Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1040/12.2TBLSD-I.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: INSOLVÊNCIA
VENDA EXTRAJUDICIAL
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
DANO
Data do Acordão: 07/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSOS ESPECIAIS / JUSTIFICAÇÃO DA AUSÊNCIA.
DIREITO FALIMENTAR – MASSA INSOLVENTE E INTERVENIENTES NO PROCESSO / ÓRGÃOS DA INSOLVÊNCIA / RESPONSABILIDADE.
Doutrina:
-Almeida Costa, Direito das Obrigações, 2013, p. 561;
-Amândio Novais, A responsabilidade civil dos administradores na execução de deliberações dos sócios, p. 9, in https://repositorio.ucp.pt.;
-Carneiro da Frada,A responsabilidade dos administradores na insolvência, in www.portal.oa.pt.;
-Luís M. Martins, Processo de Insolvência, 2013, 3.ª Edição, p. 225;
-Nuno Ferreira Lousa, Revista de Direito da Insolvência, n.º 2, 2018, p. 147 e ss.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 483.º;
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 889.º, N.º 2;
CÓDIGO INSOLVÊNCIA E DE RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGO 59.º, N.º 4.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 15-02-2018, PROCESSO N.º 4488/11.6TBLRA-M.C1.S1.
Sumário :
I - A responsabilidade do administrador da insolvência por condutas ou omissões danosas ocorridas após a sua nomeação – art. 59.º, n.º 4, do CIRE –, é reconduzível à responsabilidade extracontratual por factos ilícitos – art. 483.º do CC.

II - Incorre em responsabilidade extracontratual por factos ilícitos, por ter actuado de forma voluntária, ilícita, culposa e adequadamente causadora de danos aos credores, o administrador de insolvência que, ante a frustração da venda por anúncios em jornais durante sete meses, decide proceder à venda de três bens imóveis pelo melhor preço oferecido, através de propostas a apresentar por qualquer meio, que publicita em anúncio/edital sem menção do dia a hora de abertura, e, em consequência, vem a aceitar proposta com os valores parcelares de € 734,16, € 4.497,91, € 2.268,93, quando lhes correspondem os valores patrimoniais tributários de € 7.627,22, € 48.481,34 e € 23.572,00.

III - O valor do dano a considerar corresponde a 70% do valor global, para efeitos tributários, dos imóveis vendidos, com dedução do valor oferecido já arrecadado – arts. 889.º, n.º 2 do CPC, na redacção anterior à reforma de 2013, uma vez que a apreensão dos vens já se havia concretizado.
Decisão Texto Integral:

         ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO

AA, residente no lugar ..., …, ... intentou acção declarativa contra BB, com domicílio profissional no ..., R/CH, Apartado … ..., pedindo a condenação deste na quantia de 260.000,00 €, acrescida de juros de mora à taxa de 4% desde a data da citação até integral pagamento, alegando, em síntese, que:

- Na acção de declaração de insolvência da CC, foi o Réu nomeado administrador da insolvência;

- Nesse processo foram apreendidos para a massa insolvente três prédios e alguns móveis;

- O Réu, na qualidade de administrador da insolvência, optou pela venda dos bens apreendidos na modalidade de proposta sem recorrer a mediador oficial;

- Os bens imóveis foram vendidos por preço muito inferior ao real.

           Regularmente citado o Réu contestou por excepção e por impugnação.

            Por excepção, invocou a sua ilegitimidade activa, por preterição de litisconsórcio necessário, e a incompetência do tribunal em razão do território. Por impugnação, refere, no essencial, que:

- O valor atingido foi o possível no mercado real e depois de muitas outras tentativas frustradas anteriores;

- Nada impedia o autor e outros interessados de terem adquirido por preço superior os referidos bens;

- Era do interesse do réu vender os imóveis por um valor mais elevado, pois quanto maior fosse o valor de venda dos imóveis, maior seria a sua remuneração variável;

- Quando foi citado para esta acção ficou fortemente afectado no seu estado psíquico, emocional e físico.

           Deduziu reconvenção peticionando a condenação do autor a pagar-lhe a quantia de 100.00,00 €.

           Concluiu pedindo a improcedência da acção, a procedência da reconvenção, e também a condenação do autor como litigante de má fé.

           No despacho saneador as excepções foram julgadas improcedentes e a reconvenção não foi admitida.

           

A final, foi proferida sentença na qual se julgou improcedente a acção, com a consequente absolvição do Réu

           O Autor interpôs recurso de apelação, tendo a Relação do Porto confirmado a decisão da 1ª instância, ainda que com voto de vencido.

           Recorre agora o Autor para o STJ, rematando as alegações da revista com as seguintes conclusões:

1.        O primeiro aspecto que resulta expressamente do art. 1º do CIRE é assim, claramente, o de que o objectivo principal do processo de insolvência é a garantia patrimonial dos credores. Daí que, os interesses que o administrador da insolvência deve priorizar são os "interesses dos credores".

2.        O legislador consagrou a possibilidade de responsabilidade civil do administrador da insolvência em casos de danos causados ao devedor, aos credores da insolvência e da massa insolvente, pela inobservância culposa dos deveres que lhe incumbem.

3.         A culpa nesses casos será apreciada de acordo com a mesma regra que é aplicável aos gerentes e administradores das sociedades comerciais, ou seja, atendendo aos parâmetros de diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado (artigo 59.0 nº 1 do CIRE e artigo 64° a) do CSC).

4.        Sobre o Administrador da Insolvência impende um dever geral de cuidado que pode ser definido como a adstrição a observarem, no exercício das suas funções, a diligência e o cuidado exigíveis a uma pessoa medianamente prudente, colocada em circunstâncias semelhantes, tendo sempre presente o interesse dos credores.

5.         Este dever geral de cuidado subdivide-se entre outros, no dever de actuar correctamente na preparação do processo decisório e o "dever de tomar decisões (substancialmente) razoáveis”.

6.        Este último sub-dever (o "dever de tomar decisões (substancialmente) razoáveis) é o que melhor caracteriza o contexto que rodeia o exercício das funções de administração da insolvência.

7.        Para cada caso existem diversas alternativas razoáveis de decisão. A alternativa será razoável não apenas quando representar a decisão óptima, mas desde que atenda ao interesse dos credores, ou melhor dizendo à "maximização da satisfação dos interesses dos credores" (art. 12º, n° 2 do Estatuto dos Administradores Judiciais)

8.         A necessária discricionariedade da actuação do administrador da insolvência vigora enquanto se contiver nas margens da razoabilidade.

9.        Para aferir do cumprimento do dever de cuidado, a lei manda ponderar, ainda: a "diligência de um administrador criterioso e ordenado" (art. 59 nº 1 do CIRE).

10.       Trata-se de juízo mais exigente do que o que resulta da comum diligência de "um bom pai de família", na medida em que a observância do dever de cuidado tem de ser reportada não a um cidadão comum, mas antes a "especialistas fiduciários, que gerem bens alheios", ou seja, a administradores profissionais dotados de especiais qualidades e competências e conhecedores das mais adequadas técnicas.

11.      Temos assim que a responsabilidade do administrador de insolvência só será de excluir se se provar que este no âmbito do dever de cuidado a que está adstrito, cumulativamente, obteve razoável informação no processo de tomada de decisão e tomou decisões razoáveis e adequadas.

12.      O administrador que tomar uma decisão desinformada estará descumprindo com o dever de cuidado. As decisões desinformadas ou sem o nível mínimo de informação serão presumivelmente irrazoáveis.

13.       O que está em causa não é apenas o bom exercício das funções deste administrador, mas sim todo um conjunto de consequências que daí possam advir. O administrador deverá, pois, prover à otimização das possibilidades de pagamento aos credores e às perdas patrimoniais que haja evitado à massa.

14.      Responsabilidade é a obrigação de responder pela acções próprias, pelas dos outros ou pelas coisas confiadas. A responsabilidade do administrador, presente nos nºs 1 e 2 do artigo 59.°, é a responsabilidade civil extracontratual. Ele é servidor de justiça e do Direito, e como tal, deverá mostrar-se digno da honra e das responsabilidades que lhe são inerentes. A responsabilidade do administrador pela prática dos seus próprios actos reconduz-se à responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos.

15.       O artigo 483.0 n.º 1 do Código Civil é o preceito central deste tipo de responsabilidade compilando os requisitos que ela exige: aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica o brigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.

16.      Desde logo, Antunes Varela explica que é necessária, em primeiro lugar, a existência de um facto voluntário do agente, que mostre a vontade do homem de praticar aquela conduta, não se tratando de um mero facto natural; que esse facto praticado pelo homem consista numa ilicitude, isto é, que ele infrinja objetivamente qualquer das regras disciplinadoras da vida social; que haja culpa da sua parte; que em virtude do facto praticado pelo lesante ocorra um dano na esfera do lesado; e, por fim, que se verifique um nexo de causalidade entre a conduta praticada pelo homem e o dano causado à pessoa lesada, ou seja, que o lesado se encontre naquelas condições por consequência de acto praticado pelo lesante.

17.       Ora, conforme se alcança dos autos, a conduta do R./Recorrido preenche todos os requisitos da responsabilidade civil por factos ilícitos. Na verdade, a venda dos bens da massa pelo R. (facto voluntário) violou os mais elementares deveres de cuidado a que estava adstrito (ilicitude), merecendo a sua conduta a reprovação ou censura do direito, uma vez que pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, o R. podia e devia ter agido de outro modo( culpa), pelo que assim não agindo o R. impediu o A./Recorrente de ser pago pelo menos de parte do seu crédito (dano) tendo a venda sido a causa do prejuízo do A.(nexo de causalidade)

18.       A conduta o R. é de tal forma ilícita e reprovável que:

-O prédio da verba nº 1 foi vendido por um preço correspondente a 4.05% do seu valor real ou de mercado.

-O prédio da verba nº 2 foi vendido por um preço correspondente a 4.97% do seu valor real ou de mercado

-O prédio da verba nº 3 foi vendido por um preço correspondente a 3.42 % do seu valor real ou de mercado

19.      Ou seja, o preço da venda dos prédios foi um preço anormalmente baixo, isto é um preço que escapa a toda a lógica de mercado, irrazoável, sem qualquer justificação. Foi aquilo que na prática se chama de "preços ao desbarato", podendo mesmo dizer que se tivesse aparecido um comprador a oferecer €1,00 por cada prédio, o Réu tinha vendido.

20.       E com toda a certeza pode também dizer-se que dado o carácter ruinoso do negócio, a actuação do R./Recorrido não foi seguramente no interesse dos credores.

21.       No interesse dos credores o R./Recorrido tinha o dever de evitar que a venda dos bens da massa insolvente se fizesse por um valor desajustadamente diminuto.

22.      A representação legal decorrente da nomeação do R. como Administrador de insolvência não é salvo conduto para o arbítrio, consentindo na celebração do negócio em desequilíbrio dos interesses dos credores.

23.      O preço da venda dos imóveis apreendidos para a massa falida deveria ser um preço justo de harmonia com a regras da oferta e da procura no mercado imobiliário e não uma venda por qualquer preço.

24.       O R/Recorrido, ao promover a venda dos bens apreendidos sem indicar qualquer valor base para as propostas, anunciando que os bens seriam vendidos ao melhor preço oferecido sem limite mínimo, ingenuamente ou incautamente, abriu a porta para que os potenciais compradores em conluio (em cartel) se organizassem para apresentar uma única proposta de valor muito abaixo do valor real e de mercado, que obviamente seria a vencedora, repartindo futuramente entre todos os lucros que viessem a obter numa futura venda.

25.       Era exigível ao R/Recorrido (o que aliás é do domínio público) o conhecimento destes esquemas de supressão de propostas os quais envolvem acordos entre os concorrentes nos quais um ou mais potenciais compradores estipulam abster -se de concorrer para que a proposta, (por norma muito abaixo de preço real ou de mercado) do concorrente escolhido seja aceite. Tudo isto o R./Recorrido ignorou.

26.      Portanto, quando se diz no acórdão recorrido que a proposta apresentada, existindo apenas uma, não pode deixar de ser tida como a que decorre do melhor preço existente, e que não havia outra, convirá acrescentar que perante tal proposta tão descabida teria e deveria o R./Recorrido reflectir se não estaria na presença de um conluio entre potenciais compradores com vista à aquisição dos bens por preço anormalmente baixo. Provavelmente a razão de apresentação de uma única proposta foi essa.

27.       O cumprimento do dever de diligência e cuidado por parte do R. na venda dos imóveis da massa insolvente não se basta com a publicação de catorze anúncios num jornal.

28.       E se é certo que, como se diz no acórdão recorrido, houve uma reiterada actividade de proceder à venda, não menos certo é que tal actividade foi pouco imaginativa e diligente. O R./Recorrido apesar de constatar que os anúncios em jornal não resultavam em venda, persistiu no erro, continuando reiteradamente a insistir neste veículo de promoção da venda, sem procurar alternativas mais eficazes.

29.      Nem o cidadão comum, o bonus pater familias, quando pretende comprar ou vender uma casa ou um terreno deixa de recorrer a especialistas, mediadores oficiais, agências imobiliárias ou leiloeiras. A venda de imoveis é hoje coisa de especialistas. A venda por anúncios em jornal carece hoje de reduzida eficácia. Não chega, é preciso colocar-se anúncios na internet em sites especializados, uma placa apelativa, etc, etc.

30.      É verdade que não se provou que, caso os bens fossem vendidos através de um mediador imobiliário, seriam vendidos por um valor superior. Porém não é isso que está em causa. É que a obrigação do R./Recorrido não era só a de obter um resultado razoável. O R./Recorrido estava também obrigado a desenvolver uma actividade, a empregar todos os meios - e o recurso a especialistas em venda era um delas - que permitissem "maximizar" os interesses dos credores. E isso não aconteceu. Mais,

31.       O cidadão comum, antes de vender um imóvel, a primeira coisa que faz é chamar um "louvado" com vista a ter uma noção do valor do que vai vender. Sem uma boa informação não há bom negócio.

32.       Ora, o R./Recorrido vendeu os imóveis da massa insolvente "às cegas" sem sequer saber qual o seu real valor. Veja-se que ficou provado (Ponto 9 dos Factos Provados): O R./Recorrido não mandou avaliar os bens apreendidos com vista a determinar o seu real valor.

33.       Sobre o R/Recorrido incumbia o dever de liquidar o património da insolvente, mas não a qualquer preço.

34.      Não ignorava o R./Recorrido que, ascendendo o crédito do A./Recorrente a € 273.700,34, ao vender a totalidade dos bens apreendidos para a massa insolvente por € 8.001,00, por esta forma estava a inviabilizar o pagamento parcial da dívida ao autor.

35.      E não se diga, como acontece no acórdão recorrido, que o R./Recorrido estava pressionado para vender, pelo dever de celeridade do processo (art. 9° n.º 1 do CIRE). É que o processo é um meio, não é um fim em si mesmo. O processo é um instrumento para que seja dado a cada um o que é seu. Os interesses dos credores não podem ser sacrificados face ao interesse da celeridade processual.

36.      O objectivo do processo é a justa composição do litígio, a conseguir com a brevidade e eficácias possíveis (art.? do CPC). Com a sua actuação, o R./Recorrido conseguiu ser breve, mas não conseguiu a justa composição do litigio que era a satisfação dos credores da insolvente.

37.      Também não colhe dizer-se como acontece no acórdão recorrido que o A./Recorrente se alheou de apresentar uma alternativa concreta para a venda. É que, como se alcança do Apenso da liquidação nenhuma das informações que o Sr. AI foi prestando ao tribunal foi notificada ao A./Recorrente. Por outro lado, nem o A/Recorrente tinha a obrigação de comprar os prédios da insolvência, tão pouco tinha qualquer dever legal de acompanhar todas as diligências de venda.

38.      Não é ainda rigoroso dizer-se que os imóveis mostravam no momento da venda uma degradação superior ao normal, necessitando de obras ou que o imóvel da verba n° 2 estava ocupado por duas senhoras de idade avançada, ou que o imóvel da verba n.º 1 estava dividido por uma auto-estrada o que prejudicava a agricultura, ou que o imóvel da verba n.° 3 estava num avançado estado de degradação sem licenciamento para o efeito e com ordem de demolição dada pela câmara municipal, circunstâncias que desvalorizam os prédios. É que o que ficou provado (pontos 21° e 22° dos Factos Provados) foi que o imóvel da verba n.º 2 se encontrava em mau estado de conservação, com infiltrações e divisórias em mau estado e era ocupada por duas senhoras de idade avançada e que os imóveis das verbas 1 e 3 não possuíam licença de construção ou ocupação.

39.      Portanto, não se provou que todos os imóveis mostravam no momento da venda uma degradação superior ao normal, ou que o imóvel da verba n.º 1 (que por acaso até é um urbano) estava dividido por uma auto-estrada o que prejudica a actividade agrícola ou que o imóvel da verba n.º 3 estava num avançado estado de degradação e com ordem de demolição dada pela câmara municipal. Mais, apesar de se ter provado que o imóvel da verba n.º 2 estava ocupado por duas senhoras de idade avançada, tal não significa que tivessem algum direito de ali permanecer, ou que logo que lhes fosse solicitado não abandonassem o imóvel

40.      Não se diga ainda, por fim, que os valores dos bens em processo de insolvência nada têm a ver com os valores em processo de expropriação, pois aqui é sempre o justo valor que se pretende fixar e ali é o melhor valor que se pretende com a liquidação de uma massa falida.

41.       Em primeiro lugar porque os Sr.s Peritos avaliaram os prédios e apresentaram as suas conclusões segundo o valor real e de mercado dos prédios e não valores para efeitos de expropriação.

42.       Depois, se é certo que o Administrador da Insolvência deve com prontidão proceder a venda de todos os bens apreendidos (art. 158º do CIRE), não menos certo é que o AI não está obrigado a uma liquidação forçada dos bens da massa falida (como de alguém se tratasse que precisa de se desfazer com urgência de um bem para garantir a liquidez imediata). Está sim, é obrigado a vender de forma a satisfazer os interesses dos credores, pois é esta a finalidade primeira do processo de insolvência (arts. 1º, n.º 1, e 46° n.º 1 do CIRE.

43.      Por todas estas razões, não pode deixar de concluir-se que o R./Recorrido agiu de forma ilícita e culposa

44.       Finalmente e sem prescindir,

45.      Não poderá deixar de dizer-se que o mecanismo que o R./Recorrido encontrou para estabelecer os preços de venda dos bens da massa é ilegal, por violação o art. 883 do CC.

46.       Na verdade, tendo o R./Recorrido anunciado que os bens seriam vendidos ao melhor preço, mas sem limite mínimo, não foi determinado nem o preço, nem o modo como ele havia de ser determinado. Pelo que competiria ao tribunal fixar o preço segundo os juízos de equidade.

47.      Revogando-se assim a sentença recorrida e proferindo-se acórdão que acolha as conclusões precedentes e que julgue, na esteira da posição vencida no acórdão recorrido, a acção procedente, mediante a fixação de uma indemnização nos termos do art. 566 n.º 3 do CC

            Não houve contra-alegações.

                                                                       *

           Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do recorrente, a questão que cabe analisar é a de saber se é devida indemnização ao Autor decorrente da actuação do administrador da insolvência no processo que levou à venda judicial dos imóveis apreendidos para a massa.

                                                                       *

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Vêm provados das instâncias os seguintes factos:

1. Por sentença proferida em 16 de Agosto de 2012, nos autos do Processo nº 1040/12.2 TBLSD do 2º Juízo do Tribunal Judicial de ..., já transitada em julgado foi declarada a insolvência de CC, requerida por AA.


2. Nesse processo foi nomeado administrador da insolvência o Dr. BB e foi decretada a apreensão, para imediata entrega ao R. administrador da insolvência, de todos os bens da insolvente.

3.         Foi designada a realização da Assembleia de credores para o dia 9 de Outubro de 2012.

4.        Ao Autor foram reconhecidos, no âmbito do processo de insolvência, dois créditos, um crédito de natureza comum no montante de 205.275,26 € e um crédito de natureza privilegiado no montante de 68.425,08 €, por ser o requerente da insolvência.

5.        Assim, por sentença proferida em apenso desse processo de insolvência, os créditos foram graduados da seguinte forma:

1º lugar:  Crédito privilegiado da Fazenda Nacional, no montante de 11.315,87 €;

2º lugar: Crédito do A. até à quantia de 68.425,08 €, relativamente aos produtos da venda de bens móveis apreendidos para a massa insolvente

3º lugar: Todos os demais créditos reconhecidos e identificados na listagem como comuns.

6.         Para além dos créditos acima referidos foi reconhecido um outro, de natureza comum, à Fazenda Nacional no montante de 12.604,73 €.

7.        No processo de insolvência foram apreendidos para a massa falida os seguintes bens:

Verba 1: Prédio misto destinado à habitação e cultura, composto de casa de rés do chão, destinada a arrumos e logradouro e campo de entre águas sito no Lugar da …, antiga freguesia da … (hoje união de freguesias de …, …), concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 187/19961003 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … e inscrito na matriz predial sob o artigo …, com o valor patrimonial de € 7.627,22.

Verba 2: Prédio urbano destinado à habitação, composto de casa de rés-do-chão e andar e com logradouro, sito no Lugar da …, antiga freguesia da … (hoje união de freguesias de …, …), concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº … e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … que proveio do 280 com o valor patrimonial de € 48.481,34.

Verba 3: Prédio urbano destinado ao comércio e indústria, composto de casa de rés do chão para armazéns e actividade industrial, sito no Lugar de ..., antiga freguesia da … (hoje união de freguesias de …, … e …), concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº … e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 288 com o valor patrimonial de € 23.572,00.

Verba 4

Mobília de quarto de casal completo em estado de uso no valor de €200,00.

Um quarto de madeira completo no valor de €150,00.

Um espelho de quarto de pé com uma gaveta na base no valor de € 50,00.

Uma mesa de cozinha em madeira com tampo redondo em granito no valor de €100,00.

Dois sofás em madeira em pele azul marinho um de três lugares e um de quatro lugares no valor de €150,00.

Uma mesa de sala de jantar, em madeira, com tampo em granito, oito cadeiras em madeira, um móvel em madeira com 3 gavetas e 3 portas em vidro na parte superior no valor de € 250,00.

Uma máquina de lavar roupa marca Brandt WFE,1262 cor branca no valor de € 100,00

8.        O Réu, para a venda dos bens apreendidos para a massa insolvente, optou pela modalidade de proposta, por qualquer meio, e posteriormente confirmada por carta, via CTT.

8.A.     Não foi fixada data e hora para a abertura de propostas[2].

9.         O Réu não mandou avaliar os bens apreendidos com vista a determinar o real valor de mercado dos mesmos.

10.       O Réu, mediante anúncios publicados nas edições do jornal ”…” de 6/5/2013 e 7/05/2013 publicitou a venda dos bens apreendidos sem indicar qualquer valor base para as propostas, anunciando que os bens seriam vendidos “ao melhor preço oferecido” sem limite mínimo.

11.       Datada do dia 8 de Maio de 2013, pela sociedade DDLda., com sede na Rua ...nº …, ... NIPC. º …, foi por esta apresentada uma proposta ao R. para aquisição dos bens apreendidos para a massa falida (verbas 1, 2, 3 e 4) pelo valor global de 8.001,00 €.

12.       O Réu aceitou tal proposta.

13.      Em 03.07.2013 o Réu emitiu título de transmissão dos bens referidos em desta PI a favor da DD Lda., comunicando à Conservatória do Registo Predial e à Autoridade Tributária para cumprimento do art. 49º do CIMT.

14.       Nesse título refere que “aplicando as disposições previstas no CPC e para as quais tanto o CPEREF, quer o CIRE fazem apelo, de uma forma geral, e desde logo no seu art.º 17 e, depois, por remissão nos art.ºs 164 e outros, e visto o relatório sobre o resultado da publicidade, adjudicação provisória e o silêncio de todos os credores até ao momento e do próprio insolvente neste Pº e na data abaixo indicada, vai adjudicado definitivamente”.

15.       Mais refere que a venda havia sido efectuada na modalidade de carta fechada.

16.       A DD Lda, registou a seu favor a aquisição dos bens das verbas nºs 1, 2 e 3 na Conservatória do Registo Predial.

17.       Vendida a totalidade dos bens apreendidos para a massa falida pelo preço acima referido e operada a liquidação, ao Autor não foi paga a totalidade do seu crédito.

18.       O Réu vendeu o prédio correspondente à verba nº 1 pelo preço de 734,16 €, quando o seu valor patrimonial tributário era de 7.627,22 €.

19.       O prédio da verba nº 2 foi vendido pelo preço de 4.497,91 €, quando o seu valor patrimonial tributário era de 48.481,34 €.

20.       O prédio da verba nº 3, foi vendido pelo preço de 2.268,93 €, quando o seu valor patrimonial tributário era de 23.572,00 €.

21.       O imóvel identificado na verba nº 2 do auto de apreensão e que se refere a uma casa de rés-do-chão e andar, encontrava-se em mau estado de conservação, com infiltrações e divisórias em mau estado e era ocupada por duas senhoras de idade avançada, conforme consta da nota de notificação de ref. … de 21.05.2014, no apenso da liquidação.

22.       As fichas prediais nº 187 e nº 455 da freguesia da … respeitam a bens cuja construção é contrária ao plano de urbanização e daí que não possuam licença de construção e ocupação, e segundo a Câmara Municipal de ...,

23.      Em anúncio / edital publicado no “...” nos dias 17 e 18 de Outubro de 2012, foi feita a primeira publicidade, anunciando um valor base para cada um dos prédios de 50.000,00 € e os bens móveis.

24.       Face à deserção da praça na primeira tentativa de venda dos bens que faziam parte do acervo a liquidar, foi vertido ao apenso da liquidação novo anúncio/edital com valores base, respectivamente, de 100.000,00 €, 140.000,00 € e 145.000,00 €.

25.       Valores esses sugeridos pela insolvente, que, como consta no referido anúncio/edital são ”manifestamente superiores aos constantes da publicidade de 17 e 18/10/2012, dos quais não resultou qualquer proposta”.

26.       Este anúncio foi publicado nos dias 12 e 13 de Novembro de 2012 no “...” e não houve qualquer proposta e mais uma vez a praça foi julgada deserta.

27.       Entretanto, por carta sem data do Mandatário da insolvente, mas registada em 20.11.2012, foi exigido que se publicasse “em dois números seguidos de um dos jornais mais lidos da localidade” e atento a tal indicação, foi novamente vertido aos autos novo anúncio/edital para venda dos bens móveis e imóveis, tendo baixado o valor base para 70.000, 98.000, 101.500 e 490 €, valores que, conforme consta em nota “foram sugeridos pela insolvente (…) pelo que, agora se reduzem os preços”.

28.      Mais se informava que as condições de venda estavam publicadas no ... de 17 e 18/10/2012 e 12 e 13/11/2012, e ainda na edição on-line do referido jornal, e ainda no site www.antoniobonifacio.pt.

29.       Tinha sido já publicado nos dias 3 e 4 de Dezembro de 2012 no ..., edição papel e on-line, e não houve propostas.

30.       E como a Insolvente pede para ser publicado no Jornal … e no Jornal …, o que foi aceite e a publicação foi feita nos dias 4 e 5 de Abril de 2013 no Jornal .…, e ainda, no … nos dias 5 e 12 de Abril de 2013.

31.       No dia 2 de Abril 2013 foi vertida nova acta negativa, no apenso da liquidação, dado não ter havido qualquer resposta à publicidade dos dias 12 e 13 de Março de 2013, no ....

32.      Foi vertido em 02.04.2013 ao apenso da liquidação, novo anúncio/edital de venda com os valores base de 34.300,00 € (verba nº 1); 48.02,000 € (verba nº 2); e  49.735,00 € (verba nº 3), e para os móveis, 240,10 € (verba nº 4), que foi publicitado no ..., consignando-se que se os valores indicados pela insolvente CC de 100.000,00 €, 140.000,00 € e 145.000,00 € fossem atingidos, seriam estes os considerados, anúncio/edital enviado aos autos em 03.04.2013 e cuja publicitado nos jornais e datas referidos supra no artigo.

33.       De toda esta publicidade nada resultou, como se alcança pelo auto de abertura de 30.04.2013, vertido ao apenso da liquidação e publicidade anexa.

34.      Foi feito no apenso da liquidação, uma informação sobre o estado das diligências e da ausência de venda de qualquer dos bens em 01.05.2013, e nesse mesmo relatório, no ponto 10, verteu-se novo anúncio/edital de venda, no qual, o valor base era o melhor preço oferecido.

35.       Consignando-se mais uma vez, que as condições de venda, eram as mesmas já anteriormente publicitadas e indicando-se o sítio onde se encontravam.

36.       Uma alegada credora hipotecária, EE, que mais tarde viu o seu crédito rejeitado judicialmente, conforme consta na sentença de graduação de créditos, conforme, ainda veio aos autos de liquidação tentar colocar em causa a venda dos bens imóveis.

37.       Finalmente, como resposta à publicidade do ... nos dias 6 e 7 de Maio 2013, é que surge a diligência referida no ponto 11. destes factos provados. e em consequência, os bens foram alienados.

38.      Na assembleia todos os interessados estavam presentes ou representados e, quanto à liquidação do activo, ponto 1): a credora, representada pela Drª FF, declarou abster-se e os demais votaram favoravelmente, sendo que da abundante publicidade junta a fls. 2 a 62 dos autos de liquidação resulta a modalidade da venda por carta fechada.[3]

39.      Os bens foram avaliados para determinar o valor real de mercado, por perito que habitualmente colabora com o Administrador Judicial.

40.      Daí que, no primeiro anúncio, constasse o valor base de 50.000,00 € para cada um, sendo certo que, naquela data.

41.       Nos termos dos anúncios supra referidos, é dito que precludido o prazo e decorridos “10 dias seguintes ao termo do prazo para a recepção das propostas, que fazem presumir a adesão a estas condições de venda, o resultado das mesmas, será comunicado pelo Administrador Judicial a todos os interessados e Tribunal, por relatório.

42.       Nenhum credor reclamou dos relatórios apresentados pelo AI no Apenso da Liquidação.

43.       Na fase da venda, o valor real e de mercado da verba n.º 2 era de 90.469,32 €.[4]

            FACTOS NÃO PROVADOS

            Não ficou provado que:


A. Que no âmbito da venda não foi fixada pelo Sr. GG uma data limite para a apresentação de propostas.


B. (…)  O que constava deste item passou para o ponto 8.A. dos factos provados.


C. Que o juiz do processo de insolvência e os credores, incluindo o autor, não foram consultados pelo R. sobre as modalidades da venda e nem as autorizaram.

D. Que a insolvente não foi consultada pelo R. sobre as modalidades da venda e não deu o seu acordo.

E. Que na fase da venda o valor real e de mercado da verba n.º 1 era no mínimo de 80.000,00 €.

F.  (…) – O que constava deste item passou para o ponto 43. dos factos provados.

G. Que na fase da venda o valor real e de mercado da verba n.º 3 era no mínimo de 90.00,00 €.

H. Que caso os bens fossem vendidos através de um mediador imobiliário, o prédio da verba n.º 1 seria vendido no mínimo por 80.000,00 €, o prédio n.º 2 seria vendido no mínimo por 100.000,00 € e o prédio da verba n.º 3 seria vendido no mínimo por 90.000,00 €.

I. Que, ao vender os bens imóveis pelos preços supra referidos bem sabia o R. que os estava a vender por um preço muito inferior ao real ou de mercado e que por esta forma estava a inviabilizar o pagamento total ou parcial da dívida ao A.

J. Como bem sabia o R. não ser sensato e prudente vender bens imóveis sem recorrer a especialista, neste caso um mediador oficial, por qualquer preço, designadamente pelo preço pelo qual foi efectuada a venda.

K. Que os bens descritos nas verbas 1. e 3. têm que ser demolidos por incapacidade absoluta de conciliação com o plano municipal.

L. Quanto ao valor dos bens móveis, tais bens constam do auto de apreensão pelos valores ali indicados provenientes do auto de penhora do processo de execução n.º 1254/08.0TBLSD-A, mostra-se desfasado em relação ao estado actual contemporâneo do auto de apreensão.

M. O Administrador Judicial apenas e sempre pratica a modalidade da venda por propostas em carta fechada, salvo em raríssimos casos de bens móveis, em que o produto dos mesmos não é bastante para cobrir a publicidade.

N. E jamais recorreu a mediador oficial ou leiloeiras, salvo num caso em que a comissão de credores sugeriu tal meio.

O. Que na data da avaliação feita pelo Sr. GG se desconhecia a ilegalidade de dois dos prédios por inconformidade com a legislação autárquica.

P. Que o estado dos imóveis era o seguinte:
a) na casa – telhado escorado, telhas partidas, chuva no interior e daí humidade em várias habitações, paredes em mau estado, piso levantado, cozinha incompleta, paredes e pintura do exterior em mau estado, ornamentação em madeira podre e desfeita, etc. … estado físico determinante de baixa significativa do preço, pois no final só se aproveitaria a licença e as paredes exteriores após recuperação.
b) Nos 2 anexos: obra incompletas, autênticos barracos inacabados, onde foi exercida a indústria de carpintaria em madeiras, de forma pirata, ilegal, e onde actualmente nada se pode fazer que não seja demolir após licença da Câmara Municipal, devendo os terrenos permanecer para zonas verdes, demolição que constitui encargo e menos valia.

            O DIREITO

           Compete ao administrador da insolvência assumir o controlo da massa insolvente, proceder à sua administração e liquidação e, por fim, distribuir pelos credores o produto obtido com a venda dos bens da massa.

No âmbito específico da função de liquidação do património do insolvente, deve o administrador arrecadar para a massa insolvente o máximo valor possível, de modo a satisfazer os interesses dos credores.

A intensificação da desjudicialização do processo de insolvência, anunciada no preâmbulo do diploma que aprovou o CIRE, teve como uma das suas manifestações a enorme autonomia concedida do administrador da insolvência, nomeadamente na fase da liquidação, e a impossibilidade de impugnação dos seus actos perante o juiz (artigo 163º do CIRE).

Contrariamente ao que sucedia no âmbito do CPEREF, ao juiz do processo apenas é permitida uma trémula fiscalização dessa actividade nos termos ditados pelo artigo 58º do CIRE:

“O administrador da insolvência exerce a sua actividade sob a fiscalização do juiz, que pode, a todo o tempo, exigir-lhe informações sobre quaisquer assuntos ou a apresentação de um relatório da actividade desenvolvida e do estado da administração e da liquidação”

Como refere Luís M. Martins[5], o juiz não tem o poder de instruir o administrador da insolvência ou impedi-lo de actuar, nem este está obrigado a cumprir ordens do juiz que recaiam nos seus domínios.

O administrador da insolvência, que aqui é Réu e recorrido, faz questão de sublinhar isso mesmo nos artigos 78º,  95º e 96º da contestação, quando afirma: “o Sr. Juiz do processo de insolvência não tem de ser consultado pelo Administrador de Insolvência sobre a modalidade da venda, nem tem que a autorizar”; “a venda não tem que ser autorizada, nem pelo Sr. Juiz nem pela Assembleia de Credores (…)”; “a liquidação é da competência do Administrador Judicial (…)”.

Para contrabalançar esta liberdade de actuação com os interesses dos credores, o legislador instituiu um regime de responsabilidade civil do administrador da insolvência nos artigos 59º e seguintes, que detalharemos mais  adiante.

Temos defendido[6] que esse regime é insuficiente e que se deverá legislar no sentido de um maior controlo jurisdicional, que não se fique pela simples fiscalização da actuação do administrador da insolvência e se projecte em meios eficazes para garantir, em tempo, a legalidade dos actos por si praticados.

Nuno Ferreira Lousa, em recente artigo publicado na “Revista de Direito da Insolvência”, n.º 2, 2018, página 147 e seguintes, sobre a venda em processo de insolvência, emite opinião convergente:

“(…) os poderes conferidos ao administrador da insolvência no âmbito do CIRE são, a nosso ver, manifestamente excessivos, existindo uma quase impossibilidade de sindicar a validade jurídica dos atos por si praticados.

(…)

A solução em causa – e em geral o princípio da impugnabilidade dos atos praticados pelos administradores da insolvência – é, a nosso ver, lesiva dos interesses dos credores, não se encontrando justificações ponderosas que determinam a sua adoção. As possibilidades de requerer a destituição do administrador da insolvência, de responsabilizá-lo pessoalmente pelos danos sofridos ou de fazer atuar a responsabilidade disciplinar podem sere (e são as mais das vezes) manifestamente insuficientes para reagir a atos ilícitos dos administradores de insolvência, impondo-         -se uma alteração de paradigma nesta matéria, que, sopesando o interesse em preservar a independência do administrador da insolvência e a eficiência da sua atuação, por um lado, e o interesse em dotar os credores de meios de tutela primária contra ilegalidades cometidas pelos administradores da insolvência, por outro, confiram ao nosso sistema legal um regime mais equilibrado de controlo da sua atividade”

Na presente acção, o credor AA pretende responsabilizar civilmente o administrador da insolvência pela sua actuação na fase da liquidação do activo, imputando-lhe a violação ilícita e culposa dos deveres funcionais, que teve como consequência a obtenção de um produto para a massa claramente insuficiente para satisfazer o seu crédito.

Baseia-se, essencialmente, na disposição do artigo 59º, n.º 1, do CIRE, onde se estipula o seguinte:

“O administrador da insolvência responde pelos danos causados ao devedor e aos credores da insolvência e da massa insolvente pela inobservância culposa dos deveres que lhe incumbem; a culpa é apreciada pela diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado”.

Conforme tem vindo a ser entendido, a responsabilidade do administrador da insolvência por actos próprios, que se encontra limitada às condutas ou omissões danosas ocorridas após a sua nomeação (n.º 4 do citado artigo 59º), é reconduzível à responsabilidade extracontratual por factos ilícitos, na medida em que decorre do exercício das funções para que foi nomeado.

Por isso, existirá responsabilidade do administrador da insolvência sempre que se verifique a violação dos seus deveres funcionais, legalmente impostos, quer por via de comportamentos positivos, quer por via de comportamentos omissivos, exigindo-se ainda a verificação dos restantes pressupostos da responsabilidade delitual, nos termos do artigo 483º do CC. 

Como se sabe, só o preenchimento cumulativo desses pressupostos (facto voluntário, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade), permite ao lesado atingir a compensação do dano sofrido através do recurso ao instituto da responsabilidade civil.

A ilicitude e a culpa

Conforme ensina Almeida Costa[7], o facto voluntário que lesa interesses só obriga a reparação havendo ilicitude, que consiste na infracção de um dever jurídico.

Transpondo esta ideia para o domínio da responsabilidade civil do administrador da insolvência, a ilicitude que pode relevar respeita à violação de deveres por parte do administrador que venham a ocasionar uma lesão na esfera do devedor, dos credores da insolvência ou dos credores da massa. Portanto, a ilicitude decorre da violação dos deveres a que o administrador se encontra adstrito no exercício do seu cargo.

Mas que deveres são esses?

Segundo os nºs 1 e 2 do artigo 12º do Estatuto do Administrador Judicial[8], aprovado pela Lei 22/2013, de 26 de Fevereiro, os administradores judiciais devem, no exercício das suas funções e fora delas, considerar-se servidores da justiça e do direito e, como tal, mostrar-se dignos da honra e das responsabilidades que lhes são inerentes, devendo actuar com absoluta independência e isenção, estando-lhes vedada a prática de quaisquer actos que, para seu benefício ou de terceiros, possam pôr em crise, consoante os casos, a recuperação do devedor, ou, não sendo esta viável, a sua liquidação, devendo orientar sempre a sua conduta para a maximização da satisfação dos interesses dos credores em cada um dos processos que lhes sejam confiados.  

Mais especificamente, o artigo 59º, n.º 1, remete para os deveres de diligência que um administrador criterioso e ordenado adoptaria num dado caso concreto, fazendo embora repercutir os efeitos dessa remissão na apreciação da culpa.

Não se apresenta fácil distinguir, na norma, os contornos da ilicitude e da culpa[9], porque para identificar aquela não se pode prescindir daquilo que sejam os deveres de um administrador criterioso e ordenado. A ilicitude terá, assim, de reportar-se a uma actuação que objectivamente represente a violação dos deveres de diligência de um administrador criterioso e ordenado; a culpa, por seu lado, terá de traduzir-se na censura pelo facto de, nessa situação concreta, o administrador não ter agido de outro modo, ou seja, como um administrador criterioso e ordenado, como podia e devia.

Parece-nos preferível o entendimento de que a referida norma transporta em si mesma um critério cumulativo de ilicitude e culpa. A não adopção de uma conduta reveladora da diligência exigível de um administrador criterioso e ordenado, reveste caráter de ilicitude. Por sua vez, podendo o administrador ter agido de maneira diferente, como um administrador criterioso e ordenado, é possível imputar a culpa em abstrato à sua conduta[10].

A sobredita fórmula foi importada do direito societário.

De facto, o artigo 64º, n.º 1, alínea a), do CSC, estabelece que os gerentes ou administradores da sociedade devem observar deveres de cuidado, revelando a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da actividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado.

A impossibilidade de se encontrar um modelo ideal de conduta para as mais diferenciadas situações com as quais os administradores se confrontam no exercício das suas funções, fez com que o legislador recorresse a uma cláusula geral e abstracta, moldável perante as circunstâncias concretas de cada caso.

Refere Carneiro da Frada[11] que a diligência de um gestor criterioso e ordenado corresponde a um estalão abstracto e genérico da conduta, estabelecido por aquilo que é em média exigível a quem administra, e, por isso, apronta um critério independente de saber se o concreto gerente ou administrador podia em certa situação específica observá-lo, em termos de ser susceptível, se o não fez, de uma censura pessoal.

Esse dever de diligência não corresponde ao clássico modelo do bonus pater familias, ou seja, ao padrão exigível a um homem médio ou normal que, tendo livre administração do seu património e plena responsabilidade dos seus actos, administra diligente e cuidadosamente as suas coisas.

O dever de diligência do administrador da insolvência é antes o de um individuo sujeito a um estatuto profissional próprio, com um grau de qualificação de um domínio profissional específico, que lhe exige competência, conhecimento e boa preparação[12].

Como se compreenderá, o dever de diligência a que vimos fazendo referência, equivalendo ao grau de esforço exigível para determinar e executar a conduta que integra o cumprimento de um dever, é apenas concretizável caso a caso e só pode relevar em contextos em que o administrador goza de autonomia para decidir, isto é, em que age no âmbito da sua discricionariedade, sem qualquer subordinação.

Dissemos já que o administrador da insolvência goza de enorme liberdade e autonomia na sua actuação, em resultado do objectivo de desjudicialização do processo prosseguido pelo CIRE.

Dentro dessa liberdade de acção, é o administrador da insolvência quem escolhe a modalidade da alineação dos bens, podendo optar por qualquer uma das que são admitidas em processo executivo ou por qualquer outra que tenha por mais conveniente – artigo 164º, n.º 1, do CIRE. As modalidades da venda previstas para o processo executivo, são: venda mediante propostas em carta fechada, venda em mercados regulamentados, venda directa a pessoas ou entidades que tenham direito a adquirir os bens, venda por negociação particular, venda em estabelecimento de leilões, venda em depósito público ou equiparado e venda em leilão electrónico.

As considerações anteriores permitem-nos agora enfrentar a hipótese dos autos.

O administrador da insolvência, aqui Réu, frustradas as tentativas de venda publicitadas através de anúncios/editais em vários jornais, entre os meses de Outubro de 2012 e Abril de 2013[13], entendeu proceder à venda pelo melhor preço oferecido, sem fixação de preço-base, através de proposta apresentada por qualquer meio, posteriormente confirmada por carta, via CTT – cfr. ponto 8.

No respectivo anúncio/edital, publicado nos dias 6 e 7 de Maio de 2013, não constava, igualmente, a data e hora para a abertura das propostas – cfr. ponto 8.A.

Foi precisamente na sequência desse anúncio que, em 8 de Maio de 2013, a sociedade DD, Lda., com sede em …, apresentou uma proposta ao Réu para aquisição dos bens apreendidos para a massa insolvente (verbas 1, 2, 3 e 4), pelo valor global de 8.001,00 €, proposta essa logo aceite – cfr. pontos 11. e 12. dos factos provados.

Conforme consta dos pontos 18. a 20. da matéria de facto provada, o Réu vendeu o prédio correspondente à verba nº 1 pelo preço de 734,16 €, quando o seu valor patrimonial tributário era de 7.627,22 €; o prédio da verba nº 2 foi vendido pelo preço de 4.497,91 €, quando o seu valor patrimonial tributário era de 48.481,34 €; e o prédio da verba nº 3, foi vendido pelo preço de 2.268,93 €, quando o seu valor patrimonial tributário era de 23.572,00 €. Ou seja, cada um dos três imóveis foi vendido por um valor que representa menos de um décimo do correspondente valor patrimonial para efeitos tributários, sendo certo que, como é comummente reconhecido, o valor tributário fica, em regra, sempre aquém do valor real ou de mercado. Mais: segundo o apurado no ponto 43., só o valor real e de mercado da verba n.º 2, na fase da venda, era de 90.469,32 €.

O acórdão recorrido considerou que o administrador da insolvência fez o que podia e acrescenta:

“Ainda que se considere irrisório o valor de € 8.001,00, atento o valor real, nomeadamente, em caso de expropriação, certo é que o mesmo compara com a ausência de propostas – ou seja, com zero euros – em todas as diversas tentativas anteriores de venda; por outra via, o dito valor não foi afrontado, posto em causa, rebatido por nenhum outro interessado que tivesse proposto ou indicado outro valor, mais alto, pese embora do processo sempre constar a impossibilidade de proceder à venda por total ausência de ofertas.

Talvez que um Administrador “criterioso e ordenado” colocado na posição concreta do Administrador real, não realizasse este acto, ou seja, não aceitasse a proposta, optando por uma outra tentativa a realizar em outros moldes, mais adiante no tempo; porém, certo seria que se manteriam incólumes as condicionantes que tornavam, em concreto, desinteressante a compra daqueles prédios específicos”.

Conclui depois o acórdão que não se verifica falha ‘procedimental’ do administrador da insolvência e que não se mostra demonstrada culpa sua, dizendo sobre este último aspecto o seguinte:

“Sucede, porém, que nenhum facto nos permite articular essa culpa. Deste modo, não se apurou ter o mesmo agido da forma como agiu com intenção de causar prejuízo para com os credores ou que agiu com culpa face ao apuramento do resultado da venda, por mais baixo que o preço possa ter sido.

Designadamente não se provou que o administrador tivesse recebido outras ofertas melhores ou que tivesse agido de modo a evitar recebê-las, que tivesse actuado, activa ou passivamente, de molde a que as várias tentativas de venda fracassassem, que tivesse intentado algum conluio com o comprador final dos bens, ou sequer se apurou algum facto que demonstrasse o favorecimento final deste, ou ainda que o apelado tivesse escamoteado ou ignorado as recomendações, propostas ou alternativas de outros credores, da insolvente ou do próprio autor que fossem mais vantajosas. Nada se apurou que permita imputar, com culpa, ao administrador o facto objectivo do preço, reduzido, da venda.

Daí que não se podendo presumir a culpa a partir da mera circunstância do menor preço obtido ou da escolha pela modalidade de venda que veio a ser definida, entendemos ser de manter a decisão sob escrutínio, aderindo aos fundamentos nelas plasmados, improcedendo, assim, o douto recurso deduzido”.

Sendo imenso o respeito que nos merecem estes juízos sobre a (in)existência dos pressupostos da ilicitude e da culpa, não podemos com eles concordar, pelas razões que a seguir aduziremos.

A diligência exigida a um administrador criterioso e ordenado manifesta-se principalmente em duas vertentes: o dever de preparar adequadamente as decisões, obtendo a informação necessária e suficiente para o processo de tomada de decisão;  e o dever de tomar decisões substancialmente razoáveis em ordem a conseguir a melhor tutela dos interesses dos credores.

Ora, neste caso concreto, a conduta do recorrido não se orientou no sentido indicado, redundando, como se verá, em claro prejuízo para a massa e a para a consequente satisfação dos interesses dos credores, nos quais se inclui o Autor.

Em primeiro lugar, e tratando-se de bens imóveis, impunha-se-lhe que procedesse a uma avaliação para determinação do valor real dos três prédios apreendidos para a massa. A verdade é que não o fez, como vem ilustrado no ponto 9., sendo certo que a avaliação feita por um perito que habitualmente com ele colabora, narrada no ponto 39., mostra-se absolutamente inócua do ponto de vista pericial, dada a ausência de qualquer critério ou fundamentação na análise valorativa de três prédios estruturalmente tão diversos (valor de 50.000 € para cada prédio, indistintamente – cfr. ponto 40.).

Em segundo lugar, perante as primeiras tentativas falhadas de venda mediante anúncios/editais publicados nos jornais, devia o administrador ter diversificado as formas de divulgação e de promoção da venda (v.g., negociação particular, estabelecimento de leilão, leilão electrónico), em vez de esperar que algo acontecesse durante os 7 (sete) meses em que se foram repetindo, monotonamente, os anúncios/editais nos jornais, sem que aparecessem proponentes.

Mas estes dois aspectos denunciadores da ausência de metodologia na acção por parte do administrador da insolvência não são, no entanto, decisivos para traduzir, só por si, a ilicitude e a culpa.

Verdadeiramente grave foi o facto de a actuação do administrador da insolvência ter culminado com uma tomada de decisão potencialmente lesiva (como se viria a confirmar) dos interesses dos credores: a venda dos três imóveis apreendidos (juntamente com os móveis) pelo melhor preço oferecido, mediante propostas em carta fechada, sem fixação do valor base de cada um deles e sem indicação do dia de abertura das propostas – cfr. pontos 8.A e 10.. Aqui, sim, foram postergadas não só as mais elementares regras funcionais da administração da insolvência, com absoluto alheamento dos interesses dos credores, mas também as disposições dos artigos 889º, n.º 2, e 890º do CPC, que regulam a venda judicial na modalidade escolhida.

Não é justificável, a nenhum título, a atitude do Réu. Nem mesmo a urgência que caracteriza o processo de insolvência nem a prontidão imposta à venda dos bens da massa pelo artigo 158º, n.º 1, do CIRE, podem servir de lenitivo para tão inusitada decisão: liquidou-se apressadamente e sem critério o activo apreendido para a massa e ao mesmo tempo ‘liquidaram-se’ as expectativas de os credores, designadamente o Autor, poder ver satisfeito o seu crédito.

Agiu o Réu, portanto, de modo ilícito, na justa medida em que violou o dever de tomar decisões substancialmente razoáveis, compatíveis com a diligência que dele se esperava e com os comandos legais aplicáveis; e fê-lo culposamente, porque podia e devia ter agido de forma diversa.

O dano e o nexo de causalidade

   

Para haver obrigação de indemnizar é condição essencial que haja dano, que o facto ilícito culposo tenha causado um prejuízo a alguém.

A determinação do prejuízo traduz-se na diminuição da percentagem do crédito que, se não fora o acto lesivo, o prejudicado provavelmente receberia, ou, pelo menos, no agravamento das condições de recebimento[14].

No presente caso, o dano patrimonial sofrido pelo Autor mostra-se evidente. Tendo-lhe sido reconhecidos um crédito de natureza comum no montante de 205.275,26 € e um crédito de natureza privilegiado no montante de 68.425,08 € (sendo este crédito a pagar pelo produto da venda dos bens móveis), viu-se privado da satisfação desses créditos, uma vez que o produto da venda do acervo patrimonial da insolvente não é suficiente para pagar sequer o crédito privilegiado da Fazenda Nacional, no valor de 11.315,87 €, graduado em 1º lugar[15].

Irrefutável é também a verificação do nexo de causalidade entre o facto ilícito e culposo do Réu e a produção do referido dano, tendo aquele constituído causa adequada deste – artigo 563º do CC.

Quanto à dimensão desse dano, pretende o Autor que o mesmo seja fixado em 260.000,00 €, afirmando que a venda dos imóveis pelo preço global de 7.500,01 €[16] o prejudicou naquele valor.

Evidentemente que nunca poderá ser esse o dano a indemnizar, na medida em que ele terá de relacionar-se com o valor que presumivelmente poderia ser alcançado se a venda tivesse sido preparada e realizada em conformidade com aquilo que seria normalmente feito por um administrador criterioso e ordenado.

Não se mostra fácil esse exercício.

É impossível determinar se, obedecendo a venda a uma actuação irrepreensível do administrador, o valor da venda dos imóveis atingisse o real valor de mercado destes, sendo certo que só o da verba n.º 2, à data da venda, ascendia a 90.469,32 € - cfr. ponto 43.

Existem, porém, na matéria de facto provada, elementos que poderão desbloquear o caminho para o apuramento do ‘prejuízo real’ resultante da actuação do Réu. Referimo-nos aos valores atribuídos aos três imóveis pela autoridade tributária, devidamente especificados nos pontos 18. a 20.

A avaliação fiscal para efeitos tributários, estando hoje sujeita à ponderação de um alargado leque de critérios objectivos (reduzindo, consequentemente, a margem de subjectividade do avaliador), constitui uma ferramenta que permite validar, com alguma segurança, os valores do sector imobiliário. Aliás, o valor patrimonial tributário é usado como critério para fixação do valor base da venda executiva – cfr. antigo artigo 886º-A, n.º 3, alínea a) e actual artigo 812º, n.º 3, alínea a), do CPC.

É sabido que as variações do mercado imobiliário podem fazer contrastar, em dados momentos, os valores efectivamente praticados com os valores tributários, dada a maior estaticidade destes. Daí que, como se disse mais acima, o valor tributário de um imóvel seja, em regra, inferior, em maior ou menor escala, ao seu valor de mercado. Precisamente por isso, ou seja, por o valor tributário se manter invariável por mais tempo, é que se torna mais fiável a sua adopção para efeitos de cálculo do dano sofrido.

Importa ainda dizer, como deflui do exposto, que o regime da venda previsto para o processo executivo constitui a matriz de toda a venda judicial, aplicando-se ao processo de insolvência por força do disposto no artigo 17º do CIRE.

Ora, segundo as normas que regulam a venda mediante propostas em carta fechada na venda executiva, o valor a anunciar é igual a 70% do valor base dos bens[17] (n.º 2 do artigo 889º do CPC, na redacção anterior à reforma de 2013 e também à Lei 60/2012, de 9 de Novembro, que alterou a percentagem de 70% para 85%, uma vez que a apreensão dos bens para a massa já se havia concretizado – cfr. artigo 3º da referida Lei[18]), não sendo aceites as propostas de valor inferior ao previsto no n.º 2 do artigo 889º, salvo se o exequente, o executado e todos os credores com garantia real sobre os bens as vender acordarem na sua aceitação – artigo 894º, n.º 3, do CPC.

A propósito desta aceitação (com a indispensável reconfiguração quanto aos destinatários, em função da natureza do processo), deve o administrador da insolvência dar conhecimento da proposta de aquisição ao insolvente e aos credores sempre que ela fique aquém daquele valor (70% do valor base). No caso, como já tivemos oportunidade de dizer, o Réu nem sequer indicou o valor mínimo por que seriam vendidos os imóveis, dando com isso azo à apresentação de propostas baixíssimas. Poderia, mesmo assim, recusá-las, em nome dos princípios que presidem à boa administração da massa e aos deveres funcionais a que está obrigado. Mas não o fez e reiterou, em resposta ao alegado no artigo 22º da petição inicial, que “(…) os credores interessados, incluindo o Autor, não têm que ser consultados sobre propostas que nem sequer fizeram, nem dar acordo para o que quer que seja”. Acentuou desta forma que a aceitação da proposta apresentada não tinha de ser comunicada a ninguém – nomeadamente aos credores – e que lhe competia, só a si, ajuizar da sua razoabilidade, apesar de a mesma ser a todos os olhos ridícula[19].

Na sequência do que se vem expondo, deve considerar-se que o valor do dano sofrido pelo Autor será o correspondente a 70% do valor global, para efeitos tributários, dos prédios vendidos, subtraindo a esse valor o montante de 7.501,00 € já arrecadado.

O resultado apurado nessa operação [(7.627,22 + 48.481,34 + 23.572,00) x 70% – 7.501,00] cifra-se em 48.275,39 €.

                                                           *


III. DECISÃO

Em conformidade com o exposto, no provimento parcial da revista, revoga-se o acórdão recorrido e condena-se o Réu recorrido a pagar ao Autor recorrente a quantia de 48.273,39 € (quarenta e oito mil, duzentos e setenta e três euros e trinta e nove cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal anual vigente em cada momento, desde a citação até efectivo pagamento.

                                              

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Custas da acção pelo Autor e Réu na proporção de vencidos.

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             LISBOA, 12 de Julho de 2018

Henrique Araújo (Relator)

Maria Olinda Garcia

Salreta Pereira

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[1] Relator:      Henrique Araújo
  Adjuntos:   Maria Olinda Garcia
                      Salreta Pereira
[2] Aditado pela Relação – fls. 456 (fls. 19 do acórdão recorrido).
[3] Redacção adoptada pela Relação (fls. 459 – fls. 22 do acórdão recorrido).
[4] Aditado aos factos provados pelo acórdão da Relação (fls. 458 – página 21 do acórdão recorrido).
[5] “Processo de Insolvência”, 2013, 3ª edição, página 225.
[6] Como fizemos, por exemplo, no acórdão de 15.02.2018, na revista n.º 4488/11.6TBLRA-M.C1.S1.
[7] “Direito das Obrigações”, 2013, página 561.
[8] A noção de administrador judicial consta do artigo 2º desse diploma, cujo teor é o seguinte:
1 -  O administrador judicial é a pessoa incumbida da fiscalização e da orientação dos atos integrantes do processo especial de revitalização, bem como da gestão ou liquidação da massa insolvente no âmbito do processo de insolvência, sendo competente para a realização de todos os atos que lhe são cometidos pelo presente estatuto e pela lei.
2 - O administrador judicial designa-se administrador judicial provisório, administrador da insolvência ou fiduciário, dependendo das funções que exerce no processo, nos termos da lei.

[9] A culpa do GG, que não se presume, e pode revestir as modalidades de negligência ou dolo.
[10] Como defende Amândio Novais para a interpretação do artigo 64º do CSC, em “A responsabilidade civil dos administradores na execução de deliberações dos sócios”, página 9, em https://repositorio.ucp.pt.
[11] “A responsabilidade dos administradores na insolvência”, em www.portal.oa.pt
[12] Note-se que o acesso à actividade de administrador judicial impõe, nomeadamente, a existência de uma licenciatura e experiência profissional adequadas ao exercício da actividade – cfr. artigo 3º, n.º 1, alínea ) da Lei 22/2013.
[13] 17 e 18 de Outubro, 12 e 13 de Novembro, 3 e 4 de Dezembro de 2012, 12 e 13 de Março, 4 e 5 de Abril de 2013, conforme pontos 25. a 31. dos factos provados.
[14] e João Labareda, ob. cit.,, página 360.
[15] Note-se que, além do crédito da Fazenda Nacional, apenas concorria com o crédito do Autor um outro crédito comum de “HH, Lda.”, no valor de 3.624,80 € - cfr. sentença de fls. 21 a 24.
[16] Do valor global da venda (8.001,00 €), 500,00 € respeitam aos bens móveis descritos na verba n.º 4 e os restantes 7.501,00 € aos três imóveis descritos nas verbas 1 a 3.
[17] De resto, nos anúncios anteriores aos publicados em Maio dizia-se expressamente que se aceitavam propostas acima do valor mínimo (70% do valor base) – cfr. documentos de fls. 88, 95, 99 e 103.
[18] É esta a versão do CPC aplicável, considerando a data em que os factos ocorreram.
[19] Não pode deixar de impressionar, independentemente do conteúdo do ponto 43., a fotografia do imóvel da verba n.º 2, junta com a perícia efectuada nos autos, a pedido do Autor – fls. 299.