a mera nomeação, nos estatutos, de sócios como gerentes, não basta para que se possa falar em direito especial à gerência, exigindo-se cláusula expressa para que assim seja entendido, ou que, pelo menos, resulte inequivocamente do contrato, conforme entendimento perfilhado pela doutrina e jurisprudência” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, 28/06/2001, in www.dgsi.pt; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, 09/06/2002, in CJ, 2002, T. IV, págs. 174, 175 e RAÚL VENTURA, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais – Sociedade por Quotas, 1996, volume III, págs. 19 e 20) (sublinhado nosso).

Aliás, não fora tratar-se de uma nulidade (que pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal, portanto, por força do artigo 286.º do Código Civil) – e os Autores/Recorridos teriam que alegar e provar tais factos, o que, sintomaticamente, não fizeram.

Ou seja, o Tribunal “a quo” foi “descobrir” um direito especial à gerência que nem os próprios Autores/Recorridos, beneficiários desse putativo direito, se arrogam de ter…

A atribuição ou o reconhecimento da titularidade de um eventual direito especial à gerência não resulta de um automatismo interpretativo do pacto social, se essa atribuição não decorrer expressa e inequivocamente daquele.

Bem pelo contrário, quando esse direito especial à gerência não resulte expressa e inequivocamente do pacto social, impõe-se um atento esforço interpretativo baseado na análise e ponderação das circunstâncias que caracterizaram a real vontade dos sócios, aquando da elaboração do pacto.

Donde, para justificar o alegado direito especial à gerência dos Autores/Recorridos o Tribunal não pode limitar-se a enunciar um conjunto de “conceitos gerais e abstractos” sobre o que se entende ser o direito especial à gerência, e muito menos ignorar a fundamentação que está subjacente às decisões jurisprudenciais enunciadas, esquecendo-se de alegar as circunstâncias concretas em que as mesmas assentam.

No caso vertente, o Tribunal “a quo” omitiu por completo a referida análise.

Vejamos.

Compulsando o pacto social, em local algum se afirma expressamente, “preto no branco”, que os Autores/Recorridos, ou qualquer outro sócio, gozam de um direito especial à gerência, o que desde logo denunciaria a ausência de vontade dos sócios da Ré/Recorrente em atribuir aos Autores/Recorridos o direito especial à gerência.

À míngua de menção expressa, de que indícios lança mão, então, o Tribunal “a quo” para declarar o direito especial à gerência?

Na verdade, de apenas um “indício”: o § 2.º do artigo 5.º do contrato de sociedade, que estipula que “as funções destes gerentes subsistirão até expressa revogação do mandato por deliberação da assembleia geral que, para este efeito, só poderá deliberar por acordo dos sócios que reúna, pelo menos, 67,5 por cento do capital social”.

Acontece que este § 2.º tem de ser lido em conjugação com o corpo do artigo 5.º, o qual por sua vez estipula que a gerência fica a cargo de todos os sócios.

Consequentemente, não existe qualquer direito especial, existe tão-somente uma regra que regula a destituição da gerência de qualquer um dos gerentes.

O direito, para ser especial, só pode ser atribuído a algum ou alguns dos sócios e não a todos, pois tornar-se-ia geral (PAULO OLAVO CUNHA, Os direitos especiais nas sociedades anónimas: as acções privilegiadas, pág. 21).

Nessa linha, “o direito à gerência estatutariamente conferido a um dos sócios não é um direito especial, se tal direito foi pelo pacto social atribuído indiscriminadamente a todos os sócios” (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, 17/05/93, in www.dgsi.pt).

E ainda: “a circunstância de terem sido nomeados gerentes todos os sócios da apelada e não apenas o ora apelante, afasta, desde logo, a concessão de um direito especial à gerência a todos ou algum deles” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08/02/79, BMJ n.º 294, 230; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23/01/96, CJ, 1996, 1ª, pág. 101; Pinto Furtado, Código Comercial Anotado, vol. 1º, págs. 516 e segs.)

Como se sabe, não é nem pode ser “especial” o que é “geral”! José Mourinho não seria o “the special one” se a generalidade dos treinadores de futebol fossem como ele e tivessem obtido os galardões competitivos que o mesmo obteve…

Para além deste “indício” (que na realidade não o é, como vimos), o Tribunal “a quo” não analisou qualquer outro circunstancialismo.

Para que se pudesse concluir pela existência de um direito especial à gerência, conforme reclama o Tribunal “a quo”, tal direito teria que resultar “(…) de circunstâncias interpretativas em ligação com a constituição da sociedade” (RAÚL VENTURA, Direitos Especiais dos Sócios – Parecer, em P Direito, ano 121º, Jan/Março de 1989, pág. 218).

Onde estão elas?

IV

Aliás, em sentido oposto, existem mesmo circunstâncias que ditam que, a ter porventura existido um direito especial à gerência, tal direito teria sido conferido originalmente aos sócios DD e GG, tendo sido extinguido com a alteração estatutária introduzida pela escritura pública de 26 de Dezembro de 1974.

Na sua redacção inicial, o corpo do artigo 5.º do contrato de sociedade prévia que “a gerência da sociedade (…) fica a cargo de todos os sócios, mas para a sociedade se obrigar é suficiente e necessária a assinatura dos sócios DD e GG”.

Face aos poderes especificamente concedidos a estes dois sócios, seria legítimo concluir que os restantes sócios teriam querido atribuir-lhes um direito especial à gerência, ao permitir-lhes a capacidade de, sozinhos, em conjunto um com o outro, vincularem a sociedade perante terceiros, sem intervenção dos restantes.

Todavia, com a alteração estatutária acima mencionada, a expressão “para a sociedade se obrigar é suficiente e necessária a assinatura dos sócios DD e GG” da parte final do corpo do artigo 5.º foi substituída pela redacção “para a sociedade se obrigar é suficiente e necessária a assinatura de dois gerentes”.

Salta à evidência que, com a mudança de redacção, a ter existido um direito especial à gerência dos dois sócios indicados, tal direito foi extinto por vontade expressa dos sócios, passando todos eles a agir em pé de igualdade.

Logo, quando foi proferida a deliberação sub judice, já não subsistia qualquer direito especial à gerência.

Como bem se compreenderá, analisando o “contexto social”, resulta evidente que ninguém altera tal cláusula importante do contrato social, na prática diminuindo a importância de uns gerentes face aos demais, para, afinal, se manter a especialidade dos mesmos.

E, mais, no transe (se fosse de admitir a tese do Tribunal “a quo”), “abrindo” tal eventual especialidade da gerência que dantes estava circunscrita a dois dos gerentes a todos os presentes gerentes e aos futuros!

V

Acresce que, mesmo que se aceitasse – por mera hipótese académica, que não se concede – que houve uma análise do circunstancialismo que levou à criação do direito especial à gerência, tal análise não foi concludente, com o necessário grau de certeza.

Longe disso: de tão superficial, a análise não foi suficiente para dissipar integralmente quaisquer dúvidas de um intérprete razoável.

Assim, têm aqui inteira propriedade e aplicação as palavras de Alberto Caeiro: “em caso de dúvida, será de afastar o direito especial à gerência” (A. CAEIRO, RDES, XIII, págs. 82 e segs.).

VI

Por último, o Tribunal “a quo” (ao pretender “arrumar” de forma expedita este assunto…), ao declarar um direito especial à gerência com base, apenas e só, na existência de uma maioria qualificada para a destituição de gerentes, acabou por ficar preso numa armadilha intelectual da qual não consegue sair: esvaziou completamente de sentido o n.º 2 do artigo 257.º do C.S.C….!

Reza tal preceito: “o contrato de sociedade pode exigir para a deliberação de destituição uma maioria qualificada ou outros requisitos; se, porém, a destituição se fundar em justa causa, pode ser sempre deliberada por maioria simples”.

Este artigo 257.º é uma norma imperativa que não pode ser afastada por vontade das partes.

Ora, se a circunstância única para haver direito especial à gerência é a exigência de maioria qualificada para a destituição de gerentes, então nunca pode funcionar a parte final do artigo porque é sempre necessária acção judicial…

Note-se que o sistema que o legislador previu é o seguinte;

a) Havendo direito especial à gerência, a destituição, mesmo com justa causa, só é possível mediante o recurso aos tribunais;

b) Não havendo direito especial à gerência, a destituição é possível ou por maioria simples ou por maioria qualificada se assim tiver sido previsto no pacto social;

c) No caso de ser fundada em justa causa, a destituição pode ser sempre deliberada por maioria simples.

Ou seja, se (como defende o Tribunal “a quo”) a decisão dos sócios, em pacto social, de conferir uma maioria qualificada para a deliberação de destituição da gerência – de acordo com a possibilidade aberta pela lei – é interpretada como sendo suficiente para atribuir um direito especial à gerência (para mais, a todos os gerentes indiscriminadamente), então, assiste-se a uma entorse dos fins últimos do artigo 257.º, n.º 2, e de todo o sistema construído pelo legislador.

Assiste-se a uma entorse, pois este artigo visa conferir aos sócios a possibilidade de tornar mais difícil uma destituição sem justa causa, tendo o legislador tido o cuidado de avisar que, tal exigência qualificada, não seria aplicável nos casos de destituição com justa causa, precisamente para evitar abusos.

Ora, esta disposição confere sim uma especialidade à deliberação de destituição (a exigência de maioria qualificada) mas não confere uma especialidade à gerência.

Caso contrário, depressa cairíamos numa situação em que, cada vez que houvesse sócios a prever nos estatutos – no seguimento, aliás, do direito que a lei lhes confere - uma maioria qualificada para destituição com justa causa de gerentes, lhes estariam, encapotada e inadvertidamente, a conferir um direito especial à gerência…

Aparece, assim, em toda a sua espectacularidade a armadilha intelectual circular onde caiu o Tribunal “a quo”: não se pode utilizar uma consequência que o legislador previu para os casos onde não há direito especial à gerência (a possibilidade de haver destituição por maioria qualificada), para – circularmente – usá-la para caracterizar a premissa dada pelo legislador para outra solução (a destituição judicial)!

VII

Na falência do direito especial à gerência erradamente atribuído aos Autores/Recorridos, ao contrário do que vem na sentença ora em crise (“consequentemente, soçobrando a maioria qualificada, infere-se que a destituição dos Autores/gerentes com fundamento em justa causa só poderia ser positivada por decisão judicial, pelo que a deliberação atinente ao ponto 1. Da ordem de trabalhos, postergou a norma imperativa plasmada no artigo 257º/3 do CSC.”, págs. 60 sublinhado nosso), a sua destituição por justa causa não tem de ser deliberada por acordo dos sócios que reúna, pelo menos, 67,5% (sessenta e sete e meio por cento) do capital social.

Não havendo direito especial à gerência, a destituição dos gerentes não é regulada pelos n.os 3 e 4 do artigo 257.º do C.S.C., mas antes pelo n.º 2 do mesmo preceito legal, acima transcrito.

De forma telegráfica, o regime do n.º 2 é o seguinte: se a destituição não se fundar em justa causa, só pode ser aprovada por maioria qualificada; se se fundar em justa causa, basta maioria simples.

É este, precisamente o caso dos autos.

Não obstante a maioria exigida no § 2.º do artigo 5.º do contrato de sociedade, a mera leitura atenta da deliberação e da proposta que lhe deu origem (a qual foi apensada à respectiva acta) é suficiente para se concluir imediatamente que se está perante uma destituição invocando a existência de justa causa, devidamente fundamentada para o efeito.

Assim, em termos formais, não ocorreu a violação deste preceito, nem se verifica, consequentemente, a nulidade decorrente da violação da norma imperativa constante do artigo 56.º, n.º 1, alínea d), do C.S.C..

Tal nulidade só poderá ser declarada após aferimento pelo Tribunal do teor concreto da deliberação em apreço, nomeadamente da comprovação da veracidade da factualidade a ele subjacente.

Isto é, tendo sido preenchidos pela sociedade os requisitos formais de lei para a destituição com justa causa dos Autores/Recorridos, o Tribunal apenas poderia ter declarado a nulidade da deliberação em duas situações: (i) caso a factualidade alegada pela sociedade não viesse a ser provada em juízo ou (ii) caso tal factualidade, sendo embora verdadeira, não integrasse o conceito de justa causa.

CONCLUSÕES

1. Não houve qualquer violação do artigo da norma imperativa do artigo 56.º, n.º 1, alínea d), do Código das Sociedades Comerciais, pelo que a deliberação de destituição dos gerentes com justa causa é formalmente válida.

2. Para o Tribunal poder declarar que existe um direito especial à gerência é necessário que a sua atribuição conste expressamente do pacto social ou, na sua ausência, é necessária a análise e ponderação das circunstâncias que caracterizaram a real vontade dos sócios, aquando da elaboração do pacto.

3. O Tribunal “a quo” não efectuou esta análise, estribando a sua decisão num único facto constante do Ponto 1 da matéria de facto dada como provada, que consiste meramente na previsão de uma maioria qualificada para a destituição dos gerentes, o que é manifestamente insuficiente.

4. Uma vez que todos os sócios são gerentes, a maioria qualificada para destituição de qualquer um deles não confere um direito especial – um direito especial só pode ser atribuído a algum ou alguns dos sócios e não a todos, pois tornar-se-ia geral.

5. A estatuição pactuada da exigência de maioria qualificada para destituição de gerentes sem justa causa confere uma especialidade à deliberação de destituição, mas não confere uma especialidade à função de gerência.

6. Inexistem quaisquer indícios da atribuição do direito à gerência aos Autores/Recorridos, sendo sintomático que estes nem sequer se arrogaram de lhes ter sido atribuído o mesmo.

7. A ter existido um direito especial à gerência, terá sido conferido originalmente aos sócios DD e GG, tendo sido extinguido com a alteração estatutária introduzida pela escritura pública de 26 de Dezembro de 1974, pelo que já não subsistia quando foi proferida a deliberação sub judice.

8. Mesmo que se aceitasse – por mera hipótese académica, que não se concede – que houve uma análise do circunstancialismo que levou à criação do direito especial à gerência, tal análise não foi concludente, pelo que, em caso de dúvida, será de afastar o direito especial à gerência.

9. A declaração pelo Tribunal “a quo” de um direito especial à gerência dos Autores/Recorridos com base unicamente no estabelecimento de uma maioria qualificada para a destituição dos gerentes é baseada num vício de raciocínio circular, porquanto esvazia completamente de sentido o n.º 2 do artigo 257.º do C.S.C., maxime a sua parte final.

10. Pelo exposto, para a destituição dos Autores/Recorridos, fundada aliás em justa causa, não era pois necessário a instauração de acção judicial para o efeito, podendo ser a mesma validamente deliberada pelos sócios por maioria simples, nos termos do artigo 257.º, n.º 2, do C.S.C..

Termos em que, revogando-se a decisão do Tribunal de 1.ª Instância e proferindo nova em conformidade com o supra alegado, se fará, como habitualmente é timbre deste Tribunal da Relação, inteira e sã JUSTIÇA!” (cfr. documento de fls. 618 a 632 dos autos cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido) - cfr. alínea L) dos factos assentes.

13º - Juntamente com o referido recurso foi junto aos autos um documento intitulado de “substabelecimento”, datado de 3/10/2012, mediante o qual o advogado Dr. CC substabeleceu, sem reserva, entre outros, nos advogados Drs. LL e KK, os poderes que lhe foram concedidos por AA, Filhos, Lda., constantes da procuração forense junta ao processo n.º 1114/06.9TBMCN (cfr. fls. 631 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais) - cfr. alínea M) dos factos assentes.

14º - O referido recurso mereceu o seguinte despacho:

“Nos presentes autos inconformada com a sentença dela recorreu a Ré para o Tribunal da relação do porto quanto à material de direito.

Vejamos.

Dispunha o artigo 685º, nº 1, do citado diploma legal, na redacção anterior às alterações introduzidas pelo Decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, em vigor desde 1 de Setembro de 2008, que o prazo para a interposição dos recursos é de dez dias, alegando o recorrente por escrito no prazo de 30 dias, contados da notificação do despacho de recebimento do recurso, nos termos do disposto no artigo 698º, nº 2, do mesmo diploma.

Após a entrada em vigor do Decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, dispõe o artigo 685º, do citado diploma legal, que o prazo para a interposição do recurso é de 30 dias acrescentando o artigo 684º-B, nº 1 e 2, que o mesmo se interpõe por meio de requerimento dirigido ao tribunal que proferiu a decisão recorrida o qual deve incluir a alegação do recorrente.

Dispõe o artigo 11º, nº 1, do citado Decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, que as suas disposições não se aplicam aos processos pendentes á data da sua entrada em vigor.

Ora, resulta do exposto que o regime aplicável aos presentes autos no que concerne aos recursos é o regime anterior à alteração legislativa introduzida pelo Decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, sendo, assim, o prazo para interposição do recurso de 10 dias.

No caso dos presentes autos a sentença foi notificada no dia 3 de Setembro de 2012 por via electrónica.

Nos termos do artigo 21º-A, nº 5, da portaria nº 114/2008, de 6 de Fevereiro, que regula a tramitação electrónica de processos, o sistema informático Citius assegura a certificação da data da elaboração da notificação presumindo-se feita a expedição no terceiro dia posterior ao da elaboração ou no primeiro dia útil seguinte a esse, quando o final do prazo termine em dia não útil.

Assim, o prazo para interposição do recurso iniciou-se n o dia 7 de Setembro de 2012, porquanto a notificação tem-se por efectuada no dia 6 de Novembro de 2011, e terminou no dia 17 de Setembro de 2012, 1º dia útil após o termo do prazo.

Nos termos do artigo 145º, nº 5, do Código de Processo civil, independentemente de justo impedimento, pode o acto ser praticado dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo, ficando a sua validade dependente do pagamento, até ao primeiro dia útil posterior ao da prática do acto, de uma multa de montante igual a um quarto de justiça inicial por cada dia de atraso.

Assim, no caso dos presentes autos, não obstante o prazo para interposição do recurso ter terminado no dia 17 de Setembro de 2012 o mesmo poderia ser interposto até ao dia 20 de Setembro de 2012 ficando a sua validade dependente do pagamento de uma multa. Porém, a Ré interpôs o recurso da sentença em 4 de Outubro de 2012, ou seja, muito para além do prazo de que dispunha.

Pelo exposto e nos termos das citadas disposições legais indefiro o requerimento de interposição de recurso da Ré, por intempestivo.

Notifique. (…)” – cfr. alínea N) dos factos assentes.

15º - O advogado Dr. CC foi notificado do despacho de indeferimento do recurso interposto no processo n.º 1114/06.9TBMCN, supra referido, em Dezembro de 2012 (cfr. certidão de fls. 893 a 897 dos autos).

16º - A sociedade autora foi constituída no dia 31 de Julho de 1971, através de escritura pública cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 984 a 995, que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.

17º - No dia 26/12/1974, através de escritura pública intitulada “Cessão de quota, renúncia à gerência e modificação parcial de pacto social”, foi parcialmente modificado o pacto social da autora nos moldes contantes da cópia daquela escritura junta aos autos a fls. 997 a 1002, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

18º - O sócio DD intentou, em Janeiro de 2013, uma acção de processo ordinário, a qual adquiriu o n.º 81/13.7TBMCN e corre os seus termos na Instância Central de Comércio da Comarca do Porto Este, J1, contra, entre outros, a AA, Lda., onde pede, entre outras coisas: a condenação da 1ª ré, aqui autora, a pagar ao ali autor a quantia de € 106.161,42, proveniente da remuneração mensal do autor como gerente, no montante de € 1.571,21, 14 meses por ano, desde Dezembro de 2006, após a execução da deliberação de destituição declarada nula por sentença até à data do trânsito em julgado da mesma; a condenação da mesma a pagar ao ali autor os juros de mora sobre a referida quantia, à taxa legal de 4%, desde a data de 17/09/2012 e até efectivo pagamento, tudo com os fundamentos vertidos na sua petição inicial, cuja certidão se encontra junta aos autos a fls. 913 a 928, que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.

19º - O sócio EE intentou, em Março de 2015, uma acção de processo comum, a qual adquiriu o n.º 409/15.5T8AMT e corre os seus termos na Instância Central de Comércio da Comarca do … Este, J.., contra, entre outros, a AA, Lda., que aí foi citada, através de carta registada com aviso de recepção datada de 23/03/2015, onde pede, entre outras coisas: a declaração de nulidade e de nenhum efeito da deliberação de 20/08/03, que destituiu o ali autor da gerência da 1ª ré, aqui autora; caso assim não se entenda, a declaração de revogação da deliberação de 20 de Agosto de 2003 que destituiu o ali autor da gerência da 1ª ré, aqui autora; e sempre, em consequência, a condenação da 1ª ré, aqui autora, a pagar ao ali autor a quantia de € 125.015,90, proveniente da remuneração mensal do autor como gerente, no montante de € 1.571,21, 14 meses por ano, desde Dezembro de 2006, após a execução da deliberação de destituição declarada nula por sentença datada de 17 de Setembro de 2012; a condenação da mesma a pagar ao ali autor os juros de mora sobre as remunerações mensais em dívida à taxa legal de 4% que contados desde o dia 1 do mês seguinte àquele a que respeitam perfaz, a 3/03/2015, a quantia de € 26.167,65, tudo acrescido de juros vincendos desde 4/03/2015 até efectivo e integral pagamento, tudo com os fundamentos vertidos na sua petição inicial, cuja certidão se encontra junta aos autos a fls. 958 a 981, que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.

20º - Desde o dia 22 de Junho de 2006, os gerentes destituídos não exerceram mais as funções de gerência da autora, pelo menos, até à data da sentença supra referida que declarou nula a sua destituição.

21º - AA, Lda., intentou contra DD e EE acção especial de suspensão e destituição de titulares de órgãos sociais com os fundamentos constantes de fls. 1006 a 1060 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido, tendo a petição inicial sido objecto de indeferimento liminar, o qual, após decisão do recurso interposto, foi revogado, tendo sido ordenado o prosseguimento dos autos e encontrando-se tal acção pendente (cfr. fls. 1061 a 1068 dos autos cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, e bem assim o atestado na acta da última sessão da audiência de julgamento).


*


Com interesse para a decisão da causa, não se provaram os restantes factos essenciais alegados, designadamente que:

1º - O advogado Dr. CC tivesse tomado conhecimento dos actos e omissões alegados pela autora na presente acção, e bem assim que esse conhecimento tivesse ocorrido sempre antes de 1/01/2014.

2º - Tivesse sido o advogado Dr. CC a interpor o recurso referido em 12º dos factos provados.

3º - O recurso a que se faz referência nos factos assentes tivesse sido interposto na data dada também como assente, porque o advogado Dr. CC não verificou o regime processual aplicável, considerando que o prazo para a interposição do recurso era de 30 dias.

4º - A autora não tivesse chegado a ter conhecimento da sentença por via do Dr. CC, e bem assim que a autora só tivesse tomado conhecimento da mesma quando, após o seu trânsito em julgado, os sócios DD e EE compareceram na sede da autora, demandando o pagamento de todos os salários que lhes não foram pagos desde a data da deliberação declarada nula.

5º - Em 22 de Junho de 2006, os gerentes DD e EE auferissem a remuneração mensal de € 1.547,21.


5. Tendo em conta o disposto no nº 4, do art. 635º, do Código de Processo Civil, o objecto dos recursos delimita-se pelas conclusões dos mesmos. Assim, no presente recurso, estão em causa as seguintes questões:

- Não verificação de ilicitude da conduta do advogado, Dr. CC, segurado da R., por violação de deveres legais e contratuais, e, consequentemente, ausência de responsabilidade civil do mesmo;

Subsidiariamente,

- Falta de prova do dano de perda de chance – por falta de prova de danos e de nexo de causalidade – e, consequentemente, inexistência de responsabilidade civil do advogado, segurado da R.


Tendo presente o que se disse supra, a propósito da admissibilidade do recurso (ponto 3 do presente acórdão), assinale-se desde já que, tal como as questões objecto do recurso se encontram delineadas pela Recorrente, correspondem a questões de direito e não a questões de facto, pelo que há que delas conhecer, não podendo, sem mais, concluir-se pela improcedência manifesta do recurso.


7. Antes de apreciar cada uma das questões enunciadas, afigura-se conveniente proceder ao enquadramento das mesmas, tendo em conta o decidido pelas instâncias.

A presente acção tem por objecto uma pretensão indemnizatória, a título de danos patrimoniais, resultante da perda de oportunidade (chance) da A. pelo facto de o segurado da R., Dr. CC, na qualidade de advogado da A., não ter interposto recurso de apelação da sentença que declarou a nulidade de deliberação social de destituição de dois sócios-gerentes da A., tomada na Assembleia Geral de Sócios de 22/06/2006, sentença essa proferida na acção n.º 1114/06.9TBMCN, intentada pelos gerentes destituídos contra a A.

   Estamos perante um contrato de mandato forense, celebrado entre a A. e o segurado da R., com atribuição de poderes de representação, o qual era, à data dos factos, regulado pelo Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), aprovado pela Lei nº 15/2005, de 26 de Janeiro, aplicando-se subsidiariamente o regime do contrato de mandato civil dos arts. 1157º e segs. do Código Civil. Assim, além das obrigações gerais do mandatário previstas no art. 1161º do CC, devem ter-se em especial consideração as obrigações específicas consagradas pelo EOA, sendo de salientar, designadamente, as que resultam do art. 95º (correspondente ao art. 100º do EOA, aprovado pela Lei nº 145/2015, de 9 de Setembro), que aqui se transcreve:

“1 - Nas relações com o cliente, são ainda deveres do advogado:

a) Dar a sua opinião conscienciosa sobre o merecimento do direito ou pretensão que o cliente invoca, assim como prestar, sempre que lhe for solicitado, informação sobre o andamento das questões que lhe forem confiadas, sobre os critérios que utiliza na fixação dos seus honorários, indicando, sempre que possível, o seu montante total aproximado, e ainda sobre a possibilidade e a forma de obter apoio judiciário;

b) Estudar com cuidado e tratar com zelo a questão de que seja incumbido, utilizando para o efeito todos os recursos da sua experiência, saber e actividade;

(…)

e) Não cessar, sem motivo justificado, o patrocínio das questões que lhe estão cometidas.

2 - Ainda que exista motivo justificado para a cessação do patrocínio, o advogado não deve fazê-lo por forma a impossibilitar o cliente de obter, em tempo útil, a assistência de outro advogado.”


   O não cumprimento de tais deveres pode gerar responsabilidade civil obrigacional pelos danos resultantes para a A., sendo esta o fundamento em que assenta a pretensão indemnizatória aqui em causa, cujo montante, em sede de recurso de revista, se encontra circunscrito aos termos da decisão da Relação: 50% dos prejuízos que vierem a ser apurados ulteriormente.


8. Quanto à questão da alegada não verificação de ilicitude da conduta do advogado, Dr. CC, segurado da R., por violação de deveres legais e contratuais, e, consequentemente, ausência de responsabilidade civil do mesmo, relevam os seguintes factos provados:

12º - A referida sentença [proferida na acção n.º 1114/06.9TBMCN] foi notificada ao Dr. CC, através de notificação elaborada pelo sistema Citius no dia 3 de Setembro de 2012, e dela foi interposto, no dia 4/10/2012, o seguinte recurso subscrito pelo advogado Dr. KK:

(…)

13º - Juntamente com o referido recurso foi junto aos autos um documento intitulado de “substabelecimento”, datado de 3/10/2012, mediante o qual o advogado Dr. CC substabeleceu, sem reserva, entre outros, nos advogados Drs. LL e KK, os poderes que lhe foram concedidos por AA, Filhos, Lda., constantes da procuração forense junta ao processo n.º 1114/06.9TBMCN (cfr. fls. 631 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais) - cfr. alínea M) dos factos assentes.

14º - O referido recurso mereceu o seguinte despacho:

“Nos presentes autos inconformada com a sentença dela recorreu a Ré para o Tribunal da relação do porto quanto à material de direito.

Vejamos.

Dispunha o artigo 685º, nº 1, do citado diploma legal, na redacção anterior às alterações introduzidas pelo Decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, em vigor desde 1 de Setembro de 2008, que o prazo para a interposição dos recursos é de dez dias, alegando o recorrente por escrito no prazo de 30 dias, contados da notificação do despacho de recebimento do recurso, nos termos do disposto no artigo 698º, nº 2, do mesmo diploma.

Após a entrada em vigor do Decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, dispõe o artigo 685º, do citado diploma legal, que o prazo para a interposição do recurso é de 30 dias acrescentando o artigo 684º-B, nº 1 e 2, que o mesmo se interpõe por meio de requerimento dirigido ao tribunal que proferiu a decisão recorrida o qual deve incluir a alegação do recorrente.

Dispõe o artigo 11º, nº 1, do citado Decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, que as suas disposições não se aplicam aos processos pendentes á data da sua entrada em vigor.

Ora, resulta do exposto que o regime aplicável aos presentes autos no que concerne aos recursos é o regime anterior à alteração legislativa introduzida pelo Decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, sendo, assim, o prazo para interposição do recurso de 10 dias.

No caso dos presentes autos a sentença foi notificada no dia 3 de Setembro de 2012 por via electrónica.

Nos termos do artigo 21º-A, nº 5, da portaria nº 114/2008, de 6 de Fevereiro, que regula a tramitação electrónica de processos, o sistema informático Citius assegura a certificação da data da elaboração da notificação presumindo-se feita a expedição no terceiro dia posterior ao da elaboração ou no primeiro dia útil seguinte a esse, quando o final do prazo termine em dia não útil.

Assim, o prazo para interposição do recurso iniciou-se n o dia 7 de Setembro de 2012, porquanto a notificação tem-se por efectuada no dia 6 de Novembro de 2011, e terminou no dia 17 de Setembro de 2012, 1º dia útil após o termo do prazo.

Nos termos do artigo 145º, nº 5, do Código de Processo civil, independentemente de justo impedimento, pode o acto ser praticado dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo, ficando a sua validade dependente do pagamento, até ao primeiro dia útil posterior ao da prática do acto, de uma multa de montante igual a um quarto de justiça inicial por cada dia de atraso.

Assim, no caso dos presentes autos, não obstante o prazo para interposição do recurso ter terminado no dia 17 de Setembro de 2012 o mesmo poderia ser interposto até ao dia 20 de Setembro de 2012 ficando a sua validade dependente do pagamento de uma multa. Porém, a Ré interpôs o recurso da sentença em 4 de Outubro de 2012, ou seja, muito para além do prazo de que dispunha.

Pelo exposto e nos termos das citadas disposições legais indefiro o requerimento de interposição de recurso da Ré, por intempestivo.

Notifique. (…)” – cfr. alínea N) dos factos assentes.

15º - O advogado Dr. CC foi notificado do despacho de indeferimento do recurso interposto no processo n.º 1114/06.9TBMCN, supra referido, em Dezembro de 2012 (cfr. certidão de fls. 893 a 897 dos autos).


Foram dados como não provados os seguintes factos:

2º - Tivesse sido o advogado Dr. CC a interpor o recurso referido em 12º dos factos provados.

3º - O recurso a que se faz referência nos factos assentes tivesse sido interposto na data dada também como assente, porque o advogado Dr. CC não verificou o regime processual aplicável, considerando que o prazo para a interposição do recurso era de 30 dias.

4º - A autora não tivesse chegado a ter conhecimento da sentença por via do Dr. CC, e bem assim que a autora só tivesse tomado conhecimento da mesma quando, após o seu trânsito em julgado, os sócios DD e EE compareceram na sede da autora, demandando o pagamento de todos os salários que lhes não foram pagos desde a data da deliberação declarada nula.


     As instâncias divergiram na interpretação e qualificação destes factos.

A 1ª instância considerou essencialmente que, ainda que o recurso tenha sido interposto fora de prazo, uma vez que não foi o Dr. CC a interpô-lo, mas antes o advogado no qual aquele subestabeleceu, tal facto não permite concluir ter o mesmo Dr. CC desrespeitado os seus deveres. Não tendo sido provado que a circunstância de o recurso ter sido intempestivamente interposto se tenha ficado a dever a descuido do Dr. CC (cfr. facto não provado 3º), a sua conduta não é ilícita. Considerações que assentam no entendimento de que o advogado não está obrigado a interpor recurso de uma sentença desfavorável ao seu cliente.

   Diversamente, a Relação entendeu, a partir dos factos provados e no uso de presunções judiciais, dar como provado que a aqui A. (e ali ré) pretendia recorrer da sentença, pelo que o Dr. CC o devia ter feito atempadamente ou, em alternativa, devia ter explicado à sua cliente a razão pela qual tal não seria viável. Tendo vindo o recurso a ser interposto fora de prazo, verifica-se violação dos deveres contratuais, sendo de presumir a culpa daquele mesmo advogado nos termos do art. 799º do Código Civil.


     Vejamos.

     É certo não poder, sem mais, considerar-se estar um mandatário forense adstrito ao dever de recorrer de toda e qualquer sentença desfavorável ao seu cliente. Contudo, a Relação deu como provado – no uso de presunções judiciais que não cabe a este Supremo Tribunal sindicar, salvo se padecendo de ilogicidade manifesta, o que, no caso, não ocorre – pretender a autora interpor recurso da sentença que lhe fora desfavorável. Tal conclusão afigura-se inteiramente adequada perante o historial de litigância entre as partes da acção n.º 1114/06.9TBMCN (atestado na matéria de facto da presente acção). Assim sendo, só poderia considerar-se ter o advogado Dr. CC cumprido os deveres de zelo e diligência a que se encontrava adstrito para com a sua cliente, se a aqui R. Recorrente seguradora tivesse alegado e provado factos que demonstrassem ter aquele advogado informado a aqui A. (ré da acção n.º 1114/06.9TBMCN) da decisão da sentença que lhe foi desfavorável, assim como das razões que, em seu entender, justificavam que dela não fosse interposto recurso de apelação, de forma a não inviabilizar que a cliente obtivesse, em tempo útil, a assistência de outro advogado (cfr. o princípio ínsito no nº 2, do art. 95º, do EOA).      

   Conclui-se, assim, ter o advogado Dr. CC actuado de forma ilícita em violação dos deveres inerentes ao contrato de mandato forense.


9. Quanto à questão da falta de prova do dano de perda de chance – por falta de prova de danos e de nexo de causalidade – e, consequentemente, inexistência de responsabilidade civil do advogado, segurado da R., entende-se necessário começar por referir que o acórdão recorrido a enquadrou na perspectiva da perda de oportunidade (chance), traduzida num dano aferível pela probabilidade séria e real de a A. vir a obter ganho de causa. A respeito da problemática da reparabilidade do dano de perda de chance, considere-se a fundamentação do acórdão deste Supremo Tribunal de 30/11/2017 (proc. nº 12198/14.6T8LSB.L1.S1), consultável em www.dgsi.pt, proferido na mesma secção em que é proferido o presente acórdão (e retomado no acórdão de 17/05/2018, proc. nº 236/14.7TBLMG.C1.S1, ainda não publicado):

       “Tal entendimento [da admissibilidade do dano de perda de chance] encontra suporte doutrinário e jurisprudencial, mormente na jurisprudência deste Supremo Tribunal.

    Sobre a perda de chance na jurisprudência portuguesa, Paulo Mota Pinto [1 Artigo doutrinário intitulado Perda de chance processual, in RLJ Ano 145.º, Março-Abril de 2016, pp. 174 e segs. (186 e segs.)], dando uma panorâmica da evolução da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça desde 2009 [2 Acórdão do STJ, de 22/10/2009, relatado pelo Juiz Cons. João Bernardo, no processo n.º 409/09. 4YFLSB, acessível na Internet - http://www.dgsi.pt/jstj], refere que:

«A partir de 2012 e de 2013, o Supremo Tribunal de Justiça passou (…) a aceitar o ressarcimento da perda de chance processual, atribuindo ao lesado uma indemnização mesmo em casos em que não conseguiu determinar a probabilidade de vencimento, fazendo uma avaliação equitativa do dano.»

E conclui que:

«A orientação dominante na nossa jurisprudência em matéria de chance processual passou, pois, a ser hoje a de que o dano resultante da perda de chance processual pode relevar se se tratar de uma chance consistente, designadamente se se puder concluir, “com elevado grau de probabilidade ou verosimilhança” (na expressão do acórdão do STJ de 29 de Abril de 2010 [3 Acórdão do STJ, de 29/04/2010, relatado pelo Juiz Cons. Sebastião Póvoas, no processo n.º 2622/ 07.0TBPNF.P1.S1, acessível na Internet - http://www.dgsi.pt/jstj] que o lesado obteria certo benefício não fora a chance processual perdida

Com efeito, não obstante as divergências quanto à caracterização ou não da perda de chance como dano autónomo, não vemos que exista obstáculo a que essa perda de chance ou de oportunidade de obter uma vantagem ou de evitar um prejuízo, impossibilitada definitivamente por um ato ilícito, não possa ser qualificada como um dano em si, posto que sustentado num juízo de probabilidade tido por suficiente em função dos indícios factualmente provados [4 Vide a este propósito, o acórdão do STJ, de 09/07/2015, relatado pelo aqui relator, no processo n.º 5105/12.2TBSXL.L1.S1, acessível na Internet - http://www.dgsi.pt/jstj].

   Assim, desde que se prove, desse modo indiciário, a consistência de tal vantagem ou prejuízo, ainda que de feição hipotética mas não puramente abstrata, terá de se reconhecer que ela constitui uma posição favorável na esfera jurídica do lesado, cuja perda definitiva se traduz num dano certo contemporâneo do próprio evento lesivo. 

É certo que se poderá colocar a questão de saber se, em tais casos, estamos ainda em sede de identificação do dano ou já no plano do estabelecimento do seu nexo de causalidade, sabido como é que a definição da chance perdida terá de ser feita sempre na perspetiva do resultado final para que tende.

   Ora, uma coisa será, em primeira linha, identificar a própria perda de chance com consistência suficiente, em função do resultado final hipotético definitivamente perdido, para ser qualificada como dano emergente e certo, outra algo diferente será depois imputar essa perda à conduta lesiva, segundo as regras da causalidade adequada. Embora se reconheça que essa dicotomia seja discutível, se concentrarmos o juízo de probabilidade na aferição da consistência necessária à identificação do dano, já o estabelecimento do seu nexo de causalidade com a conduta ilícita se revela facilitado.    

Nesse conspecto, o juízo de probabilidade sobre a consistência da perda de chance deve “ser encarado com grandes cautelas e apenas nas situações em que a privação da probabilidade de obtenção de uma vantagem se possa caracterizar, com mais evidência, como um dano autónomo” [5 A este propósito, vide comentário do Juiz Conselheiro Carlos Alberto Fernandes Cadilhe, in Regime da responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, Anotado, Coimbra Editora, 2011, pag. 98-99, citado no acórdão indicado na nota precedente].

    Problemático será saber quais os índices de probabilidade para o reconhecimento da perda de chance como dano autónomo, ou seja, se a própria probabilidade de vantagem perdida pode ser reconhecida como juridicamente relevante, não obstante a impossibilidade de demonstração do respetivo resultado final.

     De qualquer modo, como se referiu no acórdão indicado na nota 1, afigura-se que, “traduzindo-se a perda de chance em situações ainda incipientes na nossa ordem jurídica, não perfeitamente sedimentadas na doutrina nem enraízadas na prática jurisprudencial, como o são as situações dos lucros cessantes e dos danos futuros, para mais de ocorrência multifacetada, um método de análise que parta de uma definição dogmática de dano para a ela depois subsumir o caso concreto, não será, porventura, o método mais seguro, podendo mesmo mostrar-se redutor. Ao invés, uma metodologia que procure seguir uma pista mais casuística de modo a aferir cada caso à luz das exigências legais sobre a probabilidade suficiente para o reconhecimento da ressarcibilidade do dano pode ser mais promissora.”

   Assim, no campo da responsabilidade civil contratual por perda de chances processuais, em vez de se partir do princípio de que o sucesso de cada ação é, à partida, indemonstrável, parece mais curial ponderar, perante cada hipótese concreta, qual o grau de probabilidade segura desse sucesso, pois pode muito bem acontecer que o sucesso de determinada ação, à luz de um desenvolvimento normal e típico, possa ser perspetivado como uma ocorrência altamente demonstrável, à face da doutrina e jurisprudência então existentes.

    Nessa base, será de aceitar que uma vantagem perdida por decorrência de um evento lesivo, desde que consistente e séria, ou seja com elevado índice de probabilidade, possa ser qualificada como um dano autónomo, não obstante a impossibilidade absoluta do resultado tido em vista.

De resto, mesmo a jurisprudência do STJ admite a relevância de situações muito pontuais, desde que a prova permita, com elevado grau de probabilidade, ou verosimilhança, concluir que o lesado obteria certo benefício não fora a chance perdida. Esta ressalva mais não parece do que admitir afinal o dano por perda de chance na base de um juízo de probabilidade elevado e que só poderá ser aferido em cada caso concreto. O que parece discutível é se deve ser feito de forma categorial ou se em função da espécie do caso, como propendemos a admitir.

Em suma, afigura-se razoável aceitar que a perda de chance se pode traduzir num dano autónomo existente à data da lesão e portanto qualificável como dano emergente, desde que ofereça consistência e seriedade, segundo um juízo de probabilidade suficiente, independente do resultado final frustrado.

Demonstrada assim essa espécie de dano, questão diferente será já a avaliação do quantum indemnizatório devido, segundo o critério da teoria da diferença nos termos prescritos no artigo 566.º, n.º 2, do CC. Será também neste plano de avaliação que se poderá lançar mão, em última instância, do critério da equidade ao abrigo do n.º 3 do mesmo normativo, o qual não pode, pois ser utilizado em sede de determinação da própria consistência da perda de chance.

No caso de perda de chances processuais, como é a tratada nos presentes autos, a primeira questão está em saber se o hipotético sucesso do desfecho processual, decorrente do recurso que o 1.º R. deixou de interpor, assume um padrão de consistência e de seriedade que, face ao estado da doutrina e jurisprudência então existente, ou mesmo já em evolução, se revela suficientemente provável para o reconhecimento do dano

Para tanto, importa fazer o chamado “julgamento dentro do julgamento”, não propriamente no sentido da solução jurídica que pudesse ser adotada pelo tribunal da presente ação sobre a matéria da causa em que ocorreu a falta, mas sim pelo que possa ser considerado como altamente provável que o tribunal da ação em que a defesa ficou prejudicada viesse a decidir.

A determinação da perda de chance processual por via do julgamento dentro do julgamento encontra-se bem espelhada, por exemplo, nos acórdãos do STJ, de 05/02/2013, proferido no processo n.º 488/09.4TBESP.P1.S1, de 14/03/2013, proferido no processo n.º 78/09.5TVLSB.L1.S1 e de 30/09/2014, proferido no processo n.º 739/09.5TVLSB.L2-A.DS1 [6 Todos estes arestos estão citados no artigo doutrinário acima referido de Paulo Mota Pinto, tendo sido relatados, respetivamente, pelos Juízes Conselheiros Hélder Roque, Maria dos Prazeres Beleza e Mário Mendes, acessíveis na Internet - http://www.dgsi.pt/jstj].

Mas tal apreciação inscrever-se-á, enquanto tal, nuclearmente, numa questão de facto que extravasa os fundamentos do recurso de revista [7 Neste sentido, vide Paulo Mota Pinto, artigo citado p. 190], embora se admita que possa, porventura, envolver erros de direito sobre a apreciação da prova ou em sede do quadro normativo aplicável, estes sim passíveis de serem sindicáveis em sede de revista.

O ónus de prova de tal probabilidade impende sobre o lesado, como facto constitutivo que é da obrigação de indemnizar (art.º 342.º, n.º 1, do CC).” [negritos nossos]


  Acolhendo essencialmente esta orientação – e independentemente da qualificação ou não da determinação da chance processual como questão de facto – ponderemos a sua aplicação ao caso dos autos, fazendo a distinção entre os dois níveis assinalados. Num primeiro nível, importa averiguar da existência ou não de uma probabilidade, consistente e séria, tanto de sucesso do recurso de apelação da sentença como de um desfecho da acção favorável à ali ré (aqui A.). Caso se conclua afirmativamente, num segundo nível, proceder-se-á à apreciação do quantum indemnizatório equitativamente fixado.

   Vejamos em que termos a Relação, apreciando criticamente a decisão da 1ª instância, fundamentou a decisão, na parte relativa à reparabilidade do dano de perda de chance e à fixação da indemnização correspondente:

“A perda de chance apresenta-se como o dano em si.

“A sentença sob recurso entendeu que: “E perante os factos alegados pela autora e tendo presente os factos dados como provados, entendemos que, a existir uma perda efectiva de chance decorrente de, objectivamente, a autora ter perdido a oportunidade de ver revertido a seu favor o desfecho final da acção n.º 1114/06.9TBMCN, através do respectivo recurso, o certo é que, no momento em que autora intentou a presente acção e no momento em que esta decisão é proferida, a autora não teve, ainda, um prejuízo efectivo resultante daquela situação.

Na verdade, tal como a autora alegou, contra a mesma foram intentadas duas acções judiciais.

Assim, o sócio DD intentou, em Janeiro de 2013, uma acção de processo ordinário, a qual adquiriu o n.º 81/13.7TBMCN e corre os seus termos na Instância Central de Comércio da Comarca do … Este, J1, contra, entre outros, a AA, Lda., onde pede, entre outras coisas: a condenação da 1ª ré, aqui autora, a pagar ao ali autor a quantia de € 106.161,42, proveniente da remuneração mensal do autor como gerente, no montante de € 1.571,21, 14 meses por ano, desde Dezembro de 2006, após a execução da deliberação de destituição declarada nula por sentença até à data do trânsito em julgado da mesma; a condenação da mesma a pagar ao ali autor os juros de mora sobre a referida quantia, à taxa legal de 4%, desde a data de 17/09/2012 e até efectivo pagamento, tudo com os fundamentos vertidos na sua petição inicial, cuja certidão se encontra junta aos autos a fls. 913 a 928, que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.

E o sócio EE intentou, em Março de 2015, uma acção de processo comum, a qual adquiriu o n.º 409/15.5T8AMT e corre os seus termos na Instância Central de Comércio da Comarca do … Este, J…, contra, entre outros, a AA, Lda., que aí foi citada, através de carta registada com aviso de recepção datada de 23/03/2015, onde pede, entre outras coisas: a declaração de nulidade e de nenhum efeito da deliberação de 20/08/03, que destituiu o ali autor da gerência da 1ª ré, aqui autora; caso assim não se entenda, a declaração de revogação da deliberação de 20 de Agosto de 2003 que destituiu o ali autor da gerência da 1ª ré, aqui autora; e sempre, em consequência, a condenação da 1ª ré, aqui autora, a pagar ao ali autor a quantia de € 125.015,90, proveniente da remuneração mensal do autor como gerente, no montante de € 1.571,21, 14 meses por ano, desde Dezembro de 2006, após a execução da deliberação de destituição declarada nula por sentença datada de 17 de Setembro de 2012; a condenação da mesma a pagar ao ali autor os juros de mora sobre as remunerações mensais em dívida à taxa legal de 4% que contados desde o dia 1 do mês seguinte àquele a que respeitam perfaz, a 3/03/2015, a quantia de € 26.167,65, tudo acrescido de juros vincendos desde 4/03/2015 até efectivo e integral pagamento, tudo com os fundamentos vertidos na sua petição inicial, cuja certidão se encontra junta aos autos a fls. 958 a 981, que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.

As referidas acções encontram-se pendentes no tribunal e, caso venham a ser julgadas improcedentes, determinam que a autora não terá de pagar nenhuma remuneração àqueles sócios, pelo facto de os mesmos terem estado impedidos de exercer a gerência na sequência da deliberação social da autora que veio a ser declarada nula naquela citada acção.

Sendo assim, como entendemos que é, e tendo a autora reconduzido o seu dano autónomo, decorrente da invocada “perda de chance”, à probabilidade de ter de a pagar tais remunerações e não a qualquer outra realidade, parece-nos de liminar evidência que esse suposto dano, pelo menos por ora, ainda não ocorreu.

E, como se tal situação não fosse bastante à conclusão extraída, sempre a situação alegada pela autora poderá, ainda, ser revertida na acção de destituição judicial de gerentes que a mesma intentou contra DD e EE, com base nos mesmos factos com que contestou a acção 1114/06.9TBMCN, sustentando aí, de modo diferente do que o fez naquela acção e o faz nos presentes autos, a existência de um direito especial à gerência daquelas duas pessoas, sendo certo que, também, esta acção continua pendente em tribunal.”

Discordamos. Na realidade a autora, ré na ação em causa ficou vencida. O prejuízo económico decorrente do decaimento resulta deste resultado em si mesmo - anulação da deliberação de destituição dos gerentes com a consequente manutenção dos gerentes na sociedade. É necessário quantificá-lo face ao pedido ora formulado? É, mas se é necessário esperar pelo desfecho de futuras acções, então ocorre uma questão prejudicial a dar lugar à suspensão da instância.

Os danos são os que emergem desta declaração de nulidade da deliberação social e por via da sentença os gerentes ... e ... continuaram no exercício da gerência. Os danos decorrem desde logo da remuneração que os mesmos reivindicam.

Por isso existe um nexo causal entre a conduta do advogado e esta perda de chance ou oportunidade, ou seja, desta perda de expectativa de obter êxito judicialmente com a manutenção da deliberação e destituição dos sócios..

Para quantificar os prejuízos vamos aderir ao critério do acórdão do STJ de 5.3.2013 supra citado.

Assim deve atender-se às probabilidades de o lesado obter o benefício que poderia resultar da chance perdida, sendo o grau de probabilidade de obtenção da vantagem perdida que será decisivo para a determinação da indemnização.

A chance foi afastada pelo acto do lesante, o advogado em questão. A indemnização deve traduzir a diferença dada pela repercussão do grau de probabilidade no montante da indemnização a atribuir ao lesado.

Assim fazendo apelo à lei dispõem os artigos do CC:

563º A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sorrido se não fosse a lesão;

564º 1. O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão.

2. Na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior; 566.º, 3. Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.

Como o resultado da acção é incerto o autor não pode receber o valor igual ao crédito em falta.

Assim temos como certo que o autor teria pelo menos 50% das probabilidades de obter sucesso, o que pelo recurso à equidade entendemos que a indemnização deve corresponder a 50% do valor do crédito não cobrado título de dano patrimonial.

Não resulta da matéria de facto qual o montante dos prejuízos sofridos em virtude da conduta omissiva do advogado, devendo a sua liquidação ser averiguada posteriormente em incidente de liquidação nos termos do n.º 2 do artigo 609.º do CPC.” [negritos nossos]


    Verifica-se ter o acórdão recorrido seguido uma metodologia algo distinta daquela que propugnámos supra. Com efeito, abdicando de tentar formular, no caso concreto, um juízo de probabilidade consistente e séria do sucesso do recurso de apelação se este tivesse sido tempestivamente interposto e de um desfecho da acção favorável à ali ré (aqui A.), limitou-se o acórdão recorrido a admitir, num plano abstracto e, por isso, desligado das circunstâncias concretas da acção em causa, que o recurso teria uma probabilidade de sucesso de 50%; em consequência, socorreu-se desta mesma percentagem como critério para a fixação equitativa do quantum indemnizatório.

    Reafirme-se que não será este a via seguida, mas antes a de começar por averiguar da existência ou não de uma probabilidade, consistente e séria, de sucesso do recurso de apelação da sentença na acção n.º 1114/06.9TBMCN, assim como de um desfecho da acção favorável à ali ré (aqui A.). E, caso se venha a concluir afirmativamente, apreciar o quantum indemnizatório equitativamente fixado pela Relação.


10. Para proceder à apreciação da probabilidade, consistente e séria, de sucesso do recurso de apelação da sentença na acção n.º 1114/06.9TBMCN, importa considerar a fundamentação da sentença desfavorável à ali ré (aqui A.), assim como a viabilidade do recurso de apelação da mesma que não foi admitido por intempestividade.

    No que aqui importa, o teor da fundamentação da sentença desfavorável à ali ré (aqui A.) é o seguinte:

“2) Da nulidade/anulabilidade das deliberações efectivadas na Assembleia Geral de Sócios da Ré de 22 de Junho de 2006, quanto aos pontos 1, 2 e 3 da ordem de trabalhos e da excepção de caducidade.

Os autores invocam os seguintes vícios: (i) nulidade formal com fundamento em que os sócios DD e EE procuraram-se fazer-se acompanhar de advogada na assembleia geral, o que não foi permitido pelo Presidente da mesma, HH; (ii) nulidade ou anulabilidade substancial relativamente à falsidade dos motivos invocados para fundamentar a destituição da gerência dos autores e a sua exclusão como sócios.


*


A) Da nulidade formal

(…)

Em decorrência., inexistindo um ilícito societário, não se vislumbra uma causa susceptível de inquinar o procedimento da assembleia, pelo que náufraga de forma meridiana a nulidade formal alegada pelos Autores.


B) Da nulidade ou anulabilidade substancial relativamente à falsidade dos motivos invocados para fundamentar a destituição da gerência dos autores

Em convergência com o plasmado no art.º 257.º/1 e 2, do CSC, os sócios podem deliberar a todo o tempo a destituição dos gerentes, sendo que o contrato de sociedade pode exigir para a deliberação de destituição uma maioria qualificada ou outros requisitos; porém, se a destituição se fundar em justa causa, pode sempre ser deliberada por maioria simples.

Ademais, a cláusula do contrato de sociedade que atribui a um sócio um direito especial à gerência não pode ser alterada sem o consentimento do mesmo, sendo que os sócios podem deliberar que a sociedade requeira a suspensão e destituição judicial do gerente por justa causa (art.º 257.º/3).

Constituem justa causa de destituição, designadamente, a violação grave dos deveres de gerente e a sua incapacidade para o exercício normal das respectivas funções (art.º 257.º/6 do CSC).

Consagra-se, nestes termos o princípio geral da liberdade de destituição dos gerentes, como corolário do princípio da autonomia privada, o qual apenas é comprimido nas situações de direito especial à gerência, sendo que a justa causa apenas se afigura pertinente para efeitos meramente indemnizatórios (vd. António Menezes Cordeiro, ob. cit, II, p. 411 e ss. e Raul Ventura, Sociedades Por Quotas, vol. II, Almedina, p. 85 e ss.; cf. Acórdãos do STJ de 26.10.2010, proc. n.º 2703/05.4TBMGR.C1.S1 e do TRC de 19.10.2012, proc. n.º 757/10.0T2AVR-A.C1, in www.dgsi.pt ).

Positivando-se uma análise da problemática dos direitos especiais, estes configuram posições jurídicas qualificadas dos sócios, a título de direitos de participação, direitos de permanência ou direitos patrimoniais, com o cariz de intuitu personae e intransmissíveis (vd. António Menezes Cordeiro, ob. cit., I, p. 501 e ss.).

O direito especial à gerência estriba-se na permissão normativa do art.º 24.º/1, do CSC, o qual tem de se fundar numa previsão expressa do contrato de sociedade, de forma concludente, sendo que a simples designação de gerentes no contrato de sociedade não significa a atribuição dum direito especial à gerência (vd. Acórdãos do TRP de 25.10.2007, proc. n.º 0734156 e do TRC de 19.10.2012, proc. n.º 757/10.0T2AVR-A.C1, in www.dgsi.pt; cf. António Caeiro, Temas de Direito das Sociedades, Almedina, p. 363 e ss.).

Enfatize-se que o contrato de sociedade, ante a sua configuração a se stante, deve ser interpretado sob o crivo de cânones objectivos, derrogando-se, assim, a teoria da impressão do destinatário prevista no art.º 236.º, do Código Civil (vd. António Menezes Cordeiro, ob. cit., I, p. 405 e ss.).


*


Determinadas as coordenadas normativas para a subsunção do direito supra à factualidade sub judice, certifica-se, desde logo, que os Autores são sócios e eram gerentes da Ré à data da assembleia impugnada (vd. o registo comercial), sendo que, atesta-se, outrossim, que por escritura pública de doação e constituição de sociedade lavrada em trinta e um de Julho de mil novecentos e setenta e um, constituiu-se a sociedade “AA Filhos Limitada”, consignando-se, designadamente, que “ o capital social de mil contos é correspondente à soma das quotas dos sócios, que são: uma de cento e noventa mil escudos do sócio DD e seis de cento e trinta e cinco mil escudos, uma de cada um dos restantes sócios, FF, GG, EE, HH, II e JJ (…) “, que “(…) a gerência da sociedade fica a cargo de todos os sócios” e que “(…) as funções destes gerentes subsistirão até expressa revogação do mandato por deliberação da assembleia geral que, para este efeito, só poderá deliberar por acordo dos sócios que reúna, pelo menos, sessenta e sete e meio por cento do capital social”.

Efectivando-se uma interpretação das referenciadas cláusulas, à luz de postulados hermenêuticos objectivos, infere-se de forma linear que o pacto social constitutivo da Ré outorgou aos Autores e demais sócios um cristalino direito especial à gerência, apenas revogável por deliberação da assembleia geral que, para este efeito, só poderá deliberar por acordo dos sócios que reúna, pelo menos, sessenta e sete e meio por cento do capital social.

Neste sentido, num plano, os Autores/Gerentes não poderiam ser livremente destituídos, noutra vertente, o seu mandato só poderia ser ab-rogado com maioria qualificada e, em última instância, a destituição por justa causa só poderia operar-se por via judicial (art.º 257.º/3 do CSC).

Em decorrência, na situação concreta, compulsando-se a acta da assembleia impugnada, desde logo se constata que a deliberação de destituição foi aprovada com os votos favoráveis de HH e FF, os quais perfaziam 55,87 % do capital social (vd. fls. 155-157), i.e., conclui-se que o requisito sine qua non consignado no pacto social para a revogação do mandato de gerência dos Autores (67,5 %) não foi perfectibilizado).

Consequentemente, soçobrando a maioria qualificada, infere-se que a destituição dos Autores/gerentes com fundamento em justa causa só poderia ser positivada por decisão judicial, pelo que a deliberação atinente ao ponto um da ordem de trabalhos postergou a norma imperativa plasmada no art.º 257.º/3 do CSC.

A predita deliberação afigura-se, assim, nula, por violação de uma norma imperativa (art.º 56.º/1, al. d) do CSC), sendo que a causa de nulidade é de conhecimento oficioso (art.º 286.º do CC), impondo-se a procedência do pedido.

Esta asserção prejudica, por inerência, o conhecimento quer da excepção de caducidade da acção de anulabilidade, a qual se prefiguraria improcedente à luz da data de envio da petição inicial, quer o conhecimento da sustentabilidade dos fundamentos da justa causa.


**


C) Da nulidade/anulabilidade da deliberação no sentido de intentar uma acção judicial para exclusão dos autores como sócios.

(…)

Na situação concreta, compulsando-se o teor da deliberação, conclui-se que a mesma se funda num acervo de factos imputados aos Autores, sendo, assim, minimamente fundamentada.

Concomitantemente, não se lobrigam circunstâncias passíveis de prefigurar um acto emulativo ou exclusivamente lesivo das posições dos Autores.

Em decorrência, falece a aplicação in casu da excepção de abuso de direito atinente à deliberação concernente ao ponto 2 da ordem de trabalhos.

Demanda-se, assim, a sucumbência da pretensão anulatória desta deliberação.


**



D) Da nulidade/anulabilidade do ponto três da ordem de trabalhos

Os autores peticionaram a declaração de nulidade ou anulação da deliberação referente ao ponto três da ordem de trabalhos da vertente assembleia, atinente à decisão de intentar acções civis e criminais contra os mesmos.

(…)

Postula-se, assim, o naufrágio do pedido anulatório desta deliberação.


***


V.

DISPOSITIVO

Pelo supra exposto, decide-se julgar a acção parcialmente procedente e consequentemente:

A) Declara-se a nulidade da deliberação de destituição dos Autores DD e EE a título de gerentes da Ré AA e FILHOS, LDA, proferida na Assembleia Geral de Sócios realizada em 22 de Junho de 2006;

B) Absolve-se a Ré AA e FILHOS, LDA do demais peticionado. (…)” - cfr. alínea J) dos factos assentes.” [negritos nossos]


   Da fundamentação da sentença resulta que a declaração de nulidade da deliberação social de destituição dos sócios-gerentes, DD e EE, proferida na Assembleia Geral de Sócios de 22/06/2006, assentou na subsunção do caso daqueles autos à previsão do nº 3, do art. 257º, do Código das Sociedades Comerciais (e não ao nº 2 deste mesmo artigo).

   Para melhor compreender aquilo que está em causa, vejamos o teor dos nºs 1 e a 3 deste artigo 257º do CSC:

“1 - Os sócios podem deliberar a todo o tempo a destituição de gerentes.

2 - O contrato de sociedade pode exigir para a deliberação de destituição uma maioria qualificada ou outros requisitos; se, porém, a destituição se fundar em justa causa, pode ser sempre deliberada por maioria simples.

3 - A cláusula do contrato de sociedade que atribui a um sócio um direito especial à gerência não pode ser alterada sem consentimento do mesmo sócio. Podem, todavia, os sócios deliberar que a sociedade requeira a suspensão e destituição judicial do gerente por justa causa e designar para tanto um representante especial.

(…)”


    A sentença da acção n.º 1114/06.9TBMCN, que declarou nula a deliberação social de destituição dos dois sócios-gerentes por justa causa, entendeu que:

- Dispondo o pacto social que “(…) a gerência da sociedade fica a cargo de todos os sócios” tal deve ser interpretado no sentido de ter sido consagrado um direito especial à gerência de todos e cada um dos sócios, incluindo os dois sócios-gerentes destituídos (autores na referida acção);

- Deste modo, o regime legal aplicável será o do nº 3, do art. 257º, do CSC, no qual se prevê a possibilidade de deliberação social que determine que a sociedade requeira a destituição por justa causa dos gerentes, a qual, porém, apenas pode ser efectivada por via judicial;

- Quanto à destituição sem justa causa, prevendo o pacto social que“(…) as funções destes gerentes subsistirão até expressa revogação do mandato por deliberação da assembleia geral que, para este efeito, só poderá deliberar por acordo dos sócios que reúna, pelo menos, sessenta e sete e meio por cento do capital social e tendo deliberação social sido tomada por apenas 55,87% do capital social, não foi respeitada a exigência de maioria qualificada.


     Vejamos agora em que termos o recurso de apelação da sentença, interposto fora de prazo, impugnava aquela decisão (facto provado 12º):

“ALEGAÇÕES

AA, Lda., Ré nos autos supra identificados, não se conformando com a sentença proferida a final (com a referência 1977957), vem da mesma interpor recurso para o Tribunal da Relação do Porto.

O recurso é de apelação, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, nos termos dos artigos 691.º, n.º 1, 691.º-A, n.º 1, alínea a), e 692.º do Código de Processo Civil.

(…)

ALEGAÇÕES de AA, Lda.:

Exmos. Senhores Desembargadores

O presente recurso tem por objecto tão-somente a alínea B) do Ponto 2 do Título V da sentença, com a epígrafe “Da nulidade ou anulabilidade substancial relativamente à falsidade dos motivos invocados para fundamentar a destituição da gerência dos autores”, na qual se declarou a nulidade, por violação da norma imperativa do artigo 56.º, n.º 1, alínea d), do Código das Sociedades Comerciais (C.S.C.), da deliberação de destituição dos Autores/Recorridos, constante do ponto 1 da ordem de trabalhos da assembleia geral de 22 de Junho de 2006.

Salvo o muito e devido respeito, tal decisão operou o que se considera ser uma incorrecta avaliação da prova produzida em juízo, extrapolando uma interpretação dos estatutos da sociedade sem qualquer suporte factual para a conclusão extraída.

Seremos breves.

I

Como ponto prévio – e para melhor delimitar a questão sub judice –, cumpre desde logo ter por assente que são hoje doutrina e jurisprudência uniformes que, face ao estatuído nos n.os 3 e 4 do artigo 257.º do C.S.C., a destituição do cargo de gerente de um sócio que goze de um direito especial à gerência apenas poderá ser requerida judicialmente, não podendo ser feita através de “mera” decisão da assembleia geral da sociedade.

A profusão de jurisprudência neste sentido é de tal volume que nos eximiremos de aqui a indicar ou transcrever.

O presente recurso não versa, portanto, sobre esta questão. Versa, outrossim, sobre a questão de saber se, no caso concreto, existe algum direito especial à gerência por partes dos sócios Autores/Recorridos nestes autos.

Salvo o devido respeito e melhor opinião em contrário, não existe, como adiante melhor se verá.

II

É da boa prática principiar o recurso pela indicação da matéria de facto provada em que a parte recorrente sustenta uma decisão em sentido diferente da proferida.

Ora, em bom rigor, para a questão de se saber se existe ou não um direito especial à gerência foi dado como provado, apenas e só, o facto do Ponto 1 do Título III. Fundamentação de Facto, nos termos seguintes:

1. Por escritura pública de doação e constituição de sociedade lavrada em trinta e um de Julho de mil novecentos e setenta e um constituiu-se a sociedade “AA Filhos, Limitada”, consignando-se, designadamente, que “o capital social de mil contos é correspondente à soma das quotas dos sócios, que são: uma de cento e noventa mil escudos do sócio DD e seis de cento e trinta e cinco mil escudos, uma de cada um dos restantes sócios, FF, HH, II e JJ (…)”, que “(…) a gerência da sociedade fica a cargo de todos os sócios” e que “(…) as funções destes gerentes subsistirão até expressa revogação do mandato por deliberação da assembleia geral que, para este efeito, só poderá deliberar por acordo dos sócios que reúna, pelo menos, sessenta e sete e meio por cento do capital social”.

Note-se que não se trata de uma mera opinião da Ré/Recorrente.

Compulsando o teor da referida alínea B) do Ponto 2 do Título V da sentença, pode-se constatar que foi este o único facto mencionado pelo Tribunal “a quo” como suporte factual para proferir a decisão em crise.

III

E não é de todo despiciendo o que se vem de dizer.

É que, no pacto social sob análise, não existe norma expressa e inequívoca onde tal direito especial à gerência seja concedido tal quale.

É que, em acréscimo e na ausência de cláusula expressa e inequívoca, para que o Tribunal possa declarar que existe um direito especial à gerência, é necessária a existência de factos que evidenciem que, no pacto social da Ré/Recorrente, está configurado inequivocamente a atribuição à sua pessoa de um direito especial à gerência, por parte dos outros sócios.

Desde logo, porque nestes casos, relembra-se, “a existência de um direito especial à gerência colhe-se por via interpretativa do pacto social” (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, 17/05/93, in www.dgsi.pt).

Ora: “Para se poder concluir que um sócio de uma sociedade tem o direito especial à gerência (…) não basta que seja nomeado, como os demais sócios, no pacto da sociedade, como sócio gerente, sendo antes, necessário, que se possa concluir do contexto social que os sócios quiseram atribuir-lhe esse direito especial” (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, 28/09/2000, in www.dgsi.pt) (destaque nosso).

Sendo que “(…) a mera nomeação, nos estatutos, de sócios como gerentes, não basta para que se possa falar em direito especial à gerência, exigindo-se cláusula expressa para que assim seja entendido, ou que, pelo menos, resulte inequivocamente do contrato, conforme entendimento perfilhado pela doutrina e jurisprudência” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, 28/06/2001, in www.dgsi.pt; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, 09/06/2002, in CJ, 2002, T. IV, págs. 174, 175 e RAÚL VENTURA, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais – Sociedade por Quotas, 1996, volume III, págs. 19 e 20) (sublinhado nosso).

Aliás, não fora tratar-se de uma nulidade (que pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal, portanto, por força do artigo 286.º do Código Civil) – e os Autores/Recorridos teriam que alegar e provar tais factos, o que, sintomaticamente, não fizeram.

Ou seja, o Tribunal “a quo” foi “descobrir” um direito especial à gerência que nem os próprios Autores/Recorridos, beneficiários desse putativo direito, se arrogam de ter…

A atribuição ou o reconhecimento da titularidade de um eventual direito especial à gerência não resulta de um automatismo interpretativo do pacto social, se essa atribuição não decorrer expressa e inequivocamente daquele.

Bem pelo contrário, quando esse direito especial à gerência não resulte expressa e inequivocamente do pacto social, impõe-se um atento esforço interpretativo baseado na análise e ponderação das circunstâncias que caracterizaram a real vontade dos sócios, aquando da elaboração do pacto.

Donde, para justificar o alegado direito especial à gerência dos Autores/Recorridos o Tribunal não pode limitar-se a enunciar um conjunto de “conceitos gerais e abstractos” sobre o que se entende ser o direito especial à gerência, e muito menos ignorar a fundamentação que está subjacente às decisões jurisprudenciais enunciadas, esquecendo-se de alegar as circunstâncias concretas em que as mesmas assentam.

No caso vertente, o Tribunal “a quo” omitiu por completo a referida análise.

Vejamos.

Compulsando o pacto social, em local algum se afirma expressamente, “preto no branco”, que os Autores/Recorridos, ou qualquer outro sócio, gozam de um direito especial à gerência, o que desde logo denunciaria a ausência de vontade dos sócios da Ré/Recorrente em atribuir aos Autores/Recorridos o direito especial à gerência.

À míngua de menção expressa, de que indícios lança mão, então, o Tribunal “a quo” para declarar o direito especial à gerência?

Na verdade, de apenas um “indício”: o § 2.º do artigo 5.º do contrato de sociedade, que estipula que “as funções destes gerentes subsistirão até expressa revogação do mandato por deliberação da assembleia geral que, para este efeito, só poderá deliberar por acordo dos sócios que reúna, pelo menos, 67,5 por cento do capital social”.

Acontece que este § 2.º tem de ser lido em conjugação com o corpo do artigo 5.º, o qual por sua vez estipula que a gerência fica a cargo de todos os sócios.

Consequentemente, não existe qualquer direito especial, existe tão-somente uma regra que regula a destituição da gerência de qualquer um dos gerentes.

O direito, para ser especial, só pode ser atribuído a algum ou alguns dos sócios e não a todos, pois tornar-se-ia geral (PAULO OLAVO CUNHA, Os direitos especiais nas sociedades anónimas: as acções privilegiadas, pág. 21).

Nessa linha, “o direito à gerência estatutariamente conferido a um dos sócios não é um direito especial, se tal direito foi pelo pacto social atribuído indiscriminadamente a todos os sócios” (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, 17/05/93, in www.dgsi.pt).

E ainda: “a circunstância de terem sido nomeados gerentes todos os sócios da apelada e não apenas o ora apelante, afasta, desde logo, a concessão de um direito especial à gerência a todos ou algum deles” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08/02/79, BMJ n.º 294, 230; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23/01/96, CJ, 1996, 1ª, pág. 101; Pinto Furtado, Código Comercial Anotado, vol. 1º, págs. 516 e segs.)

Como se sabe, não é nem pode ser “especial” o que é “geral”! José Mourinho não seria o “the special one” se a generalidade dos treinadores de futebol fossem como ele e tivessem obtido os galardões competitivos que o mesmo obteve…

Para além deste “indício” (que na realidade não o é, como vimos), o Tribunal “a quo” não analisou qualquer outro circunstancialismo.

Para que se pudesse concluir pela existência de um direito especial à gerência, conforme reclama o Tribunal “a quo”, tal direito teria que resultar “(…) de circunstâncias interpretativas em ligação com a constituição da sociedade” (RAÚL VENTURA, Direitos Especiais dos Sócios – Parecer, em P Direito, ano 121º, Jan/Março de 1989, pág. 218).

Onde estão elas?

IV

Aliás, em sentido oposto, existem mesmo circunstâncias que ditam que, a ter porventura existido um direito especial à gerência, tal direito teria sido conferido originalmente aos sócios DD e GG, tendo sido extinguido com a alteração estatutária introduzida pela escritura pública de 26 de Dezembro de 1974.

Na sua redacção inicial, o corpo do artigo 5.º do contrato de sociedade prévia que “a gerência da sociedade (…) fica a cargo de todos os sócios, mas para a sociedade se obrigar é suficiente e necessária a assinatura dos sócios DD e GG”.

Face aos poderes especificamente concedidos a estes dois sócios, seria legítimo concluir que os restantes sócios teriam querido atribuir-lhes um direito especial à gerência, ao permitir-lhes a capacidade de, sozinhos, em conjunto um com o outro, vincularem a sociedade perante terceiros, sem intervenção dos restantes.

Todavia, com a alteração estatutária acima mencionada, a expressão “para a sociedade se obrigar é suficiente e necessária a assinatura dos sócios DD e GG” da parte final do corpo do artigo 5.º foi substituída pela redacção “para a sociedade se obrigar é suficiente e necessária a assinatura de dois gerentes”.

Salta à evidência que, com a mudança de redacção, a ter existido um direito especial à gerência dos dois sócios indicados, tal direito foi extinto por vontade expressa dos sócios, passando todos eles a agir em pé de igualdade.

Logo, quando foi proferida a deliberação sub judice, já não subsistia qualquer direito especial à gerência.

Como bem se compreenderá, analisando o “contexto social”, resulta evidente que ninguém altera tal cláusula importante do contrato social, na prática diminuindo a importância de uns gerentes face aos demais, para, afinal, se manter a especialidade dos mesmos.

E, mais, no transe (se fosse de admitir a tese do Tribunal “a quo”), “abrindo” tal eventual especialidade da gerência que dantes estava circunscrita a dois dos gerentes a todos os presentes gerentes e aos futuros!

V

Acresce que, mesmo que se aceitasse – por mera hipótese académica, que não se concede – que houve uma análise do circunstancialismo que levou à criação do direito especial à gerência, tal análise não foi concludente, com o necessário grau de certeza.

Longe disso: de tão superficial, a análise não foi suficiente para dissipar integralmente quaisquer dúvidas de um intérprete razoável.

Assim, têm aqui inteira propriedade e aplicação as palavras de Alberto Caeiro: “em caso de dúvida, será de afastar o direito especial à gerência” (A. CAEIRO, RDES, XIII, págs. 82 e segs.).

VI

Por último, o Tribunal “a quo” (ao pretender “arrumar” de forma expedita este assunto…), ao declarar um direito especial à gerência com base, apenas e só, na existência de uma maioria qualificada para a destituição de gerentes, acabou por ficar preso numa armadilha intelectual da qual não consegue sair: esvaziou completamente de sentido o n.º 2 do artigo 257.º do C.S.C….!

Reza tal preceito: “o contrato de sociedade pode exigir para a deliberação de destituição uma maioria qualificada ou outros requisitos; se, porém, a destituição se fundar em justa causa, pode ser sempre deliberada por maioria simples”.

Este artigo 257.º é uma norma imperativa que não pode ser afastada por vontade das partes.

Ora, se a circunstância única para haver direito especial à gerência é a exigência de maioria qualificada para a destituição de gerentes, então nunca pode funcionar a parte final do artigo porque é sempre necessária acção judicial…

Note-se que o sistema que o legislador previu é o seguinte;

a) Havendo direito especial à gerência, a destituição, mesmo com justa causa, só é possível mediante o recurso aos tribunais;

b) Não havendo direito especial à gerência, a destituição é possível ou por maioria simples ou por maioria qualificada se assim tiver sido previsto no pacto social;

c) No caso de ser fundada em justa causa, a destituição pode ser sempre deliberada por maioria simples.

Ou seja, se (como defende o Tribunal “a quo”) a decisão dos sócios, em pacto social, de conferir uma maioria qualificada para a deliberação de destituição da gerência – de acordo com a possibilidade aberta pela lei – é interpretada como sendo suficiente para atribuir um direito especial à gerência (para mais, a todos os gerentes indiscriminadamente), então, assiste-se a uma entorse dos fins últimos do artigo 257.º, n.º 2, e de todo o sistema construído pelo legislador.

Assiste-se a uma entorse, pois este artigo visa conferir aos sócios a possibilidade de tornar mais difícil uma destituição sem justa causa, tendo o legislador tido o cuidado de avisar que, tal exigência qualificada, não seria aplicável nos casos de destituição com justa causa, precisamente para evitar abusos.

Ora, esta disposição confere sim uma especialidade à deliberação de destituição (a exigência de maioria qualificada) mas não confere uma especialidade à gerência.

Caso contrário, depressa cairíamos numa situação em que, cada vez que houvesse sócios a prever nos estatutos – no seguimento, aliás, do direito que a lei lhes confere - uma maioria qualificada para destituição com justa causa de gerentes, lhes estariam, encapotada e inadvertidamente, a conferir um direito especial à gerência…

Aparece, assim, em toda a sua espectacularidade a armadilha intelectual circular onde caiu o Tribunal “a quo”: não se pode utilizar uma consequência que o legislador previu para os casos onde não há direito especial à gerência (a possibilidade de haver destituição por maioria qualificada), para – circularmente – usá-la para caracterizar a premissa dada pelo legislador para outra solução (a destituição judicial)!

VII

Na falência do direito especial à gerência erradamente atribuído aos Autores/Recorridos, ao contrário do que vem na sentença ora em crise (“consequentemente, soçobrando a maioria qualificada, infere-se que a destituição dos Autores/gerentes com fundamento em justa causa só poderia ser positivada por decisão judicial, pelo que a deliberação atinente ao ponto 1. Da ordem de trabalhos, postergou a norma imperativa plasmada no artigo 257º/3 do CSC.”, págs. 60 sublinhado nosso), a sua destituição por justa causa não tem de ser deliberada por acordo dos sócios que reúna, pelo menos, 67,5% (sessenta e sete e meio por cento) do capital social.

Não havendo direito especial à gerência, a destituição dos gerentes não é regulada pelos n.os 3 e 4 do artigo 257.º do C.S.C., mas antes pelo n.º 2 do mesmo preceito legal, acima transcrito.

De forma telegráfica, o regime do n.º 2 é o seguinte: se a destituição não se fundar em justa causa, só pode ser aprovada por maioria qualificada; se se fundar em justa causa, basta maioria simples.

É este, precisamente o caso dos autos.

Não obstante a maioria exigida no § 2.º do artigo 5.º do contrato de sociedade, a mera leitura atenta da deliberação e da proposta que lhe deu origem (a qual foi apensada à respectiva acta) é suficiente para se concluir imediatamente que se está perante uma destituição invocando a existência de justa causa, devidamente fundamentada para o efeito.

Assim, em termos formais, não ocorreu a violação deste preceito, nem se verifica, consequentemente, a nulidade decorrente da violação da norma imperativa constante do artigo 56.º, n.º 1, alínea d), do C.S.C..

Tal nulidade só poderá ser declarada após aferimento pelo Tribunal do teor concreto da deliberação em apreço, nomeadamente da comprovação da veracidade da factualidade a ele subjacente.

Isto é, tendo sido preenchidos pela sociedade os requisitos formais de lei para a destituição com justa causa dos Autores/Recorridos, o Tribunal apenas poderia ter declarado a nulidade da deliberação em duas situações: (i) caso a factualidade alegada pela sociedade não viesse a ser provada em juízo ou (ii) caso tal factualidade, sendo embora verdadeira, não integrasse o conceito de justa causa.

CONCLUSÕES

1. Não houve qualquer violação do artigo da norma imperativa do artigo 56.º, n.º 1, alínea d), do Código das Sociedades Comerciais, pelo que a deliberação de destituição dos gerentes com justa causa é formalmente válida.

2. Para o Tribunal poder declarar que existe um direito especial à gerência é necessário que a sua atribuição conste expressamente do pacto social ou, na sua ausência, é necessária a análise e ponderação das circunstâncias que caracterizaram a real vontade dos sócios, aquando da elaboração do pacto.

3. O Tribunal “a quo” não efectuou esta análise, estribando a sua decisão num único facto constante do Ponto 1 da matéria de facto dada como provada, que consiste meramente na previsão de uma maioria qualificada para a destituição dos gerentes, o que é manifestamente insuficiente.

4. Uma vez que todos os sócios são gerentes, a maioria qualificada para destituição de qualquer um deles não confere um direito especial – um direito especial só pode ser atribuído a algum ou alguns dos sócios e não a todos, pois tornar-se-ia geral.

5. A estatuição pactuada da exigência de maioria qualificada para destituição de gerentes sem justa causa confere uma especialidade à deliberação de destituição, mas não confere uma especialidade à função de gerência.

6. Inexistem quaisquer indícios da atribuição do direito à gerência aos Autores/Recorridos, sendo sintomático que estes nem sequer se arrogaram de lhes ter sido atribuído o mesmo.

7. A ter existido um direito especial à gerência, terá sido conferido originalmente aos sócios DD e GG, tendo sido extinguido com a alteração estatutária introduzida pela escritura pública de 26 de Dezembro de 1974, pelo que já não subsistia quando foi proferida a deliberação sub judice.

8. Mesmo que se aceitasse – por mera hipótese académica, que não se concede – que houve uma análise do circunstancialismo que levou à criação do direito especial à gerência, tal análise não foi concludente, pelo que, em caso de dúvida, será de afastar o direito especial à gerência.

9. A declaração pelo Tribunal “a quo” de um direito especial à gerência dos Autores/Recorridos com base unicamente no estabelecimento de uma maioria qualificada para a destituição dos gerentes é baseada num vício de raciocínio circular, porquanto esvazia completamente de sentido o n.º 2 do artigo 257.º do C.S.C., maxime a sua parte final.

10. Pelo exposto, para a destituição dos Autores/Recorridos, fundada aliás em justa causa, não era pois necessário a instauração de acção judicial para o efeito, podendo ser a mesma validamente deliberada pelos sócios por maioria simples, nos termos do artigo 257.º, n.º 2, do C.S.C..

Termos em que, revogando-se a decisão do Tribunal de 1.ª Instância e proferindo nova em conformidade com o supra alegado” [negritos nossos]


    As questões de direito em causa no recurso eram as seguintes: os sócios destituídos tinham ou não um direito especial à gerência? Caso se concluísse negativamente, seria aplicável ao caso o regime do nº 2, do art. 257º, do CSC, que permite a destituição por justa causa por maioria simples?

   As respostas a ambas as questões afiguram-se relativamente simples, encontrando-se as respectivas soluções devidamente sustentadas nas alegações de recurso transcritas:

- Prevendo o pacto social da sociedade AA, Lda. que todos os sócios fossem gerentes da sociedade, não foi consagrado qualquer direito especial de cada um dos sócios à gerência;

- Assim, sendo, seria aplicável à deliberação de destituição dos dois sócios-gerentes, o regime do nº 2, do art. 257º, do CSC (e não o regime do nº 3, do mesmo artigo, como entendeu a sentença) pelo que os gerentes podiam ser destituídos por justa causa por maioria simples, como foi o caso.


     Aqui chegados, podemos concluir que, se o recurso de apelação tivesse sido interposto dentro do prazo, a resolução destas questões de direito teria elevadas hipóteses de ter sido realizada em sentido favorável à sociedade, ali ré (e aqui A.).

     Tal não basta, porém, para dar como provada a probabilidade séria e consistente de desfecho da acção em sentido favorável à ali ré (aqui A.). Como se declara nas próprias alegações do recurso de apelação intempestivamente interposto, supra transcritas: “tendo sido preenchidos pela sociedade os requisitos formais de lei para a destituição com justa causa dos Autores/Recorridos, o Tribunal apenas poderia ter declarado a nulidade da deliberação em duas situações: (i) caso a factualidade alegada pela sociedade não viesse a ser provada em juízo ou (ii) caso tal factualidade, sendo embora verdadeira, não integrasse o conceito de justa causa.”

     Por outras palavras, ainda que o recurso de apelação tivesse sido interposto dentro do prazo e viesse a ser julgado procedente, tal não significaria, sem mais, que o desfecho da acção viesse a ser favorável à ali ré, (aqui A.). Seria ainda necessário que a sociedade fizesse prova dos factos alegados relativos à conduta dos sócios-gerentes destituídos e da sua integração no conceito legal de justa causa de destituição.

     Ora, tanto a extensa e complexa factualidade controvertida da acção nº 1114/06.9TBMCN (elencada na matéria de facto da presente acção), como a dificuldade inerente ao preenchimento do conceito legal de justa causa de destituição de gerente de sociedade por quotas, não permitem, nesta sede, dar como mais provável que o desfecho final do litígio viesse a ser num sentido ou no outro.  

     Considerando que o recurso de apelação, se atempadamente interposto, teria uma elevada probabilidade de sucesso, mas que a probabilidade de um desfecho da acção em sentido favorável à ali ré (aqui A.) seria bastante menor, admite-se, ainda assim, que a chance de improcedência da acção se apresenta como suficiente para que a consistência da oportunidade perdida constitua uma posição favorável na esfera jurídica do lesado, cuja perda deve ser ressarcível.

      Assim sendo, e diversamente do invocado pela R. Recorrente - ao alegar não estarem provados os pressupostos do dano e do nexo de causalidade entre o facto e o dano - a assinalada perda de oportunidade corresponde a um dano da sociedade AA, Lda. (ali ré, e aqui A.), causado pela violação dos deveres inerentes ao contrato de mandato forense por parte do segurado da R. Recorrente, Dr. CC. Dano que consiste, precisamente, na perda de chance de sucesso do recurso de apelação e, consequentemente, da perda de chance de um desfecho do litígio em sentido favorável à mesma sociedade.

     Tal como foi equacionado pela A., a quantificação da perda de chance encontra-se conexionada com a elevada probabilidade de a mesma A. vir a ser condenada nas acções declarativas contra si interpostas pelos sócios-gerentes destituídos (factos provados 18º e 19º), nas quais os autores peticionam indemnizações pelas remunerações perdidas. E, na verdade, tendo sido declarada nula (na acção nº 1114/06.9TBMCN) a deliberação social de destituição dos sócios-gerentes (ali autores), configura-se como altamente provável que naquelas outras acções interpostas pelos gerentes destituídos venham estes a alcançar ganho de causa, sendo a aqui A. condenada a indemnizá-los em montante equivalente ao das remunerações que teriam auferido pelo exercício das funções de gerentes. Deve também ser tido em conta que a A. interpôs contra os mesmos sócios-gerentes acção especial de suspensão e destituição de titulares de órgãos sociais (acção nº 1678/12.8TBMCN – cfr. facto provado 19º), o que, se vier a obter ganho de causa, poderá vir a limitar o montante indemnizatório a que os sócios-gerentes terão direito.

     Precisamente por, no caso dos autos, o dano de perda de chance ter sido directamente relacionado com o resultado das acções pendentes, impõe-se mais uma precisão: se a Recorrente não tem razão ao pugnar pela falta de prova de quaisquer danos sofridos pela A., já se afigura tê-la (ao menos em parte) ao não se conformar com os termos da condenação da Relação (“condenando-se a Ré a pagar à autora a título de indemnização, pelo incumprimento do contrato de mandato, o montante que se fixa em 50% dos prejuízos que vierem a ser apurados ulteriormente”). Com efeito, a indeterminabilidade ínsita em tal decisão não é compatível com o respeito pelos limites da condenação genérica (cfr. art. 609º do CPC), o que terá de ser tido em conta, já de seguida, na concretização da indemnização.


11. Tratando-se de uma indemnização a fixar segundo critérios de equidade, e como este Supremo Tribunal repetidamente observou (cfr., entre outros, o acórdão de 28/10/2010 (proc. nº 272/06.7TBMTR.P1.S1), em parte por remissão para o acórdão de 05/11/2009 (proc. nº 381/2002.S1), ambos consultáveis em www.dgsi.pt):

“a aplicação de puros juízos de equidade não traduz, em bom rigor, a resolução de uma «questão de direito»”; se o Supremo Tribunal da Justiça é chamado a pronunciar-se sobre “o cálculo da indemnização” que “haja assentado decisivamente em juízos de equidade”, não lhe “compete a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar (…), mas tão somente a verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo, formulado pelas instâncias face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto «sub iudicio”.[negritos nossos]


Na ausência de um critério suficientemente densificado adoptado pelo acórdão recorrido, afigura-se que a apreciação das circunstâncias do caso concreto relativas à acção nº 1114/06.9TBMCN e das respectivas hipóteses de desfecho favorável à A. (cfr. ponto 10 do presente acórdão), permite suprir essa falta de densificação, devendo a indemnização a atribuir à A. ser fixada em montante correspondente a 50% dos prejuízos que vierem a ser apurados ulteriormente em função do resultado das acções indicadas nos factos 18º, 19º e 20º, até ao limite do valor do capital seguro pela R. (€ 150.000,00).


12. Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, condenando-se a R. BB - Seguros, S.A.. a pagar à A. AA, filhos, Lda. montante indemnizatório correspondente a 50% dos prejuízos que vierem a ser apurados ulteriormente em função do resultado das acções indicadas nos factos provados 18º, 19º e 20º, até ao limite do valor do capital seguro pela R.: € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros).


Custas pela Recorrente e pela Recorrida na proporção de 4/5 e de 1/5, respectivamente.


Lisboa, 5 de Julho de 2018


Maria da Graça Trigo (Relatora)

Maria Rosa Tching

Rosa Maria Ribeiro Coelho