Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1105/18.7T9PNF.P1-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: LEONOR FURTADO
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
IDENTIDADE DE FACTOS
PERDA DE INSTRUMENTOS
PRODUTOS E VANTAGENS
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
Data do Acordão: 06/23/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: VERIFICADA A OPOSIÇÃO DE JULGADOS.
Sumário :
I - Verifica-se a oposição de julgados, se os acórdãos recorrido e fundamento adoptaram soluções opostas na resolução da mesma questão de direito, que se lhes deparara e que directamente respeita ao art. 111.º do CP: o modo de conjugar a declaração judicial de perda das vantagens derivadas do crime com a indemnização civil atribuível ao ofendido.
II - A situação fáctica juridicamente relevante nos dois acórdãos é idêntica quando, traduzindo-se em ocorrências processuais, os arestos em confronto resolveram a questão jurídica fundamental mediante a enunciação de proposições jurídicas mutuamente contrárias e facilmente deles extraíveis, e em sentidos logicamente contrários, ou seja, opostos.
Decisão Texto Integral:



Recurso Fixação de Jurisprudência
Processo: 1105/18.7T9PNF.P1

5ª Secção Criminal


I – RELATÓRIO

1. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação do Porto, interpôs Recurso Extraordinário de Fixação de Jurisprudência, nos termos dos arts.º 437.° e seguintes do Código de Processo Penal (CPP), para o Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (TRPRT), proferido em 19/01/2022 (acórdão recorrido), considerando que, no domínio da mesma legislação, se encontra em oposição com outro aresto daquela mesma Relação, proferido em 10/12/2019, 4.ª Secção, no Processo n.º 282/18.1T9PRD (acórdão fundamento), disponível em www.dgsi.pt.

Por despacho de 11/03/2022, o TRPRT admitiu o presente recurso.

2. Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no sentido de que deverá ser declarada a oposição de julgados, determinando-se o prosseguimento do processo, nos seguintes termos:

(…) a identidade das situações de facto parece-nos inquestionável.

Em ambas os arguidos são condenados no pagamento aos ofendidos de indemnização civis fundadas na prática dos crimes (150.000 euros, acrescidos de juros de mora, por danos patrimoniais, e 1000 euros, acrescidos de juros de mora, por danos não patrimoniais, no acórdão recorrido; 69.591,80 euros, acrescidos de juros de mora sobre o montante de 55,230,73 euros, no acórdão fundamento) e em ambas os arguidos obtiveram vantagens económicas com os crimes por que foram condenados coincidentes, ainda que parcialmente, com os valores da condenação nos pedidos de indemnização civil (150.000 euros, no acórdão recorrido, 55.230,73 euros, no acórdão fundamento).

Todavia, enquanto que o acórdão recorrido indeferiu a perda a favor do Estado da vantagem económica por considerar que nas hipóteses em que o arguido já foi condenado a pagar essa quantia a título de indemnização civil ou em que o ofendido não pretende deduzir pedido de indemnização por já ter recorrido a outros meios que lhe dão as mesmas prerrogativas que obteria com a dedução do pedido cível no processo penal carece de fundamento o recurso à declaração de perda de bens a favor do Estado com um objecto coincidente à dedução do pedi-do de indemnização, o acórdão fundamento, reconhecendo a autonomia e a diferente natureza e finalidade do instituto da perda de ventagens, entendeu que o tribunal não pode deixar de decretar a perda de vantagens obtidas com a prática do crime independentemente de o lesado ter deduzido ou não pedido de indemnização civil (e do seu desfecho), ou de ter optado por outros meios alternativos de cobrança do crédito.

Ou seja, para situações de facto similares, os dois acórdãos decidiram de forma oposta em virtude de apostarem numa diferente interpretação do art. 111.º do CP (na redacção da Lei 32/2010, de 02.09).

Destarte, reunidos que estão, na nossa perspectiva, todos os pressupostos de admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, incluindo o da oposição de julgados, emite-se parecer no sentido do seu prosseguimento nos termos do art. 441.º, n.º 1, parte final, do CPP.”.

Interessa, pois, saber se para a resolução do caso concreto o TRPRT, em dois acórdãos diferentes, chegou a soluções antagónicas sobre a mesma questão fundamental de direito.

3. Colhidos os vistos cumpre decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Enquadramento jurídico

O recurso para fixação de jurisprudência tem como objectivo a uniformização da jurisprudência.

Nos termos do art.ºs 437.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, a oposição de julgados justificativa dos recursos para fixação de jurisprudência pressupõe que os acórdãos em confronto hajam decidido a mesma questão jurídica fundamental em sentidos reciprocamente contrários ou contraditórios – pois a contrariedade e a contradição são as únicas espécies possíveis de oposição entre proposições de um qualquer tipo.

Note-se ainda que a identidade da questão jurídica depende: i) da essencial permanência da legislação aplicada nos dois arestos – art.º 437.º, n.º 3, do CPP; ii) que a questão só se mostra fundamental – e não meramente argumentativa e, por isso, acessória – quando a sua resolução decisivamente determinou algum dos comandos decisórios dos acórdãos; iii) e que, nas hipóteses em que o confronto se faça entre acórdãos das Relações, o recurso extraordinário do presente tipo não será admissível se a pronúncia do acórdão recorrido for conforme à jurisprudência anteriormente fixada pelo STJ – art.º 437.º, n.º 2, do CPP.

Assim, para se averiguar da ocorrência de uma oposição entre dois julgados, há que abstrair, da globalidade dos discursos de cada um deles, as proposições jurídicas que traduzam o essencial das suas pronúncias decisórias no ponto conflitual indicado pelo recorrente; e, adquirido que tais proposições são constituídas por termos com o mesmo sentido lógico, importa, em seguida, cotejá-las para ver se elas são reciprocamente opostas – o que sucederá se, detendo ao menos uma delas carácter geral, pudermos asseverar que só uma é necessariamente correcta ou verdadeira ou que a correcção ou verdade de uma implica a incorrecção ou falsidade da outra.

2. Da verificação dos pressupostos formais:

No caso, como bem demonstra no seu parecer o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, junto deste STJ, o Ministério Público interpôs o presente recurso para fixação de jurisprudência em 04/03/2022, sendo certo que, o acórdão recorrido transitou em julgado no dia 21/02/2022 – Ref.ª …19 e Ref.ª Citius …13 e certidão Ref.ª Citius …15.

O Ministério Público, tem legitimidade sendo que o recurso, para ele, é obrigatório – art.º 437.º, n.º 5 do CPP –, tendo indicado o acórdão fundamento relativamente ao qual entende que o acórdão recorrido se encontra em oposição, pelo que, nos termos dos art.ºs. 438.º, n.º 1 e 437.º, do CPP, encontram-se preenchidos os pressupostos de natureza formal de tempestividade e legitimidade para recorrer.
3. Da verificação dos pressupostos substanciais

Nestes autos, o recorrente MP afirma que os acórdãos recorrido e fundamento adoptaram soluções opostas na resolução da mesma questão de direito, que se lhes deparara e que directamente respeita ao art.º 111.º do Código Penal: trata-se do modo de conjugar a declaração judicial de perda das vantagens derivadas do crime com a indemnização civil atribuível ao ofendido.

E, realmente, os dois arestos enfrentaram esse mesmo problema de direito, aliás fundamental na economia de ambos – por influenciar, directamente, as suas pronúncias decisórias nesse preciso domínio.

3.1. A situação fáctica juridicamente relevante nos dois acórdãos é idêntica, como bem salientou o Exmo. Magistrado do Ministério Público, junto deste Supremo Tribunal, traduzindo-se, em síntese útil, nas seguintes ocorrências:
a. No acórdão recorrido considerou-se provado que o arguido cometeu um crime de falsificação de documento, p e p. pelo art.º 256.º, n.º 1 als. a), c) e d) e n.º 3 do Código Penal e um crime de burla qualificada, p. e p. pelos art. ºs 217.º e 218.º do Código Penal;
b. No acórdão fundamento considerou-se provado que os arguidos cometeram um crime de abuso de confiança, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 30.º, nº 2 e 79º do Código Penal, 107.º, n.ºs 1 e 2 e 105.º, n.ºs 1 e 4, do RGIT, traduzido na apropriação das quantias que haviam sido deduzidas nas remunerações dos trabalhadores a título de contribuições para a Segurança Social;
c. Em ambos os processos foi formulado pedido de indemnização civil – no acórdão recorrido pelo particular lesado e no acórdão fundamento pelo Instituto da Segurança Social, IP -, sendo  os arguidos condenados no pagamento aos ofendidos de indemnizações fundadas na prática dos crimes por que foram condenados (150.000 euros, acrescidos de juros de mora, por danos patrimoniais, e 1000 euros, acrescidos de juros de mora, por danos não patrimoniais, no acórdão recorrido; 69.591,80 euros, acrescidos de juros de mora sobre o montante de 55.230,73 euros, no acórdão fundamento);
d. Em ambos os acórdãos, ficou provado que os arguidos obtiveram vantagens económicas com os crimes por que foram condenados, coincidentes, ainda que parcialmente, com os valores da condenação nos pedidos de indemnização civil (150.000 euros, no acórdão recorrido, 55.230,73 euros, no acórdão fundamento).
e. Em ambos os processos o Ministério Público formulou o pedido de perda a favor do Estado da vantagem económica obtida pela prática do facto ilícito.

Todavia, enquanto que o acórdão recorrido indeferiu a perda da vantagem económica a favor do Estado, por considerar que nas hipóteses em que o arguido já foi condenado a pagar essa quantia a título de indemnização civil ou em que o ofendido não pretende deduzir pedido de indemnização, por já ter recorrido a outros meios que lhe dão as mesmas prerrogativas que obteria com a dedução do pedido cível no processo penal, carece de fundamento o recurso à declaração de perda de bens a favor do Estado com um objecto coincidente à dedução do pedido de indemnização; o acórdão fundamento, reconhecendo a autonomia e a diferente natureza e finalidade do instituto da perda de vantagens, entendeu que o tribunal não pode deixar de decretar a perda de vantagens obtidas com a prática do crime, independentemente, de o lesado ter deduzido ou não pedido de indemnização civil (e do seu desfecho), ou de ter optado por outros meios alternativos de cobrança do crédito.


3.2. Assim, colocou-se nos dois casos a questão de saber se as vantagens adquiridas pelo agente do crime deviam, ou não, ser declaradas perdidas a favor do Estado, embora elas já integrassem a indemnização judicialmente pedida e arbitrada à vítima do ilícito-típico. E, por outro lado, tal temática nunca foi objecto de fixação de jurisprudência pelo STJ.

Ora, o acórdão fundamento disse que a mencionada condenação em indemnização não obsta à declaração de perda das vantagens, imposta pelo art.º 111.º, do Código Penal. E só exceptuou dessa solução universal as hipóteses em que o Estado, beneficiário ex lege da declaração de perda, seja também o credor da indemnização atribuída. Todavia, esta excepção ou reserva foi enunciada a título meramente argumentativo, já que ela não se incluía nos temas do acórdão fundamento nem foi por ele aplicada. Efectivamente, assim se decidiu neste aresto:

Reconhecendo-se a autonomia do instituto da perda de vantagens, a sua natureza e finalidade marcadamente preventivas, o seu carácter sancionatório análogo à da medida de segurança [11] e, para além disso, obrigatório, subtraído a qualquer critério de oportunidade ou utilidade, o juiz não pode deixar de decretar a perda de vantagens obtidas com a prática do crime, na sentença penal. E isto independentemente de o lesado ter deduzido ou não pedido de indemnização civil (e do seu desfecho), ou de ter optado por outros meios alternativos de cobrança do crédito que possa coexistir com a obrigação e necessidade de reconstituição da situação patrimonial prévia à prática do crime, própria do instituto da perda de vantagens [12] [13].

Só em situações comprovadas e concretas de inutilidade – pois, como se acentua no acórdão deste TRP, de 11/4/2019 [14], o Estado não pode receber duas vezes a mesma quantia - se poderá verificar uma específica e excepcional subsidiariedade entre os dois institutos [15].

Algo que, porém, não sucede no caso concreto.

Deste modo, tendo ficado demonstrado que a recorrente obteve uma vantagem patrimonial ilícita, decorrente da prática de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, não podia o tribunal a quo deixar de a condenar, como condenou, no pagamento ao Estado do valor correspondente a tal vantagem (cfr. o art. 110º, n.º 4, do CPP, na redacção em vigor à data da prática dos factos), mostrando-se totalmente irrelevante para o efeito a circunstância de ter sido deduzido pedido de indemnização civil pelo lesado Instituto da Segurança Social.”.

Por sua vez, o aresto recorrido negou que a vantagem obtida com o crime, mas já considerada na indemnização ao ofendido, persista como tal e deva ainda ser declarada perdida a favor do Estado, decidindo que:

“(…) num pedido de indemnização civil, sabemos que o objectivo imediato, quando a lesão atinge bens de natureza patrimonial, é a defesa dos interesses do lesado, reconstituindo-se, tanto quanto possível, a situação que existia antes da prática do crime. Por isso, os dois institutos não conflituam entre si, pois o que se quer evitar, voltamos a repetir, é que o agente retire quaisquer dividendos da sua acção criminosa, mesmo quando estes vão além do real e efectivo prejuízo da vítima, precavendo-se, também assim, as finalidades de prevenção geral e especial, o que não pode, é, em circunstância alguma, haver "vantagem patrimonial" para o agente infractor.

Dai que se aceite, em princípio, que a declaração de perdimento prevista no art. 111.º do Cód.Penal possa, sempre, ter lugar, independentemente da formulação, ou não, de pedido de indemnização civil ou da existência de qualquer título executivo, desde que o confisco apenas actue, na medida e na parte, em que houver compatibilidade entre todos os institutos e não se traduza numa dupla “penalização” para o agente.

Por isso, todo o lucro ou benefício obtido à custa de coisa, direito ou quantia de que o agente de um facto ilícito se apropria, deve ser visto como uma vantagem que, nos termos do art.111.º do C. Penal, deve ser declarada perdida a favor do Estado, em tudo o que ultrapassar o valor devido e seja uma 'vantagem patrimonial'.

Assim, se o agente vê o seu património aumentado apenas com o valor da burla e é condenado, a título de indemnização civil, a pagar esse montante ao Assistente, não existe qualquer vantagem. Porém, pode existir vantagem quando o agente vê o seu património aumentado para além, e na medida do excesso, e não abrangido pela condenação no pedido de indemnização civil.

Contudo, a tudo o que acabamos de referir, há ainda que ter em conta a expressão ‘sem prejuízo dos direitos do ofendido’, uma vez que o artigo 111.º, 2 do CP impede que se declare perdido a favor do Estado um direito cujo titular seja o ofendido. Porém, em nada se altera o raciocínio que temos estado a defender, pois relevante é que o agente do facto ilícito não fique com qualquer vantagem económica, ficando para o Estado (se não for ele o ofendido), o que o ofendido não reivindicou ou a parte remanescente, ou seja, tudo o que excede o pedido cível, por exemplo, e constitua vantagem patrimonial do agente do facto ilícito, como parece ser linear, atento os preceitos invocados, em conjugação com o acima citado art. 9.º do Código Civil. Por isso, no caso concreto, a perda a favor do Estado de ‘vantagens’, numa situação em que o arguido já foi condenado a pagar essa quantia a título de indemnização civil, contraria as finalidades e a própria necessidade de prevenção prevista no citado art. 111.º do CP, que visa exclusivamente finalidades de prevenção geral e especial.

Por sua vez, se o assistente/demandante não pretende deduzir pedido de indemnização, por já ter recorrido a outros meios que lhe dão as mesmas prerrogativas que obteria com a dedução do pedido cível, não se justifica nem tem fundamento o recurso à declaração de perda de bens a favor do Estado, com um objecto coincidente à dedução do pedido de indemnização, pois outra atitude, ofenderia a consciência jurídica e violaria os mais elementares princípios constitucionais.»”.

É nítido que os arestos em confronto resolveram a sobredita questão jurídica fundamental mediante a enunciação de proposições jurídicas mutuamente contrárias e facilmente deles extraíveis. O acórdão recorrido disse que as vantagens do crime, se consideradas na indemnização atribuída à vítima (que não seja o Estado), não são perdíveis a favor do Estado. Enquanto o acórdão fundamento disse que as vantagens do crime, se consideradas na indemnização atribuída à vítima (que não seja o Estado) são perdíveis a favor do Estado.

Em suma: os dois julgados decidiram a mesma questão fundamental de direito em sentidos logicamente contrários, ou seja, opostos. Pelo que o presente recurso está em condições de prosseguir – art.º 441.º, n.º 1, do CPP.


III – DECISÃO

Termos em que, acordando, se decide:
a) Julgar verificada a oposição de julgados, no presente recurso de fixação de jurisprudência interposto pelo Ministério Público, conforme o disposto no artigo 441.º, n.º 1, do CPP.
b) Sem custas.

Lisboa, 23 de Junho de 2022 (processado e revisto pelo relator)

Leonor Furtado (Relator)

Elisa Sales (Adjunta)

Eduardo Loureiro (Presidente)