Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1604/20.0T8LLE-A.E1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CURA MARIANO
Descritores: ABUSO DO DIREITO
VENDA JUDICIAL
AÇÃO EXECUTIVA
EMBARGOS DE EXECUTADO
ÓNUS DA PROVA
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
SUPRESSIO
Data do Acordão: 10/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
Mesmo que se prove uma inação do credor durante 5 anos após a realização de uma venda judicial dos bens que garantiam a satisfação do seu crédito, a exigência do pagamento da parte do crédito não satisfeita com o produto daquela venda, após aquele período de tempo, não constitui, só por si, um abuso de direito.
Decisão Texto Integral:
I - Relatório

O então Banco Espírito Santo, S.A., ao qual veio a suceder o Novo Banco, S.A., instaurou processo executivo para pagamento de quantia certa, pedindo o pagamento parcial do valor de diversos créditos sobre o Executado.

Este deduziu oposição, através de embargos, alegando a existência de uma situação de litispendência e o pagamento de parte da quantia exequenda.

O Exequente contestou os embargos.

Realizada audiência de julgamento foi proferida sentença que julgou totalmente improcedentes os embargos.

O Executado recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação que, por acórdão proferido em 12.05.2022, julgou improcedente o recurso, confirmando o decidido na 1.ª instância.

O Executado interpôs recurso de revista do acórdão da Relação, discordando da solução dada nesse aresto à verificação de uma situação de abuso de direito, a qual foi pela primeira vez conhecida neste processo pelo Tribunal da Relação, em resposta às alegações da apelação.

São as seguintes as conclusões das suas alegações de recurso:

a) Os bens imóveis dados em garantia dos empréstimos foram adquiridos, na venda em execução, pelo Banco exequente, ora recorrido, em 8/10/2015.

b) O ora recorrente ficou convencido que o banco credor se considerava totalmente ressarcido do seu crédito.

c) Durante mais de 5 anos o Novo Banco não contactou ou informou, por qualquer forma, o ora recorrente de que não se considerava totalmente ressarcido do seu crédito.

d) Do ponto de vista do ora recorrente tinha sido feita uma dação em cumprimento que extinguiu a dívida perante o Novo Banco.

e) O silêncio persistente do Novo Banco cimentou essa profunda convicção.

f) O exequente Novo Banco dispõem de departamentos de recuperação de créditos e de contencioso, altamente profissionalizados, que lhe permitiam, logo a seguir à venda em execução dos imóveis, contactar o recorrente a informar a situação e a reclamar o crédito.

g) Mais poderia desde logo instaurar a nova execução.

h) A instauração da presente execução, mais de 5 anos depois, quando até já ocorreu a prescrição da dívida, configura um exercício abusivo do direito, que excede, manifestamente, os limites da boa fé.

i) Sendo tal exercício ilegal por abuso de direito, artigo 334º, do Código Civil,

j) O exequente Novo Banco ao vir , em finais de 2020, instaurar nova execução de uma dívida, que aliás já se encontrava prescrita, actuou em manifesto abuso de direito, designadamente na modalidade de “venire contra factum proprium”, e seguramente na modalidade da “supressio”, excedendo manifestamente os limites da boa-fé.

l) Tal exercício do direito é ilegal e não consentido por lei. Vide Acórdão do STJ de 12.11.2013 ... e Acórdão do S.T.J., 6.ª secção, de 05.06.2018 ...

m) Ao assim não considerar o Acórdão recorrido violou, por erro de interpretação e nos pressupostos de facto, o disposto no artigo 334º, do CC.

Termos em que, face ao exposto, deve o presente recurso obter provimento, concedendo-se a revista e, por via disso, deve o Acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que julgue procedente a exceção perentória do abuso de direito invocada.

Não foi apresentada resposta.

                                               *

II – Objeto do recurso

Tendo em consideração as conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida a questão a decidir neste recurso é a de saber se a exigência do pagamento pelo Executado dos créditos exequendos integra uma situação de abuso de direito.

                                               *

III – Os factos

Neste processo encontram-se provados os seguintes factos:

- O Banco Internacional de Crédito, S.A. extinguiu-se por força da sua incorporação no Banco Espírito Santo, S.A que assim sucedeu na titularidade das obrigações exequendas, tendo o Novo Banco, S.A. sucedido ao Banco Espírito Santo, S.A. na titularidade das obrigações exequendas e respetivas garantias.

- Em 23/07/2002 o Banco Internacional de Crédito, S.A. celebrou com o Embargante AA um contrato de mútuo com hipoteca, nos termos do qual emprestou ao segundo o montante de € 124.699,47, ficando estabelecido que o capital mutuado venceria juros à taxa inicial de 5,25%, alterável em função da variação que viesse a sofrer no decurso do empréstimo, acrescida de sobretaxa máxima legal de 4% no caso de mora - cfr. documento n.º 1 junto com o requerimento executivo, que aqui se dá por reproduzido

- Na mesma data, o Banco Internacional de Crédito, S.A. celebrou com o Embargante AA ainda um outro contrato de mútuo com hipoteca, nos termos do qual emprestou ao segundo o montante de € 124.699,47, ficando estabelecido que o capital mutuado venceria juros à taxa inicial de 5,25%, alterável em função da variação que viesse a sofrer no decurso do empréstimo, acrescida de sobretaxa máxima legal de 4% no caso de mora- cfr. documento n.º 2 junto com o requerimento executivo, que aqui se dá por reproduzido.

- Em 31/07/2002 o Banco Internacional de Crédito, S.A. celebrou com o Embargante AA ainda um contrato de mútuo com hipoteca, nos termos do qual emprestou ao segundo o montante de € 137.169,42, ficando estabelecido que o capital mutuado venceria juros à taxa inicial de 5%, alterável em função da variação que viesse a sofrer no decurso do empréstimo, acrescida de sobretaxa máxima legal de 4% no caso de mora- cfr. documento n.º 3 junto com o requerimento executivo, que aqui se dá por reproduzido.

- As últimas prestações pagas nos contratos acima referidos em 2º, 3º e 4º foram as vencidas em 23/12/2003, 23/11/2003 e 31/03/2004, respetivamente.

- A aqui Embargada, com fundamento nos títulos executivos em que se funda a execução de que estes autos constituem um apenso, reclamou créditos na execução n.º 2174/05.... do Juízo de Execução ...-J..., em que é executado o aqui Embargante, pedindo que fosse reconhecido e graduado o seu crédito no montante de 400.230,88 euros, acrescido de juros contados desde 24/6/2009 e da sobretaxa de mora- cfr. documento junto com a contestação.

- No apenso de reclamação de créditos com o n.º 2174/05.... do Juízo de Execução ...-J..., foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos em 20/5/2010, onde:

-foi reconhecido o crédito reclamado pelo Banco Espírito Santo, S.A. referente a três contratos de mútuo celebrados com o executado, no montante de €124.699,47, de €124.699,47 e de €137.169,42, dos quais se encontram em dívida, respetivamente, €92.033,43, €94.039,60 e €93.710,81, a que acrescem juros vencidos, no montante de €40.080,56, de €41.565,51 e de €38.800,97, num total de €400.230,88, e juros vincendos, às taxas contratuais, e que para garantia do pagamento dos quais foram constituídas hipotecas voluntárias que se encontram registadas sobre as referidas frações designadas pelas letras “A”, “J” e “L”.

- foram graduados os créditos do seguinte modo:

Em relação à fracção A:

Em 1º lugar: o crédito reclamado, até ao montante máximo de €181.214,52.

Em 2º lugar: o crédito exequendo;

Em relação à fracção J :

Em 1º lugar: o crédito reclamado, até ao montante máximo de €160.740,47.

Em 2º lugar: o crédito exequendo;

Em relação à fracção L:

Em 1º lugar: os créditos reclamados, até ao montante máximo de €160.740,47.

Em 2º lugar: o crédito exequendo.

Tudo cfr. documento junto com a contestação.

- Na execução n.º 2174/05.... do Juízo de Execução ...-J... foram penhorados os imóveis hipotecados para garantia do crédito referido em 2º a 4º.

- No âmbito da execução n.º 2174/05.... do Juízo de Execução ...-J..., por escritura pública outorgada em 8/10/2015 foram vendidas ao aqui Embargado, com dispensa de depósito do preço, as frações autónomas penhoradas nessa execução, concretamente:

-a fracção autónoma designada pela letra A, pelo preço de 116.100,00 euros;

-a fracção autónoma designada pela letra J, pelo preço de 114.000,00 euros;

-a fracção autónoma designada pela letra L, pelo preço de 116.500,00 euros;

Tudo cfr. escritura pública junta com a contestação.

10º- Na execução n.º 2174/05.... do Juízo de Execução ...-J..., o aqui Embargado pagou a quantia de 14.017,05 euros a título de custas da execução, por ter sido dispensado do depósito do preço e para os fins previstos no n.º 2 do art.º 824º do Código de Processo Civil- cfr. documentos juntos com o requerimento de 15/10/2021.

11º- Considerando o valor da venda das fracções autónomas referida em 9º, e presumindo a satisfação parcial dos seus créditos pelo valor das vendas, o Embargado procedeu à imputação desses valores nos contratos de mútuo celebrados.

12º- Assim, foi considerado satisfeito o crédito decorrente do mútuo referido em 2º.

13º- E foi considerado parcialmente satisfeito o crédito decorrente do mútuo referido em 3º, ficando em divida o valor de 31.885,30 euros a título de capital, acrescida dos respetivos juros contratuais e de mora, até efetivo e integral pagamento.

14º- E foi considerado por satisfazer o crédito decorrente do mútuo referido em 4º, ficando em divida o valor de 93.710,81 euros a título de capital, acrescida dos respetivos juros contratuais e de mora, até efetivo e integral pagamento

15º- À data de 20/10/2021, o valor em divida de capital e juros somava a quantia de 47.111,59 euros quanto ao crédito decorrente do mútuo referido em 3º, e a quantia de 223.597,44 euros quanto ao crédito decorrente do mútuo referido em 4º.

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IV – O direito aplicável

Neste recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o Executado vem invocar que a exigência do pagamento dos créditos exequendos integra a figura do abuso de direito, nas modalidades de venire contra factum proprio e supressio.

Argumenta que o Exequente, em 2015, obteve o pagamento parcial dos seus créditos sobre o Executado, através da venda judicial dos imóveis que os garantiam, só tendo interposto a presente execução cerca de cinco anos depois, tendo a inação do Exequente durante esse período criado no Executado a convicção que, com aquela venda, tinha ocorrido uma dação em pagamento, pelo que os créditos sobre o Executado se encontravam extintos.

Entende o Executado que a propositura da ação executiva contraria essa passividade durante o referido período de cinco anos, desrespeitando a confiança que lhe foi criada no sentido dos créditos cujo pagamento agora se reclama ficaram totalmente extintos com a venda dos imóveis.

Sem que se adote uma classificação rígida das diversas modalidades da figura do abuso de direito, pode afirmar-se que nas situações de venire contra factum proprio verifica-se uma contradição direta entre a situação jurídica originada pelo factum próprio e um segundo comportamento do mesmo autor. Na supressio, para alguns encarada como uma sub-categoria do venire, o não exercício do direito, durante um lapso de tempo significativo, contraria os ditames da boa fé no exercício dos direitos.

Ora, no presente processo, não se encontra, desde logo, provado que durante o período que mediou entre a satisfação parcial dos créditos do Exequente sobre o Executado e a propositura da ação executiva, se tenha verificado uma total inação do Exequente, no que respeita à cobrança dos créditos exequendos, pelo que não está demonstrado nem um comportamento omissivo contrário ao exercício do direito através da instauração da presente execução, nem um não exercício do direito durante um período de tempo significativo, uma vez que esse exercício não tem que ser necessariamente judicial.

O ónus da prova da inação do Exequente competia ao Executado, como elemento integrante do abuso de direito, enquanto exceção perentória a opor ao exercício dos direitos de crédito do Exequente sobre o Executado (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil), pelo que é sobre este último que recaem as consequências negativas da ausência de prova desse elemento fáctico.

Além disso, sempre se dirá que, não deixando de ter em consideração as circunstâncias em que se verificou a satisfação parcial dos créditos do Exequente, o tempo que haja decorrido entre a data em que foi definitivamente apurado o valor dos créditos não satisfeito com a venda dos imóveis do Executado e a data da instauração da presente execução, só por si, não se revelava idóneo à criação de uma situação de confiança que justificasse a aplicação da figura do abuso de direito, quer na modalidade do venire contra factum próprio, quer da supressio.

Não se verificando os pressupostos fácticos necessários à verificação da alegada situação de abuso de direito, deve o presente recurso ser julgado improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

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Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso de revista interposto pelo Executado, confirmando-se a decisão recorrida.

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Custas do recurso pelo Executado.

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Notifique.

                                               *

Lisboa, 13 de outubro de 2022

                                                          

João Cura Mariano (Relator)

Fernando Baptista

Vieira e Cunha