Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1976/17.4T8VRL.G1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: PERDA DE CHANCE
ADVOGADO
MANDATO FORENSE
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
JUÍZO DE PROBABILIDADE
MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
ÓNUS DA PROVA
PROCURAÇÃO
ATO ILÍCITO
DANO
RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE
CRÉDITO PRIVILEGIADO
CRÉDITO COMUM
DIREITO DE RETENÇÃO
CONTRATO-PROMESSA
CONSUMIDOR
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
Data do Acordão: 12/16/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário : I. No caso de perda de chances processuais, importa fazer o chamado “julgamento dentro do julgamento” no sentido da solução jurídica altamente provável que o tribunal da ação em que a parte ficou prejudicada viesse a adotar.

II. Embora tal apreciação se inscreva, enquanto tal, em princípio, em sede de questão de facto, extravasando, nessa medida, os fundamentos do recurso de revista, deve admitir-se que possa, ainda assim, envolver erros de direito sobre a apreciação da prova ou do quadro normativo aplicável, estes sim passíveis de serem sindicáveis em sede de revista.  

III. O ónus de prova de tal probabilidade impende sobre o lesado, como facto constitutivo que é da obrigação de indemnizar (art.º 342.º, n.º 1, do CC).

IV. A satisfação de um crédito emergente de um contrato-promessa, por parte do promitente-comprador, como crédito privilegiado, por virtude do direito de retenção nos termos do artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do CC, sobre a massa insolvente, não depende apenas da procedência da ação de impugnação da resolução desse contrato, efetuada pelo administrador da insolvência, mas ainda do reconhecimento desse direito de retenção no âmbito do processo de insolvência.

V. O facto de não ter sido instaurada tal ação de impugnação, por motivo imputável ao advogado da credora reclamante, ainda que essa ação tivesse elevada probabilidade de sucesso, mas no caso em que o referido direito de retenção não possa ser reconhecido, à luz da jurisprudência consolidada pelo AUJ do STJ n.º 4/2014, de 23/04/2014, em virtude de o titular do crédito não deter a qualidade de consumidor, não constitui causa consistente e séria de que o crédito pudesse ser satisfeito como crédito privilegiado sobre a massa insolvente para efeitos de indemnização a título de perda de chance processual.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:



I – Relatório


1. O Centro Abastecedor ……, Ld.ª (A.) instaurou, em …/11/2017, uma ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra AA (1.º R.), advogado, e contra MAPFRE Seguros Gerais, S.A. (2.ª R.), alegando, em síntese, o seguinte:

. A A. dedica-se à atividade de venda a retalho de materiais de construção civil, fornecendo empresas e particulares;

 . O 1.º R., na qualidade de advogado, com base em instrumento de mandato forense outorgado pela A., reclamou, em nome desta, no processo de insolvência da sociedade P……., L.ª, que correu termos sob o n.º 452/14.1…, um crédito no montante de € 286.531,33, que qualificou como privilegiado, emergente de um contrato-promessa de compra e venda de três frações imobiliárias, conforme o escrito reproduzido a fls. 23 a 25/v.º, datado de 15/12/2011, em que a A. figura como promitente-compradora e a referida sociedade P….., Ld.ª, como promitente vendedora; 

. No âmbito do referido contrato-promessa, como sinal e princípio de pagamento do preço acordado, no valor global de € 260.000,00, a A. entregou à promitente-vendedora a quantia de € 103.369,37, sendo a parte restante satisfeita mediante o fornecimento de materiais e mercadorias, ficando a mesma A. com a posse das frações imobiliárias, em que procedeu aos acabamentos necessários;

. Embora o 1.º R. tenha impugnado a lista de credores em …/01/2015, o referido crédito acabou por ser reconhecido e graduado como crédito comum no valor reclamado;

. Em …/02/2015, a administradora da insolvência dirigiu uma carta regista com A/R à A. a notificá-la da resolução do mencionado contrato-promessa em benefício da massa insolvente;

. Tendo essa notificação sido entregue ao 1.º R., este nunca instaurou ação de oposição à sobredita resolução do contrato-promessa, a qual teria todos as condições para proceder;

. Em consequência dessa omissão imputável ao 1.ª R. a título de negligência grave no cumprimento dos seus deveres profissionais, a A. deixou de receber qualquer quantia pelo produto das vendas realizadas na insolvência e a que teria direito por existir tradição da coisa prometida vender e o contrato gozar de eficácia real;

. Além do prejuízo resultante da não satisfação do crédito reclamado, a A. suportou prejuízos, incluindo a perda do valor despendido com obras nas frações prometidas vender no montante de € 125.140,18, perfazendo um total de € 411.671,51.

. A responsabilidade civil profissional do 1.ª R. encontra-se coberta por contrato de seguro firmado entre a Ordem dos Advogados e a 2.ª R.. 

Concluiu a A. pedindo que os R.R. fossem condenados a pagar-lhe a quantia de € 411.671,51, cabendo à 2.ª R. a responsabilidade pelo pagamento da quantia de € 250,000,00 e, pela parte restante, ao 1.º R., acrescida de juros de mora de 4%, desde a citação, a título de indemnização por perda de chance com fundamento em que o 1.º R. exerceu o mandato forense que lhe foi conferido pela A. com negligência grave, omitindo atos processuais que poderia e deveria ter praticado.   

2. Apenas a 2.ª R. contestou a impugnar a matéria alegada pela A., sustentando que:

. Não se encontrarem preenchidos os pressupostos para o surgimento da obrigação de indemnizar, seja quanto à ilicitude, seja quanto à atuação negligente imputada ao 1.º R., além de não ser possível afirmar a probabilidade da procedência da ação que o 1.º R. deixou de propor em nome da A.;

. A celebração de contrato de seguro com a Ordem dos Advogados, com cobertura dos riscos inerentes ao exercício da atividade advocacia desenvolvida pelos advogados com inscrição em vigor, tem o limite indemnizatório máximo fixado em € 150.000,00, com franquia contratual, a cargo do segurado, de € 5.000,00 por sinistro.

Conclui pela improcedência da ação.

3. Realizada a audiência final, foi proferida a sentença de fls. 133-163, de …/11/2018, a fixar o dano por perda de chance em € 180.000,00, julgando-se a ação parcialmente procedente com a condenação da 2.ª R. a pagar à A. a quantia de € 150.000,00 e do 1.º R. a pagar-lhe a quantia de € 30.000,00, acrescidas de juros de mora, à taxa legal desde a citação. 

4. Inconformada com essa decisão, a 2.ª R. recorreu para o Tribunal da Relação …, tendo sido proferido o acórdão de fls. 225-243, de …/06/2019, a julgar procedente a apelação, revogando a sentença recorrida e absolvendo os R.R. dos pedidos.

5. Desta feita, veio a A. interpor revista, formulando as seguintes conclusões:

1.ª - Dos factos dados por assentes ressalta a meridiana certeza de que o R. AA deixou de tratar com zelo, proficiência e dedicação o assunto que lhe tinha sido confiado, factos estes que se enquadram no instituto da perda chance, o qual não pode ser confundido com a responsabilidade civil.

2.ª - Para haver perda de chance basta provar que alguém deixou de ter oportuni­dade de receber um benefício.

3.ª - Apesar de a advocacia ser uma profissão de obrigações de meios e não de fins, o advogado tem o dever de estudar com cuidado e dedicação tratando com zelo todos os assuntos que lhe são incumbidos.

4.ª - No caso concreto, ficou provado que o 1.º R. não foi capaz de cumprir com os seus deveres como mandatário;

5.ª - É necessário e suficiente provar, apenas, que o 1.º R., como advogado, não usou de todos os meios técnico-jurídicos para dar provimento aos interesses da A..

6.ª - A perda de chance deve considerar-se como um dano atual, autónomo, con­substanciado numa frustração irremediável (dano), por ato ou omissão de terceiro de verificação de obtenção de uma vantagem;

7.ª - Há dano provocado pelo comportamento do 1.º R., porque este tem obrigação de indemnizar. Nos termos do art.º 563.º do CC, a obrigação de indemnizar só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.

8.ª - O mandato forense pode definir-se como o contrato celebrado entre um advogado e um interessado, o mandante, cliente ou constituinte, para que o represente, normalmente em juízo e que é o que ocorreu nos autos onde foram praticados pelo réu, AA, advogado, os atos que servem de fundamento a esta ação.

9.ª - Nas relações entre o advogado referido e a aqui recorrente (sua ex-cliente), impunha-se o cumprimento de deveres qualificados, inerentes à sua profissão, em função das “leges artis”, o que, não aconteceu.

10.ª - Em …/01/2015 ocorreu a assembleia de credores, onde se proce­deu á eleição da comissão de credores, nela não tendo comparecido o Réu AA, facto de que não deu conhecimento à aqui A.;

11.ª - No âmbito desse mesmo processo, o 1.º R., na qualidade de mandatário da A., deduziu reclamação de créditos da mesma no montante de € 286.531,33, requerendo o seu reconhecimento como crédito privilegiado;

12.ª - O 1.º R., tendo conhecimento da resolução do negócio (contrato promessa), só tinha um caminho a tomar: deduzir oposição nos termos legais, não só porque estava em tempo, mas também porque tal tinha viabilidade.

13.ª - O referido contrato-promessa não era um simples contrato obrigacional, porque tinha havido tradição da coisa, e o mesmo havia sido submetido a registo na respetiva Conservatória e tinha como efeito a publicidade do ato.

14.ª - O contrato-promessa com eficácia real, nos termos do artigo 1.º do CRP “destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário”.

15.ª - O processo de revitalização não se confunde com o processo de insolvência.

16.ª - A insolvência foi decretada em momento posterior ao processo de revitalização, pelo que o referido contrato-promessa foi celebrado, como do mesmo se vê, muito antes da sentença da insolvência.

17.ª - Se o então mandatário da recorrente tivesse deduzido oposição à resolução teria todas as condições de vir a ter êxito.

18.ª - Os factos assentes demonstram sobejamente a omissão do 1.º R. advogado na dedução da oposição à resolução do negócio – contrato-promessa com eficácia real e direito de retenção.

19.ª - O 1.º R., ao não ter deduzido a oposição, impediu que o tribunal no futuro pu­desse decidir o que quer que fosse, porque as consequências para as omissões referidas estão previstas na lei e são penalizadoras.

20.ª - É nesse processo de oposição à resolução que importa verificar se a ação teria ou não êxito.

21.ª - O que estava em causa avaliar na conduta do 1.º R., mandatário da A., era a de saber se, tendo tido conhecimento da resolução do contrato-promessa constante dos autos decidida pela administradora judicial, poderia ou deveria intentar a ação de oposição à referida resolução.

22.ª - O 1.º R. não só poderia, por estar em tempo, como deveria, por existirem fun­damentos para tal, ter intentado a referida ação.

23.ª - E é na ação de oposição ao ato resolutivo que importa fazer “o julgamento dentro do julgamento”.

24.ª - Por se tratar de um contrato-promessa com eficácia real e, portanto, registado, destinado a produzir efeitos perante terceiros, com tradição da coisa, existia elevada verosimilhança, que a ação de impugnação do ato resolutivo, a ser intentada, como o deveria ter sido, teria êxito.

25.ª - O negócio resolvido ocorreu num tempo anterior quer ao processo especial de revitalização da sociedade P……, Ld.ª, mais de dois anos antes da instauração do mesmo, quer à sentença que decretou a insolvência da mesma, a qual foi exarada trinta cinco meses antes do negócio, ou seja, em … .12.2011.

26.ª - O pressuposto temporal exigível para a resolução condicional estatuída no art.º 120.º/1, do CIRE não existe, pelo que a mesma se é desprovida de sustentação fáctico-jurídica.

27.ª - O negócio jurídico objeto de resolução não configura um dos atos jurídicos taxativamente elencados no art.º 121.º/1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, pelo que a resolução incondicional invocada pela AI é linearmente infundamentada.

28.ª - Num juízo de prognose póstuma a resolução em benefício da massa insolvente efetuada pela AI em prejuízo da A. é manifestamente improcedente, com um grau de probabilidade manifestamente superior a 50%.

29.ª - A não interposição, pelo 1.º R., da ação de impugnação induziu, inexoravelmente, um dano de perda da chance processual da A. de elidir a predita resolução, a qual induziu o reconhecimento do crédito da A. com a natureza comum, derrogando, assim, o direito de retenção e não recebeu qualquer quantia em sede de liquidação do ativo da insolvente

30.ª - Questão diversa seria o que deveria ser feito a seguir com a decisão que vies­se a julgar a ação procedente, não sendo admissível aqui fazer qualquer outro julgamento.

31.ª - Face à procedência dessa ação, a administradora judicial não deixaria de graduar o crédito da recorrida, como privilegiado, no lugar que lhe era devido legalmente.

32.ª - Os demais credores poderiam ou não impugnar a lista, não tendo que se fazer mais um julgamento dentro deste e mesmo que impugnassem tal lista a mesma poderia vir a ser julgada improcedente.

33.ª - Existe a real hipótese de os demais credores, nomeadamente a Fazenda Naci­onal e os credores hipotecários conformarem-se com esta decisão e não a impugnarem, pelo que o crédito da aqui recorrida manteria sempre a nature­za de privilegiado, independentemente da doutrina ínsita no AUJ n.º 4/2014.

34.ª - Se essa possibilidade existe, não poderemos aqui falar de que a A. só be­neficiaria do direito de retenção se pudesse considerar-se consumidora.

35.ª - A tese defendida no acórdão em recurso só pode ser entendida como “o jul­gamento dentro do julgamento e dentro de um outro julgamento”, o que não se coaduna, nem com a doutrina, nem com a jurisprudência sobre a matéria.

36.ª - A teoria da perda de chance permite, sem dúvida, a solução justa do caso concreto, apresentando-se como uma forma eficaz de tutela antecipada dos bens jurídicos protegidos, trazendo vários benefícios.

37.ª - A jurisprudência e a doutrina que consagram a figura da perda de chance co­mo um dano atual e autónomo.

38.ª - Na impossibilidade de determinação com rigor do grau de probabilidade e, consequentemente, do valor exato do dano, o tribunal deve recorrer à equi­dade, nos termos do art.º 566.º, n.º 3, do Código Civil”

39.ª - A perda de chance é um instrumento privilegiado para a realização do Direito justo, no domínio da responsabilidade civil, a qual faz já parte do nosso ordenamento jurídico.

40.ª - O critério da equidade para apreciação do montante da indemnização é um critério legal e que a lei expressamente prevê o seu uso, pelo facto de a realização da justiça, impor que os tribunais solucionem um problema que as partes lhe apresentam.

41.ª - A equidade deixa um espaço ao juiz na realização do Direito do caso concre­to, aplicando a este todos os princípios que enformam o sistema jurídico e assim realiza a Justiça.

42.ª - O valor do dano final corresponde ao preço convencionado no contrato-promessa resolvido, € 260.000,00, o qual a insolvente declarou ter recebido da Autora.

43.ª - O tribunal da 1.ª instância fixou a percentagem da probabilidade de obter a vantagem com referência ao crédito de € 260.000,00, em 90%.

44.ª - O valor fixado foi encontrado de forma prudente e com o recurso aos critérios da equidade aplicáveis ao caso concreto.

45.ª - Os juros não têm a natureza de indemnização, mas destinam-se ao pagamen­to de rendimento que o capital (indemnização) obteria se fosse pago ao cre­dor o capital no momento exigível

46.ª - Para haver perda de chance, e perdoe-se-nos, a repetição, basta provar que alguém deixou de ter oportunidade de receber um benefício. Não é necessário saber se, mesmo com todas as diligências recebia o benefício, o importante é que ele não teve a oportunidade de o ter, devido ao comportamento negligente de outro.

47.ª - Os juros são devidos à credora, aqui recorrida, desde a citação, porque o montante que se vier a apurar até efetivo e integral pagamento não integra o valor da indemnização fixada na sentença.

Pede a Recorrente que se revogue o acórdão recorrido e se mantenha a decisão da 1.ª instância.

6. A Recorrida apresentou contra-alegações a sustentar a confirmação do julgado.

Cumpre apreciar e decidir.

           

II – Delimitação do objeto do recurso


O objeto da revista circunscreve-se à questão de saber se, em face da factualidade provada, é lícito concluir pela verificação do dano derivado da perda de chance processual imputado ao 1.º R.. 


III – Fundamentação   

 

1. Factualidade dada como provada pelas instâncias


Vem dada como provada pelas instâncias a seguinte factualidade:

1.1. A A. dedica-se à atividade de venda a retalho de materiais de construção civil, fornecendo empresas e particulares.

1.2. O 1.º R., AA, é advogado, exercendo atualmente a sua profissão na cidade da Régua estando inscrito na respetiva Ordem.

1.3. Em 15.12.2011, o gerente da P…., Ld.ª, como primeira outorgante e promitente-vendedora e o gerente do Centro Abastecedor….. Ld.ª, como segundo outorgante e promitente-comprador, subscreveram um escrito com a epígrafe ‘Contrato de Promessa de Compra e Venda e Recibo de Sinal’, no âmbito do qual a promitente-vendedora declarou prometer vender à A. as frações …, …., e ….. que correspondiam aos primeiro, segundo e terceiro andares do prédio urbano inscrito na matriz sob o art.º … da freguesia da …., pelo preço global de € 260.000,00.

1.4. Em sede do escrito indicado em 1.3, a primeira outorgante/promitente vendedora declarou que:

“(…) já recebeu nesta data, a título de sinal e princípio de pagamento do preço acordado, a quantia de 103.369,37€, quantia da qual desde já dá a respectiva quitação e que se refere às facturas juntas no extracto de conta corrente e que compõe o anexo I ao presente contrato e do qual é parte integrante.’

1.5. Na cláusula terceira do escrito citado em 1.3, consignou-se que A restante parte do preço será paga em fornecimentos de matérias e mercadorias ainda a efectuar pela segunda à primeira (…).

1.6. No âmbito da cláusula 8.1 do escrito indicado em 1.3, consignou-se que: As partes estipulam que o presente contrato, além de ter as assinaturas reconhecidas, goza de eficácia real.

1.7. No circunstancialismo indicado em 1.3 a 1.6, o gerente da P…, Ld.ª, entregou ao gerente da A. as anteditas frações.

1.8. Após, a A., com a convicção de exercer um direito próprio, aplicou nas referidas frações materiais de construção civil, como sejam cozinhas, casas de banho, portas e janelas, pinturas e equipamento elétrico.

1.9. A A. gastou nas anteditas obras a quantia global de € 125.140,18.

1.10. Em …/10/2013, foi outorgado aditamento ao referido contrato promessa, consignando-se, designadamente, que:

Pelo presente entregou a segunda ao primeiro o remanescente do preço acordado, ou seja, 156.630,63€, a título de reforço de sinal e final de pagamento, quantia que a primeira declara expressamente ter recebido pelo que dá a respectiva quitação, motivo pelo qual as três fracções prometidas vender se encontram totalmente pagas.

1.11. Em … .10.2012, o gerente da A. subscreveu um escrito com a epígrafe ‘Procuração’, consignando, designadamente, que:

(…) constitui seu Advogado e bastante procurador o Exmo. Sr. Dr. AA, Advogado, com escritório na Rua …., no …, a quem com os de substabelecer um ou mais vezes confere os mais amplos poderes em direito permitidos e ainda os especiais para, em seu nome e no âmbito do PER que corre os seus termos sob o número 847/14….., junto do 0º Juízo do Tribunal Judicial…, participar e votar em assembleias de credores, participar em negociações, fazer acordos (…).

1.12. A sobredita procuração foi também utilizada pelo 1.º R. para representar a aqui A. no processo de insolvência da sociedade P…, Ld.ª, que correu termos pelo Juízo de Comércio …. – J0 do Tribunal Judicial da Comarca…, sob o n.º 452/14.1….., no âmbito do qual, por sentença proferida em … .11.2014, foi declarada a insolvência da antedita sociedade.

1.13. Em … de janeiro de 2015, ocorreu a assembleia de credores do processo enunciado em 1.12, onde se procedeu à eleição da comissão de credores, nela não tendo comparecido o 1.º R., facto de que não deu conhecimento à aqui A..

1.14. No âmbito do processo indicado em 1.12, o 1.º R., AA, na qualidade de mandatário da A., deduziu reclamação de créditos da mesma no montante de € 286.531,33, requerendo o seu reconhecimento como crédito privilegiado. 

1.15. Em janeiro de 2015, a administradora de insolvência do sobredito processo apresentou a lista de créditos reconhecidos, consignando, designadamente, o reconhecimento do antedito crédito da A. com a natureza de crédito comum.

1.16. Em …/01/2015, o 1.º R., AA, na qualidade de mandatário da A., subscreveu a impugnação da lista mencionada em 1.15, peticionando, designadamente, que: (…) deverá a impugnante ver o seu crédito, daí resultante, como, e na parte em que aos andares diz respeito, como usufruindo de direito de retenção e graduando-o como tal e não como comum (…).

1.17. Em …/02/2015, a administradora da insolvência expediu para a A. carta registada com aviso de receção, na qual declarou, designadamente, que:

(…) venho notificar V. Exa., de acordo com o estipulado no art.º 123.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 120.º e 121.º do mesmo Código, da resolução em benefício da massa insolvente do contrato promessa de compra e venda celebrado com V. Exa. e do seu aditamento celebrado em …/10/2013.

(…)

O contrato promessa foi celebrado pouco mais de dois anos antes do início do processo de revitalização da insolvente (…) A situação de insolvência era já conhecida de todos (…) Do exposto resulta claramente que V. Exas. não só conheciam a situação de insolvência em que se encontrava a devedora mas também que o acto da alegada promessa de compra e venda era e é um acto prejudicial à massa insolvente. (…) Pretendendo todos os intervenientes dar ao acto a aparência real de um negócio que não ocorreu de facto (…) Sendo ainda de salientar que a compensação de créditos que sustenta o contrato promessa de compra e venda e o seu aditamento é manifestamente ilegal, injusta e injustificada, na exacta medida em que a insolvente assume, por via deles, o pagamento de dívidas de uma sociedade terceira (M……. – Sociedade de Construções, Lda) sem nada que o justifique (…) A declarada resolução pressupõe a má fé do terceiro adquirente, in casu V. Ex.ª, a qual é inequívoca (…)

Mas também é feita, à cautela, de forma incondicional, ao abrigo do art.º 121.º/1, alíneas c), e), f), g) e h), do CIRE (…)’.

1.18. Após o referido em 1.17, o gerente da A. entregou a predita notificação ao R. AA.

1.19. O R. AA recebeu a referenciada notificação e declarou ao gerente da A. que iria opor-se a tal resolução e que o seu crédito estava garantido pelo contrato-promessa com eficácia real.

1.20. Em …/03/2015, a administradora de insolvência juntou ao processo com o n.º 452/14.1… – Secção de Comércio J0 resposta à impugnação de créditos enunciada em 1.16), consignando, designadamente, que:

(…) o presente negócio jurídico é simulado, tendo sido concretizado unicamente com o interesse de favorecer um credor em detrimento de outros credores (…) reconhecendo-se apenas o crédito do credor proveniente dos fornecimentos prestados (facturas) no montante total de 286.531,33, pelo que o crédito será classificada com natureza comum (…)’.

1.21. Nessa informação, a administradora de insolvência afirmava que havia já procedido à resolução em benefício da massa insolvente do referido contrato promessa e seu aditamento.

1.22. O R. AA teve conhecimento do indicado em 1.21.

1.23. O R. AA não intentou a ação de impugnação da resolução indicada em 1.17.

1.24. Em …/12/2016, o R. AA, na qualidade de mandatário da A., intentou ação de verificação ulterior de créditos por apenso ao sobredito processo de insolvência.

1.25. Por sentença proferida em …/04/2017, a ação referenciada em 1.23 foi julgada improcedente. 

1.26. Em …/5/2017, foi proferido despacho saneador no apenso de reclamação de créditos do processo mencionado em 1.12, o qual julgou improcedente a impugnação descrita em 1.16.

1.27. Em …/9/2017, foi exarada sentença no antedito apenso de reclamação de créditos, a qual decidiu:

I - HOMOLOGAR a lista de créditos reconhecidos de fls. 3 e ss., com as alterações introduzidas pelas decisões proferidas em sede de audiência prévia.;

II - GRADUAR os créditos reconhecidos nos seguintes moldes:

A - Sobre o produto da venda dos bens imóveis descritos nas verbas n.ºs 1 a 6, do auto de apreensão, deverá pagar-se:

1. as dívidas e despesas da massa insolvente.

2. o crédito garantido da Fazenda Nacional referente a IMI, com privilégio imobiliário especial (que recaia especificamente sobre o imóvel pelo qual é devido – cfr. fls. 6);

3. o crédito da credora hipotecária Caixa Geral de Depósitos, S.A., que beneficia de garantia hipotecária, até ao montante máximo assegurado pela respectiva hipoteca;

4. o crédito da Fazenda Nacional referente a IRS e o crédito da Segurança social, rateadamente.

5. O remanescente será para pagar rateadamente, aos credores comuns.

6. Por último, serão graduados os créditos subordinados (artigo 48º do CIRE).’

1.28. A A. não recebeu qualquer valor relativo ao produto da venda dos bens liquidados no sobredito processo de insolvência, onde foram apreendidas as frações descritas em 1.3.

1.29. Pela apólice de seguro n.º …, subscrita entre a Ordem dos Advogados de Portugal e a MAPFRE SEGUROS GERAIS, S.A., a mesma declarou garantir, até ao limite de capital seguro e nos termos expressamente previstos nas referidas condições particulares da apólice de seguro, o eventual pagamento de ‘indemnizações pelos prejuízos patrimoniais e/ou não patrimoniais causados a terceiros, por dolo, erro, omissão ou negligência, cometido pelo segurado ou por pessoal pelo qual ele deva, legalmente responder no desempenho da actividade profissional ou no exercício de funções nos Órgãos da Ordem dos Advogados.’

1.30. No âmbito da apólice indicada em 1.29 estipulou-se o limite indemnizatório máximo contratado para o período das 0:00h do … de janeiro de 2017 até às 0:00h de … de janeiro de 2018 fixado em 150.000,00€, consignando-se a franquia, a cargo do segurado, no valor de 5.000,00€ por sinistro.

1.31. Em sede do item 15 das condições particulares da predita apólice, enuncia-se que

Franquia: Importância que, em caso de sinistro, fica a cargo do segurado e cujo montante está estipulado nas Condições Particulares. A franquia será aplicável a cada reclamação e para todo o tipo de danos e gastos, não sendo, porém, oponível a terceiros lesados.


2. Do mérito do recurso


2.1. Dos contornos do litígio


Estamos no âmbito de uma ação em que a A. pretende ser indemnizada por danos patrimoniais, a título de perda de chance processual, pelo facto de o 1.º R., na qualidade de advogado por aquela constituído, intervindo num processo de insolvência da sociedade “P..., Ld.ª”, ter deixado de instaurar ação de impugnação da resolução em benefício da massa insolvente, efetuada pela administradora da insolvência, de um contrato-promessa de compra e venda de três frações imobiliárias que a A. havia celebrado, em …/12/2011, com a sociedade mais tarde declarada insolvente.

No referido processo de insolvência, o 1.º R. reclamou, em nome da A., um crédito, no valor de € 286.531,33, emergente daquele contrato-promessa, que então qualificou de crédito privilegiado, por considerar existir direito de retenção derivado da tradição da coisa prometida vender e tratar-se de contrato-promessa com eficácia real.

Todavia, tal crédito foi apresentado, pela administradora de insolvência, na lista de créditos reconhecidos, com a natureza de crédito comum e assim, posteriormente, objeto de sentença homologatória. A par disso, manteve-se a resolução do contrato-promessa efetuada pela administradora da insolvência e que não fora impugnada pela 1.º R. em nome da A..

Em tais circunstâncias e em face da existência de credores privilegiados, a A. nada recebeu do produto da venda dos bens realizada na insolvência.

Nessa base, sustenta a mesma A. que o 1.º R., ao ter deixado de instaurar a ação de impugnação da referida resolução do contrato-promessa, se tornou responsável, a título de perda de chance, pelo prejuízo derivado da não satisfação do seu crédito reclamado, considerando que tal ação teria todas as condições de êxito.   


Na 1.ª instância, foi considerado, em síntese, que o 1.º R. incorreu em incumprimento contratual por violação, presumidamente culposa, dos seus deveres de diligência profissional e que a ação de impugnação da resolução do contrato-promessa que aquele R. deixara de instaurar tinha um grau de probabilidade de sucesso “manifestamente superior a 50%”.

Nessa decorrência, ali foi considerado que, segundo os critérios de equidade, o referido dano por perda de chance processual poderia ser fixado na cifra de € 180.000,00, como foi.

Todavia, no âmbito do recurso de apelação interposta pela 2.ª R., o Tribunal da Relação, considerou que, sem necessidade de se imiscuir na matéria respeitante à ilicitude da conduta do 1.º R. e à probabilidade do êxito da ação de impugnação que este deixou de instaurar, nunca a A. lograria satisfazer o seu crédito reclamado, porquanto não beneficiava, como promitente-compradora, do direito de retenção nos termos do artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do CC, uma vez que não detinha a qualidade de consumidora, à luz da jurisprudência firmada no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2014, de 23/04/2014, publicado no Diário da República, 1.ª Série, n.º 95, de 19/05/2014.


Nessa linha, no acórdão recorrido, foram tecidas as seguintes considerações:

«Está em causa apurar se o lesado sofreu um dano patrimonial em resultado da perda de oportunidades (radicadas no inadimplemento dos deveres profissionais do mandatário), o que implica determinar se estas se iriam ou não traduzir numa sua diversa situação patrimonial – as ‘chances’ ou oportunidades perdidas só serão relevantes na medida em que se prove que o lesado teria obtido benefícios (ou evitado prejuízos) em consequência da sua verificação, pois que nos casos de indemnização por ‘perda de chance’ processual o que se pede é uma indemnização pelo ganho (ou por uma parte do ganho) que se teria provavelmente obtido com a decisão favorável do processo.

Assim que decisivo para apreciar do mérito da pretensão deduzida na presente acção é apurar se a aqui autora tinha direito de retenção sobre as fracções objecto do contrato promessa celebrado com a sociedade entretanto declarada insolvente e se esse direito não pôde ser esgrimido no apenso da graduação de créditos por não ter sido impugnada a resolução do contrato em benefício da massa insolvente.

De forma mais clara e incisiva – importa apreciar se o referido contrato promessa, acompanhado da tradição das fracções, facultava à autora direito de retenção sobre as mesmas que, no confronto com os demais credores da insolvente (mormente com os credores privilegiados – Fazenda Nacional e credora hipotecária), lhe permitisse ser graduado em posição que lhe garantisse satisfação (pagamento) pelas forças do produto da respectiva alienação.

Efectivamente, a procedência da acção de impugnação do acto resolutivo teria como única e directa consequência a manutenção dos efeitos do contrato promessa e não directamente a satisfação do crédito da autora. Por isso que dano directamente resultante do imputado inadimplemento do primeiro réu só poderá existir se a manutenção dos efeitos daquele contrato promessa tivesse consequência no âmbito da graduação de créditos a decidir no processo de insolvência – que a oportunidade ou ‘chance’ de graduação do crédito em lugar que lhe garantisse satisfação tivesse sido frustrada pela não impugnação do acto resolutivo.

Assim que o ‘julgamento dentro do julgamento’ no presente caso não se circunscreve a apreciar da consistência das probabilidades de sucesso da acção de impugnação do acto resolutivo, estendendo-se também à consistência das probabilidades de sucesso da pretensão da autora no âmbito da graduação de créditos.

Admitindo – partindo para a exposição do argumento que temos por decisivo para decidir a causa – ser consistente e séria (com elevado índice de probabilidade) a probabilidade de ganho de causa na referida acção de impugnação do acto resolutivo, cumprirá apreciar se a manutenção de tal contrato importaria diversa decisão na graduação de créditos, mormente se a autora podia aí valer-se de direito real de garantia que implicasse preferir a outros credores preferentes – só se assim for se poderá concluir ter a autora sofrido dano patrimonial em resultado da perda de oportunidades radicadas no inadimplemento dos deveres profissionais do mandatário, primeiro réu.

Tal conclusão não pode retirar-se, pois que a situação patrimonial da autora seria exactamente idêntica à que veio a concretizar-se.

Fazendo incidir o juízo de prognose póstuma sobre a decisão que teria sido tomada pelo tribunal que proferiu a sentença de graduação de créditos, considerando para tanto ‘o estado da jurisprudência’ à data em que foi proferida (pois essa ‘teria evidentemente sido a decisão jurisprudencial do processo a definir os direitos e obrigações das partes, e é dela que teria resultado, ou não, o sucesso ou o decaimento do lesado’), há que considerar que o referido contrato promessa, acompanhado da tradição das fracções, não facultava à autora direito de retenção, considerando a doutrina do AUJ nº 4/2014, de 23/04/2014, publicado no DR, Iª Série, nº 95, de 19/05/2014 – e ponderando que nada é alegado quanto ao seu incumprimento prévio à declaração de insolvência.

Tal jurisprudência uniformizadora – vinculativa para os tribunais judiciais e que vem sendo seguida de forma reiterada pelo STJ – doutrinou que no âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil.

Assim que o reconhecimento do direito de retenção estabelecido no artigo 755º, nº 1, f), do CC, por força de tal AUJ, fica circunscrito ao promitente comprador que, vendo o contrato incumprido pelo administrador da insolvência, tenha a qualidade de consumidor, – qualidade entendida no sentido estrito, correspondente à pessoa que adquire bem para uso privado, em vista da satisfação de necessidades pessoais e familiares, no sentido de não o afectar a actividade profissional ou lucrativa ou a revenda, como considerado pela jurisprudência do STJ emanada até à prolação da decisão de graduação no processo de insolvência da devedora da aqui autora e que graduou o crédito desta como comum.

Significa o que vem de dizer-se que mesmo considerando não resolvido o referido contrato (v. g., face à procedência da acção de impugnação do acto resolutivo), sempre o tribunal da insolvência teria de considerar aquele AUJ (os acórdãos de uniformização de jurisprudência criam precedente qualificado de carácter persuasivo, que apenas pode ser desconsiderado com fundamento em fortes razões ou especiais circunstâncias neles não ponderadas), e não podendo reconhecer à aqui autora a qualidade de consumidor (até porque à autora incumbia alegar a matéria destinada a provar tal qualidade – note-se que o AUJ é anterior à reclamação de créditos no referido processo de insolvência, considerando que a declaração desta ocorreu em Novembro de 2014), não podia considerar que o crédito reclamado beneficiava de direito de retenção.

Não beneficiando o crédito da autora de direito de retenção, teria de ser graduado (mesmo considerando a manutenção do contrato promessa – ou seja, mesmo configurando a procedência da acção de impugnação do acto resolutivo) como crédito comum, nos termos em que o foi – o que significa que a perda de oportunidade de impugnar o acto resolutivo, em razão do inadimplemento dos deveres profissionais do primeiro réu, não aportou qualquer consequência negativa à situação patrimonial da autora, já que sempre o seu crédito teria de ser considerado como crédito comum por, não tendo ela a qualidade de consumidor, não beneficiar de direito de retenção.

Conclui-se, assim, que a pretensão da autora naquele processo de insolvência, mesmo que se verificasse proficiente actuação processual do primeiro réu e que fosse procedentemente impugnado o acto resolutivo, teria tido o mesmo desfecho – o seu crédito sempre seria graduado como comum, o que significa que não havia uma ‘chance’ consistente e real de satisfação do crédito que tenha sido frustrada pela actuação inadimplente do primeiro réu.

Por isso que o ‘julgamento dentro do julgamento’, como juízo de prognose, inerente à valoração da chance claramente aponta para a inexistência de uma oportunidade de ganhar, consistente, plausível, que se haja perdido pela omissão cometida pelo primeiro réu, enquanto mandatário da autora naquele processo de insolvência.

Considerandos que evidenciam a improcedência da pretensão da autora – mesmo concedendo que o primeiro réu incumpriu os seus deveres de diligência, sempre terá de concluir-se que de tal incumprimento não resultou para a autora a perda de qualquer oportunidade séria e consistente de ver satisfeito o seu crédito.

Breve nota final: mesmo ponderando que a autora poderia, caso procedesse a acção de impugnação, fazer valer a eficácia real do contrato, sempre haveria que considerar que as fracções se mostravam oneradas com garantias reais (os créditos da Fazenda Nacional e os créditos hipotecários) que sempre subsistiriam e que as forças da massa não conseguiriam expurgar – e também nessa perspectiva a posição patrimonial da autora não se alteraria.

Face ao que vem de dizer-se impõe-se concluir ser improcedente a pretensão indemnizatória da autora.»

No entanto, a A. persiste no entendimento de que, para a verificação do dano por perda de chance, bastará a probabilidade séria do sucesso da ação de impugnação da resolução do contrato-promessa que o 1.º R. deixou de instaurar em seu nome, o que, segundo ela, seria suficiente para se verificar também a hipótese provável de o seu crédito reclamado ser reconhecido e graduado como crédito privilegiado, beneficiando do direito de retenção e atendendo a que o contrato-promessa gozava de eficácia real.

Aqui chegados, importa sobretudo centrarmo-nos sobre o assim julgado no acórdão recorrido, também aqui sem necessidade de apreciar a matéria respeitante à ilicitude da conduta imputada ao 1.º R. e à probabilidade séria do sucesso da sobredita ação de impugnação da resolução do contrato-promessa que ele deixou de instaurar, salvo se não for de manter a solução adotada na decisão recorrida.

3.2. Apreciação


No respeitante à pretensão indemnizatória fundada em perda de chance processual, tal como foi considerado pelas instâncias, trata-se duma pretensão destinada a obter o ressarcimento de um dano aferível em função da probabilidade consistente e séria de quem, não obtendo ganho de causa por motivo imputável ao respetivo mandatário forense, o pudesse obter, não fora a ocorrência de tal motivo. 

A possibilidade desse tipo de pretensão tem encontrado suporte doutrinário e jurisprudencial, mormente no quadro atual da jurisprudência deste Supremo Tribunal.

Apesar das divergências quanto à caracterização ou não da perda de chance como dano autónomo, não se afigura existir obstáculo a que essa perda de chance ou de oportunidade de obter uma vantagem ou de evitar um prejuízo, impossibilitada definitivamente por um ato ilícito, não possa ser qualificada como um dano em si, posto que sustentado num juízo de probabilidade tido por suficiente em função dos indícios factualmente provados[1].

Assim, desde que se prove, desse modo indiciário, a consistência de tal vantagem ou prejuízo, ainda que de feição hipotética mas não puramente abstrata, terá de se reconhecer que ela constitui uma posição favorável na esfera jurídica do lesado, cuja perda definitiva se traduz num dano certo contemporâneo do próprio evento lesivo. 

Poderá colocar-se a questão de saber se, em tais casos, estamos ainda em sede de identificação do dano ou já no plano do estabelecimento do seu nexo de causalidade, posto que a definição da chance perdida terá de ser feita sempre na perspetiva do resultado final para que tende.

De todo o modo, uma coisa será, em primeira linha, identificar a própria perda de chance com consistência suficiente, em função do resultado final hipotético definitivamente perdido, para ser qualificada como dano emergente e certo, outra algo diferente será depois imputar essa perda à conduta lesiva, segundo as regras da causalidade adequada. Embora se reconheça que essa dicotomia seja discutível, se concentrarmos o juízo de probabilidade na aferição da consistência necessária à identificação do dano, já o estabelecimento do seu nexo de causalidade com a conduta ilícita se revela facilitado.    

Nessa perspetiva, o juízo de probabilidade sobre a consistência da perda de chance deve “ser encarado com grandes cautelas e apenas nas situações em que a privação da probabilidade de obtenção de uma vantagem se possa caracterizar, com mais evidência, como um dano autónomo”[2].

Mais problemático será saber quais os índices de probabilidade para o reconhecimento da perda de chance como dano autónomo, ou seja, se a própria probabilidade de vantagem perdida pode ser reconhecida como juridicamente relevante, não obstante a impossibilidade de demonstração do respetivo resultado final.

Assim, no campo da responsabilidade civil contratual por perda de chances processuais, em vez de se partir do princípio de que o sucesso de cada ação é, à partida, indemonstrável, parece mais curial ponderar, perante cada hipótese concreta, qual o grau de probabilidade segura desse sucesso, pois pode muito bem acontecer que o sucesso de determinada ação, à luz de um desenvolvimento normal e típico, possa ser perspetivado como uma ocorrência altamente demonstrável, à face da doutrina e jurisprudência então existentes.

Assim, será de aceitar que uma vantagem perdida por decorrência de um evento lesivo, desde que consistente e sério, com elevado índice de probabilidade, possa ser qualificada como um dano autónomo, não obstante a impossibilidade absoluta do resultado tido em vista.

Com efeito, a jurisprudência do STJ tem vindo a admitir a relevância de situações pontuais, desde que a prova permita, com elevado grau de probabilidade, ou verosimilhança, concluir que o lesado obteria certo benefício não fora a chance perdida. Tal significa admitir afinal o dano por perda de chance na base de um juízo de probabilidade elevado e que só poderá ser aferido em cada caso concreto. Mais discutível é se deve ser feito de forma categorial ou se em função da espécie do caso, como propendemos a admitir.

Em suma, afigura-se razoável aceitar que a perda de chance se pode traduzir num dano autónomo existente à data da lesão e, portanto, qualificável como dano emergente, desde que ofereça consistência e seriedade, segundo um juízo de probabilidade suficiente, independente do resultado final frustrado.

Demonstrada assim essa espécie de dano, questão diferente será já a avaliação do quantum indemnizatório devido, segundo o critério da teoria da diferença nos termos prescritos no artigo 566.º, n.º 2, do CC. Será também neste plano de avaliação que se poderá lançar mão, em última instância, do critério da equidade ao abrigo do n.º 3 do mesmo normativo, o qual não pode, pois, ser utilizado em sede de determinação da própria consistência da perda de chance.

No caso de perda de chances processuais, como é a tratada nos presentes autos, a primeira questão estaria em saber se o hipotético sucesso do desfecho processual, decorrente da ação que o 1.º R. deixou de instaurar, assume um padrão de consistência e de seriedade que, face ao estado da doutrina e jurisprudência, se revela suficientemente provável para o reconhecimento do dano em causa. 

Para tanto, importa fazer o chamado “julgamento dentro do julgamento” no sentido da solução jurídica altamente provável que o tribunal da ação em que a parte ficou prejudicada viesse a adotar.

Muito embora tal apreciação se inscreva, enquanto tal, em princípio, em sede de questão de facto, extravasando, nessa medida, os fundamentos do recurso de revista[3], deve admitir-se que possa, ainda assim, envolver erros de direito sobre a apreciação da prova ou do quadro normativo aplicável, estes sim passíveis de serem sindicáveis em sede de revista.

O ónus de prova de tal probabilidade impende sobre o lesado, como facto constitutivo que é da obrigação de indemnizar (art.º 342.º, n.º 1, do CC).

É esta linha de orientação que se prosseguirá nesta apreciação.


Como já ficou dito, no caso presente, a 1.ª instância considerou que o 1.º R. incorreu em incumprimento contratual por violação, presumidamente culposa, dos seus deveres de diligência profissional e que a ação de impugnação da resolução do contrato-promessa que aquele R. deixara de instaurar tinha um grau de probabilidade de sucesso “manifestamente superior a 50%”.

Por sua vez, a Relação teve por dispensável debruçar-se sobre essa matéria, considerando que, mesmo nesse quadro, nunca a A. lograria satisfazer o seu crédito reclamado pelas razões acima expostas, o que a Recorrente questiona nos termos também acima consignados.

Vejamos.

Desde logo, o prejuízo que a A. pretende ressarcir circunscreve-se à não satisfação do seu crédito reclamado sobre a massa insolvente no referido processo de insolvência da sociedade “P..., Ld.ª”, sua devedora no âmbito do referido contrato-promessa.

Sucede que tal satisfação dependeria não só da procedência da ação de impugnação da resolução desse contrato, efetuada pela administradora da insolvência, que o 1.º R. deixara de instaurar em nome da A., mas ainda dos direitos que assistisse a esta por virtude do mesmo contrato, em particular como credora privilegiada pelo alegado direito de retenção ou porventura por via da eficácia real do mesmo, nos termos do artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do CC e do artigo 106.º, n.º 1, do CIRE.   

Ora, diversamente do sustentado pela Recorrente, dos factos provados não resulta que o contrato-promessa em causa goze sequer de eficácia real, uma vez que o mesmo, muito embora contendo uma declaração das partes nesse sentido, consta apenas do documento particular simples junto a fls. 23-25/v.º, não obedecendo, portanto, à forma para tal prescrita no artigo 413.º, n.º 2, do CC, em que se exige escritura pública ou documento autenticado, quando se trate de contrato-promessa de transmissão ou de constituição de direitos reais sobre imóveis, como é o caso.

Está, por isso, excluída a aplicação do preceituado no artigo 106.º, n.º 1, do CIRE, que obstaria à recusa do cumprimento do contrato por parte do administrador da insolvência.

Acresce que o pretendido direito de retenção a favor da A. como promitente-comprador, ao abrigo da alínea f) do n.º 1 do artigo 755.º do CC, não poderia ser reconhecido nem salvaguardado no referido processo de insolvência, à luz da jurisprudência consolidada no AUJ do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2014, de 23/04/2014, publicado no Diário da República, 1.ª Série, n.º 95, de 19/05/2014, na medida em que aquela A. não detém, manifestamente, a qualidade de consumidora, conforme as considerações feitas no acórdão recorrido que aqui se acolhem inteiramente, sendo que aquela jurisprudência uniformizada já se encontrava estabelecida aquando da reclamação do crédito em causa, como também ali foi observado.

Nem procede o argumento da Recorrente no sentido de que esse direito poderia até vir a ser reconhecido em caso de falta de impugnação dos demais credores, porquanto a qualificação do crédito como privilegiado por virtude do direito de retenção é de conhecimento oficioso, não dependendo da impugnação dos demais interessados. 

De resto, o mesmo fora logo desconsiderado na lista dos credores apresentada pela administradora da insolvência, não sendo a respetiva homologação judicial condicionada pela falta de oposição dos demais credores. 

Em face de todas estas razões, impõe-se concluir pela não verificação de uma probabilidade consistente e séria de que a falta de impugnação da resolução do contrato-promessa em causa, ainda que imputável ao 1.º R., seja de molde a frustrar a satisfação do crédito da A. como crédito privilegiado sobre a massa insolvente, como ela pretende. 

Com efeito, mesmo que tal impugnação tivesse sido deduzida e julgada procedente, não se afigura minimamente provável que o referido crédito emergente do contrato-promessa pudesse ser qualificado como tal, o que se traduz, de certo modo, numa quebra do nexo de causalidade entre o facto omissivo imputado ao 1.º R. - a falta de instauração da ação de impugnação da resolução do contrato-promessa - e o prejuízo resultante da não satisfação desse crédito pela via pretendida.   

Nem a A. demonstra nem se descortina outra vantagem patrimonial relevante que ela pudesse obter, a título de satisfação do crédito reclamado sobre a massa insolvente, em caso procedência da sobredita ação de impugnação da resolução do contrato-promessa.

Termos em que não merece censura o acórdão recorrido.


IV - Decisão


Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

As custas do recurso serão devidas pela A./Recorrente.


Lisboa, 16 de dezembro de 2020

Manuel Tomé Soares Gomes

Maria da Graça Trigo

Maria Rosa Tching

Nos termos do artigo 15.º-A do Dec.-Lei n.º 10-A/2020, de 13-03, aditado pelo Dec.-Lei n.º 20/20, de 01-05, para os efeitos do disposto no artigo 153.º, n.º 1, do CPC, atesto que o presente acórdão foi aprovado com o voto de conformidade das Exm.ªs Juízas-Adjuntas Maria da Graça Trigo e Maria Rosa Tching, que não assinam pelo facto de a sessão de julgamento (virtual) ter decorrido mediante teleconferência. 


Lisboa, 16 de dezembro de 2020


O Juiz Relator

Manuel Tomé Soares Gomes

_______

[1] Vide a este propósito, veja-se, entre outros, o acórdão do STJ, de 09/07/2015, relatado pelo aqui relator, no processo n.º 5105/12.2TBSXL.L1.S1, acessível na Internet - http://www.dgsi.pt/jstj.

[2] A este propósito, vide comentário do Juiz Conselheiro Carlos Alberto Fernandes Cadilhe, in Regime da responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, Anotado, Coimbra Editora, 2011, pag. 98-99, citado no acórdão indicado na nota precedente.  

[3] Neste sentido, vide Paulo Mota Pinto, artigo citado p. 190