Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05A416
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: COMPRA E VENDA
ESCRITURA PÚBLICA
FORÇA PROBATÓRIA
PREÇO
Nº do Documento: SJ200504190004161
Data do Acordão: 04/19/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1 - Os factos cobertos pela força probatória da escritura pública são apenas os consignados no art.º 371, n.° 1, do Código Civil, ou seja, aqueles que refere como praticados pelo notário e os que nela se atestam com base nas percepções
dele.
2 - Assim, no que toca ao preço da compra e venda, a escritura pública prova plenamente que os vendedores disseram perante o notário que o preço foi de 500 contos e que já o receberam; mas não prova, nem pode provar, que tal facto corresponde à realidade, que o conteúdo da declaração é verdadeiro, dado que isso transcende aquilo que as percepções do notário, enquanto autoridade revestida de fé pública, podem alcançar.
3 - Portanto, nada impede que mais se tarde se prove, por exemplo, que o preço ainda não foi efectivamente pago, ou que foi diferente (superior ou inferior).
4 - E tal prova pode ser obtida quer por testemunhas, quer por presunções, como resulta do disposto no art.º 393, n.° 2, em conjugação com os art.ºs 351º e 396º do Código Civil.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1. A e B propuseram uma acção ordinária contra C, D, E e F tendo em vista obter a condenação dos réus a reconhecerem o seu direito de preferência relativamente à compra e venda formalizada pela escritura de 9.1.97, certificada na fotocópia junta com a petição inicial, de conformidade com o disposto no art.º 1380º, nº 1, do Código Civil (salvo menção em contrário, pertencerão a este diploma todos os artigos citados).

Fundamentos do pedido:
Os autores são donos do prédio rústico Sorte do Barrão ou Sorte do Mal e Mau, com a área de 11.900 m2, situado no lugar da Devesa, freguesia de Arões, S. Romão, Fafe; este imóvel confina com o prédio rústico Coutada da Devesa, com
a área de 3.340 m2, situado no mesmo lugar, que os 1ºs réus venderam aos 2ºs réus pelo preço de 500.000$00; os 2ºs Réus não são proprietários de prédios confinantes com o prédio vendido; o projecto de venda e as cláusulas do contrato
não foram comunicadas aos autores, nem por escrito, nem verbalmente.

Os autores depositaram a quantia de 562.460$00, correspondente, segundo alegaram, ao preço do prédio vendido, acrescido do valor da sisa paga e do acto notarial (40.000$00 e12.460$00, respectivamente).
Contestando, os réus impugnaram a invocada falta de comunicação do negócio e os factos relativos à usucapião e ao registo do prédio da Coutada da Devesa a favor dos autores. Alegaram ainda que o preço da venda não foi o constante da escritura, mas sim o de 2.400.000$00, e que, anteriormente a 5.3.91- data do contrato-promessa que antecedeu a compra e venda definitiva - contactaram os autores, dando-lhes a conhecer a sua intenção de venderem o terreno, o preço de 2.400.000$00, as condições de pagamento, a data da escritura e a pessoa do eventual comprador; os autores, contudo, logo disseram que não pretendiam adquirir o prédio e que o podiam vender nos termos e condições que entendessem.

Finalmente, afirmou-se na contestação que os 2ºs réus adquiriram o prédio para construção e que os autores não reúnem os requisitos para exercer o direito de preferência accionado.
Para o caso de a acção ser julgada procedente, os 2ºs réus deduziram reconvenção, pedindo a condenação dos autores a pagar-lhes 3.400.000$00 e juros legais, importância esta correspondente aos gastos que suportaram, designadamente
com desaterros, escavações, abertura de valas, construção de alicerces, transporte de pedra e vedação do prédio ajuizado.
Os autores replicaram, impugnando os factos articulados pelos réus.

A final foi proferida sentença, confirmada pela Relação, julgando a acção improcedente e a reconvenção extinta por inutilidade superveniente da lide.
Mantendo-se inconformados, os autores recorreram para o Supremo Tribunal, defendendo a revogação do acórdão da Relação com fundamento na violação dos art.ºs 342º, 351º, 369º, 370º, 371º e 1410º, nº 1.
Contra alegando, os autores sustentam a confirmação do julgado.

2. Está em causa o exercício do direito de preferência facultado pelo art.º 1380º.
Manda o nº 4 deste preceito aplicar, com as necessárias adaptações, o disposto no art.º 1410º, cujo nº 1, justamente, põe como condição essencial do reconhecimento da preferência o depósito "do preço devido nos quinze dias seguintes à propositura da acção". Na escritura de compra e venda do prédio objecto da preferência os primeiros réus declararam vendê-lo pelo preço de 500 contos ao segundo réu, declarando ainda já ter recebido o preço. Mediante alegação dos réus, porém, perguntou-se no quesito 18º se o preço da venda foi de 2.400 contos.

A 1ª instância respondeu afirmativamente a este quesito e a 2ª manteve a resposta, rejeitando a impugnação da decisão sobre esse e outros pontos da matéria de facto incluída no objecto da apelação dos autores. Ambas as instâncias consideraram que "preço devido" era o efectivamente provado em julgamento.

E assim, porque os autores não quiseram preferir por tal preço, mas apenas e só pelo constante da escritura, negaram procedência à sua pretensão.
No recurso os autores observam, em suma, que a presunção judicial de que as instâncias se serviram para concluir que o preço pago foi de 2400 contos é contra legem; que, não se provando que as declarações constantes da escritura relativamente ao preço não são verdadeiras, deve presumir-se que o preço escriturado - 500 contos - o é, nisso se traduzindo a eficácia probatória daquele documento, enquanto documento autêntico; e que a falta de prova de que o preço real da venda foi de 2.400 contos os favorece, na medida em que, depositando o preço escriturado, cumpriram o ordenado pelo art.º 1410º, nº 1, norma esta que impõe ao preferente o depósito do preço devido, não do preço presumido.

Deste modo, circunscrevendo com o máximo de exactidão possível a questão suscitada na revista, diremos que a pergunta a responder é a seguinte:
Deve, ou não, a resposta ao indicado quesito ser tida por não escrita, nos termos do art.º 646º, nº 4, do CPC, por estar plenamente provado que o preço foi de 500 contos?
Entende-se, - adiantamo-lo desde já - que não há qualquer fundamento para eliminar a resposta.
Vejamos porquê.
Na 1ª instância, fundamentou-se do seguinte modo a resposta ao quesito 18º:
"A propósito, agora, do facto vertido no n° 18 da Base Instrutória, importará, antes do mais, relembrar que, sendo certo que o art. 394°, n° 1, do Cód. Civil torna inadmissível a prova por testemunhas se tiver por objecto convenções contrárias ao conteúdo de documentos autênticos, quer as convenções sejam anteriores à formação do contrato ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores, estipulando, por outro lado, o art. 351º do mesmo código que as presunções judiciais só são admitidas nos casos e nos termos em que é admitida a prova testemunhal - o que, no rigor literal dos termos, restringia a possibilidade de prova de tais convenções à prova por confissão e à prova testemunhal -, a verdade é que a doutrina e a jurisprudência se mostram propensas a entender que os preceitos em questão não precludem o recurso à prova testemunhal em complemento da prova documental, posição esta à qual aderimos.

Com efeito, se, como se crê, a razão de ser da proibição do art. 394° é a necessidade de afastar os riscos próprios da falibilidade da prova testemunhal, contra o valor que o documento deve ter, se o recurso às testemunhas for um mero complemento da prova documental, motivos não há para recear a verificação dos referidos riscos.
Entendemos, pois, que a prova testemunhal pode ter uma função complementar quando exista um "começo de prova" documental. Admitindo-se, nestes termos, a prova testemunhal, de admitir igualmente será o recurso às presunções judiciais (1) .
Isto posto, é de concluir que, no caso "sub judice", estamos exactamente perante urna daquelas situações em que tanto a prova testemunhal como o recurso às presunções judiciais é de admitir: na verdade, foi carreado para os autos um documento que integra um "começo de prova" quanto ao preço real do prédio vendido, mais concretamente, um contrato - promessa de compra e venda, relativamente ao qual já vimos que teve, efectivamente, por objecto a parcela de
terreno objecto desta acção de preferência, contrato esse celebrado em 05.03.1991 e que, como também já vimos, este Tribunal considera autêntico, no qual se pode ler não só que o preço total da compra e venda é de 2.400.000$00, como também que, como sinal e princípio de pagamento os primeiros outorgantes (os ora primeiros Réus) já tinham recebido, naquela data, de E (aqui também Réu), a importância de 1.500.000$00, de que lhe deram quitação.
Deste facto conhecido é-nos lícito presumir, com recurso às regras da experiência, um outro facto: a compra e venda prometida foi efectuada pelo preço constante do contrato-promessa e não pelo preço declarado na escritura
pública. Na verdade, como aliás resulta exemplificado pela conjugação dos documentos juntos a fls 243 a 247 - escritura de compra e venda da Coutada da Deveza (de onde foi desanexado o prédio ora em questão) - e a fls 266 e 267 -
contrato-promessa relativo ao mesmo prédio -, a triste realidade é a de que os preços reais dos contratos de compra e venda relativos a imóveis são constantemente ocultados pelas partes para se eximirem do pagamento de impostos elevados. Por outro lado, de estranhar seria que, depois de já ter sido efectuado - como se extrai do contrato-promessa - o pagamento de 1.500.000$00, as partes tivessem acordado na venda do prédio em questão pelo preço de 500.000$00".

A Relação reapreciou as provas, designadamente, e em particular, as referidas pela 1ª instância na fundamentação transcrita, tendo decidido, como já se disse, manter inalterado o facto estabelecido na resposta ao quesito 18º.
Ora, desde logo, o Supremo Tribunal não tem competência para sindicar o julgamento da matéria de facto feito pelas instâncias, cabendo-lhe apenas aplicar definitivamente aos factos fixados no tribunal recorrido o regime jurídico que julgue adequado - art.º 729º, nº 1, do CPC. E quanto, em particular, às presunções judiciais, meio de prova cujo valor é idêntico ao da prova testemunhal - art.ºs 351º e 396º - a regra apontada mantém-se: se as instâncias se confinarem aos factos inseridos na base instrutória, sem impedir a produção de contraprova ou prova do contrário, nem violar, ao fazer uso delas, nenhuma disposição legal, o tribunal de revista não tem mais do que acatar e fazer acatar os elementos de facto assim introduzidos no processo (2).

Depois, e decisivamente, ao dar como demonstrado o facto em análise o tribunal recorrido não ofendeu nenhuma disposição expressa de lei que fixe a força de determinado meio de prova; logo, o Supremo Tribunal está impedido de nesse ponto revogar o julgado, uma vez que nenhum obstáculo legal se erguia à formação da convicção que as instâncias expressaram a seu respeito (art.º 722º, nº 2, 2ª parte, do CPC). Com efeito, os factos cobertos pela força probatória plena da escritura ajuizada, de 9.1.97, são apenas os consignados no art.º 371º, nº 1, ou seja, aqueles que refere como praticados pelo notário e os que nela se atestam com base nas percepções dele.

Assim, no que toca, especificamente, ao preço da compra e venda, a escritura pública prova plenamente que os vendedores disseram perante o notário que o preço foi de 500 contos e que já o receberam; mas não prova, nem pode provar, que tal facto corresponde à realidade, que o conteúdo da declaração é verdadeiro, dado que isso transcende aquilo que as percepções do notário, enquanto autoridade revestida de fé pública, podem alcançar. Portanto, nada impede que mais tarde se prove, por exemplo, que o preço ainda não foi efectivamente pago, ou que foi diferente (superior ou inferior) (3), como na situação ajuizada veio a suceder. E tal prova, deve sublinhar-se, pode ser obtida quer por testemunhas, quer por presunções, como se vê do disposto no art.º 393º, nº 2, em conjugação com as disposições legais anteriormente
referidas.
Não vem de igual modo ao caso a proibição de prova testemunhal estabelecida no art.º 394º, nº1 e 2, visto que não esteve em apreciação determinar o conteúdo de qualquer não alegada convenção contrária ou adicional da escritura
ajuizada, sendo certo, por outro lado, que nenhuma das partes invocou a simulação negocial (absoluta ou relativa).

Improcedem, pois, ou mostram-se deslocadas todas as conclusões da minuta.

3. Nestes termos, nega-se a revista.
Custas pelos autores.

Lisboa, 19 de Abril de 2005
Nuno Cameira
Sousa Leite
Salreta Pereira
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(1) Neste sentido: Prof. Vaz Serra, RLJ 107º, 311 e sgs; Mota Pinto e Pinto Monteiro, CJ, Ano X, III, págs 15 e sgs; Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, 2ª edição, II, 237/238.
(2) No sentido exposto no texto podem citar-se , por último, entre muitos outros, os acórdãos de 18.12.03 (Revª3794/03 -2ª) e 9.12.04 (Revª 3526/03-2ª).
(3) A jurisprudência e a doutrina a respeito deste ponto são uniformes, segundo nos parece. A
título exemplificativo, podemos citar o acórdão do STJ de 19.2.04 (Revª 2009/03-2ª) e a
anotação favorável do Prof. Almeida Costa ao acórdão deste mesmo de 4.6.96, publicado na
RLJ, ano 129º, pág. 342 e segs, com largas referências de doutrina e de jurisprudência.