Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
394/17.9T8VNG.P1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: TIBÉRIO NUNES DA SILVA
Descritores: PODERES DA RELAÇÃO
MATÉRIA DE DIREITO
CONTRADIÇÃO
ACIDENTE DE AVIAÇÃO
VENDA DE VEÍCULO AUTOMÓVEL
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 05/06/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. As contradições da matéria de facto, inviabilizadoras da decisão jurídica do pleito, a que se refere o art. 682º, nº3, do CPC não se confundem com a existência de divergências de avaliação da prova entre a 1ª Instância e a Relação, justificativas da alteração da matéria de facto, no exercício dos poderes que a esta cabem. É preciso que se verifique “contradição ou incongruência no quadro factual subjacente ao litígio”.

II. A reapreciação da matéria de facto pela Relação, como tribunal de instância, tem a mesma amplitude do julgamento da 1ª Instância, não estando aquela impedida de sindicar a decisão desta, ainda que assente em prova produzida oralmente, que tenha ficado gravada, desde que considere que os elementos recolhidos o permitem.

III. O facto de o dono de um veículo sinistrado o ter vendido sem que estivesse reparado e, portanto, por um preço resultante da desvalorização decorrente do acidente, não dispensa a seguradora do causador desse acidente de ressarcir o lesado pelo montante em que importaria a reparação do veículo (e que teria suportado se tivesse assumido a sua responsabilidade), não se demonstrando que essa reparação fosse manifestamente onerosa para a devedora.

IV. Uma condenação feita de acordo com a equidade, ainda que não tenha sido pedida nesses termos, não representa a ofensa ao disposto no art. 609º, nº1, do CPC, quando se condenou em montante pecuniário, tal como se pedira, em montante inferior ao peticionado.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I

AA, com os sinais dos autos, veio propor acção declarativa comum, emergente de acidente de viação, contra LUSITÂNIA, COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., também com os sinais dos autos, pedindo a condenação da R. a pagar:

«a) A quantia de €21.973,56 (vinte e um mil novecentos e setenta e três euros e cinquenta e seis cêntimos), pelos prejuízos sofridos na viatura do A;

b) A quantia de €15.498,00 por indemnização pelo dano da privação do uso do seu veículo.

c) Sem prejuízo dos juros vencidos e vincendos desde a citação para a presente ação, até efetivo e integral pagamento.»

Contestou a Ré, concluindo que:

«a) Carece legitimidade ao Autor, uma vez que alienou o veículo por ato oneroso;

Subsidiariamente,

b) O valor da reparação não terá sido o valor orçamentado;

c) O valor do aluguer da viatura não terá sido pago»

Concluiu pela absolvição da instância e/ou pedido e requereu a condenação do A. como litigante de má fé, numa indemnização à R. pelas despesas com o processo, no valor de €5.000,00.

Respondeu o A., pugnando pela improcedência do pedido de condenação por litigância de má fé.

Foi proferido despacho saneador, no qual se julgou procedente a excepção de ilegitimidade do autor no que se refere ao pedido por ele formulado na alínea a) da petição inicial, sendo a R., em consequência, absolvida da instância nessa parte.

Quanto ao mais, definiu-se o objecto do processo e enunciaram-se os temas de prova.

Tendo sido interposto recurso pelo A., veio a ser revogada a decisão, considerando-se assistir legitimidade ao A., o que levou a que a 1ª Instância, em despacho proferido na acta de 20-02-2019, ampliasse os temas de prova.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento e foi proferida sentença, julgando-se a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenando-se a Ré a pagar ao Autor o montante de € 1.700,00 (mil e setecentos euros), acrescido de juros, vincendos, contados desde a data da citação, até efectivo e integral pagamento, à taxa legal.

Entendeu-se não haver razões para condenar qualquer das partes por litigância de má fé.

Inconformado com esta decisão, dela recorreu o A. para o Tribunal da Relação do Porto, onde veio a ser proferido acórdão que julgou a apelação parcialmente procedente, fixando-se a indemnização a favor do A., da responsabilidade da R., na quantia de €21.224,69, mantendo-se, em tudo o mais, a decisão condenatória, nomeadamente quanto a juros.

Recorreu, desta vez, a R. para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo as suas alegações pela seguinte forma:

«1 - A Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal “a quo”, porquanto na mesma não houve uma apreciação correta dos pressupostos de direito constantes dos presentes autos.

2 - Nos termos do art.º 682 nº3 do C.P.C, a fundamentação do ponto nº7 dado como provado está em contradição com a análise de facto do tribunal da 1º instância quanto ao mesmo ponto, devendo o processo voltar para o tribunal recorrido.

4 - De acordo com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-01-2019 relativo ao processo 3696/16.8T8VIS.C1.S1: III- A Revista, no que tange à decisão da matéria de facto, só pode ter por objeto, em termos genéricos, situações excecionais (…) e ainda, quando o Supremo entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada ou ocorram contradições da matéria de facto que inviabilizem a decisão jurídica do pleito, caso específico do normativo inserto no artigo 682º, nº3 do CP Civil.

5 - Relativamente à fundamentação do tribunal a quo para dar como provado o valor da venda do salvado de €2.000,00, não existe qualquer tipo de prova no processo quanto ao valor de venda do veículo reparado, nem quanto custou a reparação do veículo salvado, sendo que tal matéria, tão pouco, foi alegada pelas partes.

6 - Os valores avançados quanto a esta matéria (€23.000,00 ou €24.000,00 e €15.000,00 são meras suposições do tribunal a quo.

7 - O uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados, nomeadamente por os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, imporem uma conclusão diferente (prevalecendo, em caso contrário, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, da 1º instância)

8 - Entende a Recorrente que não existe qualquer obrigação de indemnização do Recorrido pelo valor dos danos no veículo PA, tendo em conta o princípio estabelecido nos artigos 562º e 566º, n.º 2 do C.C, uma vez que o vendeu, enquanto salvado.

9 - Aquele dano no veículo PA não se vai repercutir na sua esfera jurídica do Recorrido.

10 - Nada ficou provado que permitisse concluir que o A. tivesse interesse direto na reparação do veículo.

11 - Concorda a Recorrente, integralmente, com o que foi escrito na sentença da 1º instância quanto ao facto de competir ao Recorrido provar o valor comercial do veículo seguro à data do acidente, o que não foi feito, no âmbito de uma possível indemnização a título de danos patrimoniais decorrente do acidente, nos termos do art.º 564 do CC.

12 - De acordo com o art.º 609º, n.º 1 do Código de Processo Civil, não pode a sentença condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir.

13 - Caso se admita a condenação na indemnização do valor de €17.864,69, a este valor deve decrescer o montante que o mesmo recebeu do salvado, alegadamente de €2.000,00.

14 - Discorda, igualmente, a Recorrente do teor do acórdão recorrido quanto à privação de uso, o seu modo de determinação e a quantificação da indemnização porque o Recorrido alegou um dano concreto pela privação, despesas feitas pelo lesado em consequência dessa privação, cujo montante não foi provado, pelo que não podia o tribunal a quo recorrer à equidade (EX: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-10-2013 no âmbito do processo

15 - Chama-se à colação o disposto no art.º 609 nº1 do C.P.C, ou seja, “1 - A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir.” tendo em conta o facto do tribunal a quo ter recorrido à equidade na aplicação de indemnização a título de danos de privação.

16 - O valor diário fixado pelo tribunal a quo no âmbito da privação de uso é manifestamente excessivo e desajustado tendo em conta a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (ex: Foi fixado o valor de €30,00 diário no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-07-2017 relativo ao processo 188/14.3T8PBL.C1.S1).

17 - Admitindo-se a aplicação da equidade a título de privação de uso, considera a Recorrente o valor fixado pela 1º instância adequado.»

Contra-alegou o A., pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.


*      

       

Sendo o objecto dos recursos definido pelas conclusões de quem recorre, para além do que for de conhecimento oficioso, assumem-se como questões a apreciar as de saber se há motivo para devolver o processo ao Tribunal da Relação pela existência de contradição na matéria de facto (defendendo a Recorrente que, no conhecimento dessa matéria,  devem prevalecer os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova pela 1ª instância); se sobre a R./Recorrente não impende qualquer obrigação de indemnização, devido ao facto de o A./Recorrido ter vendido, sem reparação, o veículo acidentado (“salvado”) e se o Tribunal a quo não poderia, no caso dos autos, ter recorrido à equidade para atribuir o montante indemnizatório – que, de qualquer modo, entende ser excessivo – por privação uso do veículo, verificando-se, ademais, a violação do disposto no art. 609º, nº1, do CPC.


II

No acórdão impugnado, foram considerados provados os seguintes factos:

1- No dia ..-02-2014, o veículo de matrícula ..-..-PA, na altura conduzido por BB, encontrava-se parado na faixa de rodagem da Avenida .................. em ........., ................, imediatamente atrás do veículo de matrícula ..-HR-...

2 - Nas circunstâncias de tempo e lugar referenciado, o veículo de matrícula –PA-..-.. foi embatido na sua traseira pelo veículo de matrícula ..-..-NL.

3 – Em consequência do aludido embate, o veículo de matrícula ..-..-PA foi projectado para a frente, indo embater na traseira do veículo de matrícula ..-HR-...

4 – Dos aludidos embates resultaram danos na frente e na traseira do veículo de matrícula ..-..-PA.

5 – Os aludidos danos eram impeditivos da circulação de um tal veículo.

6 – O autor vendeu o veículo de matrícula ..-..-PA sem o ter reparado, em data posterior a ..-4-2014.

7 – O referido veículo foi vendido sinistrado pelo A. ao BB, sócio da sociedade onde o mesmo se encontrava depositado, pelo preço de €2.000,00 [redacção introduzida pelo Tribunal da Relação, sucedendo que a 1ª Instância dera por provado que “O referido veículo foi vendido, por preço não concretamente apurado, ao BB, sócio da sociedade onde o mesmo se encontrava depositado”].

8 – A Ré comunicou ao autor, em 30-04-2014, a sua intenção de declinar a sua responsabilidade no que se refere ao acidente em discussão nos presentes autos.

9 – BB é ....... da Afonso Silva & Leite Ribeiro L.da, que detêm a firma Auto Parque.

10 – BB já havia sido interveniente em três outros acidentes com data anterior aquele que se mostra relatado nos autos.

11 – Os danos ostentados pelo veículo de matrícula ..-..-PA orçavam, para reparação, 17.864,69 €, sem IVA, sendo que os danos na parte traseira da viatura foram orçados em 9.407,06 € e os danos na sua parte dianteira foram orçados em 8.456,73 €.

12 – Nas circunstâncias de tempo e lugar referidos no ponto 1 dos factos provados o veículo de matrícula ..-..-PA era propriedade do autor.

13 – Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas no ponto 1 dos factos provados, o veículo de matrícula ..-..-NL era propriedade da empresa Avoutiz – Produtos Alimentares S.A. e era conduzido por CC, ao passo que o veículo de matrícula ..-HR-.. era propriedade da sociedade Carlos Ferreira da Silva & Filhos L.da e era conduzido por DD.

14 – A responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo de matrícula ..-..-NL encontrava-se transferida, à data referenciada no ponto 1 do factos provados, para a ré, através de contrato de seguro titulado pela apólice n.º ....897 – documento de fls. 26, frente e verso, e 27, frente, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

A Relação deu ainda como provado que:

- O autor utilizava o veículo de matrícula ..-..-PA com regularidade, quer em deslocações de trabalho, quer em deslocações de lazer, dispondo o seu cônjuge de um outro veículo que o A. também podia utilizar (constituía a al. c) dos factos não provados da sentença, cuja matéria, com alteração da redacção, passou para os factos provados);

- Com vista à substituição do veículo de matrícula ..-..-PA, o A. alugou à sociedade Afonso Silva & Leite Ribeiro, Lda., onde depositara o veículo para reparação, um automóvel ligeiro, marca ...., modelo ...., pelo tempo compreendido entre ..-02-2014 e ..-04-2014. (constituía a al. d) dos factos não provados da sentença, cuja matéria, com alteração da redacção, passou para os factos provados).

Do contrato de aluguer fez-se constar o preço de €150,00 por dia, acrescido de IVA, tendo sido emitida a factura pelo valor de € 15.498,00 que nem a R. nem o A. pagaram (constituía a al. e) dos factos não provados da sentença, cuja matéria, com alteração da redacção, passou para os factos provados).


*

Foram dados como não provados os seguintes factos:

«a) – O condutor do veículo de matrícula ..-..-NL, nas circunstâncias de tempo e lugar referenciadas no ponto 1 dos factos provados circulava a uma velocidade superior a 50 Km/h.

b) – O condutor do veículo de matrícula ..-..-NL também circulava desatento quanto ao trânsito de veículos que na altura se fazia sentir.»

[…]

«f) – Os veículos com as matrículas ..-HR-.. e ..-..-NL não apresentavam danos compatíveis com os ostentados pelo veículo de matrícula ..-..-PA e que foram pelo autor no âmbito da presente ação apontados como consequência dos embates aos quais se referem os pontos 2 e 3 dos temas de prova.

g) – Os danos ostentados pelo veículo de matrícula ..-..-PA e que foram pelo autor no âmbito da presente ação apontados como consequência dos embates aos quais se referem os pontos 2 e 3 dos factos provados, não são compatíveis com a dinâmica do acidente relatada nos aludidos factos tidos por provados.

h) – O veículo de matrícula ..-..-PA esteve segurado, no período de tempo compreendido entre ..-02-2011 e ..-01-2016 na atualmente denominada Ageas, figurando como tomador do aludido contrato de seguro BB.

i) – O aludido contrato foi anulado com fundamento na falta de pagamento do prémio.»


III

III.1.

Defende a Recorrente que, nos termos do art.º 682, nº3 do C.P.C, a fundamentação do ponto nº 7 dado como provado está em contradição com a análise de facto do tribunal da 1ª instância quanto ao mesmo ponto, devendo o processo voltar para o Tribunal recorrido.

Cita o Ac. do STJ de 08-01-2019, Proc. 3696/16.8T8VIS.C1.S1.

Em tal acórdão, relatado por Ana Paula Boularot, publicado em www.dgsi.pt, concluiu-se, entre o mais, que:

«I . O Supremo Tribunal é um Tribunal de Revista ao qual compete aplicar o regime jurídico que considere adequado aos factos fixados pelas instâncias, nº1 do artigo 674º do NCPCivil, sendo a estas e, designadamente à Relação, que cabe apurar a factualidade relevante para a decisão do litígio, não podendo este Tribunal, em regra, alterar a matéria de facto por elas fixada.

II. O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto do recurso de Revista, a não ser nas duas hipóteses previstas no nº3 do artigo 674º do CPCivil, isto é: quando haja ofensa de uma disposição expressa de Lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou haja violação de norma legal que fixe a força probatória de determinado meio de prova

III. A Revista, no que tange à decisão da matéria de facto, só pode ter por objecto, em termos genéricos, situações excepcionais, ou seja quando o Tribunal recorrido tenha dado como provado determinado facto sem que se tenha realizado a prova que, segundo a Lei, seja indispensável para demonstrar a sua existência; o Tribunal recorrido tenha desrespeitado as normas que regulam a força probatória dos diversos meios de prova admitidos no sistema jurídico; e ainda, quando o Supremo entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada ou ocorram contradições da matéria de facto que inviabilizem a decisão jurídica do pleito, caso específico do normativo inserto no artigo 682º, nº3 do CPCivil.

IV. Se o segundo grau fundamenta a alteração efectuada à materialidade impugnada fazendo apelo aos elementos de prova indicados pelo impugnante, cumpre desta sorte, de pleno, a função de reponderação que sobre si impende de harmonia com o disposto no artigo 662º, nº1 do CPCivil, exercendo as suas plenas competências na reapreciação da materialidade factual posta em causa, através de uma análise crítica dos depoimentos prestados acerca da mesma, conjugados com os elementos documentais.

V. A reapreciação da matéria de facto por parte da Relação tem de ter a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância pois só assim poderá ficar plenamente assegurado o duplo grau de jurisdição, sendo incorrecta a asserção de o Tribunal da Relação apenas poder alterar a decisão da matéria de facto, quando esta enferme de erro, erro grosseiro ou manifesto.»

Dispõe o art. 682º do CPC:

«1 — Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado.

2 — A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674.º.

3 — O processo só volta ao tribunal recorrido quando o Supremo Tribunal de Justiça entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito.»

No art. 674º, nº3, para o qual se remete no nº 2 do artigo citado, prevê-se o seguinte:

«O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.»

Conforme observam Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, no Código de Processo Civil Anotado, vol. 3º, tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pp. 163-164:

«O STJ está vinculado aos factos fixados pelo tribunal recorrido (…), que não pode, em regra, alterar. A alteração pode, porém, ocorrer se o STJ utilizar as faculdades de controlo da observância do direito probatório material, considerando que houve ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova. Será o caso, por exemplo, de o STJ julgar que certo contrato de arrendamento é nulo por falta de forma escrita, contrariamente à Relação, que considerara que a prova desse contrato se podia fazer através de depoimento testemunhal, ou, então, que o valor probatório dos factos constantes de uma escritura pública não pode ser afastado por prova testemunhal, quando a Relação julgara que a escritura não fazia prova plena de tais factos, violando, desse modo, o art. 371 CC».

Amâncio Ferreira, no Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª edição, Almedina, Coimbra, 2008, pp. 247-248,  igualmente se pronuncia sobre as duas excepções, então, previstas no art. 772º, nº3, do CPC-61  e, agora, contempladas no art. 674º, nº3 do CPC (1.a Ofensa duma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto; 2.a Ofensa de preceito expresso de lei que fixe a força de determinado meio de prova), concluindo que, bem vistas as coisas, as situações a elas subjacentes acabam por se reconduzir a erros de direito cometidos pela Relação.

O mesmo refere Abrantes Geraldes, em Recursos em Processo Civil, 6ª edição, Almedina, Coimbra, 2020, p. 463, acrescentando, ainda, que:

«Em concretização de cada uma destas exceções, o Supremo pode cassar uma decisão sustentada em determinado facto cuja prova, dependente de documento escrito, foi declarada a partir de depoimento testemunhal, de documento de valor inferior, de confissão ineficaz ou de presunção judicial. Por seu lado, deverá também introduzir as modificações na decisão da matéria de facto que se revelarem ajustadas quando, por exemplo, tenha sido descurado o valor probatório pleno de determinado documento ou tenham sido desatendidos os efeitos legais de uma declaração confessória ou do acordo das partes».

Noutro ponto (p. 492), assinala Abrantes Geraldes que é residual a incidência do Supremo sobre questões de facto, com destaque para os casos em que o elenco dos factos provados tenha sido influenciado pela violação ou errada aplicação da lei do processo, como acontece «quando a Relação se cinja a meras considerações genéricas em redor dos princípios da imediação ou da liberdade de julgamento, em lugar de proceder à efectiva reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes, maxime quando sejam invocados depoimentos oralmente prestados e que tenham sido registados», função que está vedado ao STJ desempenhar «na medida em que envolve a reapreciação de meios de prova da exclusiva competência das instâncias, de modo que, em tais circunstâncias, o processo deve ser reenviado para a Relação (cassação) para que nesta se proceda a efetiva reapreciação da matéria de facto, designadamente quando envolva a valoração de meios de prova oralmente produzidos e sujeitos à livre apreciação».

E diz ainda (igualmente na p. 492):

«Quando entender que a correta decisão da causa está prejudicada pela omissão de factos tidos por relevantes ou pela constatação de que a decisão da matéria de facto fixada pela Relação está eivada de contradições (art. 682.°, n.° 3), o STJ assume-se verdadeiramente como tribunal de cassação, o que, para além da deteção das referidas irregularidades, implica a definição do direito aplicável ao caso (art. 683.°, n.° 1)».

A Apelante considera, como se viu, que a fundamentação do ponto nº 7 dado como provado está em contradição com a análise de facto do tribunal da 1ª instância quanto ao mesmo ponto.

Refere ainda que, relativamente à fundamentação do tribunal a quo para dar como provado o valor da venda do salvado de €2.000,00, não existe qualquer tipo de prova no processo quanto ao valor de venda do veículo reparado, nem quanto custou a reparação do veículo salvado, sendo que tal matéria não foi alegada pelas partes e os valores avançados – €23.000,00 ou €24.000,00 e €15.000,00 – são meras suposições do Tribunal a quo.

Apreciando:

Salvo o devido respeito, as contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito não são propriamente as que existam entre a fundamentação da 1ª Instância e a da Relação, já que, tendo a Relação poderes para alterar a matéria de facto, nos termos do art. 662º do CPC, procede à fixação da factualidade que considera provada, com fundamentação assente na análise dos elementos de prova disponíveis, divergente, em muitos casos, da da 1ª Instância e, em regra, sem possibilidade de recurso (art. 662º, nº4, do CPC). Não são essas divergências entre as duas instâncias que legitimam a intervenção do STJ (que passaria, se assim fosse, a ser corrente, ao contrário do que a lei estabelece), mas as que emanem da matéria de facto fixada pela Relação, de tal modo que acarretem a inviabilização da decisão jurídica do pleito.

Veja-se, a propósito, o Ac. do STJ de 17-05-2017, Rel. Lopes do Rego, Proc. nº

217480/10.6YIPRT.P2.S1, publicado em www.dgsi.pt[1], no qual se concluiu que:

«Verificando-se contradições entre a matéria factual definida pela Relação na sequência de procedência parcial da apelação em que se impugnavam vários pontos da decisão proferida acerca da matéria de facto, cabe ao STJ decretar a anulação do acórdão recorrido, determinando a remessa dos autos ao Tribunal a quo, a fim de que sejam sanadas as contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a solução jurídica do pleito».

Na fundamentação deste aresto, considera-se, a dado passo, o seguinte:

«Ora, a simples amputação do segmento inicial do ponto 4 da matéria de facto (considerando não provado o fornecimento e montagem pela A. do sistema de climatização mencionado na factura 3../20…) conjugado com a integral manutenção de todos os restantes pontos da matéria de facto, incluindo aqueles em que se faz expressa menção ao fornecimento e instalação de um sistema de climatização para as estufas, realizado por subempreiteiro e que teria inclusivamente sido aceite pela R,. origina uma contradição ou incongruência no quadro factual subjacente ao litígio (resultando, ao menos aparentemente, provado e não provado o facto consistente no acordo de fornecimento do dito sistema de climatização) que naturalmente inviabiliza a adequada solução jurídica do pleito.»

Retira-se daqui que a circunstância de surgir como provado e não provado um determinado facto origina uma «contradição ou incongruência no quadro factual subjacente ao litígio», o que inviabiliza a adequada solução jurídica do pleito. É, pois, uma situação dessa natureza que possibilita ou justifica a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, ordenando a remessa dos autos à Relação para que a contradição factual seja eliminada (como se fez no acórdão citado).

Tendo sido impugnada, no caso em apreço, a decisão da matéria de facto,  o Tribunal da Relação do ......, relativamente ao ponto 7, por cuja alteração se bateu o Autor, teve em conta os meios de prova indicados  por este (depoimentos de BB e de EE e documentos relativos ao aluguer do veículo de substituição – contrato de aluguer e respectiva factura, juntos aos autos) e conjugou todos os demais elementos probatórios com relevo para a decisão, como resulta da seguinte passagem:

«Não obstante estar agora em causa apenas matéria relacionada com os danos materiais sofridos no veículo do A. e o dano da privação do seu uso por parte do mesmo, a leitura da sentença, das alegações e das contra-alegações deixa passar uma ideia sedimentada de que também a decisão desta matéria terá sido influenciada pela suspeita da R. seguradora de que a testemunha BB, o seu irmão EE e o pai, ....... da sociedade Afonso Silva & Leite Ribeiro Lda., empresa de reparações Autoparque, desde há alguns anos a esta parte são agentes na simulação de acidentes de viação e fraude a empresas seguradoras, entre ela a R. e a Ocidental Seguros.

Por tal razão, ouvimos não apenas os depoimentos referenciados aos pontos da matéria de facto impugnada na motivação da sentença e nas alegações, mas toda a prova gravada, designadamente o depoimento do condutor do veículo pesado HR que foi embatido na sua traseira pela frente do .......... PA --- que deixou uma ideia segura, bem justificada, de ter sido embatido quando reiniciava a sua marcha e de que não conhecia nenhum dos outros dois intervenientes nas colisões – e a prestação de FF, a gestora do sinistro (gestora de sinistros na R.) cujo depoimento, de alguma forma apoiado em extensa documentação junta ao processo, foi o mensageiro da desconfiança do referido envolvimento daquelas testemunhas na simulação de acidentes e fraude a seguros que, na sua expressão, passa pela intervenção de outros familiares e levou ao pagamento pela R. de quantias que somam um total de cerca de € 133.000,00 em vários processo de sinistro, porventura originados por fraude. Conduziu mesmo aquele depoimento, juntamente com documentos constantes dos autos ao facto dado como provado sob o ponto 10 que não foi impugnado nesta via de recurso.

Por maiores que sejam as suspeitas, as dúvidas, as desconfianças da R., aqui trazidas pelo depoimento daquela sua funcionária, assentes noutros processos, delas não pode resultar, sem mais, a descredibilização absoluta das provas produzidas nestes autos, que o julgador não pode deixar de considerar em função dos factos a que elas se reportam, ainda que discutindo-as, conjugando-as criticamente entre si avaliando-as livremente (exceto se se tratar de meio de prova vinculada).

GG, ouvido por videoconferência, foi o perito averiguador do sinistro, ao serviço de uma empresa de peritagem contratada pela própria R. Logo após o acidente, observou os três veículos, os danos que cada um deles revelava e falou com os três condutores, tendo concluído não ter dúvida de que tais danos são adequados e compatíveis com a descrição do sinistro efetuada na respetiva participação. Concluiu, findas a averiguações, que a R. deveria assumir a responsabilidade da ocorrência. Ilustrou o seu depoimento com a descrição de danos concretos que observou na frente do ligeiro de mercadorias (veículo-frigorífico seguro na R., o NL), na traseira e na dianteira do ........, e na traseira do veículo pesado, explicando fundamentadamente os motivos pelos quais os danos foram mais acentuados no veículo do A. e a presumível dinâmica das colisões.

O próprio tribunal recorrido se convenceu da ocorrência do acidente e dos danos consequentes objetivamente analisados pelo Sr. perito, tendo-os dado como provados pelo valor descrito no ponto 11, também sem oposição recursiva das partes.

O facto provado em 10 e o depoimento da testemunha FF estão longe de ser suficientes, face ao conjunto da prova produzida, para a formação da convicção de que o sinistro não ocorreu, não ocorreu da forma que ficou provada ou de que foi simulado para enganar a R. ou outra qualquer empresa de seguros com o desembolso de quantias indevidas.

O tribunal e as partes têm também como seguro que o PA foi conduzido para as instalações da oficina Autoparque ou Autocamões após o acidente, onde foi objeto da perícia, e que depois foi depositado nas instalações da primeira, onde permaneceu até ser reparado depois de ter sido vendido pelo A. à testemunha BB, que o reparou e vendeu (cf. ponto 7 e os depoimentos das testemunhas BB, seu irmão EE e seu pai HH).

Não foram detetadas contradições significativas entre os depoimentos destes três familiares, nem se evidenciou a preocupação de qualquer deles fazer coincidir o seu conteúdo; pelo contrário, cada um deles depôs sobre factos que justificou serem do seu conhecimento direto, evitando mesmo falar sobre o que não o fosse, não hesitando em afirmar o desconhecimento de outros, ainda que desfavoráveis à R. ou favoráveis ao A. O conjunto das suas prestações, pela aparente segurança e motivação, foi adverso à existência de qualquer conluio relativamente ao acidente e aos valores relacionados, seja quanto ao preço de € 2.000,00 do salvado, afirmado pelo BB como tendo sido o preço pelo qual o comprou ao A., confirmado pelo seu pai, seja quanto ao preço da sua venda, depois de reparado, de € 23.000,00 ou € 24.000,00 como referiu o BB, confirmado pelo seu pai. Na reparação, levada a cabo, paulatinamente, na oficina, ao longo de dois ou três anos, o BB gastou peças novas e usadas que lhe custaram cerca de € 15.000,00.

O ........ é do ano de 2000 e já tinha tido mais proprietários quando o BB o adquiriu. À data da perícia indicava 149594 Km (cf. relatório de peritagem). Um veículo daquela marca, modelo (........ ....) e idade, teria um valor de mercado de aproximadamente € 23.000,00 ou € 24.000,00.[2] Admitindo que o BB gastou cerca de € 15.000,00 em peças (sobretudo usadas), não teve especiais custos de mão-de-obra, por ter efetuado a reparação na oficina Autoparque (o veículo sofrera danos cuja reparação normal iria custar ao A. ou à seguradora € 17.864,69 + IVA) e vendeu o veículo reparado, por € 23.000,00 ou € 24.000,00, temos como razoável admitir que gastou €2.000,00 na aquisição do salvado e vendeu o veículo reparado pelo preço de mercado, obtendo lucro significativo especialmente em função da gestão da reparação que efetuou, tirando partido do conhecimento do meio ligado à compra e venda de peças usadas.

Se o veículo foi vendido pelo BB pelo referido preço --- sendo esse o preço de mercado --- e sabendo-se que a reparação normal iria atingir cerca de €21.000,00 (com o IVA devido), é razoável aceitar que o salvado valesse € 2.000,00, a quantia que o BB pagou ao A.

Tudo ponderado, o ponto 7 dos factos provados passa a ter o seguinte teor, por provado:

7- O referido veículo foi vendido sinistrado pelo A. ao BB, sócio da sociedade onde o mesmo se encontrava depositado, pelo preço de € 2.000,00.»

O que se retira deste extracto do acórdão é uma análise crítica dos pertinentes elementos probatórios, não se vendo aqui qualquer violação da lei processual no que tange ao conhecimento da matéria de facto, nem a matéria dada como provada, na sequência do alegado na petição inicial (cf. art. 12º), o foi com base em meios de prova que não fossem adequados à natureza da factualidade em jogo.

No que concerne aos restantes valores referidos na fundamentação (€23.000,00 ou €24.000,00 e €15.000,00), que a Recorrente refere serem meras suposições do Tribunal a quo, estamos perante valores reportados a elementos probatórios produzidos e o que se deu como provado foi o valor do “salvado”, que fora objecto de alegação na petição inicial.

Por outro lado, não se verificam contradições na decisão da matéria de facto (independentemente das divergências entre o decidido pela 1ª Instância e a Relação) que inviabilizem a decisão jurídica do pleito.

 

Alega a Recorrente que «o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados, nomeadamente por os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, imporem uma conclusão diferente (prevalecendo, em caso contrário, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, da 1º instância)».

No próprio acórdão citado pela Recorrente (o mencionado Ac. do STJ de 08-01-2019), se deixou expresso que (com destaque nosso):

«A reapreciação da matéria de facto por parte da Relação tem de ter a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância pois só assim poderá ficar plenamente assegurado o duplo grau de jurisdição, sendo incorrecta a asserção de o Tribunal da Relação apenas poder alterar a decisão da matéria de facto, quando esta enferme de erro, erro grosseiro ou manifesto».

Abrantes Geraldes vinca, na mesma linha, in op. cit., pp. 331-332, relativamente ao regime consagrado no actual CPC, que:

«(…) se mantém, agora com mais vigor e clareza, a possibilidade de sindicar a decisão assente em prova que foi oralmente produzida e que tenha ficado gravada, afastando definitivamente o argumento de que a modificação da decisão da matéria de facto deveria ser reservada para os casos de "erro manifesto" ou de que não é permitido à Relação contrariar o juízo formulado pela 1ª instância relativamente a meios de prova que foram objeto de livre apreciação. Sem embargo da ponderação das circunstâncias que rodearam o julgamento na l.ª instância, em comparação com as que se verificam na Relação, esta deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, portanto, deve introduzir na decisão da matéria de facto impugnada as modificações que se justificarem, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal.»

O Tribunal recorrido não encontrou obstáculo à apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto e consequente alteração levada a efeito, tendo agido dentro dos poderes que lhe são concedidos pela Lei (art. 662º do CPC), não estando configurada qualquer das situações que possibilitam a intervenção, nesse domínio, do Supremo Tribunal de Justiça.

III.2.

Defende a Recorrente que não existe qualquer obrigação de indemnização do Recorrido pelo valor dos danos no veículo “PA”, tendo em conta o princípio estabelecido nos artigos 562º e 566º, n.º 2 do C. Civil, uma vez que o vendeu, enquanto salvado.

Acrescenta que aquele dano no veículo “PA” não se vai repercutir na esfera jurídica do Recorrido, nada tendo ficado provado que permitisse concluir que o A. tivesse interesse directo na reparação do veículo.

Diz ainda que:

- Concorda com o que foi escrito na sentença da 1ª instância quanto ao facto de competir ao Recorrido provar o valor comercial do veículo seguro à data do acidente, o que não foi feito, no âmbito de uma possível indemnização a título de danos patrimoniais decorrente do acidente, nos termos do art.º 564º do CC;

- De acordo com o art.º 609º, n.º 1 do Código de Processo Civil, não pode a sentença condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir;

- Caso se admita a condenação na indemnização do valor de €17.864,69, a este valor deve decrescer o montante que o A. recebeu do salvado, alegadamente de €2.000,00.

Vejamos:

O A. alegou, na petição inicial, que a reparação dos danos sofridos no seu veículo envolvia a substituição de peças, arranjos e consertos determinados nos relatórios de peritagem juntos aos autos, importando num custo total de €17.864,69, acrescido de IVA à taxa legal em vigor.

Aduziu, ainda, que, tendo sucedido que R. declinou a sua responsabilidade pelo sinistro, recusando assumir a responsabilidade pelos danos ocorridos na viatura, uma vez que o A. não tinha possibilidades económicas de suportar a reparação do seu veiculo e tendo recebido proposta de aquisição do mesmo pelo preço de €2000,00, por parte do legal representante da empresa onde o veiculo se encontrava depositado, viu-se obrigado a vendê-lo no estado em que se encontrava, por aquele valor, para obstar à sua continuada deterioração.

Provou-se que:

«3 – Em consequência do aludido embate, o veículo de matrícula ..-..-PA foi projectado para a frente, indo embater na traseira do veículo de matrícula ..-HR-...

4 – Dos aludidos embates resultaram danos na frente e na traseira do veículo de matrícula ..-..-PA.

5 – Os aludidos danos eram impeditivos da circulação de um tal veículo.

6 – O autor vendeu o veículo de matrícula ..-..-PA sem o ter reparado, em data posterior a 30-4-2014.

7 – O referido veículo foi vendido sinistrado pelo A. ao BB, sócio da sociedade onde o mesmo se encontrava depositado, pelo preço de €2.000,00 [redacção introduzida pelo Tribunal da Relação, sucedendo que a 1ª Instância dera por provado que “O referido veículo foi vendido, por preço não concretamente apurado, ao BB, sócio da sociedade onde o mesmo se encontrava depositado”].

8 – A Ré comunicou ao autor, em ..-04-2014, a sua intenção de declinar a sua responsabilidade no que se refere ao acidente em discussão nos presentes autos.

[…]

11 – Os danos ostentados pelo veículo de matrícula ..-..-PA orçavam, para reparação, 17.864,69 €, sem IVA, sendo que os danos na parte traseira da viatura foram orçados em 9.407,06 € e os danos na sua parte dianteira foram orçados em 8.456,73 €.»

O A. pediu a condenação da R. a pagar-lhe a quantia de €21.973,56, pelos prejuízos sofridos na viatura (pedido vertido na al. a) da conclusão da petição).

Na 1ª Instância, embora se tenha reconhecido que os danos sofridos pela viatura ”PA” estão ligados causalmente ao acidente dos autos, considerou-se que o A.  não terá direito à indemnização por ele peticionada na al. a), na medida em que a vendeu antes de a ter reparado, ou seja, como o próprio alega, vendeu-o «enquanto salvado e nada foi por ele alegado que permita, ou permitisse, ao Tribunal concluir que o custo da aludida reparação iria ser repercutido, ou feito repercutir, na sua esfera patrimonial». E acrescenta-se:

«Do mesmo modo, e embora sendo um facto que o autor procedeu à venda do veículo de matrícula ..-..-PA enquanto salvado, ou seja, sem reparar, e portanto por montante inferior aquele que seria o seu valor real de mercado à data, considera o Tribunal estar impedido no caso de lhe atribuir qualquer indemnização a um tal título.

Com efeito, e desde logo, por um tal autor não foi feita prova nem do montante pelo qual procedeu à venda de um tal veículo, nem do valor comercial do mesmo à data do acidente que se discute na presente ação, sendo que o seu prejuízo no caso se consubstanciará precisamente na diferença entre esses dois valores, à luz do que se mostra estabelecido no n.º 2 do artigo 566º citado, importando também aqui atentar que uma tal alegação e prova era seu ónus, tal como se mostra estabelecido no artigo 342º, n.º 1.

Do mesmo modo, mas por outro lado, tem o Tribunal sérias dúvidas que, na situação presente, possa atribuir ao autor qualquer indemnização a este título, ou seja, baseado na mera constatação de que o mesmo sofreu danos e que estes se consubstanciam, no caso, na diferença estabelecida entre o valor pelo qual o mesmo procedeu à venda do veículo de matrícula ..-..-PA ao BB e o valor de mercado de um tal veículo à data do acidente ocorrido, por considerar que ao fazê-lo estaria a infringir o disposto no artigo 609º, n.º 1 do Código de Processo Civil, de acordo com o qual a sentença não poderá exceder os limites quantitativos e qualitativos do pedido.»

Entendeu-se, ainda, que o A. «não terá no caso direito à indemnização pretendida, ou seja, ao valor necessário à reparação do veículo de matrícula ..-..-PA, sendo que a atribuir-se-lhe qualquer outra indemnização, a título dos danos por ele sofridos e causalmente ligados a um tal veículo - a qual forçosamente teria que ser relegada para ulterior liquidação - , estar-se-ia a condenar ultra petitum

Concluiu-se, assim, pela improcedência do pedido vertido na al. a).

O Tribunal da Relação divergiu deste entendimento.

 Começou-se por aludir ao que ficou provado no ponto 11, considerando ser esse o valor que o A. pretende receber com o pedido de condenação formulado na dita al. a).

Em seguida, ponderou-se o seguinte:

«Não está em causa a culpa do condutor do NL no acidente, nem a responsabilidade civil da R., por força do contrato de seguro obrigatório pelos efeitos danosos por ele causados na circulação daquele automóvel.

Sendo a R. responsável pelos danos emergentes do acidente de viação, está obrigado a indemnizar o A. pela justa medida do seu prejuízo, devendo reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o acidente, enquanto evento danoso (princípio indemnizatório e da restauração natural), e não proporcionar um enriquecimento injustificado do lesado (art.º 562º do Código Civil).

Nos termos do art.º 564º do Código Civil, o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado (danos emergentes), como também os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (lucros cessantes), mas só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão (nexo de causalidade --- art.º 563º também do Código Civil).

Tendo o A. vendido o salvado, e tendo sido esse mesmo veículo objeto de reparação pelo seu comprador, a reconstituição natural, pela R., não é possível. Mas subsiste um prejuízo para o A. Por se encontrar sinistrado, não logrou vender o PA por mais de € 2.000,00. A reparação que a R. seguradora teria de realizar para colocar o veículo no estado em que se encontraria se não fosse o acidente, teria um custo de €17.864,69, a que acresceria o respetivo IVA. Como nem a R. (que recusou a responsabilidade) nem o A. repararam o veículo, nem este recebeu o valor necessário a repor o seu estado devido, só logrou vender o salvado, por € 2.000,00.

Independentemente da justeza do preço do salvado, e porque não se alegou nem provou que a reparação seria excessivamente onerosa para a seguradora[3] (art.º 566º, nº 1, do Código Civil), sempre assistiria ao A. o direito à reparação ou ao pagamento do respetivo custo por ser esse o valor do dano causado e a despesa necessária à colocação do veículo no estado em que se encontraria se não fosse o acidente, não relevando para o caso as vicissitudes por que o ........ passou após a venda do salvado, designadamente o valor da reparação suportado pelo comprador.»

Refere-se, depois, que a defender-se o que se defende na sentença, teria o A. um empobrecimento definitivo em razão de um dano sofrido em consequência de um ato ilícito e culposo de outrem, que a R. está obrigada a reparar e jamais repararia, não podendo a avaliação desse dano estar dependente dos valores de um bom ou mau negócio celebrado posteriormente com um terceiro nem do modo como este o conserta nem do destino que este dá veículo. Por outro lado, ficaria a seguradora enriquecida pelo não pagamento de um prejuízo que está obrigada a indemnizar.

Observa-se, finalmente, que não é por deixar de ser possível a reconstituição natural que o lesado deixa de ter direito à indemnização correspondente à eliminação do seu prejuízo e não é por o A. receber o valor estimado como necessário à reposição do seu veículo, no estado em que se encontraria se não fossem os danos, que obtém qualquer enriquecimento e o montante que obteve com a venda do “salvado” é estranho à obrigação de indemnizar que impende sobre a Seguradora.

Conclui-se, por isso, que a   R. deve ser condenada a indemnizar o A. pelo valor do prejuízo causado no seu veículo, ou seja, a quantia de €17.864,69, o valor correspondente ao custo da sua reparação, sem IVA, por não lhe estar associada qualquer transacção ou efectiva prestação de serviços de reparação.

Concorda-se com a decisão recorrida.

Não há dúvida de que os danos causados ao veículo do A. o foram em consequência do acidente, que ocorreu por culpa do segurado da Ré, razão por que deve esta responder por eles.

Dispõe o art. 566º, nº 1, do C. Civil:

«A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.»

Conforme referem Pires de Lima e Antunes Varela, no Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição, com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Wolters Kluwer e Coimbra Editora, Coimbra, 2010, p. 582:

«O fim precípuo da lei nesta matéria é o de prover à directa remoção do dano real à custa do responsável, visto ser esse o meio mais eficaz de garantir o interesse capital da integridade das pessoas, dos bens ou dos direitos sobre estes.

Se o dano (real) consistiu na destruição ou no desaparecimento de certa coisa (veículo, quadro, jóia, etc.) ou em estragos nela produzidos, há que proceder à aquisição de uma coisa da mesma natureza e à sua entrega ao lesado, ou ao conserto, reparação ou substituição da coisa por conta do agente.»

(…)

Nem sempre, porém, o recurso à reconstituição natural permite resol­ver satisfatoriamente a questão da reparação do dano.

Há casos em que a reconstituição natural não é possível, a par de outros em que ela não é meio bastante para alcançar o fim da reparação ou não é meio idóneo para tal.

A impossibilidade da reconstituição pode ser material (morte da pessoa atropelada  consumo, destruição ou perecimento de coisa não fungível;
ou
jurídica (alienação sucessiva do mesmo imóvel a duas pessoas, a última das quais registou a aquisição a seu favor).»

Dizem, ainda, estes Autores, na mesma página, que:

«A reconstituição natural deve, por último, considerar-se meio impró­prio ou inadequado, quando for excessivamente onerosa para o devedor, isto é, quando houver manifesta desproporção entre o interesse do lesado, que importa recompor, e o custo que a reparação natural envolve para o responsável.»

Como se ponderou no acórdão recorrido, tendo o Autor sofrido prejuízos com o acidente em causa, que importariam, no que concerne à reparação do veículo, em €17.864,69, tendo a R. declinado (infundadamente, pelo que resulta dos factos provados) a responsabilidade pelo acidente, não foi o veículo reparado a suas expensas, como se impunha, tendo em conta a culpa do segurado, não estando, ademais, demonstrado que a reparação fosse, para a Seguradora devedora, manifestamente excessiva. Não foi também a reparação feita pelo A., o que, no que lhe toca, não seria exigível, face, desde logo, ao montante em apreço.

Visto ter o A. vendido o veículo por €2.000,00, sem que estivesse reparado, ou seja, muito desvalorizado pelos danos causados pelo acidente, a reparação natural – enquanto reposição do veículo no estado em que se encontrava, para continuação, pelo Autor, do uso que dela vinha fazendo – deixou de ser possível. Assim, impor-se-á a reparação em dinheiro, correspondendo aos danos sofridos pelo A., ou seja, ao montante equivalente ao da reparação do veículo. Esse seria o valor suportado pela R. se tivesse assumido a responsabilidade pelas consequências do acidente. Não o tendo feito, não poderá, agora, salvo o devido respeito, ser dispensada de ressarcir o A., nessa medida, o que equivaleria, como se concluiu no acórdão recorrido, a um enriquecimento da sua parte, pelo não pagamento de um prejuízo que estava (e está) obrigada a reparar, e a um empobrecimento do Autor, a quem não poder ser negado o direito de ser indemnizado apenas porque, nas descritas circunstâncias, vendeu o veículo, estando este fortemente desvalorizado pelos danos decorrentes do acidente.

No que concerne ao abatimento dos €2.000,00 obtidos pelo A. na venda do veículo, como pretende a R./Recorrente, não se vê fundamento para tanto, já que aquele valor é independente do da aludida reparação (€17.864,69), tratando-se de uma reparação que teria de ser suportada pela Recorrente e não de uma indemnização pelo valor total do veículo, não se podendo concluir que o A./Recorrido receba, com este ressarcimento, algum quantitativo em duplicado.

No que tange à alegada condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir (art. 609º, nº1, do CPC), entende-se que não se preenche esse vício, já que o A. pediu a condenação da R. no pagamento da quantia de €21.973,56 pelos prejuízos sofridos na viatura e o acórdão recorrido lhe concedeu, a esse título, o montante de €17.864,69.

Improcede a revista também quanto a este ponto.

III.3.

Diz a Recorrente discordar do acórdão quanto à privação de uso, o seu modo de determinação e a quantificação da indemnização.

Considera que o Recorrido alegou um dano concreto pela privação, despesas feitas pelo lesado em consequência dessa privação, cujo montante não foi provado, pelo que não podia o Tribunal a quo recorrer à equidade.

Cita os Acs. do STJ de 03-10-2013, Proc. 1261/07.0TBOLHE.E1.S1, e de 12-01-2012, Proc. 1875/06.5TBVNO.C1.S1.

Entende, também aqui, que foi violado o disposto no art.º 609 nº1 do C.P.C, tendo em conta o facto de o Tribunal a quo ter recorrido à equidade na aplicação de indemnização a título de danos de privação.

Refere, ainda, que o valor diário fixado pela Relação, no âmbito da privação de uso, é, para o caso de admitir a aplicação da equidade neste domínio, manifestamente excessivo e desajustado, face à jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça. Dá como exemplo o Ac. do STJ de 13-07-2017, Proc.  188/14.3T8PBL.C1.S1, em que foi fixado o valor diário de €30,00.

Vejamos:

O A. alegou que alugou uma viatura de substituição entre o período de 05-02-2014 a 30-04-2014, data em que recebeu a comunicação da Ré a declinar a responsabilidade do sinistro, pedindo, por isso, o montante de €15.498.00 (correspondendo a €150,00+IVA/ dia).

Na 1ª Instância, considerando-se que o A. tinha direito a uma indemnização pela privação do uso do veículo, entendeu-se atribuir-lhe, lançando mão da equidade, o montante de €1.700,00.

O Tribunal da Relação deu como provado que:

- O autor utilizava o veículo de matrícula ..-..-PA com regularidade, quer em deslocações de trabalho, quer em deslocações de lazer, dispondo o seu cônjuge de um outro veículo que o A. também podia utilizar;

- Com vista à substituição do veículo de matrícula ..-..-PA, o A. alugou à sociedade Afonso Silva & Leite Ribeiro, Lda., onde depositara o veículo para reparação, um automóvel ligeiro, marca ..., modelo ..., pelo tempo compreendido entre ..-02-2014 e ..-04-2014;

-  Do contrato de aluguer fez-se constar o preço de €150,00 por dia, acrescido de IVA, tendo sido emitida a factura pelo valor de € 15.498,00 que nem a R. nem o A. pagaram.

Considerou-se, entre o mais, no acórdão recorrido, que:

«A simples faturação de um preço pelo valor de um aluguer contratado pelo lesado, maxime quando se tem a expetativa de vir a obter o seu reembolso de um terceiro segurador, não significa necessariamente a prática de um preço de mercado ou de um preço justo e equitativo para reparação. A privação do uso do veículo não correspondente a um prejuízo automático aferível por um qualquer valor de aluguer; antes deve ser aferido em cada caso concreto, segundo as respetivas condições e circunstâncias, atendendo sobretudo às necessidades do lesado que foram coartadas pela privação transitória da sua mobilidade automóvel.

É certo que se tratou de um veículo de marca ........, de tipo desportivo; mas não é menos exato afirmar que contava já sucessivos proprietários, cerca de 150.000 kms de circulação e 14 anos de idade, com um valor de mercado seguramente inferior a €30.000,00, provavelmente não superior a € 25.000,00.

A equivalência desejável de veículos na reparação do dano da privação do uso não se realiza necessariamente pela substituição do veículo acidentado por outro da mesma marca e modelo ou por outro de marca e modelo semelhantes, em termos de preço de mercado de veículos novos, até porque normalmente os veículos de aluguer são novos ou têm pouco uso e os veículos sinistrados são várias vezes velhos e muito usados.

Atualmente, um veículo, ainda que de gama inferior, mas com aquele valor de mercado ou até com valor superior, novo, propicia condições de conforto, comodidade, equipamentos e segurança, mesmo superiores às do velho ........ do A., e teria um custo de aluguer diário de cerca de €40,00.[4] Seria adequado a satisfazer com adequada qualidade e conforto a transitoriedade das necessidades conhecidas.

Seguindo o referido critério de equivalência, como contributo para a integração da regra de equidade na determinação do valor do dano de privação do uso sofrido pelo A. e admitindo que, ao tempo do aluguer (há cerca de 6 anos), o valor diário do aluguer de veículos automóveis não seria muito diferente --- a longa duração do aluguer traria até uma provável redução do preço diário no interesse de ambas as partes --- e sempre se trataria de um veículo novo ou quase novo, para uma situação transitória que durou cerca de 84 dias, temos como justo aquele preço de €40,00 por dia na determinação da indemnização que assim se fixa em € 3.360,00

O Recorrido defende que há dupla conforme parcial, já que a 1ª Instância condenou a Ré na indemnização pela privação do uso do veículo com recurso aos juízos de equidade e por ser unânime na jurisprudência que este é um dano indemnizável de forma autónoma, condenação que se manteve na 2ª instância, apenas com a indicação de ter dado como provada a utilização da viatura por parte do A., o que em nada buliu com o dever de indemnizar pela privação do uso.

Salvo o devido respeito, para que haja dupla conforme, ainda que parcial (reportada a um segmento decisório distinto e autónomo) tem de se verificar a confirmação, pela Relação, da decisão da 1ª Instância, não se formando dupla conforme apenas sobre aspectos da fundamentação. Importa tomar em consideração a parte conclusiva ou dispositiva da decisão (Ac. do STJ 01-10-2019 – Proc. n.º 620/14.6T8LSB-B.L1-A.S1, Rel. José Raínho, publicado em www.dgsi.pt). Ora, a Ré/Recorrente viu agravada, pelo acórdão recorrido, a condenação da 1ª Instância, razão por que, quanto a ela, não há dupla conforme.

Como se exarou no Ac. do STJ de 25-09-2018, Rel. Roque Nogueira, Proc. 3036/04.9TBVLG.P1.S, publicado em www.dgsi.pt:

«A jurisprudência do STJ, depois de algumas divergências, passou a reconhecer, sem qualquer espécie de hesitação, o direito de indemnização relativamente a situações de privação do uso do veículo em que este é usado habitualmente para deslocações, sem necessidade de o lesado alegar e provar que a falta do mesmo foi causa de despesas acrescidas.»

No Ac. do STJ de 08-05-2013, Rel. Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, Proc. 3036/04.9TBVLG.P1.S1, publicado em www.dgsi.pt, concluiu-se que:

«2. A privação do uso de um veículo é, em si mesma, um dano indemnizável, desde logo por impedir o proprietário (ou, eventualmente, o titular de outro direito, diferente do direito de propriedade, mas que confira o direito a utilizá-lo) de exercer os poderes correspondentes ao seu direito.

3. O cálculo da correspondente indemnização há-de ser efectuado com base na equidade, por não ser possível avaliar “o valor exacto dos danos” (nº 3 do artigo 566º do Código Civil).

4. A equidade tem de partir da consideração dos factos que ficaram provados e, sendo indissociável da consideração específica da concreta situação de facto, o controlo pelo Supremo Tribunal limita-se à “verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o (…) juízo equitativo formulado pelas instâncias face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto ‘sub iudicio’” (acórdão de 28 de Outubro de 2010 (www.dgsi.pt, proc. nº 272/06.7TBMTR.P1.S1, em parte por remissão para o acórdão de 5 de Novembro de 2009).»

O A., com decorre da matéria de facto provada, viu-se, em consequência do acidente, privado do uso do seu veículo, que utilizava, com regularidade, quer em deslocações de trabalho quer em deslocações de lazer, tendo tido a necessidade de alugar um automóvel ligeiro, pelo tempo compreendido entre 05-02-2014 e 30-04-2014, sendo-lhe emitida, por esse aluguer, uma factura no valor de € 15.498,00.

O Tribunal da Relação considerou – e entendemos que ajustadamente – que a simples facturação de um preço pelo valor de um aluguer contratado pelo lesado, maxime quando se tem a expectativa de vir a obter o seu reembolso de um terceiro segurador, não significa necessariamente a prática de um preço de mercado ou de um preço justo e equitativo para reparação, importando ter em atenção  as circunstâncias do caso concreto, atendendo sobretudo às necessidades do lesado que foram coarctadas pela privação transitória da sua mobilidade automóvel.

Decidir segundo a equidade, à luz do disposto no art. 566º, nº3, do C. Civil, não representa ofensa ao disposto no art. 609º, nº1, do CPC, sendo nítido que, in casu, não se condenou em quantidade superior à pedida, nem em objecto diverso, ou seja, não se modificou a qualidade do pedido (v. José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, 3ª edição (reimpressão), Coimbra Editora, 2012, p. 68), pois condenou-se numa quantia pecuniária, tal como se havia pedido, embora se tivesse reclamado um montante superior.

Igualmente a condenação no que viesse a ser liquidado (prevista no nº 2 do art. 609º do CPC), não representaria a violação do disposto no nº 1 do mesmo artigo.

O que pode é haver dúvidas na opção entre o recurso à equidade e a liquidação subsequente.

Conforme se considerou no Ac. do STJ de 28-10-2010, Rel. Lopes do Rego, Proc. nº 272/06.7TBMTR.P1.S1, publicado em www.dgsi,pt:

«3. O apelo a juízos equitativos para obter uma exacta e precisa quantificação de danos patrimoniais resultantes da inutilização ou privação de um bem material – consentido pelo art. 566º, nº3, do CC – desempenha uma função meramente complementar e acessória, representando um instrumento para suprir possíveis insuficiências probatórias relativamente a um dano, inquestionavelmente sofrido pelo lesado, mas relativamente indeterminado quanto ao seu exacto montante - pressupondo que o «núcleo essencial» do dano está suficientemente concretizado e processualmente demonstrado e quantificado (…)»

Neste caso, entende-se que o núcleo essencial do dano está demonstrado e o Tribunal a quo teve em consideração a marca e modelo do veículo em causa e o valor do aluguer de um veículo «adequado a satisfazer com adequada qualidade e conforto a transitoriedade das necessidades conhecidas», concluindo pelo valor diário de €40,00 (um valor bem abaixo do pretendido pelo Autor).

Alega o Recorrente que se trata de um valor excessivo, face à jurisprudência do Supremo, dando como exemplo o fixado – €30.00 diários – no Ac. do STJ de 13-07-2017, Rel. Maria da Graça Trigo, Proc. nº 188/14.3T8PBL.C1.S1, publicado em www.dgsi.pt.

Importando atender às especificidades de cada concreta situação, crê-se que o Ac. do STJ de 13-07-2017 poderá até servir para demonstrar que o valor atribuído no presente processo não é excessivo. Na verdade, nesse douto aresto, estava em causa um veículo Citroën”, modelo “C8 2.0 HDI Diesel, que o autor utilizava para se deslocar no âmbito da sua vida pessoal e profissional e para transportar os seus filhos e outros familiares, não tendo procedido ao aluguer de veículo sem condutor para suprir a falta do veículo acidentado nem tendo adquirido outro em sua substituição, por não dispor de capacidade financeira para tanto, e verificando-se que o começo da privação do uso se reportou ao início do ano de 2013.

No presente caso, tratando-se o veículo de um ........ ........ ..., embora com 14 anos, que o A. utilizava nas suas deslocações de trabalho e de lazer, sucedendo que alugou, em substituição, um veículo (de marca ..., modelo ...), pelo tempo compreendido entre ..-02-2014 e ..-04-2014, ou seja, referindo-se a privação de uso ao ano de 2014, não se vê que o juízo feito pelo Tribunal a quo mereça censura também no que respeita a este aspecto.

Improcede a revista.


IV

Pelo que se deixou exposto, na improcedência do recurso, mantém-se o decidido pelo Tribunal da Relação.

- Custas pela Recorrente.


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Sumário (da responsabilidade do relator):

1. As contradições da matéria de facto, inviabilizadoras da decisão jurídica do pleito, a que se refere o art. 682º, nº3, do CPC não se confundem com a existência de divergências de avaliação da prova entre a 1ª Instância e a Relação, justificativas da alteração da matéria de facto, no exercício dos poderes que a esta cabem. É preciso que se verifique “contradição ou incongruência no quadro factual subjacente ao litígio”.

2.  A reapreciação da matéria de facto pela Relação, como tribunal de instância, tem a mesma amplitude do julgamento da 1ª Instância, não estando aquela impedida de sindicar a decisão desta, ainda que assente em prova produzida oralmente, que tenha ficado gravada, desde que considere que os elementos recolhidos o permitem.

3. O facto de o dono de um veículo sinistrado o ter vendido sem que estivesse reparado e, portanto, por um preço resultante da desvalorização decorrente do acidente, não dispensa a seguradora do causador desse acidente de ressarcir o lesado pelo montante em que importaria a reparação do veículo (e que teria suportado se tivesse assumido a sua responsabilidade), não se demonstrando que essa reparação fosse manifestamente onerosa para a devedora.

4. Uma condenação feita de acordo com a equidade, ainda que não tenha sido pedida nesses termos, não representa a ofensa ao disposto no art. 609º, nº1, do CPC, quando se condenou em montante pecuniário, tal como se pedira, em montante inferior ao peticionado.


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Lisboa, 6 de Maio de 2021

Tibério Nunes da Silva (relator)

Maria dos Prazeres Beleza

Olindo dos Santos Geraldes


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Nos termos do art. 15º-A do DL nº10º-A de 13.03, aditado pelo DL nº 20/20 de 01.05, o relator declara que o presente acórdão tem o voto de conformidade dos restantes Juízes Conselheiros que compõem este colectivo.

Tibério Nunes da Silva 


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[1] http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/b86c211faedc21af8025812500334d16?OpenDocument
[2] No acórdão recorrido, introduziu-se uma nota de rodapé, neste ponto, do seguinte teor: “https://www.ooyyo.com/alemanha/porsche-911-usados-in-vendita/c=CDA31D7114D3856A111BFE6FBAFD355BE8A21D6617F286/ “
[3] “Quando houver manifesta desproporção entre o interesse do lesado, que importa recompor, e o custo que a reparação natural envolve para o responsável” (escreve-se, em nota de rodapé, no acórdão).
[4] Neste ponto do acórdão, inseriu-se a seguinte nota de rodapé:
https://www.rentalcars.com/package/bb97db46dbf7e376f9655d4fe20d7da0ce7732135f55f7252166ad7476b39693/641928783