Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
164/10.5TBCUB.E1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: REGIME DE BENS DO CASAMENTO
COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS
UTILIZAÇÃO DO BEM
POSSE E USUCAPIÃO
REDUÇÃO DO PEDIDO EM SEDE DE RECURSO
PROPRIEDADE-CONTITULARIDADE
Data do Acordão: 12/10/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITOS REAIS / POSSE / DIREITO DA PROPRIEDADE / COMPROPRIEDADE - DIREITO DA FAMÍLIA / CASAMENTO / EFEITOS DO CASAMENTO QUANTO AOS BENS DOS CÔNJUGES.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO / INSTÂNCIA / PEDIDO - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1251.º, 1252.º, N.º 1, 1253.º, 1406.º, N.º2, 1678.º, N.º 2, ALS. F) E G), 1714.º, 1722.º, N.º 1, AL. A).
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 264.º, N.º2, 265º, Nº 2, 1ª PARTE, 671.º, N.º3, 672.º, N.º3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 11-2-15, EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
1. Formulado o pedido de reconhecimento do direito de propriedade de um imóvel, o posterior pedido de reconhecimento da contitularidade do mesmo direito representa uma redução do pedido que é admitida pelo art. 264º, nº 2, do CPC.

2. No regime de comunhão de adquiridos constitui bem próprio do cônjuge o prédio urbano por ele adquirido por contrato de compra e venda outorgado antes do casamento.

3. Essa qualificação não é alterada pelo facto de na data da aquisição o cônjuge adquirente já viver em união de facto com o outro cônjuge e de o respectivo preço ter sido pago com dinheiro por ambos auferido.

4. A circunstância de terem sido realizadas obras no prédio cujo custo foi suportado por ambos os cônjuges e de o prédio ter passado a ser utilizado como local de residência do outro cônjuge e filhos comuns não qualifica o cônjuge não adquirente como possuidor para efeitos de invocação da contitularidade do prédio por via da usucapião.

Decisão Texto Integral:

I - AA intentou contra BB acção declarativa sob a forma ordinária, pedindo que se reconheça que a A. adquiriu, por usucapião, o direito de propriedade sobre um prédio urbano e se ordene o cancelamento do registo predial.

Alegou para o efeito que, embora o referido prédio tenha sido adquirido formalmente pelo R., seu marido, antes de ter sido celebrado o casamento, ambos comparticiparam para o pagamento do preço e é a A. que desde 1998 exerce sobre o mesmo a posse pública, pacífica e de boa fé conducente à aquisição por usucapião.

O R. foi citado editalmente e não apresentou contestação.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida a sentença que julgou a acção totalmente improcedente e absolveu o R. dos pedidos.

A A. apelou pretendendo que se reconheça a aquisição do direito de propriedade em comum e sem determinação de parte com o R., mas a Relação confirmou a sentença.

A A. interpôs recurso de revista excepcional em que suscita essencialmente a seguinte questão:

Numa acção em que foi formulado o pedido de reconhecimento do direito de propriedade adquirido por usucapião é legítimo pedir, em sede de apelação, o reconhecimento da contitularidade do mesmo direito com o mesmo fundamento?

Não houve contra-alegações.

Cumpre decidir.


II – Factos provados:

1. Por doc. titulado “Contrato-Promessa de Compra e Venda”, datado de 31-1-90, CC e mulher DD, prometeram vender ao R. BB, livre de encargos ou quaisquer outras responsabilidades, o prédio urbano situado na R. do …, freguesia e concelho de Alvito, inscrito na respectiva matriz sob o art. … e descrito na CRP de Cuba sob o nº …20 e fls. 87 do livro B-45, pelo preço de um 1.000.000$00 – A);

2. Mais declararam no referido documento:

Que nesta data os primeiros contratantes receberam do segundo, a título de sinal e como princípio de pagamento a quantia de 300.000$00, de que dão quitação.

Na data da realização da escritura de compra e venda, que será outorgada e realizada em Dezembro, o segundo outorgante dará o restante, no montante de 250.000$00, e até essa data irá pagar mensalmente a importância de 50.000$00, com início em Abril próximo” – cfr. doc. de fls. 21. – B);

3. Por escritura pública lavrada no Cartório Notarial do Alvito, no dia 13-12-90, CC e mulher DD, declararam vender ao R. BB, que declarou aceitar, o prédio urbano referido em 1., pelo preço de um 1.000.000$00, do qual deram quitação – C)

4. Através da Ap. 10/17.12.90 mostra-se inscrita a favor do R. a aquisição do prédio urbano descrito sob o nº …92/…90 referido em 3. – D)

5. A A. e o R. contraíram casamento no dia 28-12-90, sem convenção antenupcial (doc. fls. 30) – E);

6. Através da Ap. 07/07.01.91 foi averbado que o R. BB é casado com a A. AA – F);

7. A compra do imóvel foi acordada entre o seu anterior dono e a ora A. e o R., mas o dinheiro utilizado no pagamento do preço relativo ao imóvel descrito em 3. proveio das remunerações auferidas pela A. e pelo R. – 2º e 3º;

8. A A. e o R. foram emigrantes na Suíça, onde viviam na mesma casa, dormiam na mesma cama, tomavam as refeições juntos e suportavam as despesas conjuntamente com os rendimentos que obtinham como contrapartida das respectivas actividades profissionais – 1º;

9. No imóvel descrito em 3. foram realizadas diversas obras, cujos custos foram suportados por A. e R., com dinheiros provenientes dos seus trabalhos – 4º;

10. Em 1998 a A. regressou a Portugal acompanhada dos seus filhos e pelo menos desde 1998 que a A. mora no imóvel referido em 3., nele dormindo, confeccionando a tomando as suas refeições, recebendo correspondência e as pessoas amigas, à vista de todos e sem qualquer oposição – 5º, 6º e 7º.


III – Decidindo:

1. A A. começou por formular o pedido de reconhecimento do direito de propriedade de um prédio urbano alegadamente adquirido por usucapião.

Tal pretensão foi rejeitada na 1ª instância, com fundamento na falta do elemento subjectivo da posse (“animus”) relativamente ao direito de propriedade e ainda no facto de o uso de coisa comum por algum dos contitulares apenas determinar a posse exclusiva nos casos em que haja inversão do título de posse, nos termos do art. 1406º, nº 2, do CC.

Dessa sentença a A. interpôs recurso de apelação, no âmbito do qual pediu que fosse reconhecida como contitular do direito de propriedade, sem determinação de parte, em conjunto com o R., seu marido, modificação que a Relação rejeitou, julgando improcedente a apelação.

Inconformada com tal acórdão, a A. insiste perante este Supremo Tribunal de Justiça no reconhecimento da contitularidade do direito de propriedade sobre o prédio urbano.


2. O recurso foi admitido como revista excepcional no pressuposto da verificação de contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 11-2-15, relatado pelo ora relator e subscrito também pelo primeiro adjunto.

Embora nada obste à apreciação do mérito do recurso, não podemos deixar de observar que tendo as instâncias utilizado fundamentação substancialmente diversa, sempre seria admissível o recurso de revista nos termos normais, atento o disposto no art. 671º, nº 3, do CPC. Com efeito, enquanto a 1ª instância julgou a acção improcedente com fundamento na falta de verificação dos pressupostos materiais da usucapião, a Relação baseou-se unicamente num argumento de ordem formal atinente à inadmissibilidade da alteração do pedido. Por conseguinte, não se verificava efectivamente uma situação de dupla conforme.


3. Independentemente da voa que foi ou deveria ter sido seguida, cumpre a este Supremo dar resposta dentro das suas funções de tribunal de revista relativamente a uma matéria de facto que pode sintetizar-se da seguinte forma:

- Em 1990 foi celebrada escritura de compra e venda de um imóvel com intervenção do R. que, na ocasião, ainda não era casado com a A.;

- A aquisição do imóvel tenha sido acordada entre o seu anterior dono e a A. e o R. e o dinheiro utilizado no pagamento do preço proveio das remunerações auferidas pela A. e pelo R.

- O casamento da A. e do R. veio a ser formalizado 15 dias após a outorga da escritura pública de compra e venda;

- No imóvel foram realizadas diversas obras, cujos custos foram suportados por A. e R., com dinheiros provenientes dos seus trabalhos.

- Em 1998 a A. regressou a Portugal acompanhada dos seus filhos, fazendo do prédio a sua habitação, à vista de todos e sem qualquer oposição.


4. Da sentença da primeira instância é possível aproveitar o argumento de que à pretensão inicial da A. faltariam os elementos típicos da usucapião, com destaque para o elemento subjectivo, atenta a falta de alegação e de prova da intenção da A. de agir relativamente ao imóvel como exclusiva proprietária ou mesmo contitular. Já nenhum préstimo se encontra no argumento que se pretendeu extrair do art. 1406º, nº 2, do CC, que apenas poderia ser invocado se acaso a A. pretendesse transformar uma situação de compropriedade ou de contitularidade formalmente adquirida por ambos os cônjuges, numa situação de propriedade exclusiva, circunstâncias que de modo algum se verificavam.

Relativamente à opção assumida pela Relação, não deixa de ser alvo de crítica, uma vez que seguiu uma via puramente formal, que nem sequer foi debatida nos autos, em lugar de proceder a uma verdadeira apreciação do mérito da sentença recorrida. Aliás, contra o afirmado no acórdão recorrido, não havia motivo de ordem formal que obstasse à apreciação do mérito da pretensão deduzida pela A. no âmbito do recurso de apelação: o reconhecimento da contitularidade do direito de propriedade.

Sem curar por agora da falta de sustentação material de tal pretensão, a modificação operada pela A. corresponde apenas a uma operação de redução do pedido, a qual é admissível em qualquer altura, nos termos do art. 265º, nº 2, 1ª parte, do CPC. Mesmo que porventura não tivesse sido suscitada tal redução, nada obstaria a que o efeito pretendido fosse declarado oficiosamente pelo tribunal, se acaso houvesse fundamento para reconhecer o direito invocado pela A.

Assim foi decidido, relativamente a uma situação com contornos semelhantes, no Ac. do STJ, de 11-2-15 (www.dgsi.pt), com o mesmo relator e primeiro adjunto deste acórdão, que, aliás, serviu de sustentação à admissão da revista excepcional pela formação referida no nº 3 do art. 672º do CPC.

Nessa acção fora formulado o pedido de reconhecimento da titularidade exclusiva de um muro divisório de dois prédios. Apesar disso, este Supremo Tribunal, apreciando o mérito da causa, reconheceu ao A. a contitularidade do direito sobre o muro.

Segundo o sumário de tal aresto:


1. O princípio do dispositivo impede que o tribunal decida para além ou diversamente do que foi pedido, mas não obsta a que profira decisão que se inscreva no âmbito da pretensão formulada.

2. Pedindo os AA. o reconhecimento do direito de propriedade de um muro que delimita os quintais de dois prédios urbanos confinantes, não constitui excesso de pronúncia, nem fere o princípio do dispositivo a decisão judicial que, com fundamento na presunção legal do art. 1371º, nº 2, do CC, reconhece que o muro é compropriedade de ambas as partes.

3. Considerando que ao R. foi conferida a possibilidade de se defender, sem exclusão sequer da possibilidade de ilidir a presunção legal de comunhão prevista no art. 1371º, nº 2, do CC, a decisão que reconheceu a situação de compropriedade relativamente ao muro divisório não traduz a violação do princípio do contraditório”.


Para o efeito considerou-se na fundamentação de tal aresto, além do mais, que:

“…

2.2. Atravessando todo o CPC e disperso por várias normas, o princípio do dispositivo encontra no art. 3º a sua consagração inequívoca. Manifesta-se, além do mais, através da consagração do ónus de iniciativa processual e de conformação do objecto do processo, através da enunciação do pedido que delimita objectivamente o âmbito decisório do tribunal, nos termos do art. 609º, nº 1 (cfr. sobre a matéria Miguel Mesquita, “A flexibilização do princípio do pedido à luz do moderno CPC”, na RLJ, ano 143º, págs. 134 e segs.).

Sem embargo de eventuais modificações, a necessidade de formulação do pedido é concretizada no art. 552º, nº 1, al. e), cumprindo aos arts. 609º e 615º, nº 1, al. e), respectivamente, a função de delimitação do poder decisório do tribunal e o sancionamento da sua violação. Ou seja, o tribunal está impedido de se sobrepor à vontade manifestada pelo autor, sob pena de nulidade da sentença, por excesso de pronúncia.

Contudo, tal como ocorre com outros preceitos do CPC, também o art. 609º, nº 1, carece de um esforço interpretativo, contando, além do mais, com os contributos de diversos Assentos e Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência do STJ.

Entre tais arestos, destaca-se o Assento nº 4/95, in D.R. de 17-5, ao admitir que numa acção em que seja deduzida uma pretensão fundada num contrato cuja nulidade seja oficiosamente decretada o réu seja condenado a restituir o que tenha recebido no âmbito desse contrato, por aplicação do art. 289º do CC, desde que do processo constem os factos suficientes.

A conjugação entre o princípio do dispositivo e os limites do pedido encontra também largo desenvolvimento na fundamentação do ACUJ nº 13/96, in D.R., I Série, de 26-11, ainda que no caso se tenha vedado ao tribunal a actualização oficiosa da quantia peticionada.

Outro importante elemento auxiliar da interpretação emerge do ACUJ nº 3/01, in D.R., I Série-A, de 9-2, que firmou a jurisprudência segundo a qual numa acção de impugnação pauliana em que tenha sido erradamente formulado o pedido de declaração de nulidade ou de anulação do acto jurídico impugnado o juiz deve corrigir oficiosamente esse erro e declarar a ineficácia que emerge do direito substantivo.

Assim, embora não possa questionar-se que, em regra, é ao autor que cabe a iniciativa processual e a delimitação da providência requerida (Ac. do STJ, de 4-2-93, BMJ 424º/568), a solução do caso concreto exige que se pondere o que dimana de arestos com a solenidade e com o valor persuasivo inerentes aos mencionados acórdãos de uniformização de jurisprudência.

Na integração do caso não podem ainda descurar-se os objectivos apontados pelas sucessivas reformas processuais, designadamente quando delas emerge a sobreposição de aspectos de ordem material a outros de ordem formal, ou a necessidade de atribuir ao processo a necessária eficácia que permita alcançar uma efectiva e célere resolução de litígios.

Importa ponderar também o que emana da doutrina que, fazendo coro com os referidos objectivos, aponta para a flexibilização do princípio do pedido, como é defendido por Miguel Mesquita, em anotação a um aresto sobre direitos reais, na RLJ, ano 143º, págs. 134 e segs. intitulada precisamente “A flexibilização do princípio do pedido à luz do moderno CPC”.

Assim, se é verdade que a sentença deve inserir-se no âmbito do pedido, não podendo o juiz condenar (rectius apreciar) nem em quantidade superior, nem em objecto diverso do que se pedir, tal não dispensa um esforço suplementar que permita apreender realmente o âmbito objectivo do pedido que foi formulado na presente acção.

”.

Ora, sendo legítima, como já se admitiu no citado aresto, a convolação oficiosa do pedido de reconhecimento do direito exclusivo sobre um bem (um muro) na mera declaração da sua contitularidade, também não haveria motivos formais para recusar a apreciação de uma pretensão semelhante deduzida pela A. que, procurando integrar-se na matéria de facto apurada, reduziu o âmbito objectivo da sua pretensão inicial.


4. Todavia, em termos substanciais, a pretensão da A. defronta-se com a falta de sustentação quer em face do regime jurídico dos bens no âmbito do casamento, quer do instituto da usucapião.

Neste processo decisório não introduziremos sequer a problemática relacionada com o princípio da intangibilidade do regime de bens do casal a partir do preceituado no art. 1714º do CC.

Na verdade, para além de se revelar desnecessária em face dos argumentos que a seguir serão expostos, verifica-se que a dimensão de tal princípio não se apresenta pacífica.

A par de uma corrente clássica que defende que tal princípio impede em absoluto a alteração da qualificação jurídica dos bens, convertendo bens comuns em bens próprios, e vice-versa, uma outra linha interpretativa circunscreve tal princípio ao regime de bens do casal, sem prejudicar a legitimidade da realização de negócios entre os cônjuges ou, com o mesmo significado, sem impedir a valoração de comportamentos de cada um deles perante os bens, em conexão com as regras da posse e da usucapião.

Trata-se de uma questão que é polémica no campo da doutrina e cuja resolução no âmbito deste processo judicial não se mostra imprescindível à apreciação do caso, tendo em conta que outros argumentos extraídos do direito aplicável e da matéria de facto apurada são suficientes para resolver a questão suscitada pela recorrente.

Entendemos que não faz sentido tomar posição por agora numa questão que se mantém polémica, uma vez que a função primordial dos tribunais, maxime deste Supremo Tribunal de Justiça, é a de resolver litígios e conflitos de interesses e não a de resolver polémicas doutrinárias.


5. Ora bem. A A. é casada com o R. no regime de comunhão de adquiridos e é em nome deste que se encontra inscrito o direito de propriedade sobre o prédio que por si foi formalmente comprado antes do casamento. Por isso, tal prédio constitui um bem próprio do R., nos termos do art. 1722º, nº 1, al. a), do CC.

Na ocasião a A., ainda no estado de solteira, vivia com o R. em união de facto e contribuiu também monetariamente para a sua aquisição, sendo esta efectuada 15 dias antes do casamento de ambos. Todavia, considerando simplesmente as regras sobre a delimitação da titularidade dos bens no âmbito do casamento sob o regime de comunhão de adquiridos – sem curar de outras possíveis respostas que o ordenamento jurídico porventura concede, mas que extravasam o objecto da presente acção e deste recurso de revista – não existe fundamento para contrariar o efeito que formalmente decorre do referido preceito.

Para além da compra (datada de 13-12-90) ter ocorrido antes do casamento (que foi celebrado em 30-12-90, a mesma tinha subjacente um contrato-promessa em que apenas surgia o R. como promitente-adquirente e foi exclusivamente em nome deste que foi inscrito o direito de propriedade.

O facto de a A. ter comparticipado nas despesas com obras que foram realizadas no prédio é insusceptível de alterar a qualificação jurídica do bem como bem próprio, sem embargo, como se disse, de outros direitos que lhe advenham e que nesta acção não podem ser considerados por extravasarem o seu objecto.


5. Os demais factos também não permitem reconhecer a contitularidade do imóvel que é reclamada pela A., ainda que porventura pudesse admitir-se, na pendência do casamento, a invocação, por algum dos cônjuges, da figura da posse para efeitos de modificação do estatuto jurídico de bens.

Tendo sido invocada pela A. uma situação possessória relativamente a um bem que foi formalmente adquirido pelo R. com quem a A. foi e continua casada, a sua pretensão, mesmo reduzida à contitularidade do direito de propriedade, não consegue superar, de modo algum, os pressupostos da usucapião.

A usucapião, como forma de aquisição originária de direito real de gozo, pressupõe a prova da existência de uma situação de verdadeira posse que tenha perdurado durante um período temporal determinado: em relação a bens imóveis, 15 anos (em caso de posse de boa fé) ou de 20 anos (em caso de posse exercida de má fé).

É, pois, imprescindível a demonstração de uma situação de posse, como poder que se manifesta quando alguém age relativamente a um bem como titular do direito de propriedade ou de outro direito real de gozo (art. 1251º do CC), o que implica, por um lado, a materialidade da actuação (“corpus”) e, por outro, o intuito de agir como titular de um direito real que formalmente pertence a outro sujeito (“animus”).

No caso concreto, estando unicamente provado que a ocupação do prédio urbano como casa de morada de família data de 1998, tal facto é insusceptível de traduzir, por si, uma situação de verdadeira posse, sendo antes compatível com o uso de um bem de que formalmente é proprietário o outro cônjuge. Tratando-se de um bem adquirido pelo R. antes do casamento, ainda que com dinheiro auferido por ambos os cônjuges, constituindo bem próprio do R., a instalação no mesmo da casa de morada de família ou o facto de constituir a residência da A. e dos filhos do casal revelam-se compatíveis com a manutenção do estatuto jurídico do bem.

Quer nas vestes de administradora de jure ou de facto do bem (art. 1678º, nº 2, als. f) e g), do CC), quer simplesmente como cônjuge do proprietário do imóvel, que com mais naturalidade emerge da matéria de facto apurada, a utilização que dele vem fazendo a A. sempre seria insuficiente para a qualificar como possuidora, por oposição ao direito de propriedade pleno na esfera do outro cônjuge. A utilização referida é conforme com o estatuto familiar da A., faltando, assim, o elemento material da posse que foi afirmado pela 1ª instância.

Acresce que a matéria de facto também nada revela quanto ao elemento subjectivo da posse, a exigir a prova de que a A. se tenha arrogado a qualidade de contitular do direito de propriedade do prédio, em lugar de mera utilizadora ao abrigo das regras próprias do casamento.

Por conseguinte, sem necessidade sequer de apreciar a admissibilidade da alteração do estatuto jurídico de um bem na pendência do casamento, de modo algum a A. pode ser reconhecida como contitular do imóvel dos autos, uma vez que não detém o estatuto de possuidora, não passando de mera fruidora do bem consentida no âmbito do casamento, nos termos dos arts. 1252º, nº 1, e 1253º do CC.


IV - Face ao exposto, ainda que com fundamentação diversa, quer da Relação, quer da 1ª instância, acorda-se em julgar improcedente a revista.

Custas da revista a cargo da A.

Notifique.

Lisboa, 10-12-15

Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo