Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
844/09.8TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: RESERVA DE PROPRIEDADE
CONTRATO DE MÚTUO
SUB-ROGAÇÃO
INTERPRETAÇÃO ACTUALISTA
Data do Acordão: 09/30/2014
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais:
Área Temática:
DIREITO CIVIL - LEIS, SUA INTERPRETAÇÃO - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIOS JURÍDICOS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / RESPONSABILIDADE CIVIL / TRANSMISSÃO DE CRÉDITOS E DE DÍVIDAS - DIREITOS REAIS / DIREITO DE PROPRIEDADE.
Doutrina:
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- Vaz Serra, «Sub-rogação nos direitos do credor», BMJ, N.º 37 – Julho - 1953, p. 7.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 9.º, N.º1, 236.º, 238.º, 280.º, 294.º, 504.º, N.º1, 408.º, 409.º, 589.º, 590.º, 591.º, 1305.º.
DECRETO-LEI N.º 359/91, DE 21 DE SETEMBRO: - ARTIGO 6.º, N.º 3, ALÍNEA F).
DECRETO-LEI N.º 54/75 DE 12 DE FEVEREIRO: - ARTIGO 15.º, N.º1.
DECRETO-LEI Nº 133/2009, DE 2 DE JUNHO.
Legislação Comunitária:
DIRECTIVA Nº 2008/48/CE, DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, DE 23 DE ABRIL.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 25-03-2010, PROCESSO N.º 682/05. 7TBOHP.C1.S1, EM WWW.DGSI.PT
-DE 12-07-2011, PROCESSO N.º 403/07.0TVLSB.L1.S1, EM WWW.DGSI.PT .
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ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA N.º 10/2008, PUBLICADO NO DIÁRIO DA REPÚBLICA, 1.ª SÉRIE — N.º 222 — 14 DE NOVEMBRO DE 2008.
Jurisprudência Estrangeira:
JURISPRUDÊNCIA FRANCESA: - CASS. COM., 15 MARS 1988; 11 JUILL.1988, BULL. CIV., IV, N.º 241; 5 OCT. 1995, BULL. CIV. IV, N.º 314
Sumário :

1. A reserva de propriedade é uma figura atípica, de natureza mista, com elementos obrigacionais e reais, a qual, apesar da designação de “propriedade”, não confere ao titular o poder de uso, fruição ou disposição de um verdadeiro proprietário, visando antes assegurar ao vendedor o pagamento do preço.

2. É válida a transferência da propriedade reservada do vendedor para o terceiro mutuante, como garantia do crédito concedido por este ao comprador.

3. A cláusula A das condições gerais do contrato de financiamento, significa, no contexto em que foi proferida, de acordo com os critérios do art. 236.º, n.º 1 do CC, uma declaração expressa, no documento de empréstimo, de que a coisa se destina ao cumprimento da obrigação e de que o mutuante fica sub-rogado, pelo devedor, nos direitos do credor (art. 591.º, n.ºs 1 e 2 do CC).

4. O Código Civil, ao remeter, no art. 9.º, n.º1, para as “condições específicas do tempo em que a norma é aplicada” aderiu ao actualismo, considerando que é legítimo ao intérprete ter em conta a evolução socioeconómica verificada entre o momento da elaboração da norma e o momento da sua aplicação, transpondo para o condicionalismo actual o juízo de valor feito pelo legislador na norma a interpretar e ajustando o significado da norma à evolução entretanto sofrida.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

 

 

I - Relatório

AA intentou e fez seguir contra BB, Lda a presente acção declarativa, com processo ordinário, pedindo que a mesma seja julgada procedente por provada e se:

 

a) Declare válida a resolução do contrato de financiamento para aquisição a crédito do veículo automóvel de marca M..., modelo M... Sport com a matrícula …-FH-…;

b) Condene a ré a reconhecer que o referido veículo pertence à autora;

c) Condene a ré na entrega definitiva à autora do veículo automóvel de marca M..., modelo M... Sport com a matrícula …-FH-… e respectivos documentos.

Para tanto, e em síntese, alegou ter financiado a ré, no exercício da sua actividade de financiamento para aquisição a crédito de veículos automóveis, na aquisição do veículo M... Sport, vendido pela M... … de Portugal Lda.

Para garantia do reembolso do montante financiado de € 49.692,00 foi constituída uma reserva de propriedade a favor da vendedora registada, a M... … de Portugal, Lda, tendo esta lhe cedido, com o consentimento da ré, a titularidade da referida reserva de propriedade, registada na Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa, a favor da autora. 

Mais alegou que, embora a ré tenha assumido a obrigação de pagar-lhe uma prestação mensal no montante de € 828,20 por um período de 60 meses, não lhe pagou a 2.ª prestação, nem efectuou mais qualquer outro pagamento.

Adiantou ter interpelado a ré para pôr termo à mora e, posteriormente, devido ao silêncio desta, notificou-a por carta registada com aviso de recepção da resolução do contrato de financiamento.  

Finalmente, alegou que, não obstante a apreensão do veículo no âmbito duma providência cautelar, o mesmo não se passou com toda a documentação de molde a permitir a sua posterior venda.

A ré foi citada editalmente, tendo o M. P., em sua representação por ausente em parte incerta, contestado a acção, pugnando pela improcedência desta e consequente absolvição.

Em síntese, sustentou que o contrato celebrado nos presentes autos não foi um contrato de compra e venda a prestações, de alienação, mas antes um contrato de crédito. Não se justificando, assim, a condenação da ré a restituir à autora o dito veículo automóvel, nem existindo fundamento para que seja reconhecido o invocado direito de propriedade do mesmo veículo. 

Finalmente sustentou que a reserva de propriedade só é admissível em benefício do alienante, pois só este é que pode reservar para si o que já possui, ou seja, a propriedade da coisa.

A autora replicou defendendo a improcedência da excepção deduzida e a condenação da ré conforme peticionado.

Findos os articulados, o Mm.º Juiz a quo proferiu saneador-sentença cuja parte decisória é do seguinte teor:

«Julga-se a acção parcialmente procedente, julgando o contrato celebrado entre as partes validamente resolvido pelo autor. No mais absolvo a ré dos restantes pedidos».

Inconformada com tal decisão, a autora interpôs recurso que foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

O Tribunal da Relação de Lisboa proferiu acórdão onde ficou exarada a seguinte decisão:

«Em face do exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência:

- Revoga-se a decisão recorrida na parte em que absolveu a ré dos restantes pedidos (condenação da ré a reconhecer que o referido veículo pertence à autora e condenação da ré na entrega definitiva à autora do veículo automóvel de marca M..., modelo M... Sport com a matrícula …-FH-… e respectivos documentos);

- Condena-se a ré a reconhecer que o referido veículo, financiado pela autora, pertence a esta e ainda a proceder à entrega definitiva à autora do veículo automóvel de marca M..., modelo M... Sport com a matrícula …-FH-… e respectivos documentos.

- Mantendo-se, no mais, o decidido.

Custas a cargo da ré, em ambas as instâncias».

Inconformada, interpõe recurso de revista a Magistrada do Ministério Público, em representação da Ré ausente, apresentando na sua alegação de recurso as seguintes conclusões:

«1. A Autora é uma instituição de crédito e foi financiadora da Ré para a aquisição de um veículo de Marca M..., matrícula …-FH-….

2. A Autora celebrou com a Ré um contrato de mútuo (art. 1142.º do C.C.), para financia a aquisição do referido veículo.

3. A Autora inscreveu a seu favor a reserva de propriedade da viatura.

4. Nos termos legais, a reserva de propriedade só pode ser estipulada, no âmbito do contrato de compra e venda, a favor e em benefício do alienante, operando como condição suspensiva do efeito translativo do contrato.

5. Como forma de salvaguarda do vendedor, proprietário da coisa, e a favor do qual se constitui a reserva de propriedade, só se transferindo a mesma, em regra depois de pago integralmente o preço.

6. A Autora é terceira relativamente ao contrato de compra e venda do veículo.

7. Nunca tendo sido dona da viatura, não podia reservar para si a propriedade da mesma.

8. Já que a constituição da reserva a favor de um sujeito jurídico pressupõe a titularidade por este da propriedade da coisa, titularidade que o alienante mantém em reserva, durante a execução do contrato, sendo o comprador titular de um direito real de aquisição.

9. A reserva de propriedade constituída a favor do alienante não incide sobre a essência do contrato de compra e venda, apenas operando sobre o efeito translativo do mesmo, ou seja, sobre a transferência da propriedade do vendedor para o comprador, sendo a transmissão da propriedade diferida para momento posterior.

10. Pelo que a cedência pela vendedora M... da reserva de propriedade de que era titular à Autora, não tem como corolário que a Autora adquira a propriedade da coisa.

11. O acórdão recorrido sufraga o entendimento de que a reserva em causa é permitida, atento o princípio da liberdade contratual.

12. Mas o princípio da liberdade contratual, sendo muito amplo entre nós, está balizado por limites, precisamente aqueles que a lei lhe impõe, nos termos do art. 405.º, n.º 1 do CC.

13. Assim sendo, a reserva de propriedade inscrita a favor da Autora/financiadora é injustificável e foi feita à revelia da lei, sendo nula.

14. Face ao exposto, julgando válida a reserva da propriedade do veículo M..., com matrícula …-FH-…, a favor da financiadora da aquisição, e tendo condenado a Ré a entregar tal veículo e os respectivos documentos à Autora e a reconhecer que o mesmo lhe pertence, o douto Acórdão recorrido efectuou incorrecta interpretação dos normativos legais aplicáveis, e designadamente, dos arts 15.º, 18.º, n.º1, 19.º e 21.º do DL 54/75, e dos arts 405.º, n.º 1, 408.º e 409.º do Código Civil.

Termos em que deverá ser revogado, repristinando-se a sentença proferida na primeira instância, e absolvendo-se a Ré dos pedidos formulados pela Autora nas alíneas b) e c) da petição inicial, assim se concedendo a revista.»

AA PLC apresentou contra-alegações, terminando com as seguintes conclusões:

A. Contrariamente ao alegado pela Apelante, a reserva de propriedade foi constituída no âmbito de um contrato de alienação, nomeadamente no âmbito do contrato de compra e venda do veículo, celebrado entre a M... Portugal (vendedora) e a ora Apelante (compradora), conforme resulta claro do contrato junto domo Doc. 1 na Petição Inicial e da Certidão Narrativa junta sob. Doc. 2 no mesmo articulado.

B. Dispõe o n.º 1 do art. 409.º do Código Civil: "Nos contratos de alienação é licito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento".

C. A redacção do referido artigo é clara e inequívoca: a reserva de propriedade pode ser condicionada ao cumprimento das obrigações da outra parte (normalmente o pagamento do preço por parte do comprador) ou até à verificação de qualquer outro evento.

D. Eventuais limitações como a alegada pela Apelante – que a reserva de propriedade apenas pode ser constituída em benefício do alienante – não resultam nem da Lei, nem, no presente caso, da vontade das partes.

E. O conceito de "qualquer outro evento" permite abarcar realidades como sejam a satisfação de crédito de terceiro que não o reservatário originário, nada impedindo, por isso, a constituição, tal como foi efectuada, de uma reserva de propriedade a favor da entidade que financiou a aquisição do veículo automóvel, pela reservatária originária do mesmo.

F. Tal conceito permitirá inegavelmente enquadrar “as obrigações emergentes de um contrato de financiamento em que o próprio vendedor tenha outorgado, ou de cujo clausulado resulte para ele um interesse relevante” (Acórdão da Relação de Lisboa n.º 7622/00 de 26 de Julho de 2000 - não publicado).

G. O interesse relevante no presente caso resulta claro do esquema de aquisição descrito nos autos que permite observar que a vendedora e a mutuante são entidades que, embora distintas, se encontram comercialmente associadas, e que a comercialização de veículos quando não é feita a pronto pagamento, apenas é possível existindo o financiamento do capital necessário pela ora Apelada, tendo, consequentemente, a vendedora do veículo todo o interesse no cumprimento integral pela Apelante do contrato de financiamento celebrado com a Apelada.

H. É também este o entendimento constante do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 06.05.2010, onde é relatora a Exma. Desembargadora Carla Mendes, disponível em www.dgsi.pt: "É na relação pagamento integral do preço da coisa vendida/transferência da sua propriedade que o pactum reservati dominii encontra a sua razão de ser e daí que é perfeitamente admissível a constituição de reserva de propriedade com vista a garantir os direitos de crédito emergentes de um contrato de mútuo cuja finalidade última é a de assegurar o pagamento da coisa ao seu alienante, o que, de resto, sempre acolheria protecção na própria lei, que permite como condicionante à transferência de propriedade, qualquer outro evento futuro que não apenas o cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de compra e venda" - cfr. Ac. Rlx de 5.5.2005, relator Carlos Valverde, de 20.10.2005, relatora Fátima Galante, de 26.4.3007, relatora Manuela Gomes e de 6.3.2007, relatora Graça Amaral, in www.dgsi.pt.

I. "Estamos em presença de dois contratos autónomos - um contrato de compra e venda e um contrato de mútuo - com ligação funcional entre ambos sendo certo que se encontra registada a favor da financiadora a reserva de propriedade. Os dois contratos coexistem/conexos, mantendo cada um deles a sua autonomia estrutural e formal. Estamos perante uma "relação jurídica triangular" - vendedor (vendeu o veículo em causa), ré (compradora do veículo) e a autora/financiadora (mutuante do preço devido à ré para a aquisição do veículo) - vd. Voto de vencido in Ac. STJ in www.dgsi.pt/jstj.nsf/954. A nossa lei consagra o princípio da liberdade contratual em que as partes podem fixar livremente o conteúdo dos contratos. Tendo as partes celebrado o contrato nestes termos, constituído a favor da financiadora a cláusula de reserva de propriedade, a conclusão é a de que as partes, no âmbito da liberdade contratual (art. 405.° c.c.) visaram a tutela directa do direito de crédito da financiadora, configurado como se o pagamento do preço relativo ao contrato de compra e venda do veículo fosse fraccionada no tempo, e não já no interesse da vendedora, porquanto esta já recebeu o preço devido pela venda".

J. Assim sendo, nos termos previstos no artigo 409.° C.C., conjugado com o princípio da liberdade contratual plasmado no artigo 405.° c.c., a reserva de propriedade ora em análise é absolutamente válida.

K. Na pendência da venda com reserva de propriedade o vendedor pode dispor do direito de propriedade da coisa vendida, nomeadamente através da cessão da posição contratual. 

L. Deste modo, e ao abrigo da liberdade contratual prevista no artigo 495.° n.º 1 do Código Civil, explanada na Cláusula A das Condições Gerais do Contrato de Financiamento, e à luz dos artigos 588.° e 591.° daquele diploma, a reserva de propriedade foi cedida pela vendedora do veículo, a M... de Portugal, Ld.a, à Apelada, ficando esta sub-rogada nos direitos da vendedora com consentimento da aqui Apelante.

M. Cumpridos que se encontra todos os pressupostos exigidos para a validade e eficácia da sub-rogação prevista no n.º 2 do art. 591.º do CC (conforme resulta dos autos e do próprio Acórdão em análise) e de acordo com tudo o que subjaz aos contornos da liberdade contratual, a Apelada adquiriu a propriedade do veículo pela cessão da reserva de propriedade e sub-rogação dos direitos que a reservatária originária detinha.

N. A este propósito, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Novembro de 2008, republicado a 26 de Novembro de 2008, em Diário da Republica, I Série, N.º 230, página 8489 e seguintes, nos termos do qual “Não se desconhece que tem vindo a ser aceite a possibilidade de ocorrer sub-rogação voluntária, seja do credor seja do devedor, a favor do devedor, a favor do financiador, em situações como a dos presentes autos (artigos 589.° e 591.0 do C.C.), como acontece no parecer publicado no Boletim dos Registos e do Notariado n.º …, de Maio de 2001, citado no acórdão de 12 de Julho de 2007 deste Tribunal, que abaixo se transcreve: 1) O financiamento por uma instituição de crédito da aquisição de um veículo automóvel, contratado sob condição de reserva de propriedade, poderá dar origem a uma situação que se reconduz à figura legal da sub-rogação voluntária, nas modalidades de sub-rogação pelo credor (artigo 589.º do Código Civil) ou de sub-rogação pelo devedor, em consequência de empréstimo que lhe tenha sido efectuado (art. 591.º do mesmo Código).”

O. “Assim, a lei civil permite que, por actos celebrados simultaneamente, com intervenção de todos os interessados: 1.º O vendedor aliene o veículo ao comprador, estipulando-se a reserva de propriedade a favor do primeiro até integral pagamento do preço; 2.º O comprador celebre um contrato de mútuo com uma instituição de crédito, para financiamento do preço de aquisição, procedendo aquela à liquidação do preço junto do vendedor ou, em alternativa, sendo tal pagamento efectuado directamente pela instituição de crédito junto do vendedor, substituindo-se ao comprador; 3.° Em consequência, o devedor sub-rogue expressamente a instituição de crédito nos direitos do vendedor, com o assentimento e a declaração de transmissão da propriedade reservada a favor daquela, por parte do vendedor (na 1.ª hipótese referida no número anterior), ou o vendedor sub-rogue expressamente a entidade financiadora nos seus direitos, transmitindo-lhe a propriedade reservada com conhecimento simultâneo do facto por parte do comprador (na 2.ª hipótese referida no mesmo número)”.

P. tendo a Apelada legitimamente passado a ser a titular do direito de propriedade  - ainda que sob reserva – por transmissão efectuada pelo vendedor e autorizada pelo comprador (ora Apelante), inexistindo qualquer nulidade da reserva de propriedade constituída, e provando-se (como já se encontra provado) o incumprimento do contrato (e correspondente validade da respectiva solução) que esteve na origem da constituição da reserva, a A., ora Apelada, é a única e exclusiva proprietária do veículo automóvel de marca M..., com a matrícula ….FH-...

Q. Consequentemente, não merece qualquer alteração ou reparo o Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, devendo o mesmo manter-se nos seus exactos termos, não se concedendo provimento ao recurso interposto.

Nestes termos, indeferindo o presente recurso e mantendo o Acórdão recorrido, fareis Vossas Excelências, Venerandos Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, o que é de inteira Justiça

Sabido que, de acordo com o disposto no artigo 635.º, 637.º e 639.º do Código de Processo Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, as questões a conhecer são as seguintes:

1) Da validade ou invalidade da constituição de reserva de propriedade a favor do financiador;

2) Da sub-rogação.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - Fundamentação de facto

O quadro factual dado como assente, pelas instâncias, é do seguinte teor:

1. A autora dedica-se ao financiamento para aquisição a crédito de veículos automóveis.

2. No exercício da sua actividade, a autora financiou a ré na aquisição do veículo automóvel de marca M..., modelo M... Sport, com a matrícula …-FH-…, vendido pela M... … de Portugal, Lda, nos termos do Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito n.º …, cuja cópia consta de fls. 9 a 11 e que aqui se dá por integralmente reproduzido.

3. Para garantia do reembolso do montante financiado, foi constituída uma reserva de propriedade a favor da vendedora registada, a M... … de Portugal, Lda (cfr. cláusulas 2.ª a 11.ª das condições particulares e cláusula A das condições gerais de fls. 10).

4. A M... … de Portugal, Lda. cedeu à autora, com o consentimento da ré, a titularidade da referida reserva de propriedade, nos termos da cláusula 11.ª das condições particulares e da cláusula A das condições gerais do contrato.

5. A reserva de propriedade encontra-se registada na Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa, a favor da autora, conforme cópia certificada de fls. 12 a 22.

6. O preço total da viatura foi de € 37.000,00, não tendo a ré efectuado qualquer desembolso inicial (cfr. cláusulas 4 e 5 das Condições Particulares do aludido Contrato).

7. A ré não desembolsando o valor da aquisição, recorreu ao financiamento para aquisição a crédito, o que a autora se dispôs a fazer-lhe, tendo-lhe financiado a quantia de € 37.000,00 (cfr. cláusula 6.a das Condições Particulares do Contrato referido).  

8. O Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito celebrado entre a autora e a ré estipulou na cláusula 8 das suas Condições Particulares que o valor total a reembolsar ao financiamento era de € 49.692,00 (cfr. cláusulas 6.3, 7 e 8 das Condições Particulares do Contrato e plano de amortização do mesmo).

9. Na cláusula 9 das Condições Particulares do mencionado contrato o prazo do reembolso foi fixado pelas partes em 60 meses, mediante 60 prestações mensais no valor de € 828,20 cada.

10. O contrato em questão foi assinado em 27.02.2008 e entrou em vigor nesse mesmo dia.

11. Sucede que a ré deixou de cumprir o contrato em 02.05.2008, correspondente à 2.ª prestação, não tendo efectuado mais qualquer pagamento.

12. Por ser assim, a autora endereçou uma carta registada com aviso de recepção à ré, com data de 17.09.2008, através da qual lhe dirigiu uma interpelação para pôr termo à mora, conforme documento de fls. 23 que aqui se dá por integralmente reproduzido.

13. Uma vez que a ré não liquidou os montantes em questão, a autora notificou-a, por carta registada com aviso de recepção, datada de 04.10.2008, da resolução do Contrato de Financiamento (cfr. documento de fls. 27 que aqui se dá por integralmente reproduzido).

14. Até à presente data, não obstante a recuperação do veículo por via da providência cautelar que corre por apenso, não foi recuperado com todos os documentos.

III – Fundamentação de direito

1. As teses em confronto

A tese do recorrente, Ministério Público, baseia-se principalmente no texto da lei ou no argumento literal de interpretação. De acordo com esta posição, o artigo 409.º do Código Civil[1] circunscreve a aplicação da cláusula de reserva de propriedade aos contratos de alienação e, não sendo o contrato de mútuo um contrato de alienação, o texto da lei não comporta a possibilidade de o alienante transferir a cláusula de reserva de propriedade para o financiador, nem sequer ao abrigo do princípio da liberdade contratual, pois tendo as partes poder de fixação do conteúdo dos contratos que celebram, devem sempre respeitar os limites da lei (art. 405.º, n.º 1 do CC), aqui claramente ultrapassados, na óptica da recorrente.

Acresce que, segundo esta corrente jurisprudencial, o financiador nunca foi proprietário da coisa, ou seja, nunca a adquiriu para a revender e nunca a alienou. Só o vendedor, titular do direito de propriedade sobre uma coisa, pode manter na sua esfera jurídica, por determinado lapso de tempo, a propriedade da coisa que vendeu, sendo juridicamente impossível que alguém reserve para si a propriedade de uma coisa que não tem.

 Esta tese tem sido defendida, na doutrina, por Gravato Morais, para quem só nos contratos de alienação, maxime nos contratos de compra e venda, é lícita a estipulação de reserva de propriedade, entendendo que «a finalidade do legislador, ainda que interpretada actualisticamente, não terá sido a de permitir a quem não aliena um bem, mas tão-só o financia, a constituição a seu favor de uma reserva de domínio sobre um objecto – que não produziu nem forneceu — apenas em razão do fraccionamento das prestações»[2].

Por outro lado, alega-se, também, que os interesses do financiador sempre poderiam ser satisfeitos de outra forma, como entendeu a sentença do tribunal de 1.ª instância, invocando que o mutuante (autor da acção) poderia ter celebrado com a ré, para defender os seus interesses, um contrato de locação financeira ou um contrato de aluguer de longa duração.

O recorrente Ministério Público, em representação da ré ausente, propugna que os mutuantes, neste tipo de relações jurídicas, recorram a uma hipoteca do automóvel como garantia do seu crédito.

No mesmo sentido, Gravato Morais entende que o financiador tem ao seu dispor um vasto conjunto de opções para assegurar o cumprimento do contrato pelo consumidor e para obstar à alienação da coisa, designadamente as garantias pessoais (fiança ou aval) e as garantias reais (hipoteca), bem como a possibilidade de celebração de outros negócios (a locação financeira ou o aluguer de longa duração) em vez do mútuo[3].

Esta orientação foi adoptada no acórdão deste Supremo Tribunal, de 12-07-2011, relatado pelo Conselheiro Garcia Calejo, que decidiu que “a cláusula em que o financiador reserva para si a propriedade de uma coisa vendida pelo fornecedor é, pois, contrária a uma norma de natureza imperativa, e, por isso, nula por força do artigo 294º do Código Civil, não produzindo, em consequência, o efeito da transferência da propriedade do bem da vendedora para o financiador[4].

A tese defendida pelo AA, e adoptada no acórdão recorrido, defende que o art. 409.º, n.º1, referindo-se não apenas ao cumprimento da obrigação do pagamento do preço, mas a “qualquer outro evento”, admite a transmissão da propriedade reservada do vendedor para o mutuante, como garantia do crédito concedido ao comprador, fundamentando esta solução no princípio da liberdade contratual, que confere aos agentes económicos uma vasta margem de actuação na fixação do conteúdo dos contratos, desde que sejam respeitados os limites legais (art. 405.º, n.º 1 do CC).

Uma parte substancial da jurisprudência dos Tribunais da Relação defende a tese da validade da cláusula, fazendo apelo a uma interpretação actualista da norma do art. 409.º do Código Civil, e entendendo que a expressão “qualquer outro evento” permite abarcar a satisfação do crédito de terceiro que não o reservatário originário, bem como invocando a interligação dos contratos em causa e o princípio da liberdade contratual. 

Na doutrina, a tese da validade foi defendida, de forma aprofundada, por Isabel Menéres Campos, na sua tese de doutoramento, onde propugna que, com base numa interpretação actualista e de acordo com o princípio da equiparação, se adopte a mesma solução prevista na lei para a compra e venda com reserva de propriedade celebrada entre dois sujeitos, comprador e vendedor, e para aquela outra da compra e venda financiada por uma terceira entidade, em que existem três sujeitos da relação contratual: comprador, vendedor e financiador[5].

 

            2. Os factos do caso

No caso concreto, está em causa uma relação jurídica triangular entre a M... …, Lda (vendedora), a empresa BB, Lda (compradora), que celebraram entre si um contrato de compra e venda de um automóvel com reserva de propriedade a favor da vendedora, conforme o art. 409.º do Código Civil. Esta relação jurídica está ligada a outra que corresponde a um contrato de mútuo celebrado entre a BB (mutuária) e um terceiro (mutuante), que celebraram um contrato de mútuo para financiamento da aquisição do automóvel (cf. Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito n.º …, cuja cópia consta de fls. 9 a 11).

Neste contrato de financiamento celebrado entre a mutuante AA e a compradora, BB, estipulou-se o seguinte, na cláusula 11.ª das Condições Particulares:

«Reserva de Propriedade: O presente Contrato é celebrado com reserva de propriedade do veículo a favor do VENDEDOR REGISTADO, nos termos das Cláusulas Gerais constantes destes Contrato. O Vendedor Registado cedeu ou cederá à BB a titularidade de tal reserva de propriedade, e o Comprador desde já presta o seu consentimento a tal cessão».

Da cláusula A das condições gerais do contrato de financiamento constava o seguinte:

«A. Reserva de Propriedade

Nos termos do disposto no artigo 409.º do Código Civil, e até à data em que todas as prestações referidas no número 9 das Condições Particulares hajam sido pagas pelo Comprador à BB, a propriedade do veículo é inicialmente reservada para o Vendedor Registado, que cedeu ou cederá à BB a titularidade de tal reserva de propriedade. O Comprador presta o seu consentimento a tal cessão. Nos termos do disposto no artigo 591.º do Código Civil o Comprador sub-roga a BB nos direitos de Vendedor registado, decorrentes da reserva de propriedade. As despesas inerentes à constituição, registo e cancelamento da reserva de propriedade são da exclusiva responsabilidade do Comprador».

            A M..., vendedora do automóvel, a favor de quem foi estipulado no contrato de compra e venda a reserva de propriedade sobre o bem alienado, cedeu a BB (mutuante), com o consentimento da BB (compradora), a titularidade da referida reserva de propriedade (facto provado n.º 4).

           

No documento a fls. 10, intitulado «Declaração», consta o seguinte:

           

«M... de Portugal, Lda, Pessoa Colectiva n.º …, com sede na Rua … n.º ….º, em … Lisboa, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa sob o n.º …, com o capital social de €1.995.191.59, declara, para os devidos efeitos e legais efeitos que, pela presente, cede definitivamente à BB Plc, com sede em …, …, …Cm… …AR, Inglaterra, registada no “…” de Cardiff sob o n.º … com Sucursal em Portugal, com sede na Av. …, …º, …-… Lisboa, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa sob o único de matrícula e de identificação fiscal …, a reserva de propriedade que detém sobre o veículo automóvel da marca M..., modelo 6, com a matrícula -FH-, que esta declara aceitar».

A reserva de propriedade encontra-se registada na Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa, a favor de BB (facto provado n.º 5).

3. Apreciação

 

3.1. A resposta à questão da validade ou invalidade da cláusula de transmissão da reserva de propriedade do vendedor para o financiador depende da construção dogmática que fizermos a propósito da natureza jurídica da reserva de propriedade.

A reserva de propriedade é um instituto previsto na lei e que, ao abrigo da liberdade contratual, tem assumido, na prática comercial, uma função de garantia do crédito, resultante do pagamento diferido do preço por parte do comprador e de um objectivo geral de facilitar aos consumidores a aquisição de bens a crédito, funcionando como um complemento do quadro tradicional de garantias reais.

Trata-se de uma figura atípica, de natureza mista, com elementos obrigacionais e reais, a qual, apesar da designação de “propriedade”, não confere ao titular o poder de uso, fruição ou disposição de um verdadeiro proprietário, visando antes assegurar ao vendedor o pagamento do preço. O direito em causa não é, assim, um verdadeiro direito de propriedade com o conteúdo do art. 1305.º e sujeito às regras rígidas dos direitos reais, mas um direito que se define pelo seu conteúdo e função – a garantia de um crédito – e que em comum com a propriedade tem apenas o nomen iuris, critério que não é decisivo para o equiparar a um direito de propriedade, na medida em que o nome ou termo escolhido pelo legislador não é vinculativo para o intérprete, devendo, antes atender-se ao regime jurídico da figura e à sua finalidade.

A este propósito, entendemos que a doutrina que melhor explica a figura, e que é hoje maioritária nas ordens jurídicas congéneres da nossa, é a tese da «venda em que o efeito translativo da propriedade é diferido ao momento do pagamento do preço, obtendo, no entanto, o comprador logo com a celebração do contrato uma posição jurídica específica distinta da propriedade, normalmente qualificada como uma expectativa real de aquisição»[6]

O vendedor é titular de um direito real diferente da propriedade plena – a propriedade reservada – e o comprador, por seu turno, titular de um direito de expectativa real, fortemente tutelado, de aquisição do direito de propriedade pleno[7] e, ainda, de um direito de gozo que inere à coisa e é oponível erga omnes[8].

«A propriedade reservada corresponde a uma posição intermédia entre a propriedade plena e o direito real de garantia; a expectativa do comprador é um pré-estádio do direito de propriedade pleno, sem que, todavia, seja equiparado a este»[9].

Apesar de o preceito contido no artigo 409.º parecer indicar que o vendedor permanece proprietário pleno da coisa até ao cumprimento das obrigações por parte do adquirente, na verdade, trata-se de uma propriedade limitada à função de garantia[10] ou de uma figura sui generis de natureza mista, com elementos obrigacionais e reais[11].

A reserva de propriedade é assim uma figura que, devido à função assumida no tráfico negocial, pode ser designada como «uma propriedade com função de garantia»[12], a qual não atribui ao titular os direitos de um proprietário pleno, mas uma posição jurídica que lhe permite realizar, à custa do valor da coisa, o respectivo crédito.  

A titularidade da propriedade reservada até ao pagamento do preço impede os credores do comprador de executarem o bem e visa essencialmente funções de garantia do pagamento do preço, permitindo ao vendedor em caso de não cumprimento pelo comprador, resolver o contrato e exigir a restituição da coisa.

A reserva de propriedade assegura ao beneficiário o direito de resolução do contrato, em caso de incumprimento da outra parte, mesmo que o bem tenha sido entregue ao comprador, e a restituição do bem, pois a eventual venda a terceiro pelo comprador é uma venda de bens alheios, e, portanto, nula (arts 892.º, 939.º e 956.º) e ineficaz em relação ao titular da propriedade reservada, que pode reivindicar o bem contra o terceiro.

O recurso à reserva de propriedade impede, ainda, que o bem seja executado pelos credores do comprador, podendo o titular da reserva defender-se através dos embargos de terceiro (art 351.º do CPC).

A cláusula de reserva de propriedade é, também, oponível, nos casos de insolvência do comprador, desde que tenha sido estipulada por escrito (art. 104.º, n.º 3 CIRE) [13].

A concepção da reserva de propriedade como garantia não é incompatível com o princípio da tipicidade dos direitos reais. Tal princípio tem sido entendido de forma flexível, e não impede que o intérprete, com base no regime jurídico estipulado na lei, proceda à qualificação como reais de certas situações jurídicas não nominadas como tal[14].

A propriedade com função de garantia também não encontra impedimento no facto de o direito positivo português não prever a figura da alienação em garantia. Com efeito, tradicionalmente considerados inválidos, estes contratos, que resultam da funcionalização da titularidade real ou obrigacional para a realização de um certo fim, passaram a ser admitidos pela doutrina como consequência do princípio da autonomia privada[15].

 

3.2. Nos casos em que o vendedor é simultaneamente o financiador da aquisição não tem levantado problemas a validade desta cláusula. Contudo, nos casos, como o dos autos, em que o financiador é um terceiro, uma parte da jurisprudência e da doutrina tem entendido que a cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador é nula por impossibilidade legal do objecto da estipulação (art. 280.º do CC) ou por violação de normas imperativas (arts 408.º, 409.º e 294.º do CC) .

A tese da invalidade assenta no argumento gramatical de interpretação: a letra do art. 409.º, n.º 1 apenas confere ao alienante a possibilidade de reservar para si a propriedade da coisa, não se referindo ao financiador do negócio, o qual, ao conceder ao comprador os meios económicos para realizar o negócio, não intervém no contrato de alienação. Por outro lado, constituiria uma impossibilidade jurídica que o financiador reservasse uma propriedade da qual nunca tinha sido titular e que nunca alienara. Trata-se de um obstáculo conceitual e terminológico, que, contudo, não assume um relevo decisivo na solução dos problemas jurídicos, que deve atender, sobretudo, a critérios teleológicos e valorativos, desde que compatíveis com a letra e com o espírito da lei.

Como ensina Baptista Machado[16], o art. 9.º afirma que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dela o «pensamento legislativo».

A interpretação literal, enquanto modalidade de interpretação cingida ao texto, desconsidera outros elementos interpretativos relevantes. Embora o texto tenha uma dupla função de ponto de partida e de limite da interpretação, deve ser sempre utilizado conjuntamente com o elemento lógico, para que seja testada a coerência do significado literal com os valores fundamentais do ordenamento jurídico e com os objectivos prosseguidos pelo legislador com a norma em causa.

O elemento gramatical ou o texto da lei é apenas o ponto de partida da interpretação, dependendo a fixação do sentido com que o texto deve valer de um conjunto de elementos interpretativos – histórico, sistemático e teleológico – que se referem à conjuntura em que a lei foi elaborada (elemento histórico), à unidade do sistema jurídico (elemento sistemático) e aos objectivos visados pelo legislador com a solução que consagrou (elemento racional ou teleológico).

O Código Civil, ao remeter no art. 9.º, n.º1 para as “condições específicas do tempo em que é aplicada” aderiu ao actualismo, considerando que é legítimo ao intérprete ter em conta a evolução socioeconómica verificada entre o momento da sua elaboração e o momento da sua aplicação, transpondo para o condicionalismo actual o juízo de valor feito pelo legislador na norma a interpretar e ajustando o significado da norma à evolução entretanto sofrida.

Com efeito, o legislador teve em vista, no artigo 409.º, primordialmente, garantir que o alienante com reserva de propriedade pudesse resolver o contrato de alienação e recuperar a coisa, na hipótese de incumprimento da obrigação de pagamento do preço pelo comprador.

O panorama das relações jurídico-económicas da época, nestes casos, era praticamente limitado à venda a prestações, suportando o vendedor o risco do crédito. Todavia, essa não é a realidade actual. Hoje, o financiamento de aquisições a crédito é geralmente assegurado por uma instituição financeira especializada. Esta modalidade de negócio trilateral veio substituir a tradicional venda a prestações, não sendo habitual que seja o vendedor a assumir o risco do crédito. A venda a prestações, o principal domínio de aplicação da reserva de propriedade à data da elaboração do Código Civil, já não corresponde à realidade socioeconómica presente. E, de acordo com os cânones de uma boa interpretação, o intérprete tem de tomar em consideração as circunstâncias do tempo em que a lei é aplicada, estando a interpretação actualista legitimada pelo Código Civil e pela teoria do direito.

Na prática, a cláusula de reserva da propriedade mais não é, afinal, do que uma resposta às necessidades de adaptação da ordem jurídica ao tráfico negocial, o qual evoluiu muito, ao nível da circulação de bens e do acesso ao crédito, desde a data em que foi elaborado o Código Civil.

A utilização da reserva de propriedade a favor do financiador resulta da evolução socioeconómica e representa a resposta do sistema a novas necessidades do comércio jurídico, devido à insuficiência do modelo tradicional de garantias do crédito, sobretudo das garantias reais.

Em ordens jurídicas congéneres da nossa, tem sido aceite a cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador, quer por via legislativa, quer por via jurisprudencial.

Em Espanha, a lei (Ley 28/1998, de 13 de julio, de Venta a Plazos de Bienes Muebles[17]) concede a possibilidade de as partes convencionarem a reserva de domínio a favor do financiador nas vendas a prazo submetidas à referida lei: segundo o artigo 4.º, n.º3, permite-se que um terceiro financie ao comprador o custo da aquisição, reservando as garantias a seu favor.

Na jurisprudência francesa, com o apoio da maioria da doutrina, tem sido aceite, através de uma série de acórdãos da Cour de Cassation, que o vendedor possa transferir o benefício da cláusula de reserva de propriedade a um terceiro, porque esta cláusula é concebida como acessório do crédito, bastando ao mutuante, geralmente um banco, sub-rogar-se nos direitos do vendedor[18]. O mesmo sucede no direito alemão, em que uma parte da doutrina tem admitido a validade da cessão do crédito e da reserva de propriedade como garantia daquele, nos casos em que da interpretação das cláusulas do contrato resulte ter sido essa a vontade das partes[19]. O direito alemão tem-se caracterizado pela enorme maleabilidade conferida à cláusula de reserva de propriedade, criando figuras mais complexas desenvolvidas com base na reserva de propriedade, mas muito para além da sua forma simples consagrada no § 449 do BGB – a reserva de propriedade prolongada e a reserva de propriedade alargada – que a doutrina tem considerado válidas em face do art. 409.º dada a amplitude com que a reserva de propriedade é admitida no direito português, que permite, salvo situações extremas de nulidade por contrariedade à ordem pública, que o facto que leva à transmissão do direito real não seja somente o cumprimento das obrigações da outra parte, mas “qualquer outro evento”[20].

No direito europeu tem ganho relevância crescente, por via jurisprudencial ou legal, a mutação da reserva de propriedade numa garantia, constituída a favor do vendedor ou do terceiro financiador da aquisição, e semelhante ao penhor sem posse[21]. Esta figura conhece utilização crescente no comércio internacional mobiliário e exige uma uniformização do direito europeu, para o melhor funcionamento dos negócios entre empresas de diferentes Estados.

3.3 Para além da evolução da realidade económica subjacente à norma e das inovações do direito comparado, ambas elementos auxiliares de interpretação que concorrem para a defesa da tese da validade, a restrição da reserva da propriedade ao alienante esbarra com um argumento lógico, que demonstra que esta restrição é contrária à finalidade da lei e à vontade do legislador. Se o objectivo da lei (ou do legislador) - e todos o reconhecem, mesmo os defensores da tese da invalidade da cláusula de transmissão da reserva de propriedade ao financiador – foi o de estabelecer uma garantia a favor do vendedor, que corre o risco do não pagamento, como não admitir, quando o preço é totalmente satisfeito pelo mutuante e é este que corre o risco do não pagamento pelo comprador, que a cláusula de reserva de propriedade, inicialmente estipulada a favor do vendedor, possa ser transferida, por acordo de todos os interessados, ao financiador?

            Com efeito, a nulidade da cláusula em discussão conduziria a um resultado insólito, que não pode ter sido pretendido pelo legislador, cuja razoabilidade se presume: ou a propriedade reservada se mantém na titularidade do vendedor, que fica enriquecido por manter a propriedade e receber a totalidade do preço do financiador; ou a propriedade se transfere para o comprador, no momento do pagamento pelo terceiro, adquirindo aquele a propriedade plena sem ter pago o preço, resultado contrário ao fim visado pelo legislador. Nas duas hipóteses, o terceiro financiador fica impedido de beneficiar da função de garantia visada pela reserva de propriedade. Ou seja, esta cláusula perde as suas virtualidades.

Em termos lógicos e de coerência valorativa, não faz sentido que a garantia da reserva de propriedade se verifique em relação ao vendedor, que recebe a totalidade do preço do financiador, quando é este último que corre o risco do não pagamento do preço pelo comprador, nem faz sentido que a propriedade se transfira para o comprador que deve, ainda, a quantia mutuada.

            Por último, também não pode dizer-se que o sentido proposto para o art. 409.º não tenha qualquer correspondência no texto da lei: o Código Civil admitiu a cláusula de reserva de propriedade com grande amplitude e a expressão contida na norma “qualquer outro evento”, pela sua abertura, é susceptível de incluir o pagamento das prestações de um contrato de mútuo ao financiador, afinal, o credor do preço da venda.  

3.4. Diga-se ainda, em abono desta tese, que ela não prejudica os interesses de ninguém, nomeadamente os interesses do consumidor.

O argumento invocado pelos defensores da tese da invalidade, de que a cessão da cláusula de reserva de propriedade para o financiador visa apenas satisfazer os interesses deste, os quais não estão abrangidos no âmbito de protecção do regime jurídico dos contratos de crédito ao consumo consagrado no Decreto-Lei n.º 359/91 (actualmente revogado e substituído pelo Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de Junho), o qual se restringe aos interesses do consumidor, não é um argumento decisivo no debate.

Note-se, a este propósito, que a reserva de propriedade surgiu, historicamente, não só para garantir o pagamento do preço ao vendedor, mas também por razões sociais, pois permite o acesso à propriedade das pessoas mais desfavorecidas[22].

É inegável, portanto, que a cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador facilita a concessão do crédito e, nesta perspectiva, os interesses do consumidor na aquisição dos bens em causa. Um crédito garantido é, por natureza, um crédito menos oneroso do que um crédito desprovido de qualquer garantia, o que beneficia os interesses dos consumidores como grupo. A possibilidade de cessão da propriedade reservada sempre será um factor que, embaratecendo o crédito, incrementa a circulação de bens de consumo e o acesso à propriedade.

As alternativas ao dispor do mutuante exigem maiores formalismos, perdendo-se em celeridade e eficácia, o que acabará por redundar num aumento de despesas com a compra para a generalidade dos consumidores.  

 

 

3.5 Quando se fala de nulidade por violação de normas imperativas é necessário indicar quais são as normas jurídicas violadas e que estas sejam, de facto, imperativas. Ora, tem sido entendimento de uma vasta doutrina que o art. 408.º do Código Civil, que consagra o princípio da consensualidade, não constitui uma noma imperativa ou de ordem pública[23]. No mesmo sentido, o artigo 409.º constitui uma norma dispositiva, que confere uma mera faculdade às partes de um contrato de alienação diferirem o momento de produção do efeito real para a data do cumprimento da obrigação ou de qualquer outro evento[24]. Da interpretação desta norma resulta, como vimos, com base no elemento racional e na própria letra da lei, que se refere a “qualquer outro evento”, que a reserva de propriedade, de acordo com o princípio da liberdade contratual (art. 405.º, n.º 1 do CC), pode ser utilizada como garantia da satisfação de crédito do terceiro financiador da aquisição.

           

3.6. Cada vez mais se reconhece que a inserção do contrato na vida jurídica e social implica que os seus efeitos ultrapassem as partes para se projectarem na esfera jurídica de terceiros, em função de uma relação jurídica entre um terceiro e um dos contratantes.

A ordem jurídica não pode, assim, ignorar que os dois contratos – o de compra e venda e o de financiamento – coexistem e estão interligados entre si, visando a consecução de uma finalidade económica comum: a facilitação do consumo por recurso ao crédito. Apesar de manterem a sua autonomia estrutural e formal, verifica-se uma interdependência de interesses entre o triângulo de sujeitos contratuais, que os tribunais devem reconhecer e que influencia as soluções jurídicas.

            O acordo entre as partes da relação triangular terá de ser visto como unitário. E, com efeito, fazendo justiça a esta ideia de interligação entre os contratos, a compra e venda para consumo financiada é objecto de regulamentação legal, actualmente constante do Decreto-Lei nº 133/2009, de 2 de Junho, que transpõe para a ordem jurídica interna a Directiva nº 2008/48/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Abril.

            É neste contexto legislativo, que deve ser analisado o contrato de crédito ao consumo celebrado entre vendedor, consumidor e mutuante, em que se estipula a reserva de propriedade a favor deste último como garantia do pagamento do crédito.

            Este diploma, tal como o anterior (o Decreto-Lei n.º 359/91, de 21 de Setembro), prevê direitos de informação do consumidor, exige que o contrato seja celebrado por escrito, e que no contrato sejam apostas as assinaturas dos contraentes, acautelando que a operação negocial seja transparente e clara para o consumidor.

O artigo 6.º, n.º 3, alínea f) do Decreto-Lei n.º 359/91, de 21 de Setembro, aplicável no caso dos autos por referência à data de celebração dos contratos, indicava expressamente, como menção que devia constar do contrato, a cláusula de reserva de propriedade.

3.7. Defendemos, portanto, a validade da cessão da reserva de propriedade do vendedor para o financiador, com base, em síntese, nos seguintes argumentos:

1) A natureza da propriedade reservada como um direito que assume uma função de garantia do crédito.

2) Uma interpretação actualista que, respeitando a vontade do legislador e a finalidade da lei, atribua à norma um sentido exigido pelas necessidades actuais de uma economia mais célere na aquisição de bens de consumo, e tenha como consequência a extensão da previsão do artigo 409.º, que se refere a “contratos de alienação”, à compra e venda financiada por um terceiro.

3) O princípio da liberdade contratual, pilar de todo o direito privado, permite que as partes possam, dentro dos limites da lei, celebrar um contrato de cessão da reserva de propriedade ao terceiro financiador, da mesma forma que permite a celebração de contratos inominados, atípicos ou mistos, que surgem habitualmente por iniciativa dos agentes económicos, só vindo a ser regulamentados na lei posteriormente.

4) A natureza dispositiva, e não imperativa, das normas dos artigos 408.º e 409.º do Código Civil.

            3.8. É este o entendimento da doutrina que mais aprofundou o estudo do tema:

            Segundo Isabel Menéres Campos, «(…) a afirmação de que a reserva de propriedade a favor do financiador é nula por corresponder a um negócio contrário à lei não colhe, por não conseguirmos descortinar qual a norma jurídica imperativa violada. Como tivemos oportunidade de rever ao longo deste trabalho, a regra da consensualidade, constante do artigo 408.º do Código Civil, não corresponde a nenhum princípio de natureza imperativa e inderrogável. As partes podem convencionar o afastamento dessa regra, colocando, convencionalmente, o momento da transferência do contrato. A letra da lei, ao admitir a possibilidade de as partes nos contratos de alienação subordinarem a transferência do direito real ao pagamento do preço ou à verificação de um qualquer outro evento, comporta, a nosso ver, a possibilidade de a posição do vendedor resultante da cláusula de reserva de propriedade se transmitir ao financiador que, no âmbito de um contrato de compra e venda financiada por terceiro, empresta os fundos necessários ao pagamento do preço dessa aquisição»[25].

            II. Subrogação

            Resta ainda analisar se se verificam, no caso concreto, os requisitos da sub-rogação voluntária, de forma a enquadrar juridicamente a transmissão das garantias do crédito e dos seus acessórios do vendedor para o mutuante.

A ideia da sub-rogação tem sido a base da argumentação da jurisprudência que pugna pela tese da validade e foi adoptada no acórdão recorrido:

«Do quadro factual dado como assente resulta que as obrigações que originaram a reserva de propriedade foram as prestações concernentes ao contrato de mútuo, correspondentes, de algum modo, ao preço relativo ao contrato de compra e venda do veículo automóvel. 

Também consta como provado que a ré, compradora do veículo, incumpriu a sua obrigação de pagamento das prestações relativas ao contrato de mútuo uma vez que pagou apenas a primeira de um universo de 60 prestações e, por esse motivo, veio a ser declarado validamente resolvido.

Da factualidade provada resultam suficientemente verificados os pressupostos da sub-rogação convencional, ou seja, que a autora (mutuante, BB. PLC), ficou sub-rogada nos direitos da vendedora M... Portugal, Ld.a, derivados da cláusula de reserva de propriedade.

(…)

Saliente-se que, no nosso caso, não só a vendedora do veículo em causa recebeu da autora/mutuante o respectivo preço - donde a reserva de propriedade que detinha com função económica de garantia do seu direito de crédito deixou de fazer sentido - como ainda a mutuante inscreveu na sua titularidade a reserva de propriedade que a vendedora detinha sobre o dito veículo (Declaração de 05.03.2008 emitida pela M... de Portugal, Lda de cedência definitiva à BB PLC da aludida reserva de propriedade, documento junto aos autos a fls. 21).

Donde, os direitos da vendedora decorrentes do contrato de compra e venda a prestações do veículo automóvel celebrado com a ré tenham integrado a esfera jurídica da mutuante.

De todo o modo, a compradora continua vinculada ao pagamento das prestações nos mesmos termos convencionados com a vendedora cedente, apenas se alterando o sujeito legitimado para as receber, que é agora a financiadora.   

Ora, não tendo a compradora cumprido a obrigação de pagamento das prestações contratualizadas, assiste à mutuante não só a iniciativa processual de se dirigir directamente contra a compradora como também exigir desta tudo a que se tinha vinculado, no fundo, a satisfação do seu direito que, na perspectiva da mutuante, se cingiu a pedir que fosse declarada válida a resolução do contrato de financiamento para aquisição a crédito do veículo automóvel de marca M..., modelo M... Sport com a matrícula -FH- (já declarada pelo Tribunal a quo e com a qual as partes se conformaram), e também a condenação da ré a reconhecer que o referido veículo pertence à autora e a entregá-lo definitivamente acompanhado dos respectivos documentos, até porque não cumpridas as obrigações que originaram a reserva de propriedade, o titular do respectivo registo pode requerer em juízo a apreensão do veículo e dos seus documentos (art. 15.º n.º1 do Dec. Lei n.º 54/75 de 12.02).

 

Com efeito, não tendo a compradora/ré chegado a adquirir o direito de propriedade sobre o veículo em causa pois julgou-se resolvido o contrato de compra e venda a prestações, mais uma razão que nos leva a concluir nada obstar a que tal direito tenha sido assumido pela mutuante/financiadora/autora por inclusivé ter pago o preço da viatura à vendedora, tanto mais que esta instituição financiadora de crédito, in casu, é uma componente essencial do negócio de compra e venda a prestações do veículo. Podendo ler-se no "Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito" - Condições Particulares - para além do mais, na 11.ª cláusula intitulada Reserva de Propriedade que: "O presente contrato é celebrado com reserva de propriedade do veículo a favor do vendedor registado, nos termos das cláusula gerais constantes deste contrato. O vendedor registado cedeu ou cederá à BB a titularidade de tal reserva de propriedade e o comprador desde já presta o seu consentimento a tal cessão" - doc. fls. 9/10.

E na "Declaração" - doc. fls. 10 - segundo a qual "M... Portugal , Ld." ( ... ) cede definitivamente à BB PLC ( ... ) a reserva de propriedade que detém sobre o veículo automóvel da marca M..., com a matrícula -FH- que esta declara aceitar".

 

Em parecer proferido pelos serviços jurídicos da Direcção Geral dos Registos e Notariado[26], foi admitida a transmissão dos direitos do vendedor para o terceiro, através da figura da sub-rogação:

 

“O financiamento por uma instituição de crédito da aquisição de um veículo automóvel, contratada sobre a condição de reserva de propriedade, poderá dar origem a uma situação que se reconduz à figura legal da sub-rogação voluntária, nas modalidades de sub-rogação pelo credor (artigo 589º do Código Civil) ou de sub-rogação pelo devedor, em consequência de empréstimo que lhe tenha sido efectuado (artigo 591º do mesmo código).

Assim, a lei civil permite que, por actos celebrados simultaneamente com intervenção de todos os interessados:

1º) O vendedor aliene o veículo ao comprador, estipulando-se a reserva de propriedade a favor do primeiro até integral pagamento do preço;

2º) O comprador celebre um contrato de mútuo com uma instituição de crédito, para financiamento da aquisição, procedendo aquele à liquidação do preço junto do vendedor ou, em alternativa, sendo tal pagamento efectuado directamente pela instituição de crédito junto do vendedor substituindo-se ao comprador;

3º) Em consequência, o devedor sub-rogue expressamente a instituição de crédito nos direitos do vendedor com o assentimento e a declaração de transmissão da propriedade reservada a favor daquela, por parte do vendedor (na 1ª hipótese referida no número anterior); ou o vendedor sub-rogue expressamente a entidade financiadora nos seus direitos, transmitindo-se a propriedade reservada, com conhecimento simultâneo do facto por parte do comprador (na 2ª hipótese referida no mesmo número)».

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De acordo com as regras gerais das obrigações, a partir do momento em que o vendedor recebe a totalidade do preço, pelo financiador, dar-se-ia o efeito automático da transferência da propriedade para o comprador, por força da eficácia extintiva do pagamento.

Ora, no caso vertente, não pode ser essa a vontade conjectural ou hipotética das partes.

Para que não opere o funcionamento das regras gerais das obrigações – a eficácia extintiva do pagamento – as partes acordam, expressamente, que a transferência da propriedade para o comprador só se dará, não com o recebimento do valor correspondente ao preço pelo vendedor, como ocorreria numa compra e venda normal, mas com o pagamento da totalidade da dívida ao financiador, sub-rogando-se este nos direitos do vendedor.

De acordo com o instituto da sub-rogação, recebendo o vendedor a totalidade do preço do financiador, os seus direitos enquanto alienante, resultantes da reserva de propriedade, transmitir-se-iam para aquele, juntamente com o crédito do preço, por sub-rogação, figura prevista e regulada nos artigos 589.º e segs.

Como vimos, não existe qualquer proibição legal de que o titular possa ceder a sua propriedade reservada com função de garantia, como, em regra, se pode transferir um direito de crédito acompanhado da respectiva garantia a um terceiro. A transmissão da cláusula de reserva de propriedade para o financiador seria então, uma situação equivalente à transmissão de créditos garantidos por penhor ou hipoteca em conjunto com o penhor ou com a hipoteca, mas não equivalente a uma cessão da posição contratual do vendedor. A cessão restringe-se à reserva de propriedade, como garantia do crédito, e não à posição contratual do vendedor, continuando, pois, a ser este que responde perante o comprador pelo incumprimento ou pelo cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda, assumindo, nomeadamente, a responsabilidade pelos vícios da coisa alienada.

 

Deve entender-se, portanto, que tendo-se convencionado entre vendedor, mutuante e mutuário que a reserva de propriedade, que incide sobre a coisa a adquirir com recurso ao crédito, se transmite para o financiador, esta convenção ou acordo não pode deixar de significar que as partes pretenderam atribuir ao financiador os direitos que assistiriam ao vendedor numa pura venda a prestações, funcionando o pagamento das prestações do empréstimo, para o comprador, como o pagamento das prestações do preço na venda a prestações.

O acordo entre vendedora e financiadora de cessão da reserva de propriedade configura-se, assim, na posição de Isabel Menéres Campos, como um «pagamento com sub-rogação»[27]. Esta é a única forma de o financiador e o vendedor evitarem que o pagamento integral do preço (pelo financiador) tenha por efeito automático a transmissão da propriedade para o comprador, antes de o comprador pagar a totalidade das prestações do empréstimo, solução que seria desequilibrada do ponto de vista dos interesses e seguramente não querida pela lei, que criou o instituto para garantir o credor contra o risco de não pagamento. 

O pagamento com sub-rogação, nas situações em que o devedor paga com meios mutuados por terceiro, constitui um desvio à regra de que o pagamento extingue a obrigação[28]. A sub-rogação visa garantir o que foi pago pelo solvens e representa, do ponto de vista axiológico e teleológico, um meio predisposto para a tutela do interesse no regresso, proporcionando ao solvens um meio mais eficaz do que qualquer outra acção de regresso[29].

            A sub-rogação é um instrumento com uma função muito útil, na prática, na medida em que facilita o cumprimento por terceiro e pode permitir ao devedor encontrar um credor menos exigente. Como dizia Vaz Serra «(…) com a sub-rogação, o terceiro é favorecido, pois adquire os direitos do credor; também o é o credor, porque se facilita a sua satisfação; e igualmente o devedor, porque se livra porventura de um credor exigente. E não se prejudicam terceiros, pois o seu efeito é apenas a substituição de um credor por outro»[30].

            Este esquema contratual pode revestir qualquer uma das três modalidades de sub-rogação voluntária previstas nos artigos 589º, 590º e 591º: uma tem origem na declaração do credor (art. 589.º) e as duas restantes numa declaração do devedor (arts 590.º e 591.º).

Em consequência do pagamento com sub-rogação, a cláusula de reserva de propriedade transmite-se para o financiador, que passa a ser o titular da propriedade reservada com função de garantia. Nesta hipótese, o crédito não se extingue, alterando-se apenas o seu sujeito activo e transmitindo-se para o solvens o crédito, as suas garantias e os seus acessórios[31]

 

Tendo, no caso sub iudice, a vendedora declarado à mutuante a cessão da reserva de propriedade, que incide sobre a coisa a adquirir com recurso ao crédito, constando essa cláusula de cessão também no contrato de empréstimo assinado pelo comprador, que consentiu na mesma e sub-rogou o financiador nos direitos do credor, haverá que aplicar a estas declarações negociais os critérios interpretativos fixados no art. 236.º e 238.º do CC para determinar o sentido com que devem valer.

Ao abrigo da autonomia privada, a vendedora declarou a cessão da reserva de propriedade constituída a seu favor, para o mutuante, e o comprador consentiu nessa cessão, conforme resulta do contrato de financiamento, onde ficou estipulado na cláusula 11.º e na cláusula A, respectivamente, o seguinte: «O Vendedor Registado cedeu ou cederá à BB a titularidade de tal reserva de propriedade, e o Comprador desde já presta o seu consentimento a tal cessão»; «Nos termos do disposto no artigo 591.º do Código Civil o Comprador sub-roga a BB nos direitos de Vendedor registado, decorrentes da reserva de propriedade. As despesas inerentes à constituição, registo e cancelamento da reserva de propriedade são da exclusiva responsabilidade do Comprador».

Segundo o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 25 de Março de 2010, relatado pelo Conselheiro Sebastião Póvoas (processo n.º 682/05. 7TBOHP.C1.S1), «A vontade real constitui matéria de facto da exclusiva competência das instâncias. Já a vontade hipotética, por resultar do exercício interpretativo, na situação do n.º 1 do artigo 236.º do Código Civil, pode ser apurada pelo Supremo Tribunal de Justiça e deve coincidir com o sentido apreensível pelo declaratário normal (…)».     

A regra estabelecida no n.º 1 do art. 236.º é esta: o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. Consagra-se uma doutrina objectivista – a teoria da impressão do declaratário – com duas excepções de natureza subjectivista: os casos de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido (art. 236.º, n.º 1, 2.ª parte), ou de o declaratário conhecer a vontade real do declarante (art. 236.º, n.º 2).

Como dizem Pires de Lima/ Antunes Varela, “A normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante.”[32]

“Além de ser um acto determinante (meio de auto-determinação), a declaração é, também, porém, um acto social de comunicação, que tem de ter relação com aquele a quem se destina ou o conhece”, conforme afirma Mota Pinto[33]. Em consequência, nas palavras de Menezes Cordeiro, “A autonomia privada tem, assim, de ser temperada com o princípio da tutela da confiança: o Direito atribui-lhe determinados efeitos na medida em que ela se combine com esta. Ao contrário, no entanto, das construções conceptuais, entende-se hoje que a confiança não se opõe à autonomia privada, delimitando-a: ambos os princípios se articulam entre si para, mutuamente, se tornarem aplicáveis.”[34] A interpretação da declaração negocial deve ser, assim, assumida como uma “operação concreta, integrada em diversas coordenadas”, tendo em conta “o conjunto do negócio, a ambiência em que ele foi celebrado e vai ser executado”[35].

 

O Código não se pronuncia sobre o problema de saber quais as circunstâncias atendíveis para a interpretação. Serão atendíveis todos os coeficientes ou elementos que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário efectivo, teria tomado em conta. A título exemplificativo, a doutrina refere os termos do negócio; os interesses que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento); a finalidade prosseguida pelo declarante; as negociações prévias,; as precedentes relações negociais entre as partes; os usos da prática; os modos de conduta por que, posteriormente, se executou o negócio concluído[36].

Interpretadas as declarações negociais, de acordo com os critérios descritos, tal não pode deixar de significar, no contexto das negociações e dos interesses em causa, de acordo com uma ideia de razoabilidade, que o comprador, para além de ficar adstrito ao cumprimento da dívida, emergente do contrato de mútuo, consente que o financiador fique garantido contra o não cumprimento através da cláusula de reserva de propriedade e sub-roga o terceiro financiador nos direitos do vendedor.

 

A cláusula A das condições gerais do contrato de financiamento, significa, no contexto em que foi proferida, de acordo com os critérios do art. 236.º, n.º 1 do CC, uma declaração expressa, no documento de empréstimo, de que a coisa se destina ao cumprimento da obrigação e de que o mutuante fica sub-rogado, pelo devedor, nos direitos do credor - art. 591.º, nºs 1 e 2 do CC.

  

Por força das regras da sub-rogação, o financiador (BB), ao pagar o crédito do vendedor, fica sub-rogado nos direitos deste (M... Portugal), transmitindo-se para aquele o crédito e os seus acessórios e garantias, incluindo a cláusula de reserva de propriedade constituída a favor do vendedor.  

Sendo assim, perante o incumprimento do comprador, o financiador poderá assim utilizar, em sua defesa, o direito de resolução do contrato de mútuo e o direito de exigir a restituição do bem e dos respectivos documentos.

 

                Em conclusão, improcedem todas as conclusões da alegação de recurso do recorrente.

            IV – Decisão

            Pelo exposto, decide-se na 1.ª Secção deste Supremo Tribunal de Justiça, negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

            Custas a cargo da ré. 

Lisboa, 16 de Setembro de 2014

Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Sebastião Póvoas

Moreira Alves (Com declaração de voto de vencido)

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Proc. n.º 844/09.8TVLSB.L1.S1



Voto de vencido (do 2º adjunto).

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A A. –AA., pediu, além do mais que não está aqui em questão, a condenação da Ré (BB, Ld.ª) a reconhecer que o veículo M... de matrícula ...-FH-... lhe pertence e, consequentemente proceda à sua entrega definitiva à A., bem como os respectivos documentos.
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A 1ª instância teve por improcedentes tais pedidos, mas a Relação, em sede de apelação da A., julgou-os procedentes.

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O presente acórdão confirmou a decisão da Relação com os votos conformes da Exª relatora e do Exmº 1º adjunto.
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Salvo o devido respeito, não concordo com tal decisão.

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Como resulta dos autos a M... Ld.ª, vendeu à sociedade Ré o veículo automóvel de matrícula ...-FH-.., tendo reservado a seu favor a propriedade do veículo vendido.
Porém, foi a A. quem financiou a aludida aquisição celebrando, para o efeito, com a Ré compradora, o contrato de financiamento para aquisição a crédito nº 2251, documentado nos autos.
Na sequência desse financiamento a vendedora cedeu à A., com consentimento da Ré, a titularidade da referida reserva de propriedade, reserva que se encontra registada na Conservatória do Registo Automóvel a favor da A. (financiadora).
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Ora, salvo melhor opinião, atento o disposto nos Artºs 409º nº1 do C.C. e 5º nº1 b) do D.L. 54/75, pensamos que só nos contratos de alienação será lícito ao vendedor/ proprietário clausular a reserva de propriedade.
O contrato de mútuo que a A. celebrou com a Ré, não é, evidentemente, um contrato de alienação e a A. nunca adquiriu a propriedade do veículo em causa, limitando-se a financiar a aquisição.
Assim sendo, não tendo a A. a qualidade de proprietária do veículo não se vê como possa reservar para si a propriedade de algo que nunca foi sua, e, com base na titularidade da reserva, obter a declaração de propriedade sobre um veículo que nunca lhe pertenceu, conseguindo a sua restituição definitiva, aliás, corolário da qualidade de proprietária.
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A cláusula, enquanto titulada pela A., afigura-se-nos nula.
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E não se vê que os citados preceitos possam ser interpretados actualísticamente no sentido da douta decisão maioritária, visto que na letra da lei não existe o mínimo de correspondência verbal, no referido sentido, ainda que imperfeitamente expresso (Artº 9º nº 2 do C.C.).
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Portanto, não parece justificado lançar-se mão de mecanismos jurídicos como o da “alienação da propriedade em garantia” ou da “transmissão da propriedade em garantia” consagrados no direito brasileiro ou alemão, para justificar a licitude da reserva da propriedade a favor da financeira (que não seja, simultaneamente a vendedora), uma vez que tais mecanismos não foram adoptados pelo nosso direito positivo.
Assim, por muito actualistas que sejam tais concepções, a sua aplicação, traduzir-se-á na criação de uma nova norma, o que não é função da jurisprudência nem do intérprete.

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* *
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Seja como for, mesmo a admitir-se que na interpretação do Artº 409º do C.C. caberia a constituição de reserva de propriedade para garantir um critério alheio, tal só significaria que o comprador não adquiriria a propriedade da coisa comprada ao vendedor reservatório, enquanto não pagasse o crédito ao terceiro financiador.
Mas não significaria a atribuição ao terceiro da propriedade da coisa, que se manteria na esfera jurídica do vendedor.
*

Por outro lado, não se vê como a dita propriedade do veículo pudesse ser adquirida pela A. (financeira) por via da cessão ou sub-rogação.
Tais institutos são típicos do direito das obrigações, que não dos direitos reais e, se a dúvida ainda era sustentável face à redacção do Artº 785º do Código de 1867, o novo Código eliminou-a com toda a clareza, restringindo intencionalmente o objecto da cessão aos créditos.
Notar-se-á, ainda, que a aplicação das regras da cessão de créditos a quaisquer outros direitos, consignada no Artº 588º do C.C., não abrange os direitos reais cuja forma de transmissão e constituição é regulada no Livro das Coisas (Artºs 1316º e seg.).
(Confr:
A. Varela – Direito das Obrigações em Geral – 2º vol.- 285;
Menezes Cordeiro – Direito das Obrigações – 2º vol. – 90, 91, ou
Almeida Costa – Direito das Obrigações, 4ª Ed. – 554).
*

Portanto, por via da cessão de créditos ou sub-rogação, transmitem-se direitos de crédito, não se transmitem nem se constituem direitos reais.
Como resulta do Artº 1316º do C.C., o direito real de propriedade apenas se adquire por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei (entre os quais não se conta a cessão de créditos ou a sub-rogação).
Ora, não consta dos autos a celebração de qualquer contrato por via do qual a A. (financeira) tenha adquirido à vendedora, a propriedade do veículo em questão, nem consta que tenha adquirido essa propriedade por qualquer outra forma idónea para produzir tal aquisição.
Logo, não tendo a A. a qualidade de proprietária do veículo, não podia assumir a titularidade da reserva de propriedade e muito menos reivindicar tal propriedade com a consequente entrega definita do veículo.
*

Pelos motivos expostos resumidamente, teria julgado improcedente a revista, repondo a decisão da 1ª instância.
*

Lisboa, 30 de Setembro de 2014
Moreira Alves


_________________________
[1] Doravante todas as disposições legais sem indicação de proveniência pertencem ao Código Civil.
[2] Cf. Gravato Morais, «Anotação ao acórdão da Relação de Lisboa, de 21.02.2002», Cadernos de Direito Privado, n.º 6, 2004, p. 52.
[3] Cf. Gravato Morais, Contratos de crédito ao consumo, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 304 e 305.
[4] Defendendo esta posição, ibidem, p. 308.
[5] Cf. Maria Isabel Helbling Meneres Campos, A reserva de propriedade: Do vendedor ao financiador, Coimbra Editora, Coimbra, 2013, p. 355. A restante doutrina, ou nem se refere à questão ou trata-a de forma breve. Classificando a questão como controversa, mas criticando os argumentos da tese da invalidade com base na análise de interesses, entendendo que o interesse subjacente à cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador é retirar ao adquirente a faculdade de alienação da coisa, conservando-a no património executável do devedor, vide Nuno Manuel Pinto Oliveira, Contrato de Compra e Venda, Noções Fundamentais, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 56-57.
[6] Cf. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Volume III, Almedina, Coimbra, 2014, pp. 60-62; Isabel Menéres Campos, A reserva de propriedade…ob. cit., pp. 378-379 e 381. A tese da condição suspensiva tem sido criticada pela doutrina que se tem debruçado sobre o tema da natureza jurídica da reserva de propriedade: Ana Maria Peralta, A posição jurídica do comprador na compra e venda com reserva de propriedade, Coimbra, Almedina, 1990, pp. 142-148, salientando a diferença entre o instituto da reserva e o da condição; Isabel Menéres Campos, A reserva de propriedade…ob. cit., pp. 250-255; Menezes leitão, Direito das Obrigações, III, ob. cit., pp. 56-57, que faz uma síntese dos argumentos contra a tese da condição suspensiva: o cumprimento da obrigação de pagamento do preço não é tecnicamente um evento condicional, pois constitui um dos elementos essenciais do negócio e o vendedor pode proceder à sua cobrança em caso de não cumprimento; a aquisição da propriedade pelo comprador verifica-se no momento do pagamento do preço, e não retroage à data da conclusão do negócio, como exige o art. 276.º do CC; a solução do art. 796.º, n.º 3 do CC, segundo a qual o risco pela perda ou perecimento da coisa corre por conta do vendedor é inaceitável, pois quem tem o gozo, o uso e a fruição da coisa é o comprador.
[7] Cf. Isabel Menéres Campos, A reserva de propriedade…ob. cit., p. 381.
[8] Cf. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, III, ob. cit., pp. 61-62.
[9] Cf. Isabel Menéres Campos, A reserva de propriedade…ob. cit., p. 381.

[10] Parece ser este o entendimento de alguns dos votos de vencido no acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 10/2008, publicado no Diário da República, 1.ª série — N.º 222 — 14 de Novembro de 2008, que versando embora uma questão jurídica distinta da questão agora tratada, com ela se relaciona, dependendo também da natureza jurídica que se reconheça à reserva de propriedade. Veja-se a este propósito, a declaração de voto do Conselheiro Sebastião Póvoas: «Não há pois uma reserva de propriedade em sentido próprio, e nos termos laborados pela doutrina, mas sim uma nova figura que, embora com o mesmo nomen juris prefigura uma diferente modalidade que, como adiante melhor se dirá, tem a natureza primeira de garantia de crédito», designando-a mais adiante de «reserva garantia» ou reserva atípica».
[11] Cf. Isabel Menéres Campos, A reserva de propriedade…ob. cit., p. 380.
[12] Cf. Isabel Menéres Campos, A reserva de propriedade…ob. cit., p. 195. Defendendo, também, o conceito de propriedade com função de garantia, vide Lima Pinheiro, «A cláusula de reserva de propriedade», in Estudos de Direito Civil, Direito Comercial e Direito Comercial Internacional, almedina, Coimbra, 2006, pp. 16-17 e p. 65 e Luís Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2013, p. 420.
[13] Sobre o regime insolvencial, vide Luís Miguel Pestana de Vasconcelos, Garantias Bancárias, ob. cit., pp. 443-448.

[14] Sobre o princípio do numerus clausus, vide Oliveira Ascensão, A tipicidade dos direitos reais, Lisboa, 1968, pp. 121-122 e Menezes Cordeiro, Direitos Reais, Lisboa, 1993, pp. 334-335, para quem o legislador não tem o monopólio da classificação dos direitos, cabendo ao intérprete a prerrogativa de qualificar determinados direitos como reais, face aos dados legais, incluindo na categoria dos direitos reais situações não qualificadas expressamente como tal pelo legislador, mas a que este atribuiu um regime jurídico semelhante aos direitos reais.
[15] Cf. Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos atípicos, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2009, pp. 258 e ss; Maria João Vaz Tomé/Diogo Leite de Campos, A propriedade fiduciária (Trust). Estudo para a sua consagração no direito português, Coimbra, Almedina, 1999, pp. 199 e ss; Carvalho Fernandes, «A admissibilidade do negócio fiduciário no direito português», in Estudos sobre a simulação, Quid Iuris, Lisboa, 2004, p. 254 e ss.
[16] Cf. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, pp. 188 e seguintes.
[17][17] Disponível para consulta in http://civil.udg.es/normacivil/estatal/contract/lvpbm.html, consultada em 9 de Setembro de 2014.
[18] Cf. Cass. Com., 15 mars 1988; 11 juill.1988, Bull. Civ., IV, n.º 241; 5 oct. 1995, Bull. Civ. IV, n.º 314, apud Simler/Delebecque, Droit civil. Les suretés. La publicite foncière, Dalloz, Paris, 1995, pp. 501-502. No mesmo sentido, defendendo a natureza jurídica da reserva de propriedade como garantia acessória ao crédito e, portanto, transmissível pelo vendedor a um terceiro, vide H. et L. Mazeaud/ J. Mazeaud, F. Chabas, Leçons de Droit Civil, 7.ª edição, Montchrestien, Paris, 1999, n.º 57, 1, p. 138 e Laurent Aynès/Pierre Crocq, Les Sûretés, La publicité foncière, Defrénois, Paris, 2006, n.º 761, pp. 344-345.
[19] Cf. Beckmann, Staudingers Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch, Berlin, 2014, § 449 BGB, n.º 101, pp. 708-709.
[20] Cf. Luís Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias, ob. cit., pp. 425-428.
[21] Cf. Anna Veneziano, Le Garanzie Mobiliari Non Possessorie, Giuffrè Editore, Milano, 2000, pp. 42-51, em particular, pp. 48-49. 

[22] Sobre a necessidade de introduzir, nas vendas mobiliárias e imobiliárias, uma cláusula de reserva de propriedade, por razões práticas e económicas, ligadas à obtenção do crédito, assim como por razões sociais, a fim de permitir às pessoas mais desfavorecidas a possibilidade de ter acesso à propriedade, cf. Saint-Alary-Houin, «Réflexions sur le transfert différé de la propriété immobilière», Mélanges Raynaud, 1985, pp. 735-737.

[23] A favor do carácter dispositivo da norma do art. 408.º, vide Carlos Ferreira de Almeida, «Transmissão Contratual da Propriedade – Entre o Mito da Consensualidade e a Realidade de Múltiplos Regimes», Themis, Ano VI, n.º 11, 2005, pp. 7-9; Assunção Cristas, Transmissão Contratual do Direito de Crédito, Do Carácter Real do Direito de Crédito, Coimbra, 2005, p. 429; Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, 2.ª edição revista e aumentada, Estoril, 2007, p. 58; Maria Clara Sottomayor, Invalidade e Registo, A protecção do terceiro adquirente de boa fé, Almedina, Coimbra, 2010, p. 183 e ss. Na doutrina italiana, no mesmo sentido, vide Camardi, «Principio Consensualistico, Produzione e Differimento dell’Effetto Reale. I Diverso Modelli», in Studi in onore di Pietro Rescigno, III, Diritto Privato, 2. Obbligazioni e contratti, Milano, 1998, pp. 133-163, Sacco/De Nova, Il contratto, vol. I, Torino, 2004, p. 905; Portale, «Principio consensualistico e conferimento di beni in proprietà», Rivista Società, 1970, pp. 936-937 e Franzoni, Degli effetti del contratto, vol. II, Integrazione del contratto suoi effetti reali e obbligatori, Artt. 1374-1381, Milano, 1999, pp. 331-332; Franco Ferrari, «Vendita internazionale di beni mobili, Tomo I – Art. 1-13, Ambito di applicazione, Disposizione generali», in Commentario del Codice Civile Scialoja-Branca, Libro quarto: Obbligazioni, Bologna, 1994, p. 91.

[24] Cf. Carlos Ferreira de Almeida, «Transmissão Contratual da Propriedade – Entre o Mito da Consensualidade e a Realidade de Múltiplos Regimes», 2005, pp. 9-10; Oliveira Ascensão, Direito Civil, Reais, Coimbra, 1993, p. 312; Assunção Cristas/Mariana França Gouveia, «Transmissão da Propriedade de Coisas Móveis e Contrato de Compra e Venda, Estudo Comparado dos Direitos Português, Espanhol e Inglês», 2001, p. 55-61; Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, ob. cit., p. 58; Maria Assunção Cristas, Transmissão Contratual do Direito de Crédito, ob. cit., pp. 428-429.
[25] Cf. Isabel Menéres Campos, A reserva de propriedade…ob. cit., pp. 382-383.
[26] Cf. Boletim dos Registos e Notariado, nº 5/2001, Caderno I
[27] Cf. Isabel Menéres Campos, A reserva de propriedade…ob. cit., pp. 366 e ss.
[28] Cf. Júlio Gomes, «Do pagamento com sub-rogação, mormente na modalidade de sub-rogação voluntária», in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Teles – Novos Estudos de Direito Privado, Vol. I, Coimbra, Almedina, 2002, pág. 114.
[29] Ibidem, p. 121.
[30] Cf. Vaz Serra, «Sub-rogação nos direitos do credor», BMJ, N.º 37 – Julho - 1953, p. 7.
[31] Isabel Menéres Campos, A reserva de propriedade…ob. cit., p. 372.
[32] Cf. Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I (Artigos 1.º a 761.º), 4.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Limitada, Coimbra, 1987, p. 223.
[33] Cf. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 442.
[34] Cf. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, Tomo I, Almedina, Coimbra, 2005, p. 754.
[35] Ibidem, p. 755.
[36] Cf. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, ob. cit., pp. 446-447.