Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
09P0483
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PIRES DA GRAÇA
Descritores: CRIME CONTINUADO
BENS EMINENTEMENTE PESSOAIS
CULPA
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
CONCURSO DE INFRACÇÕES
Nº do Documento: SJ200903190004833
Data do Acordão: 03/19/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I - O art. 30.º do CP fundamentou-se no art. 33.º do Projecto da Parte Geral do CP de 1963, tendo sido aprovado na 13.ª sessão da comissão revisora, em 08-02-1964, um último período para o n.º 2 donde constava: «A continuação não se verifica, porém, quando são violados bens jurídicos inerentes à pessoa, salvo tratando-se da mesma vítima».
II - Diz Maia Gonçalves, em anotação ao art. 30.º no seu Código Penal Português, anotado comentado (18.ª ed., pág. 154, nota 1), que: «A supressão deste período não significou que outra solução devesse ser adoptada, mas tão só que o legislador considerou a afirmação desnecessária, por resultar da doutrina, e até inconveniente, por a lei não dever entrar demasiadamente no domínio que à doutrina deve ser reservado. A revisão do Código levada a efeito pelo Dec-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, manteve intacto o texto deste artigo, mas a que foi levada a efeito pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, introduzindo o n.º 3 reproduziu o referido dispositivo que foi rejeitado na versão originária».
III - O aditamento constante deste n.º 3 não exclui, antes continua a pressupor, a verificação dos requisitos do crime continuado.
IV - Como se considerou no Ac. deste STJ de 01-10-2008, Proc. n.º 2872/08 - 3.ª, a alteração legislativa em causa é, pois, pura tautologia, de alcance limitado ou mesmo nulo, desnecessária, na medida em que é reafirmação do que do antecedente se entendia ao nível deste STJ, ou seja, de que existe crime continuado quando a violação plúrima do mesmo bem jurídico eminentemente pessoal é referida à mesma pessoa e cometida num quadro em que, por circunstâncias exteriores ao agente, a sua culpa se mostre consideravelmente diminuída, não podendo prescindir-se da indagação casuística dos respectivos requisitos.
V - Esse aditamento não permite, pois, uma interpretação perversa em termos de uma violação plúrima de bens eminentemente pessoais em que a ofendida é a mesma pessoa se reconduzir ao crime continuado, afastando-se um concurso real; só significa que este deve firmar-se se esgotantemente se mostrarem preenchidos os seus pressupostos enunciados no n.º 2, de que se não pode desligar numa interpretação sistemática e global do preceito.
VI - Interpretação em contrário seria, até, manifestamente atentatória da CRP, restringindo a um limite inaceitável o respeito pela dignidade humana, violando o preceituado no seu art. 1.º, comprimindo de forma intolerável direitos fundamentais, em ofensa ao disposto no art. 18.º da CRP. Uma interpretação assim concebida da norma do n.º 3 aditado levaria a que se houvesse de entender que o legislador não soube exprimir-se convenientemente, havendo que atalhar-lhe o pensamento.
VII - Vindo provado que:
- o arguido tinha perfeito conhecimento da idade de EC, que conhecia desde os 5 ou 6 anos de idade, a partir da altura em que passou a viver maritalmente com a mãe dela;
- ao adoptar as condutas descritas, o arguido actuou com intenção de alcançar prazer e de satisfazer os seus desejos sexuais, querendo ter contactos de natureza sexual com EC, bem sabendo que esta não tinha a capacidade e o discernimento necessários a uma livre decisão;
- bem sabia que um relacionamento sexual, nomeadamente desta natureza, prejudicava o normal desenvolvimento da mesma;
- o arguido voluntariamente exibiu a EC, nas ocasiões descritas nos autos, filmes com conteúdo pornográfico, bem sabendo que o visionamento por aquela de filmes dessa natureza era prejudicial ao seu equilibrado desenvolvimento psicológico;
- ao sujeitá-la, durante o período descrito, à prática reiterada de actos sexuais, o arguido tinha perfeito conhecimento da perturbação que as suas actuações repetidas provocavam na formação e estruturação da personalidade de EC, prejudicando-a reiterada e voluntariamente no seu normal desenvolvimento físico e psicológico;
- os factos ocorreram em situação de convivência e coabitação idêntica à familiar;
- a situação familiar ou análoga é modo normal de manifestação da esfera privada das pessoas, de coabitação e de convivência, em espaço comum, e, por isso, não constitui solicitação que deva considerar-se exterior ao agente para a facilidade do sucumbir;
- o arguido agiu impulsionado por circunstâncias endógenas, do seu interior, preparando o cenário e pressionando a menor;
a culpa do arguido é mais acentuada, mais considerável, decorrente dessa relação de natureza idêntica à familiar com a menor e sua mãe, em que lhe era especialmente exigível, por virtude da ascendência que tinha sobre a mesma menor, com quem privava em termos familiares, que, na ausência da mãe desta, zelasse pela sua defesa, dela cuidando e protegendo-a, nomeadamente de quaisquer ataques aos seus direitos fundamentais.
VIII - Como salienta Maia Gonçalves (ibidem, pág. 649), «atente-se mais em que, havendo pluralidade de acções naturalísticas e tratando-se de uma só vítima, normalmente não haverá crime continuado, mas concurso de crimes, já que em regra não haverá relevante solicitação exterior a diminuir a culpa do agente, mas desviante personalidade deste a determinar o seu comportamento criminoso».
IX - E, como refere Paulo Pinto de Albuquerque (Código Penal Anotado, pág. 139, nota 28), «A ciência médica e a experiência da vida mostram que o abuso sexual repetido de uma criança provoca uma tortura psicológica na criança que vive no pavor constante de vir a ser mais uma vez abusada pelo seu abusador. A consciência, o aproveitamento e até o gozo do abusador com esta tortura psicológica são incompatíveis com a afirmação de uma culpa diminuída do agente abusador. Quando for esse o caso, não há diminuição sensível da culpa, ao contrário há uma culpa agravada do crime».

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
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Como consta do relatório do acórdão recorrido, no processo comum (tribunal colectivo) com o NUIPCV 86/07.7SXLSB da 6ª Vara Criminal de Lisboa,
“O Ministério Público, em processo comum, com intervenção do Tribunal colectivo. deduziu acusação contra o arguido:
- AA divorciado, filho de BB e de CC nascido em 14-12-1970, natural de Angola, residente no Largo .............. Lote ..... ...... em Lisboa, e actualmente preso preventivamente à ordem dos presentes autos no Estabelecimento Prisional da Carregueira.
imputando-lhe a prática, em concurso real, de:
- 1 crime de abuso sexual de crianças. p. e p. pelo art. 172° n.º 1 e 2, do Código Penal;
-1 crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 172° n.º 3, al. b), do Código Penal;
- 282 crimes de abuso sexual de crianças, ps. e ps. pelo art. 172°, n. 1, do Código Penal:
- 141 crimes de abuso sexual de crianças, ps. e ps. pelo art. 172°, n.º 1 e 2, do Código Penal:
- 141 crimes de abuso sexual de crianças, ps. e ps. pelo art. 172°, nº 3, al. b), do Código Penal:
- 1 crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 172°, nº 1 e 2, do Código Penal:
- 5 crimes de abuso sexual de crianças, ps. e ps. pelo art. 172°, n. 1 e 2, do Código Penal:
- 5 crimes de abuso sexual de crianças, ps. e ps. pelo art. 172°, n. 3, al. b), do Código Penal: e
- 1 crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 172°, n.º 1 e 2, do Código Penal.
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Não foi deduzido pedido de indemnização civil nem foi requerida a constituição de assistente.
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o arguido não apresentou contestação nem arrolou testemunhas.
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Por acórdão de fls. 296 a 318, decidiu-se julgar a acusação do Ministério Público parcialmente procedente e, em consequência:
A) Condenar o arguido AA:
a) Pela prática de 2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças, ps. e ps. pelo art. 172°, nºs 1 e 2, do Código Penal vigente à data da prática dos factos, na pena, por cada um. de 6 (sei s) anos de prisão:
b) Pela prática de 1 (um) crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 172°, n.s 1 e 2, do Código Penal vigente à data da prática dos factos, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão:
c) Pela prática de 64 (sessenta e quatro) crimes de abuso sexual de crianças, ps. e ps. pelo art. 172°, n. ° 1, do Código Penal vigente à data da prática dos factos, na pena, por cada um, de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão:
d) Em cúmulo jurídico, condenar o arguido na pena única de 15 (quinze) anos de prisão:
e) Condenar o arguido em 8 UC de taxa de justiça. 4 de procuradoria e demais custas do processo. e ainda no pagamento de 1% do valor da taxa de justiça aplicada. nos termos do art. 13°. nº 3 do Dec.-Lei n. ° 423/91 de 30-10;
B) Absolver o arguido dos demais crimes pelos quais vinha acusado.
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O arguido interpôs recurso do acórdão de fl s. 296 a 318 para o Supremo Tribunal de Justiça que, por decisão sumária de fls. 357 a 360, decidiu reenviar o processo à 1ª instância porque:
“- A matéria de facto é inteiramente omissa quanto a uma eventual confissão bem como quanto à existência de arrependimento, duas circunstâncias de re7evo para a graduação da pena, a cuja ocorrência é feita menção, quer pelo recorrente, quer pelo Ministério Público, o que levaria a pressupor que teriam resultado da discussão da causa;
- ( ... ) na fundamentação da decisão, vem referido que o Tribunal teve em conta na formação da sua convicção, entre outros documentos, "o relatório social de fls. 292" e este não se mostra junto aos autos; e
Afirmando a verificação dos vários pressupostos do crime continuado, nomeadamente quanto à existência de uma situação exterior que individualiza, considerando que poderá ter facilitado a execução das acções do arguido, o Tribunal limitou-se a referir, sem explicitar devidamente as respectivas razões, que essa circunstância exterior não importou a considerável diminuição da culpa do agente.
Como consta de fls. 359, o processo foi reenviado, a fim de ser efectuado novo julgamento, embora restrito à primeira das indicadas questões, bem como para serem supridas as omissões supra identificadas.
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Na sequência deste reenvio parcial, realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância das formalidades legais, conforme consta da respectiva acta.”

Após o que, veio a ser proferido acórdão em 5 de Dezembro de 2008, em que “o Tribunal colectivo delibera julgar a acusação do Ministério Público parcialmente procedente. por provada apenas em parte e, em consequência:
a) Condenar o arguido AA pela prática. em autoria material e na forma consumada. de 1 (um) crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 172°, nºs 1 e 2, do Código Penal vigente à data da prática dos factos, na pena de 5 (cinco) anos de prisão;
b) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de abuso sexual de crianças. p. e p. pelo art. 172°. n.os 1 e 2. do Código Penal vigente à data da prática dos factos. na pena de 5 (cinco) anos de prisão;
c) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 172°. n.os 1 e 2, do Código Penal vigente à data da prática dos factos, na pena de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão;
d) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material. na forma consumada e em concurso efectivo, de cada um de 64 (sessenta e quatro) crimes de abuso sexual de crianças, ps. e ps. pelo art. 172°. n. 1. do Código Penal vigente à data da prática dos factos, na pena de 2 (dois) anos de prisão:
e) Em cúmulo jurídico das penas de prisão referidas nas alíneas a) a d) que antecedem, condenar o arguido AA na pena única de (dez) anos de prisão:
f) Absolver o arguido AA da prática dos demais crimes que lhe foram imputados na acusação do Ministério Público.
g) Condenar o arguido AA no pagamento das custas do processo (…)”
Ordenou-se o demais de lei.
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Inconformado, recorre o arguido, apresentando as seguintes conclusões na motivação do recurso:
a) O Meritíssimo Tribunal “a quo" optou por não qualificar a conduta do Arguido como crime continuado, para efeito da aplicação do artigo 30° nºs. 2 e 3 do Código Penal;
b) Justificando, para tanto, que não seriam circunstâncias exteriores mas sim endógenas (a vontade do arguido), que levaram à repetição dos actos após a primeira tentativa;
c) Que as circunstâncias exteriores, "disponibilidade" da menor e falta de controlo maternal, no caso concreto, não pressupõem uma considerável diminuição da culpa do arguido;
d) Na opinião do recorrente, devem ser tidas em conta, ainda como circunstâncias exteriores relevantes a coabitação, os hábitos familiares de consumo de álcool e as restantes disfuncionalidades familiares detectadas e dadas como provadas;
e) Enquadrando-se estas diversas situações numa relevante "situação exterior" cuja persistência facilitou, de forma considerável, a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao Arguido um comportamento diferente, por meio de uma sensação aparente de impunidade e de um adormecimento moral do mesmo, sendo de referir, no entanto, que, apesar do seu comportamento, o Arguido nunca exerceu violência física sobre a menor para atingir os seus intentos;
f) Diminuindo consideravelmente a sua culpa;
g) Pelo que se encontram preenchidos todos os pressupostos para aplicação do artigo 30, nº 2 e 3 do Código Penal, com as alterações introduzidas em 15 de Setembro, devendo, ao contrário do que fez o Tribunal "a quo", o Arguido ser punido pela prática de um crime continuado de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171°/1 e 2 do Código Penal, também na sua actual redacção;
h) Ao não qualificar a actuação do Arguido como crime continuado, nos termos anteriormente expostos, o Tribunal "a quo" errou na determinação da norma jurídica aplicável, e com isso violando o disposto no artigo 30°, nºs 2 e 3 do Código Penal na sua actual redacção;
i) Por outro lado, e sem conceder, caso não se opte pela punição do Arguido pela prática de um crime continuado, e tendo em conta a sua culpa diminuída, nos termos das considerações e conclusões anteriores, deve esse Venerando Tribunal corrigir a pena única aplicada de 10 anos de prisão por, manifestamente, ser exagerada e desproporcionada ao comportamento e à culpa do Arguido e violadora das regras de experiência ínsitas à determinação da pena;
j) Perante a pena aplicada, é patente não existirem razões atinentes à culpa, ou de prevenção (geral ou especial), que a justifiquem, chocando tal pena com o mais comum sentido de justiça;
k) Tudo isto considerando a atitude colaborante do Arguido, a sua confissão e o seu arrependimento e as circunstâncias sociais envolventes;
I) Tudo merecendo a intervenção correctiva desse Alto Tribunal, por violação dos critérios contidos no artigo 71° do CP.
NESTES TERMOS, e nos mais de direito, que forem mui doutamente supridos, deve:
Proceder o presente recurso, sendo o Arguido condenado pela prática de um crime continuado de abuso sexual de crianças, artigos 30°, nºs 2 e 3 e 171°, nºs 1 e 2 do Código Penal em vigor, aplicando-se a moldura penal respeitante à conduta mais grave integrante da continuação criminosa, nos termos do artigo 79°/1 do CP, em substituição da pena aplicada pelo Acórdão recorrido;
Caso assim não se considere, deve proceder o recurso, e reduzida consideravelmente a pena única de 10 anos em que o Arguido foi condenado, por manifestamente exagerada e desproporcionada, violando as regras de experiência, tendo em conta o crime em causa, a forma de actuação e a culpa diminuída do Arguido.”

Respondeu o Ministério Público à motivação de recurso, concluindo:
1. Contrariamente ao defendido pelo recorrente a sua conduta criminosa não pode ser enquadrada no crime continuado.
2. À continuação criminosa é essencial a verificação na execução dos diversos crimes, que vão ser unificados, de um certo condicionalismo ou situação exteriores que facilitem ao agente a prática de tais actos de modo a contribuir para uma diminuição considerável da culpa.
3. Considerando-se os crimes que cometeu e a ligação de proximidade que tinha com a vítima estava especialmente obrigado a protegê-la pelo que essa proximidade não pode ser considerada situação exterior susceptível de diminuir consideravelmente a culpa do agente.
4. A actual redacção do art. 30° do CP em nada muda o antes referido uma vez que se mantém a redacção do referido artigo no seu n. ° 2.
5. É verdade que o arguido ora recorrente confessou quase na íntegra os crimes que praticou e mostrou sincero arrependimento e consciência relativamente à gravidade dos crimes que cometeu.
6. Mas não é menos verdade que, na avaliação da personalidade do recorrente, o douto Tribunal a quo ponderou positivamente tais confissão e arrependimento, e tanto assim é que baixou a pena de 15 anos de prisão (aplicada no anterior acórdão anulado por esse Colendo Tribunal) para 10 anos.
O circunstancialismo da acção, a gravidade objectiva dos factos, a culpa evidenciada e o que contra e a favor do agente se constata, sem perder de vista as necessidades de prevenção, geral, e as que in casu se fazem sentir, e bem assim a moldura penal abstracta das infracções por que responde, tornam adequadas, pela observância dos critérios definidores dos artigos 40°, 7r e 77° do Código Penal, quer as penas parcelares, quer a única de 10 (dez) anos de prisão a que o recorrente foi condenado.
Nenhuma censura merece a decisão recorrida que, como tal, deverá ser mantida.“
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Neste Supremo, a Dig.ma Magistrada do Ministério Público emitiu douto Parecer onde refere:
“ A - à qualificação jurídico-penal dos factos, na perspectiva da continuação criminosa já que, na opinião do recorrente, a conduta por si havida configura tão só um crime continuado de abuso sexual de crianças p.p. pelos artigos 30° nºs 2 e 3 e 171 ° nºs 1 e 2 do C. Penal,
B - à medida judicial da pena, quer como decorrência da qualificação jurídica que sustenta ser a correcta para o seu caso quer, a entender-se diferentemente, no âmbito da qualificação jurídica operada pela instância recorrida posto que, no seu entender, revela-se excessiva.
1.2.2. - Delimitado que se encontra o objecto do recurso do arguido AA caberá então referir. ..
11.
11.1. - Quanto à questão reportada à qualificação jurídico-penal dos factos, na vertente da continuação criminosa:
À semelhança do considerado pela Senhora Procuradora-Geral Adjunta subscritora do parecer de fls. 348 a 353 dos autos, também propendemos a entender que a conduta ilícita havida pelo arguido configura a existência de um crime de abuso sexual de crianças, agravado, na forma continuada.
1.1. - na verdade [presente tendo os pressupostos (de verificação cumulativa) da continuação criminosa3 e não perdendo de vista que, como diz o Professor Eduardo Correia4, « ... aquilo que na continuação criminosa arrasta o agente para a reiteração é precisamente o facto de, com a primeira conduta, se amolecerem e relaxarem as reacções morais ou jurídicas que o frenavam e inibiam.» de sorte que «Quando um delinquente se encontra de novo ante uma determinada situação que, convidando à realização de um certo crime, já uma vez foi por ele aproveitada com êxito, há-de sem dúvida sentir-se f011emente solicitado a reiterar a sua conduta criminosa, e só muito dificilmente se manterá no caminho do direito. Se, de facto, não conseguir furtar-se à tentação, deverá conceder-se que a medida da sua culpa é sensivelmente menor do que a daquele outro que, em condições diferentes e porventura difíceis de vencer, renova a sua actividade.»'], quer parecer-nos que, no caso dos autos, a verificação da circunstância exterior dada como provada nomeadamente nos pontos 24, 32, 59, 60 e 61 do douto acórdão recorrido [consubstanciada, por um lado na convivência que mantinha com a ofendida EE - que, sendo filha da sua companheira, residia consigo e bem assim com as duas filhas (menores) do casal e, por outra banda na disfuncionalidade que, sob o ponto de vista relacional, ocorria entre os membros adultos do agregado familiar, por via dos contínuos desaguisados e situações de brigas, decorrentes dos seus hábitos de consumo de álcool, com particular incidência parte da progenitora da ofendida EE que, dissociada do seu papel de mãe, não exercia o mínimo controlo do lar e porque dormia profundamente ou se ausentava, deixando-a entregue ao companheiro, se encontrava de todo alheia à actuação criminosa de que a sua filha foi vítima, durante anos, por palte do mesmo], começando por favorecer a prática pelo agente do facto ilícito típico, pelo carácter habitual de que afinal se revestia e sentimento de impunidade que o laxismo instalado lhe proporcionava, como que o determinou a aproveitar-se da oportunidade em tudo idêntica àquela com que antes se deparara para reiterar a sua conduta criminosa.
É que, na verdade, vencidos numa primeira vez quer os preconceitos de ordem moral, social e legal quer o receio de pela mãe da ofendida vir a ser descoberto e impedido de repetir o facto ilícito, a partir daí tudo passou a ser igual para o arguido já que, não deparando com qualquer oposição por parte quer da sua companheira quer da menor, abusou sexualmente da enteada tantas vezes quantas quis.
E, como bem ainda observou a Senhora Procuradora-Geral Adjunta no parecer de fls. 348 e seguintes, a circunstância do arguido ser companheiro da mãe da ofendida e pai de duas irmãs desta e sobre a sua pessoa recaírem em consequência especiais obrigações de zelar pelo harmonioso desenvolvimento físico e psíquico da sua enteada, elevando embora o grau de culpa do agente, não basta só por si para afastar o regime do crime continuado.
Na realidade, ao invés do considerado no douto aresto recorrido, crê-se que este concreto condicionalismo, não inviabilizando a integração da conduta ilícita típica numa situação de continuação criminosa, a não relevar para efeitos da qualificação do crime nos termos da a!. a) do n° 1 do art. 177º do C. Penal como sempre nos parece suceder, há-de ponderar como agravante de carácter geral, ao que se entende.
*
Sopesando, enfim, tudo isto afigura-se-nos que, no caso vertente, encontramo-nos perante uma continuação criminosa a sancionar, como bem decorre do disposto no art. 79° do Código Penal, com a pena aplicável à conduta mais grave que integra essa mesma continuação criminosa, o que vale a dizer com a pena de 3 a 10 anos de prisão prevista pelo art. ] 71 ° nºs 1 e 2 do mesmo diploma legal.
Posto isto ...
n. 2. - Quanto à medida judicial da pena:
2.1. - Nesta parte, sim e por via do entendimento acabado de expender, concede-se que alguma redução poderia sofrer a pena imposta ao arguido (como se viu, 10 anos de prisão).
2.2. - E isto porque - não perdendo embora de vista o grau elevado de ilicitude dos factos (considerando por uma lado que, sendo a ofendida filha da sua companheira e irmã das suas próprias filhas, ao arguido incumbia o especial dever de protegê-la e acarinhá-la não esquecendo, por outra via, o largo lapso de tempo durante o qual o mesmo dela abusou sexualmente), acentuando dolo directo com que actuou e a intensa culpa manifestada - de reflectir impõe-se nas condições pessoais e situação económica do arguido [de modesta condição sócio-económica, é primário, confessou os factos da sua responsabilidade e mostrou-se arrependido] e bem assim nas exigentíssimas necessidades de prevenção.
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Ponderando, pois, tudo isto, admite-se então que a pena a impôr ao arguido possa vir a situar-se entre 8 e os 9 anos de prisão sem que com tal redução se afronte os princípios da necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade das penas (art. 18°, nº 2 da C.R.P.) nem as regras da experiência, antes parecendo-nos resultar adeguada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico c à medida da culpa do recorrente.
I1.3. - Termos em que, assim se entendendo, se requer que, notificando o recorrente desta intervenção (n° 2 do art. 4170 do C.P.P.), seja proferida decisão em conformidade.
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Cumpriu-se o disposto no artigo 417º nº 2 do CPP.
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Consta do acórdão recorrido:

“11. FUNDAMENTAÇÃO
11.1. MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Atento o teor da decisão sumária de fl s. 357 a 360. encontram-se assentes os seguintes factos. dados como provados no acórdão de fls. 296 a 318:
1. O arguido, antes de ser preso preventivamente à ordem destes autos, vivia maritalmente. desde há cerca de oito anos com DD, tendo o casal duas filhas em comum, com cinco e sete anos de idade respectivamente:
2. Com o casal vivia também a filha mais velha de DD a EE, nascida a 28 de Maio de 1993, fruto de um anterior relacionamento da primeira:
3. O casal e as menores viviam, desde aproximadamente o ano de 2001, no Largo .............................., em Lisboa;
4. Durante o quarto fim-de-semana de Julho do ano de 2004, a mãe da menor EE esteve ausente em Inglaterra, aí se tendo deslocado para acompanhar a avó da menor, tendo embarcado no dia 23 de Julho de 2004:
5. A menor EE e as suas irmãs menores ficaram em casa, na companhia do arguido;
6. Num dos dias desse fim-de-semana, à noite quando as duas irmãs de EE já estavam a dormir, o arguido encontrava-se sozinho na cozinha com esta;
7. Então, com o pretexto de que queria comparar a sua altura com a de EE. aproximou-se da mesma e começou a agarrá-la, apalpando-a, nomeadamente nas nádegas e área genital:
8. EE empurrou o arguido e, saindo da cozinha, refugiou-se no seu quarto;
9. O arguido foi para a sala e chamou EE. que, obedecendo ao arguido, aí se dirigiu;
10. Na sala, o arguido, depois de ter trancado a porta, pôs em exibição na televisão um filme pornográfico contendo cenas de sexo explícitas com adultos mantendo relações sexuais entre si que EE visionou;
11. O arguido disse-lhe então que ela tinha que fazer a mesma coisa que faziam as personagens do filme;
12. Abeirando-se de EE, o arguido despiu-a da cintura para baixo e mandou-a fazer-lhe sexo oral, tendo introduzido o seu pénis erecto na boca daquela, para que o chupasse, enquanto o arguido se movimentava de forma a friccionar o pénis na boca da menor;
13. Depois, o arguido retirou o pénis da boca de EE e friccionou-o junto ao ânus e na área genital desta;
14. O arguido, a partir desse dia, passou a procurar EE com frequência - aproveitando as alturas em que se encontravam sozinhos em casa ou as ocasiões em que a mãe daquela e as suas irmãs já se encontravam a dormir - para a sujeitar a práticas sexuais;
15. Apesar de se aperceber do sofrimento que causava em EE de cada vez que a abordava para a sujeitar a práticas sexuais, o arguido não se impedia de o fazer;
16. EE pedia ao arguido para não a sujeitar a esse tipo de condutas dizendo-lhe, quando era abordada pelo mesmo, que não o queria mas o arguido ficava indiferente a tais pedidos;
17. Por vezes, depois de sujeitar EE a práticas sexuais o arguido dava-lhe dinheiro em montante superior ao que anteriormente lhe dava;
18. Pelo menos duas vezes por mês, sempre à noite, o arguido abordava EE, quando se encontravam os dois na sala a ver televisão ou quando esta já se encontrava deitada, indo então o arguido chamá-la ao quarto;
19. O arguido, nessas alturas, rapidamente a despia da cintura para baixo despindo-se ele também, após o que apalpava o corpo da menor., nomeadamente as nádegas e zona genital;
20. O arguido pedia-lhe que manipulasse o seu pénis, o que EE fazia:
21. O arguido friccionava o seu pénis erecto junto ao ânus e pela área genital de EE;
22. Numa dessas ocasiões, o arguido e EE foram surpreendidos na cozinha por uma das irmãs desta. HH. filha do arguido, que, ao aperceber-se do que se estava a passar, disse "vocês estão a fazer tic-tac", tendo o arguido dito que estava só a ver se a EE tinha uma ferida na perna:
23. A partir de data posterior a EE ter completado 12 anos, o arguido passou também a colocar o seu pénis erecto à entrada da vagina daquela, fazendo força, sem contudo chegar a aí introduzir o pénis, pois EE queixava-se com dores e afastava-se do arguido não permitindo a penetração;
24. O arguido agia sempre à noite, quando sentia que tinha mais tempo e que não corria o risco de ser surpreendido pela mãe de EE, por esta já se encontrar a dormir profundamente:
25. O arguido, sempre se despiu e despiu EE, pelo menos da cintura baixo, e friccionou o seu pénis erecto pela zona genital e anal daquela menor;
26. Algumas das vezes punha em exibição na televisão filmes pornográficos contendo cenas de sexo explícitas com adultos mantendo relações sexuais entre si que ambos viam;
27. Sempre que o arguido lhe exigia sexo oral, EE obedecia-lhe e deixava-o colocar o pénis na sua boca. para que o chupasse, enquanto ele fazia movimentos oscilatórios de forma a friccionar o pénis erecto na sua boca;
28. Em data em concreto não apurada de um fim-de-semana do mês de Dezembro de 2005 o arguido e EE deslocaram-se a casa de um tio desta, na Póvoa de Santo Adrião, onde não se encontrava ninguém, para que o arguido efectuasse umas pinturas na residência, com a ajuda da segunda;
29. Nessa casa o arguido 1 evou-a para um quarto, onde se despiram ambos e se deitaram na cama;
30. Nessa ocasião EE manipulou o pénis do arguido, após o que este colocou o seu pénis erecto na boca dela, para que a mesma o chupasse, enquanto ele próprio efectuou movimentos oscilatórios de forma a friccionar o pénis na boca de EE:
31. Depois o arguido sentou a menor por cima da sua zona genital e friccionou o seu pénis erecto pela área genital e anal da menor, tendo colocado o seu pénis à entrada da vagina da menor, sem a penetrar, em virtude de a menor, por sentir dores, afastar o seu corpo do arguido:
32. Entre 29 de Março e 05 de Abril de 2007, a mãe de EE esteve ausente, na Alemanha, tendo sido acompanhada ao aeroporto, no dia 29 da parte da tarde pela sua filha e pelo arguido;
33. Quando regressou a casa na companhia de EE, e antes de ir ao infantário buscar as suas filhas, o arguido colocou em exibição na televisão um filme pornográfico contendo cenas de sexo explícitas com adultos mantendo relações sexuais entre si que ambos visionaram:
34. Simultaneamente a menor EE manipulou o pénis do arguido, após o que este o colocou erecto na boca daquela, fazendo com que a mesma o chupasse, enquanto ele efectuava movimentos oscilatórios, de forma a friccioná-lo na boca dela:
35. O arguido também friccionou o seu pénis na área genital e anal de EE e colocou-o à entrada da vagina, sem que, contudo a tivesse penetrado, pois, como era frequente, a menor queixou-se com dores e afastou-se, impedindo o pénis do arguido de entrar na sua vagina:
36. A última vez que o arguido assim agiu foi perto do final de Abril de 2007, à noite, estando já todos os elementos da família deitados:
37. Nessa altura o arguido friccionou o seu pénis erecto na zona genital e anal de EE, tendo também colocado o pénis junto à sua vagina, fazendo força;
38. EE afastou o seu corpo, de forma a evitar a penetração;
39. Sempre que praticou todos os actos que se descreveram o arguido ejaculou, umas vezes após a fricção do seu pénis erecto na área genital e anal de EE, outras vezes após a manipulação do seu pénis erecto por esta e outras ainda após a fricção do seu pénis erecto na boca de EE;
40. EE acabou por contar os factos de que vinha sendo vítima, no início de Maio de 2007, primeiro a uma auxiliar de acção educativa da sua escola em quem depositava confiança, FF, e depois à psicóloga da escola, GG
41. Não contou antes a quem quer que fosse os factos de que vinha sendo vítima, por sentir imensa vergonha, medo do arguido e da reacção que a sua mãe pudesse ter;
42. O arguido actuou sempre de modo voluntário, livre e consciente, bem sabendo serem as condutas que adoptou proibidas por lei penal;
43. O arguido tinha perfeito conhecimento da idade de EE, que o arguido conhecia desde os cinco ou seis anos de idade, a partir da altura em que passou a viver maritalmente com a mãe dela;
44. O arguido, ao adoptar as condutas descritas, actuou com intenção alcançar prazer e de satisfazer os seus desejos sexuais, querendo ter contactos de natureza sexual com EE, bem sabendo que esta não tinha a capacidade e o discernimento necessários a uma livre decisão;
45. Bem sabia que um relacionamento sexual, nomeadamente desta natureza, prejudicava o normal desenvolvimento da mesma;
46. O arguido voluntariamente exibiu a EE, nas ocasiões descritas, filmes com conteúdo pornográfico, bem sabendo que o visionamento por aquela de filmes dessa natureza era prejudicial ao seu equilibrado desenvolvimento psicológico;
47. O arguido ao sujeitá -la durante o período descrito. à prática reiterada de actos sexuais. tinha perfeito conhecimento da perturbação que as suas actuações repetidas provocavam na formação e estruturação da personalidade de EE prejudicando-a reiterada e voluntariamente no seu normal desenvolvimento físico e psicológico;
48. Do CRC do arguido nada consta;
49. O arguido de origem angolana, integrou uma família numerosa de dez irmãos, sendo o mais novo;
50. Cresceu em ambiente sócio-económico estável enquadrado nos valores da cultura africana;
51. Concluiu o 12° ano, teria então cerca de 17 anos de idade, tendo conseguido o estatuto de técnico de educação. o que lhe permitiu leccionar durante um determinado período, dedicando-se à noite à actividade de disco-jockey;
52. Em 1992, com a guerra deixou o Bié e foi para Luanda, onde iniciou a frequência do curso de electricidade que não terminou;
53. Após namoro de 10 anos, contraiu matrimónio, por volta do ano de 1996, tendo-se separado um ano depois. Desta relação teve uma filha. actualmente com 14 anos de idade e a viver em Angola, com quem mantém contactos;
54. Posteriormente, estabeleceu um relacionamento esporádico, do qual nasceu outra filha. hoje com 10 anos de idade e a viver em Angola, com quem não tem ligação:
55. A partir do ano de 1998 passou a viver com EE com quem teve duas filhas, HH e II;
56. No ano de 2000 a família decidiu emigrar para Portugal, onde EE já vivera e estudara:
57. Em Portugal rapidamente esgotaram as suas economias, acabando por se socorrer do Rendimento Social de Inserção, o que no caso do arguido aconteceu só depois de ter legalizado a sua situação em Portugal em 2004:
58. Trabalhou ocasionalmente como segurança, na área da construção civil, publicidade;
59. A última casa de família é uma habitação social, num bairro fechado, caracterizado pela existência de problemas sociais e situações de exclusão social;
60. O casal não desempenhava actividades contínuas, pelo que seriam normais os períodos de desocupação não existindo um grande esforço em alterar esta situação, por se terem acomodado a um conjunto de apoios sociais;
61. Em termos relacionais, já ocorriam disfuncionalidades, com desaguisados e situações de briga. No âmbito do funcionamento familiar havia hábitos de consumo de álcool, com contornos de maior intensidade por parte de JJ:

Na sequência do reenvio parcial do processo, deu-se ainda como provado que:
62. O arguido confessou a prática dos factos supra descritos, nomeadamente o número e a natureza dos actos que praticou com a EE, ressalvando apenas que os mesmos tiveram início em Setembro de 2005;
63. O arguido mostrou estar arrependido de ter praticado a factualidade acima descrita e afirmou ter causado sofrimento a várias pessoas, incluindo à EE;
64. Actualmente, a relação que o arguido manteve com a JJ está terminada;
65. As duas filhas menores do arguido e da JJ estão acolhidas numa instituição.

11.2. MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA
No acórdão de fls. 296 a 318, deu-se como não provado:
a) Que muitas vezes EE vomitava, depois de ser sujeita aos abusos que o arguido passou a perpetrar na sua pessoa;
b) Que quando a menor lhe dizia, por vezes, que iria contar o que se estava a passar, o arguido ripostava que ninguém iria acreditar nela, que a sua mãe iria ficar contra a mesma e que lhe iria bater;
c) Que a quantia em dinheiro que o arguido dava a EE era, em geral, de dez ou vinte euros;
d) Que as abordagens do arguido a EE ocorriam pelo menos duas vezes por semana;
e) Que o arguido, nessas ocasiões, simultaneamente introduzia dois dedos na vagina de EE;
f) Que o arguido exibia filmes pornográficos, pelo menos uma vez por semana;
g) Que sempre que o arguido exibia filmes pornográficos dizia a EE para lhe fazer "sexo oral como no filme";
h) Que durante o período em que a mãe de EE esteve ausente na Alemanha, tais factos repetiram-se por mais quatro vezes, à noite, quando as menores filhas do arguido já se encontravam a dormir;
i) E que nessas ocasiões. o arguido colocou sempre em exibição filmes pornográficos - contendo cenas de sexo explícitas com adultos mantendo relações sexuais entre si - que ambos visionaram, friccionou o seu pénis na área genital e anal daquela e lhe colocou o pénis à entrada da vagina;
j) Que nessas ocasiões também colocou o seu pénis erecto da boca de EE, para que a mesma o chupasse. enquanto ele efectuava movimentos oscilatórios, de forma a friccionar o pénis na boca dela:
k) Que a última situação ocorreu precisamente no dia 1 de Maio de 2007:
1) Que dessa vez o arguido se dirigiu ao quarto de EE, agarrou-a por um braço, e levou-a para a cozinha:
m) Que na última situação o arguido introduziu o seu pénis erecto na boca de EE, tendo esta o chupado, enquanto o arguido efectuava movimentos oscilatórios friccionando o seu pénis na boca daquela;
n) Que a revelação ocorreu em finais de Abril de 2007;
o) Que por força dos actos de que foi vítima EE passou a necessitar de apoio psicológico.
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Cumpre apreciar e decidir:

Inexistem vícios ou nulidades de que cumpra conhecer nos termos do artigo 410º nºs 2 e 3 do CPP:

Tendo em conta as penas parcelares aplicadas, das mesmas não há recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, atento o disposto no artigo 432º nº 1 al. c) do CPP, sem prejuízo porém do recurso quanto á pena resultante do cúmulo que excede esse patamar.
O recorrente discute a qualificação jurídica da conduta, não em termos de definição dos ilícitos típicos puníveis, e respectivas penas, mas, quanto à acumulação de crimes, pois que entende constituir essa conduta um só crime continuado.
Subsidiariamente, para o caso de não proceder o crime continuado, discute a medida concreta da pena do cúmulo.

Tendo em conta que, in casu, a apreciação da existência ou não de crime continuado, é questão prévia necessária à apreciação da subsistência do cúmulo, afigura-se indispensável o conhecimento da mesma, pois que se o crime for continuado, não se põe sequer o problema do cúmulo, e, por conseguinte, deixa de haver objecto para a questão subsidiária; porém se não existir crime continuado, há que apreciar a pena resultante desse cúmulo, objecto de recurso..
Na verdade, se for caso de cúmulo, o sistema de punição do concurso de crimes, pressupõe a existência das penas parcelares.
Adoptando o sistema da pena conjunta, só após determinadas definitivamente as penas parcelares correspondentes a cada um dos singulares factos, cabe ao tribunal, depois de estabelecida a moldura do concurso, encontrar e justificar a pena conjunta, cujos critérios legais de determinação são diferentes dos propostos para a primeira etapa.
Relativamente ao objecto do presente recurso, há uma prévia relação exclusiva de interligação necessária, de causa e efeito, entre a qualificação da conduta do arguido como integrando ou não os pressupostos do crime continuado, para se poder saber desde logo se pode ou não haver lugar a cúmulo.
Não é uma questão a juzante ou a montante das condutas ilícitas típicas e puníveis, mas sim uma questão central da caracterização dessas condutas nos termos do artº 30º do CP, face aos efeitos na aplicação da pena: se uma só pena advinda de crime continuado, excluindo por conseguinte a pena do cúmulo, por excluir o próprio cúmulo; ou, se uma pena única advinda do cúmulo.
Em síntese: Embora no caso presente, a questão da existência ou não de crime continuado, não fosse cognoscível se apenas tivesse por objecto a discussão da caracterização típica das condutas que motivaram a acumulação material das ilicitudes provadas, com vista á impugnação da condenação referenciada nas penas parcelares, por não ser então admissível recurso, face às penas parcelares aplicadas, já a nível do objecto do recurso sobre a pena conjunta em que o recurso é admissível, a questão do crime continuado surge como questão prejudicial – que o tribunal de revista pode e deve oficiosamente conhecer, uma vez que as ilicitudes versam sobre a violação do mesmo bem jurídico - necessária ao conhecimento do objecto do recurso sobre a pena única, porque, a existir crime continuado, fica sem objecto o recurso quanto à pena única, por inexistência de penas parcelares.
Há, assim, face aos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça que procede a reexame exclusivo da matéria de direito, conhecer – como questão prejudicial - da existência ou não de crime continuado, de cuja resposta depende a sorte da pena conjunta.
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A questão (prévia) do crime continuado

Dispõe o artº 30º nº 1 do Código Penal:
1. O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, o pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
2. Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico executado por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
3. O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, salvo tratando-se da mesma vítima.

A temática do crime continuado, desenvolve-se a partir da influência de Birnbaum e Honig sobre a teoria do bem jurídico, com que se relaciona.
Em termos comparados com o concurso aparente de infracções, poderá questionar-se no caso de haver pluralidade de resoluções criminosas, se esta, em certas situações e mediante determinados pressupostos não será meramente aparente, em que a justiça e a economia processual aconselhem a verificação de um só crime.
Segundo ensina Eduardo Correia (Direito Criminal, II, reimpressão, Almedina, Coimbra, 1971, p. 203 e segs), a solução da questão passa por duas vias fundamentais: uma ligada à teoria do crime nos seus princípios gerais, em que se procura “deduzir os elementos que poderiam explicar a unidade inscrita no crime continuado – e teremos então uma construção lógico-jurídica dp conceito”, sendo que nesta perspectiva distinguem-se as teorias subjectivas - em que “o elemento aglutinador das diversas condutas que forma o crime continuado seria a “unidade de determinação da vontade “ (Schroeder) ou a “unidade de resolução” ( Mittermaier)” – e, as teorias objectivas, em que o elemento aglutinador residiria “na homogeneidade das condutas (Woeringen), na indivisibilidade (Scwartz) ou na unidade de objecto (Merkel) “
A outra via encontra-se ligada a uma construção teleológica do conceito e, atende antes a uma diminuição da gravidade revelada pela situação concreta, perante o concurso real de infracções, tentando encontrar a resposta no menor grau de culpa do agente.
A perspectiva teleológica é considerada, metodologicamente a melhor para resolver o problema, sendo que “quando se investiga o fundamento desta diminuição da culpa ele deve ir encontrar-se, como pela primeira vez claramente o formulou Kraushaar, no momento exógeno das condutas, na disposição exterior das coisas para o facto. Pelo que pressuposto da continuação criminosa será, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.”, desde que “se não trate de um agente com uma personalidade particularmente sensível a pressões exógenas.”
Elenca o mesmo Insigne Autor, como situações exteriores típicas da unidade criminosa da continuação, sem esgotar o domínio dessa continuação, e sendo sempre a “diminuição considerável da culpa”, como ideia fundamental, as seguintes:
“a) assim, desde logo, a circunstância de se ter criado, através da primeira actividade criminosa, uma certa relação, um acordo entre os sujeitos;
b) a circunstância de voltar a verificar-se uma oportunidade favorável à prática do crime, que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa;
c) a circunstância da perduração do meio apto para realizar um delito, que se criou ou adquiriu com vista a executar a primeira conduta criminosa;
d) a circunstância de o agente, depois de executar a resolução que tomara, verificar que se lhe oferece a possibilidade de alargar o âmbito da sua actividade criminosa.”

A conexão espacial e temporal das actividades continuadas, não assume papel de especial relevo, apenas podendo ter interesse quando puder afastar a conexão interior de ligação factual entre os diversos actos (derivando esta de a motivação de cada facto estar ligada à dos outros)
“Decisivo é, pelo contrário, que as diversas actividades preencham o mesmo tipo legal de crime, ou pelo menos, diversos tipos legais de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico: este será o limite de toda a construção.”
Como salienta Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, p. 139, nota 29: “A diminuição sensível da culpa só tem lugar quando a ocasião favorável à prática do crime se repete sem que o agente tenha contribuído para essa repetição. Isto é, quando a ocasião se proporciona ao agente e não quando ele activamente a provoca.”
Por outro lado, como salientava Eduardo Correia, (ibidem), “de o mesmo bem jurídico não se pode falar quando se esteja perante tipos legais que protejam bens eminentemente pessoais; caso em que, havendo um preenchimento plúrimo de um tipo legal desta natureza, estará excluída toda a possibilidade de se falar em continuação criminosa”.

O artigo 30º do C.Penal, fundamentou-se no artº 33º do Projecto da Parte Geral do Código Penal de 1963 que acolhia esta doutrina, tendo sido aprovado na 13ª sessão da Comissão revisora em 8 de Fevereiro de 1964, um último período para o nº 2 donde constava: “A continuação não se verifica porém, quando são violados bens jurídicos inerentes à pessoa, salvo tratando-se da mesma vítima.”
Diz Maia Gonçalves em anotação ao artigo 30º no seu Código Penal Português, anotado e comentado, 18ª edição, p. 154, nota 1, que:”A supressão deste período não significou que outra solução devesse ser adoptada, mas tão só que o legislador considerou a afirmação desnecessária, por resultar da doutrina, e até inconveniente, por a lei não dever entrar demasiadamente no domínio que à doutrina deve ser reservado.
A revisão do Código levada a efeito pelo Dec-Lei nº 48/95, de 15 de Março, manteve intacto o texto do desta artigo, mas a que foi levada a efeito pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, introduzindo o nº 3 reproduziu o referido dispositivo que foi rejeitado na versão originária.”

Na verdade estabelece o nº 3 do artº 30º
“3. O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, salvo tratando-se da mesma vítima.”
Contudo, o aditamento constante deste nº 3 não exclui, antes continua a pressupor a verificação dos requisitos do crime continuado,
Como se considerou no Ac. deste Supremo e desta Secção, de 01-10-2008, Proc. n.º 2872/08, a alteração legislativa em causa é, pois, pura tautologia, de alcance limitado ou mesmo nulo, desnecessária, na medida em que é reafirmação do que do antecedente se entendia ao nível deste STJ, ou seja, de que existe crime continuado quando a violação plúrima do mesmo bem jurídico eminentemente pessoal é referida à mesma pessoa e cometida num quadro em que, por circunstâncias exteriores ao agente, a sua culpa se mostre consideravelmente diminuída, não podendo prescindir-se da indagação casuística dos respectivos requisitos.
Esse aditamento não permite, pois, uma interpretação perversa em termos de uma violação plúrima de bens eminentemente pessoais em que a ofendida é a mesma pessoa se reconduzir ao crime continuado, afastando-se um concurso real (cf. Ac. do STJ de 08-11-2007, Proc. n.º 3296/07 - 5.ª, acessível in www.dgsi.pt); só significa que este deve firmar-se se esgotantemente se mostrarem preenchidos os seus pressupostos enunciados no n.º 2, de que se não pode desligar numa interpretação sistemática e global do preceito.
Interpretação em contrário seria até, manifestamente, atentatória da CRP, restringindo a um limite inaceitável o respeito pela dignidade humana, violando o preceituado no seu art. 1.º, comprimindo de forma intolerável direitos fundamentais, em ofensa ao disposto no art. 18.º da CRP. Uma interpretação assim concebida da norma do n.º 3 aditado levaria a que se houvesse de entender que o legislador não soube exprimir-se convenientemente, havendo que atalhar-lhe o pensamento.

Entende o recorrente na motivação de recurso que existiu “um quadro exterior que facilitou de forma considerável, o renovar das sucessivas resoluções da prática do crime, quadro exterior esse consubstanciado, neste caso concreto, na coabitação com a menor, na falta de controlo maternal e os largos períodos de permanência a sós com a menor na habitação, bem como, no âmbito do funcionamento familiar, os hábitos de consumo de álcool, quer pelo Arguido, quer por parte da mãe da menor. (cfr. Acórdão, factos provados nº 61).”
A decisão recorrida afastou a figura do crime continuado, considerando, além do mais:
“(…)não podem ser enquadráveis na figura do crime continuado aquelas situações em que sejam total ou predominantemente razões endógenas ao agente (mormente as suas tendências pessoais) a conduzir a repetição do facto.
E, no caso dos autos, o que se apurou foi precisamente que foram razões endógenas ao arguido, nomeadamente a sua vontade de praticar coito oral ou acto sexual de relevo com a menor EE, que o levou a reiteração após a primeira ocasião em que tal sucedeu. Na verdade, tal primeira ocasião não conduziu ou "aconselhou" a repetição do facto, que resultou exclusivamente da vontade do arguido.
É certo que a favor da tese da continuação criminosa na situação em apreço nestes autos se poderia argumentar que a circunstância de a mãe da menor EE, ou não estar presente em casa em ocasiões em que, nesse local. o arguido se comportou relativamente a menor pela forma que se deu como provada ou, estando-o, não prestou atenção (a mãe da menor EE consumia abusivamente bebidas alcoólicas) ao que se passava com a sua filha, se traduz na repetição de uma oportunidade favorável à prática do crime, que já havia sido aproveitada por aquele na primeira conduta criminosa.
A favor de tal tese poderia ainda eventualmente referir-se que com a primeira ocasião em que o arguido praticou na menor os factos acima descritos, sem que depois esta tenha contado o sucedido à sua mãe, criou-se uma certa relação ou acordo entre os sujeitos.
No entanto, não pode esquecer-se que, como acima se mencionou, a figura do crime continuado pressupõe uma considerável diminuição da culpa do agente. E é precisamente esta considerável diminuição da culpa do arguido que não se verifica no caso em apreço, pois este actuou sobre uma filha menor da sua companheira, sendo que o relacionamento que mantinha com a mãe daquela fazia com que sobre o mesmo recaíssem especiais obrigações de zelar pelo harmonioso desenvolvimento físico e psíquico da EE. Ou seja, exactamente aquilo que o arguido não respeitou, não se vislumbrando desta forma qualquer diminuição da culpa do mesmo. “

Concorda-se com tal fundamentação.
Na verdade como vem provado, o arguido tinha perfeito conhecimento da idade de EE, que o arguido conhecia desde os cinco ou seis anos de idade, a partir da altura em que passou a viver maritalmente com a mãe dela;
O arguido, ao adoptar as condutas descritas, actuou com intenção alcançar prazer e de satisfazer os seus desejos sexuais, querendo ter contactos de natureza sexual com EE, bem sabendo que esta não tinha a capacidade e o discernimento necessários a uma livre decisão;
Bem sabia que um relacionamento sexual, nomeadamente desta natureza, prejudicava o normal desenvolvimento da mesma;
O arguido voluntariamente exibiu a EE, nas ocasiões descritas, filmes com conteúdo pornográfico, bem sabendo que o visionamento por aquela de filmes dessa natureza era prejudicial ao seu equilibrado desenvolvimento psicológico;
O arguido ao sujeitá-la durante o período descrito, à prática reiterada de actos sexuais, tinha perfeito conhecimento da perturbação que as suas actuações repetidas provocavam na formação e estruturação da personalidade de EE prejudicando-a reiterada e voluntariamente no seu normal desenvolvimento físico e psicológico.

Os factos ocorrem em situação de convivência e coabitação idêntica à familiar.
A situação familiar ou análoga é modo normal de manifestação da esfera privada das pessoas, de coabitação e de convivência, em espaço comum, e, por isso, não constitui solicitação que deva considerar-se exterior ao agente para a facilidade do sucumbir.
Por outro lado, o arguido agiu impulsionado por circunstâncias endógenas, do seu interior, preparando o cenário e pressionando a menor.

Aliás, se se considerasse, como entende o Ministério Público, que se verifica circunstancialismo exterior ao repetido sucumbir, nem por isso deixava de haver diminuição da culpa do arguido e, de forma considerável, nas circunstâncias concretas da sua actuação.
A culpa do arguido é mais acentuada, mais considerável, decorrente dessa relação de natureza idêntica à familiar, com a menor e sua mãe, em que era especialmente exigível ao arguido, por virtude da ascendência que tinha sobre a mesma menor com quem privava em termos familiares, que, na ausência da mãe desta, zelasse pela defesa da menor, de forma a dela cuidar e proteger, nomeadamente de quaisquer ataques aos seus direitos fundamentais.
Como salienta Maia Gonçalves (ibidem, p. 649), “atente-se mais em que, havendo pluralidade de acções naturalísticas e tratando-se de uma só vítima, normalmente não haverá crime continuado, mas concurso de crimes, já que em regra não haverá relevante solicitação exterior a diminuir a culpa do agente, mas desviante personalidade deste a determinar o seu comportamento criminoso.”
E, como refere Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Códigp Penal anotado. 139, nota 28: “A ciência médica e a experiência da vida mostram que o abuso sexual repetido de uma criança provoca uma tortura psicológica na criança que vive no pavor constante de vir a ser mais uma vez abusada pelo seu abusador. A consciência, o aproveitamento e até o gozo do abusador com esta tortura psicológica são incompatíveis com a afirmação de uma culpa diminuída do agente abusador. Quando for esse o caso, não há diminuição sensível da culpa, ao contrário há uma culpa agravada do crime”
Inexistem pois os pressupostos de crime continuado.

Por isso, há que apreciar a determinação da medida concreta da pena do cúmulo:
Conclui o recorrente que tendo em conta a sua culpa diminuída, nos termos das considerações e conclusões anteriores, deve esse Venerando Tribunal corrigir a pena única aplicada de 10 anos de prisão por, manifestamente, ser exagerada e desproporcionada ao comportamento e à culpa do Arguido e violadora das regras de experiência ínsitas à determinação da pena; Perante a pena aplicada, é patente não existirem razões atinentes à culpa, ou de prevenção (geral ou especial), que a justifiquem, chocando tal pena com o mais comum sentido de justiça;

Vejamos:
Como se sabe, o artigo 77º nº 1 do Código Penal, ao estabelecer as regras da punição do concurso, dispõe: “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.”
E, estabelece o nº 2 que: A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa: e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
Não tendo o legislador nacional optado pelo sistema de acumulação material (soma das penas com mera limitação do limite máximo) nem pelo da exasperação ou agravação da pena mais grave (elevação da pena mais grave, através da avaliação conjunta da pessoa do agente e dos singulares factos puníveis, elevação que não pode atingir a soma das penas singulares nem o limite absoluto legalmente fixado), é forçoso concluir que com a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente: como doutamente diz Figueiredo Dias (Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 290-292), como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado.
Importante na determinação concreta da pena conjunta será, pois, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, a existência ou não de qualquer relação entre uns e outros, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos, tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso.- (Ac. deste Supremo e desta Secção de 06-02-2008, in Proc. n.º 4454/07
Será, assim, o conjunto dos factos que fornece a gravidade do ilícito global perpetrado, )sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é recondutível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, não já no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).
Importa, contudo, realçar que na determinação da medida das penas parcelar e única não é admissível uma dupla valoração do mesmo factor com o mesmo sentido: assim, se a decisão faz apelo à gravidade objectiva dos crimes está a referir-se a factores de medida da pena que já foram devidamente equacionados na formação das penas parcelares.
Por outro lado, afastada a possibilidade de aplicação de um critério abstracto, que se reconduz a um mero enunciar matemático de premissas, impende sobre o juiz um especial ónus de determinar e justificar quais os factores relevantes de cada operação de formação de pena conjunta, quer no que respeita à culpa em relação ao conjunto dos factos, quer no que respeita à prevenção, quer, ainda, no que concerne à personalidade e factos considerados no seu significado conjunto.
Um dos critérios fundamentais em sede deste sentido de culpa, numa perspectiva global dos factos, é o da determinação da intensidade da ofensa e dimensão do bem jurídico ofendido, sendo certo que assume significado profundamente diferente a violação repetida de bens jurídicos ligados à dimensão pessoal, em relação a bens patrimoniais. Por outro lado, importa determinar os motivos e objectivos do agente no denominador comum dos actos ilícitos praticados e, eventualmente, dos estados de dependência, bem como a tendência para a actividade criminosa expressa pelo número de infracções, pela sua permanência no tempo, pela dependência de vida em relação àquela actividade.
Na avaliação da personalidade expressa nos factos é todo um processo de socialização e de inserção, ou de repúdio pelas normas de identificação social e de vivência em comunidade, que deve ser ponderado. (v. Ac. deste Supremo e desta 3ª Secção, de 09-01-2008 in Proc. n.º 3177/07).
O concurso de crimes tanto pode decorrer de factos praticados na mesma ocasião, como de factos perpetrados em momentos distintos, temporalmente próximos ou distantes. Por outro lado, o concurso tanto pode ser constituído pela repetição do mesmo crime, como pelo cometimento de crimes da mais diversa natureza. Por outro lado ainda, o concurso tanto pode ser formado por um número reduzido de crimes, como pode englobar inúmeros crimes.

Considerou a decisão recorrida.
“Na fixação em concreto da pena única a aplicar ao arguido importa neste momento apreciar a gravidade do ilícito global e avaliar a personalidade daquele, quer pala via da culpa, quer pela da prevenção.
Na análise conjunta dos factos e da personalidade do arguido a que há que proceder, terão necessariamente que ser valorados factores que já foram tidos em conta na fixação das diversas penas parcelares em concurso, pois só dessa forma se poderá apurar a gravidade do ilícito global perpetrado e avaliar a personalidade unitária daquele, mas só nessa medida. Ou seja, se um determinado factor com relevância para a definição do ilícito global e da personalidade unitária já foi devidamente sopesado na fixação de cada uma das penas parcelares em concurso, deverá ser valorado, A não ser assim, em determinados casos de concurso de crimes ficar-se-ia sem factores a que recorrer para fixar a pena única concreta dentro da moldura abstracta. mas sem que lhe seja atribuído um efeito agravante ou atenuante.
O ilícito global apresenta uma gravidade elevada, traduzida, no plano da culpa, na intensidade do dolo que acompanhou a prática de todos os crimes em concurso e, no plano da prevenção, no elevado número de crimes praticado pelo arguido (sessenta e sete) ao longo de um período de tempo considerável (quase três anos).
Relativamente à personalidade do arguido, há que ter presente, quer ao nível da culpa, quer ao nível da prevenção (sobretudo especial), a ausência de antecedentes criminais daquele, bem como a confissão dos factos feita pelo arguido (com a única ressalva supra exposta) e o arrependimento que este mostrou. Estas circunstâncias, conjugadas com o facto de a actuação do arguido em apreço nestes autos ter incidido sobre uma única menor, permite ainda concluir que se pode estar perante uma mera pluriocasionalidade que não radica na personalidade. Também ao nível prevenção especial, importa atentar nas condições pessoais e na situação económica do arguido.
Por tudo o exposto, analisando globalmente a conduta do arguido, verifica-se que, atento o já supra exposto, há especiais necessidades de prevenção geral. Tendo em conta que a culpa do arguido manifestada no facto se situa no nível médio das necessidades de prevenção geral e que não existem especiais razões de prevenção especial, entende o Tribunal adequado aplicar àquele a pena única de 10 (dez) anos de prisão”

Tendo em conta:
A natureza homogénea e gravidade dos crimes e penas parcelares aplicadas (três crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artº 172º nºs 1 e 2 do Código Penal vigente à data dos factos, tendo um deles merecido a punição de quatro anos e nove meses de prisão, e cada um dos outros dois a punição de cinco anos de prisão; 64 crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. no artº 172º nº 1 do CP á data da prática dos factos, tendo sido cada um punido com dois anos de prisão.
O período temporal do cometimento dos referidos crimes: factos reportados ao período desde o último quarto fim de semana de Julho de 2004 até entre 29 de Março e 5 de Abril de 2007,
Que os factos se encontram interligados, por resoluções e meio de actuação idênticos, em que o arguido revelou uma conduta particularmente desvaliosa da sua personalidade pois que o arguido, ao adoptar as condutas descritas, actuou com intenção alcançar prazer e de satisfazer os seus desejos sexuais, querendo ter contactos de natureza sexual com EE, bem sabendo que esta não tinha a capacidade e o discernimento necessários a uma livre decisão; Bem sabia que um relacionamento sexual, nomeadamente desta natureza, prejudicava o normal desenvolvimento da mesma; O arguido voluntariamente exibiu a EE, nas ocasiões descritas, filmes com conteúdo pornográfico, bem sabendo que o visionamento por aquela de filmes dessa natureza era prejudicial ao seu equilibrado desenvolvimento psicológico; O arguido ao sujeitá-la durante o período descrito, à prática reiterada de actos sexuais, tinha perfeito conhecimento da perturbação que as suas actuações repetidas provocavam na formação e estruturação da personalidade de EE prejudicando-a reiterada e voluntariamente no seu normal desenvolvimento físico e psicológico;
O arguido confessou a prática dos factos supra descritos, nomeadamente o número e a natureza dos actos que praticou com a EE, ressalvando apenas que os mesmos tiveram início em Setembro de 2005;
O arguido mostrou estar arrependido de ter praticado a factualidade acima descrita e afirmou ter causado sofrimento a várias pessoas, incluindo à EE;
Actualmente, a relação que o arguido manteve com a JJ está terminada;
Nada consta no certificado de registo criminal do arguido
Valorando em conjunto o ilícito global perpetrado, sobre uma única pessoa menor, verifica-se que os factos resultaram de actuação pluriocasional e não de tendência para delinquir.
As exigências de prevenção geral são acutilantes neste tipo de crimes, face à necessidade de protecção da autodeterminação sexual e da defesa e desenvolvimento sadio das vítimas menores.
Já as exigências de prevenção especial não excedem a normalidade necessária á dissuasão da reincidência,
E face ao disposto no artigo 40º nºs 1 e 2 do C. Penal, tendo ainda em conta a idade do arguido (33 anos na data do início da actividade delituosa)) e o efeito previsível da pena a aplicar no seu comportamento futuro, sendo que a moldura penal abstracta concretamente aplicável, situa-se entre cinco anos e vinte e cinco anos de prisão, não se afigura desadequada, nem desproporcional a pena única aplicada, que é de manter.

O recurso não merece provimento.
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Termos em que, decidindo:
Negam provimento ao recurso, confirmam o acórdão recorrido.
Tributam o recorrente em 6 Ucs de taxa de justiça


Supremo Tribunal de Justiça, 19 de Março de 2009

Pires da Graça (Relator)
Raul Borges


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(1)- A não ser assim, em determinados casos de concurso de crimes ficar-se-ia sem factores a que recorrer para fixar a pena única concreta dentro da moldura abstracta.