Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
199-D/1999.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: FALÊNCIA
INSOLVÊNCIA
RESPONSABILIDADE DO GERENTE
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
APRESENTAÇÃO A FALÊNCIA
ÓNUS DA PROVA
PRESUNÇÃO LEGAL
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/03/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL, ARTIGOS 342º, 344º
CÓDIGO DOS PROCESSOS ESPECIAIS DE RECUPERAÇÃO DA EMPRESA E DE FALÊNCIA, ARTIGOS 6º, 7º,126º-A, 126º-B
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE 25 DE JANEIRO DE 2007, REVISTA Nº 4643/06, SUMÁRIO DISPONÍVEL EM SUMÁRIOS DE ACÓRDÃOS/JURISPRUDÊNCIA EM WWW.DGSI.PT ;
Sumário :

1. A lista de factos constantes do nº 2 do artigo 126º-A do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência não impede que se considere que outros factos, para além dos que integram a previsão do nº 1, contribuíram significativamente para a situação de insolvência e, portanto, podem fundamentar a responsabilização solidária dos dirigentes.
2 Provada a prática, pelo dirigente, de um (ou mais) dos factos integrantes dessa lista do nº 2, presume-se que esse dirigente contribuiu de modo significativo para a situação de insolvência.
3. Tratando-se de uma presunção legal, inverte-se o ónus da prova, cabendo então ao dirigente a prova de que tais actos não contribuíram significativamente para a situação de insolvência.
4. Fora da lista do nº 2, aplicam-se as regras gerais de repartição do ónus da prova, incumbindo ao requerente provar, não só a prática dos actos, mas o nexo de causalidade entre eles e a situação de insolvência (ou seja, a prova de que efectivamente contribuíram para a situação de insolvência).
5. Em qualquer caso, incumbe ao requerente provar que os actos foram praticados pelo dirigente, e nos dois anos anteriores à declaração de falência.
6. Na vigência do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, só pela via do preenchimento da cláusula geral do nº 1 do artigo 126º-A é que se poderia basear a responsabilização do dirigente na omissão do dever de apresentação à falência.
Decisão Texto Integral:
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:



1. Nos termos do artigo 126º-A do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, aprovado pelo Decreto-Lei nº 123/98, de 23 de Abril, AA, Lda, propôs uma acção, a julgar por apenso ao processo de falência correspondente, pedindo que BB e mulher, CC, fossem “declarados responsáveis de forma solidária e ilimitada pelas dívidas da falida”, M......T...... Lda.,“e condenados no pagamento do respectivo passivo”.
Segundo alega, os factos que descreve, que “contribuíram de modo significativo para a situação de insolvência”, enquadram-se nas alíneas a), f) h) e i) do nº 2 do referido artigo 126º-A.
Os requeridos opuseram-se.
Pela sentença de fls. 240 do Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia, o réu marido foi absolvido do pedido. CC foi considerada “responsável pelas dívidas da falida (…) e condenada no pagamento do respectivo passivo, nos termos do disposto nos artºs 126º-A e 126º-B do CPEREF”.
Para o efeito, e em síntese, a sentença considerou não estarem provados factos que permitam haver como verificada alguma das alíneas do nº 2 do artigo 126º-A e, portanto, não poder funcionar nenhuma das “presunções de contribuições significativas para a insolvência” ali contidas; mas teve como assente a “má gestão por parte da requerida” e, por essa via, demonstrado o requisito genericamente descrito no nº 1 desse mesmo artigo da prática, nos dois anos anteriores à sentença que decretou a falência, de actos que contribuíram significativamente para a situação de insolvência.
Todavia, pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto de fls. 319, a sentença foi parcialmente revogada, “no sentido de a acção ser também julgada improcedente quanto à Ré mulher, que é também absolvida do pedido”, já que os factos provados não permitiam “concluir, sem mais, por má gestão da Ré mulher, e muito menos por actuação censurável desta com contribuição significativa para a situação de insolvência em que a sociedade caiu”.
Pelo acórdão de fls. 352 foi indeferida a aclaração requerida pela autora.

2. A autora recorreu para o Supremo Tribunal da Justiça. O recurso, ao qual não são aplicáveis as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, foi admitido como revista, com efeito devolutivo.
Nas alegações que apresentou, a recorrente formulou as seguintes conclusões:

A) Constam da matéria dada como provada factos que se enquadram na presunção legal do n.º 2 do art. 126.º-A do CPEREF;
B) Este normativo não contém uma enumeração exaustiva de todos os actos relativamente aos quais se entende terem contribuído em termos significativos para a insolvência da sociedade ou da pessoa colectiva, sendo admissíveis outros actos de contribuição relevante para a insolvência;
C) Os actos enumerados nas várias alíneas do n.º 2 do art. 126.º-A do CPEREF assim como todos aqueles que se possam admitir como de contribuição relevante para a insolvência, face à sua enumeração não exaustiva, comportam-se como presunções “iuris tantum”, admitindo prova em contrário;
D) Apurada a prática de qualquer destes actos, deve ter-se por preenchida a previsão do n.º 1 do artigo 126.º-A do CPEREF quanto à existência de contribuição significativa para a situação de insolvência, podendo ser afastada mediante prova em contrário;
E) Inverte-se o ónus da prova, devendo ser, neste caso a Ré mulher, a suportar tal ónus;
F) Tendo em conta os factos considerados provados constantes dos pontos 1.º, 3.º da relação de factos declarados provados na sentença da 1.ª instância, cuja mesma ordem segue o acórdão ora recorrido, os constantes dos pontos 6.º e 9.º dessa mesma relação de factos, incluem-se presunções previstas nas alíneas F) e H) do n.º 2 do art. 126.º-A do CPEREF;
G) O facto considerado provado constante do ponto 10 da relação dos factos declarados provados na sentença de 1.ª instância, cuja mesma ordem segue o acórdão ora recorrido, inclui-se na presunção prevista na alínea I) do n.º 2 do art. 126.º-A do CPEREF;
H) A ré mulher não logrou fazer qualquer prova que contrariasse estes factos, o mesmo é dizer que não logrou apresentar prova em contrário destas presunções legais, sendo certo que era seu o ónus da prova;
I) Ao assim não entender o acórdão recorrido violou o disposto no n.º 2 do art. 126.º-A do CPEREF;
J) Tais actos ocorreram nos dois últimos anos anteriores à sentença que decretou a falência;
L) Os factos constantes dos pontos 6.º e 9.º chegaram mesmo a ser contemporâneos da sentença que decretou a falência, mas afere-se facilmente pela data em que o estabelecimento comercial denominado «Hogamalas» foi penhorado: 11-03-1998;
M) O facto constante do ponto 10.º é igualmente contemporâneo da sentença que decretou a falência, aferindo-se pelo documento n.º 9 entregue com requerimento inicial da acção intentada nos termos do disposto no art. 126.º-A e B do CPEREF;
N) Mas essa contemporaneidade afere-se ainda da própria sentença que decretou a falência onde se pode ler, a fls. 119, que “Após várias diligencias, a requerida foi citada, não tendo deduzido oposição nem junto os documentos a que se refere o artigo 16.º do CPEREF..”;
O) Ao que se acrescenta o facto de, por estes motivos, na própria sentença que decretou a falência, a fls. 123, se ter decretado a imediata apreensão dos elementos de contabilidade da falida;
P) Pelo que, de igual modo, o acórdão recorrido violou o disposto no n.º 1 do art. 126.º-A do CPEREF;
Q) Mas esta disposição foi igualmente violada pelo douto acórdão recorrido ao entender “…não ter ficado demonstrado (de forma suficiente) o pressuposto de responsabilidade solidária da R. prevista na citada norma – contribuição, de modo significativo, de actos por ela praticados ao longo dos dois últimos anos anteriores à sentença declaratória da falência»;
R) Tendo em conta os factos considerados provados constantes dos pontos 7.º, 8.º da relação dos factos declarados provados na sentença de 1.ª instância, cuja mesma ordem segue o acórdão ora recorrido, a falida devia ter, ela própria, se apresentado à falência;
S) Essa obrigação cabia a quem se encontrava à frente da gerência que, como se sabe, estando devidamente provado, era a ré mulher;
T) Não o fazendo, como efectivamente não o fez, e actuando da forma descrita nos arts. 2.º a 5.º, inclusive, e 7.º, todos do articulado correspondente ao requerimento inicial da acção de responsabilização solidária dos dirigentes, que aqui se dão por inteiramente reproduzidos para todos os efeitos legais, praticou-se um acto de muita má gestão que contribuiu de modo significativo para a situação de insolvência ao fazer desaparecer parte considerável do património social;
U)Independentemente do momento em que teve início a situação deficitária da sociedade, o certo é que se prolongou no tempo, agravando-se com o decorrer deste, abarcando o período de dois anos antes da sentença que decretou a falência, e tudo por inércia da gerência, o mesmo é dizer da ré mulher, que não teve o melhor acto de gestão que poderia ter tido e que seria a apresentação da sociedade à falência, evitando o delapidar do património societário;
V) Mas, na própria sentença de 1.ª instância que julgou procedente a acção quanto à ré mulher se faz referência a outros actos de gestão, qualificando-os como de má-gestão, ao fazer menção ao depoimento da testemunha Maria Helena no qual esta afirmara que a ré mulher «não admitia que as coisas corriam mal», «excedia-se nas compras», «fez muitas coisas no ar»;
X) Também é indiferente o momento em que estes factos tiveram início na medida em que se mantiveram até ao momento da decretação da falência, sendo cada vez mais gravosos para a situação deficitária da sociedade;
Z) Não teve a ré mulher o discernimento de fazer o único acto de gestão que se impunha: a apresentação à falência da sociedade;
AA)Deve, assim, ser proferido Acórdão que revogue a douta decisão recorrida, julgando-se a acção provada e procedente quanto à ré mulher, condenando-a na responsabilização solidária pelas dívidas da falida.

A ré contra-alegou, concluindo nestes termos:

a) Da matéria dada como provada não se enquadra nenhuma das previsões previstas no art. 126.º-A/2 do CPEREF.
b) Fica como provado que foram razões económicas, alheias à recorrida, que conduziram a sociedade a uma situação de falência.
c) Não se coaduna com as previsões legais previstas no art. 126.º-A/2 do CPEREF, a impossibilidade de recuperação de créditos da falida e o roubo de funcionários.
d) Não resulta provado que a não entrega da contabilidade tenha provocado prejuízos à sociedade falida ou a terceiros.
e) No momento da prática dos factos, vigorava o CPEREF, sob o qual não impende qualquer obrigação sobre a recorrida de apresentar a sociedade à falência, sob pena de violação do art. 126.º-A do CPC.

3. Vêm provados os seguintes factos:

1. A falência da sociedade «M......T...... Lda. foi decretada em 9 de Fevereiro de 2000 – cfr. fls. 118 e seguintes dos autos de falência.
2. Eram sócios-gerentes os ora RR. BB e CC.
3. O objecto social da sociedade era o comércio a retalho de bijutarias, conchas, materiais preciosos e similares.
4. O réu marido renunciou à gerência em 10-02-1995, por motivos que se prendiam com as graves dificuldades financeiras, cfr. fotocópia de documento avulso certificado notarialmente como correspondendo ao original da acta n.º 13 de 10-02-1995, não estando porém a renúncia devidamente registada e averbada na Conservatória de Registo Comercial – doc. de fls. 46 deste apenso e 40 dos autos principais.
5. Era a R. mulher que se encontrava «à frente» do estabelecimento, sendo que o R. marido não exercia lá qualquer actividade, e raramente aparecia naquele, pois possuía um restaurante em Matosinhos e só se deslocava àquele, normalmente, para ir buscar a R. à noite.
6. A R. mulher tinha duas lojas no Centro Comercial Brasília – uma ourivesaria (que foi objecto de acção de despejo) e outra de marroquinaria «Hogamalas» (objecto de execução por parte da A.), mas ambas pertencentes à sociedade M......T...... Lda.
7. Os RR. deixaram de pagar as rendas respeitantes ao contrato de arrendamento do estabelecimento comercial sito na Praça ......................, ........., loja ......-1, no Porto, pelo que, foi instaurada acção de despejo e, por sentença proferida em 15-07-1998, foi declarado resolvido o referido contrato e condenada a falida M......T...... Lda. a despejar o locado, cfr. doc. de Fls. 9 a 18.
8. O estabelecimento comercial da falida, objecto da referida acção de despejo, à data da instauração desta, estava já penhorado pelo ora A., em acção de execução, instaurada por esta, penhora efectuada em 17-10-1997 – cfr. doc. de fls. 19 a 22.
9. Em 11-03-1998, no âmbito de execução instaurada pela ora A., à sociedade falida foi penhorado o estabelecimento comercial denominado Hogamalas, na mesma sede e prosseguindo uma actividade – venda a retalho de artigos de marroquinaria -, não consignada no objecto social da falida, cfr. ponto 3 supra referido.
10. No âmbito desta execução foi solicitado à gerência de M......T...... Lda. os documentos da contabilidade, os quais nunca foram apresentados.
11. Por alturas do ano de 1997, o Shopping Brasília começou a entrar em crise, tendo algumas lojas começado a fechar.
12. Por esta mesma altura a R. mulher começou a ter também problemas financeiros, pois foi alvo de roubos pelas funcionárias, deviam-lhe muito dinheiro e começou a vender a prestações e os cheques que lhe passavam eram devolvidos sem provisão.

4. Como se sabe, as conclusões das alegações da recorrente delimitam o objecto do recurso (nº 3 do artigo 684º do Código de Processo Civil).
A recorrente sustenta que o acórdão recorrido deve ser revogado, sendo a recorrida condenada na “responsabilização solidária pelas dívidas da falida” (conclusão das alegações).
Em seu entender, os factos provados preenchem diversas alíneas do nº 2 do artigo 126º-A do CPEREF, as alíneas f), h) e i); logo, beneficia da presunção legal de que tais actos da recorrida contribuíram “para a situação de insolvência, de modo significativo”, não ilidida (nº 1 do artigo 126º-A). Tendo sido praticados “ao longo dos últimos dois anos anteriores à sentença” que decretou a falência, a acção deveria ter sido julgado procedente.
E à mesma conclusão se chegaria, ainda, pelo incumprimento da obrigação de apresentação à falência, conjugado com a actuação que descreveu no requerimento com que deu início a esta acção e com a má gestão apontada na sentença da 1ª Instância, tendo plena aplicação o nº 1 do mesmo artigo 126º-A.

5. Não há qualquer dúvida de que se aplica o regime constante do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, aprovado pelo Decreto-Lei nº 193/93, de 23 de Abril, entretanto revogado pelo nº 1 do artigo 10º do Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Março, 1 aprovou o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, desde logo porque o processo de falência estava pendente à data da entrada em vigor do novo Código (nº 1 do artigo 12º do Decreto-Lei nº 53/2004).
Os artigos 126º-A, 126º-B e 126º-C foram aditados ao Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência pelo Decreto-Lei nº 315/98, de 20 de Outubro, explicando-se no respectivo preâmbulo que “no plano da responsabilidade civil, instituem-se mecanismos de responsabilização solidária dos dirigentes das empresas que, por sua culposa actuação, tenham contribuído significativamente para a situação de insolvência daquelas, caso em que, com a falência da empresa, se declarará a falência dos responsáveis”, na eventualidade prevista nos artigos 126º-B e 126º-C.
Ora o artigo 126º-A enuncia, no seu nº 1, o fundamento genérico da ”responsabilização solidária dos dirigentes”: a prática, nos dois anos anteriores à declaração de falência, de actos que tenham “contribuído, de modo significativo”, para “a situação de insolvência”.
No nº 2, “enumera uma longa série de actos que são tidos como contribuições significativas da insolvência, quando praticados por dirigentes de sociedades ou pessoas colectivas”, nas palavras de Carvalho Fernandes e João Labareda, Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência Anotado, 3ª ed., Lisboa, 1999, pág.348.
Da consideração conjunta destes nºs 1 e 2 resulta que se deve entender que:
– A lista de factos constantes do nº 2 não esgota os factos susceptíveis de integrar a previsão do nº 1, ou seja, não impede que se considere que outros factos, para além desses, contribuíram significativamente para a situação de insolvência e, portanto, podem fundamentar a responsabilização solidária dos dirigentes (neste sentido, cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 25 de Janeiro de 2007, revista nº 4643/06, sumário disponível em Sumários de Acórdãos/Jurisprudência em www.dgsi.pt e Carvalho Fernandes e João Labareda, op.cit., loc. cit.);
– Provada a prática, pelo dirigente, de um (ou mais) dos factos integrantes dessa lista do nº 2, presume-se que esse dirigente contribuiu de modo significativo para a situação de insolvência. Tratando-se de uma presunção legal, inverte-se o ónus da prova (nº 1 do artigo 350º do Código Civil), cabendo então ao dirigente a prova de que tais actos não contribuíram significativamente para a situação de insolvência (também neste sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda, op.cit., loc. cit.);
– Fora da lista do nº 2, aplicam-se as regras gerais de repartição do ónus da prova, incumbindo ao requerente provar, não só a prática dos actos, mas o nexo de causalidade entre eles e a situação de insolvência (ou seja, a prova de que efectivamente contribuíram para a situação de insolvência).
É claro que, em qualquer caso, incumbe ao requerente provar que os actos foram praticados pelo dirigente, e nos dois anos anteriores à declaração de falência.
É este o regime que respeita a razão de ser da lei: reduzir a incerteza e a insegurança que provocaria a mera definição da cláusula geral da contribuição significativa para a situação de insolvência, por um lado, e, por outro, proteger o credor contra as dificuldades de prova do nexo de causalidade, quando estiveram assentes actuações que normalmente revelam essa contribuição.

6. Como se viu, nas conclusões das alegações a recorrente sustenta que os factos provados preenchem as alíneas f), h) e i) do nº 2 do artigo 126º-A do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência:
– os factos com os nºs 1º, 3º, 6º e 9º, as alíneas f) e h);
– o facto com o nº 10º, a alínea i).
De acordo com as als. f) e h) do nº 2 do artigo 126º-A, presume-se que “contribuíram em termos significativos para a insolvência” os dirigentes da sociedade que tenham “exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa” (al. f)) ou “prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência” (al. h)).
Quanto à al. i), prevê a hipótese de os dirigentes terem “mantido uma contabilidade fictícia, ou feito desaparecer documentos contabilísticos da pessoa colectiva, ou deliberadamente omitido a organização de qualquer contabilidade”.
Ora os factos provados (os que a recorrente especificamente indica e os demais) não suportam tal conclusão.
A prova de que “a falência da sociedade M......T...... Lda. foi decretada em 9 de Fevereiro de 2000” (facto 1º), de que “o objecto social da sociedade era o comércio a retalho de bijutarias, conchas, materiais preciosos e similares” (facto 3º), de que “a R. mulher tinha duas lojas no Centro Comercial Brasília – uma ourivesaria (que foi objecto de acção de despejo) e outra de marroquinaria «Hogamalas» (objecto de execução por parte da A.), mas ambas pertencentes à sociedade M......T...... Lda.” (facto 6º) e de que “em 11-03-1998, no âmbito de execução instaurada pela ora A., à sociedade falida foi penhorado o estabelecimento comercial denominado Hogamalas, na mesma sede e prosseguindo uma actividade – venda a retalho de artigos de marroquinaria –, não consignada no objecto social da falida, cfr. ponto 3 supra referido” (ponto 9º) apenas permite concluir, quanto ao que agora interessa, que, num dos seus estabelecimentos, a sociedade prosseguia uma actividade de venda a retalho de artigos de marroquinaria, a qual não estava prevista no respectivo objecto social.
No entanto, essa prova (ou qualquer outra constante dos autos) não chega, manifestamente, para se ter como provado que tal actividade foi desenvolvida “a coberto da personalidade colectiva” da sociedade e em “proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa” (al. f)); nem tão pouco revela ter sido prosseguida, no interesse pessoal da recorrida ou de terceiro, “uma exploração deficitária”, apesar de a recorrida saber ou dever saber que “esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência” (al. h)).
E não carece de grandes explicações a verificação de que a prova de que foi instaurada pela recorrente, contra a sociedade, a execução referida no ponto 9º da matéria de facto, e que a respectiva gerência (a recorrida, no que agora releva) nunca apresentou “os documentos da contabilidade”, não obstante ter sido a tanto solicitada (ponto 10º), não permite dar por provado que a recorrida manteve uma “contabilidade fictícia”, fez “desaparecer documentos contabilísticos” da sociedade ou “deliberadamente” omitiu “a organização de qualquer contabilidade” (al. i)).
A circunstância de a sentença que decretou a falência ter determinado a apreensão dos elementos de contabilidade da falida em nada altera esta verificação.
Também no já citado acórdão de 25 de Janeiro de 2007 se decidiu que “O facto de apenas se ter provado que não foi encontrada a escrituração mercantil da falida não é suficiente para desencadear o preenchimento da previsão da al. i) do n.º 2 do art. 126.º-A do CPEREF, pois está muito longe de significar que os réus a tenham feito desaparecer ou mesmo omitido, deliberadamente, a organização de qualquer contabilidade” (ponto V do sumário).

7. Mas a recorrente sustenta ainda que a recorrida, encontrando-se “à frente da gerência” da falida, violou a obrigação a que estava adstrita de apresentação à falência; e que assim, considerando os actos que descreveu nos artigos 2º a 5º e 7º do requerimento com que deu início à presente acção, “praticou um acto de muito má gestão” que se enquadra no nº 1 do artigo 126º-A, pois que “contribuiu de modo significativo para a situação de insolvência ao fazer desaparecer parte considerável do património social” (conclusão T) das alegações).
E recorda que a sentença fez “referência a outros actos de gestão, qualificando-os como de má gestão”.
A recorrida afirma que a lei aplicável não lhe impunha o dever de apresentação à falência e que do artigo 126º-A não consta qualquer presunção legal assente na correspondente omissão.
No entanto, dos artigos 6º e 7º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência resultava para os gerentes o dever de apresentação à falência (neste sentido, clarificado pela alteração introduzida no artigo 7º pelo Decreto-Lei nº 315/98, Carvalho Fernandes e João Labareda, op. cit.,. pág.78); mas é exacto que, diferentemente do que hoje se estabelece na al. a) do nº 3 do artigo 186º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a lei (o artigo 126º-A) não retirava da omissão de tal dever qualquer presunção relevante para o efeito da responsabilização dos dirigentes pelas dívidas da sociedade falida.
Assim, só pela via do preenchimento da cláusula geral do nº 1 do artigo 126º-A é que se poderia basear a responsabilização da recorrida na omissão do dever de apresentação à falência, quando o incumprimento de obrigações da sociedade o justificasse já, nos termos do artigo 6º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, eventualmente em conjunto com outros actos; o que exigiria, por entre o mais, a prova do nexo de causalidade (contribuição significativa) entre tal omissão e a situação de insolvência.
Ora, no caso, não há qualquer prova desse nexo causal, sendo certo que era à recorrente que incumbia o respectivo ónus, nos termos gerais (nº 1 do artigo 342º do Código Civil).
E o mesmo se diga, aliás, quanto aos demais factos apontados como demonstrativos da má gestão invocada pela recorrente (e aceite pela sentença da 1ª Instância): independentemente do acerto de tal qualificação, falta no processo a prova de que contribuíram significativamente para a situação de insolvência da falida.

8. Não merece, pois, qualquer censura a conclusão a que chegou o acórdão recorrido: não estão provados factos que permitam ter como verificada nenhuma das alíneas do nº 2 do artigo 126º-A do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência – no mesmo sentido tinha já decidido a 1ª Instância –, nem que possibilitem dar como preenchida a cláusula geral do seu nº 1.

Nestes termos, nega-se provimento ao recurso.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 3 de Fevereiro de 2011

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora)
Lopes do Rego
Orlando Afonso