Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08B1800
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: RODRIGUES DOS SANTOS
Descritores: MÉDICO
ACTO MÉDICO
DANO
RESPONSABILIDADE MÉDICA
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO
CULPA
NEXO DE CAUSALIDADE
OBRIGAÇÃO DE MEIOS E DE RESULTADOS
LEGES ARTIS
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: SJ200910150018002
Data do Acordão: 10/15/2009
Votação: MAIORIA COM 2 VOTOS DE VENCIDO
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA REVISTA
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL: ARTIGOS 799º Nº 1, 487º, 342º,343º,344º E 1154º
Sumário :
I - Em regra, a responsabilidade contratual e a responsabilidade extracontratual preenchem integralmente o campo da responsabilidade civil do médico no exercício da sua profissão, sendo irrelevante que o mesmo tenha a seu cargo uma obrigação de meios ou de resultado.

II - Ao médico, seja qual for a sua obrigação, esteja ou não vinculado por contrato, exige-se que cumpra as Ieges artis com a diligência normal de um médico médio (reasonable doctor).

III - Aplica-se à responsabilidade contratual médica a presunção de culpa contida no art. 799.º, n.º 1, do CC, presunção esta que fica ilidida com a demonstração pelo médico do cumprimento diligente das leges artis.

IV - Recai sobre o paciente o ónus da prova do vínculo contratual, da existência de factos demonstrativos do incumprimento ou cumprimento defeituoso do médico, dos danos (e sua extensão), do nexo causal entre a violação das regras da arte e tais danos e da preterição do dever de informação, por parte do médico, ao paciente com vista à obtenção do seu consentimento esclarecido.

V - Perante a dificuldade natural da prova de um facto por parte do paciente, o mais que pode acontecer é fazer-se uso da máxima iis quae dificcillioris sunt probationis, levioris probationes admittuntur (para maiores dificuldades na prova, menos exigência na sua aceitação).

VI - Contributo relevante para a compreensão e solução desta problemática, é o Estatuto do Paciente, que, no passado recente se consolidou, nas vertentes de dignidade, visibilidade e parceiro total e igual, no binómio paciente - médico, sobretudo após o estabelecimento da doutrina do consentimento informado ou informed consent, donde resultou a vinculação do paciente ao dever de colaboração com o médico e o direito de obter deste o dever de prestar toda a informação sobre a natureza, características, técnicas a usar no exercício do acto médico, alternativas e riscos.

VII - A tese que advoga uma alteração das regras legais gerais do regime da efectivação da responsabilidade civil, designadamente, no segmento da repartição do ónus da prova, em caso de responsabilidade civil médica, para além de carência de apoio legal, de falta de suporte na realidade hodierna do exercício da medicina e no actual estado de elevação do estatuto do paciente tem, pelo menos, duas principais consequências negativas: um forte abalo na confiança e certeza do direito e uma sequente e quase inevitável prática de uma medicina defensiva.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I. AA e BB intentaram contra CC e DD acção declarativa de condenação, com processo comum na forma ordinária, peticionando que os RR. fossem solidariamente condenados a pagar-lhes uma indemnização:
a) A título de danos morais sofridos por EE pelo dano morte de € 240 000 e pelo período que antecedeu a morte de € 60 000;
b) Pelos danos morais sofridos pelos AA. de € 150 000 para cada um; e
c) Pelos danos patrimoniais causados à EE pela perda do direito de adquirir de € 150 000.
Para tanto, alegaram, resumidamente:
- Que a sua filha EE se decidiu submeter a uma lipoaspiração;
- Que, na sequência de fármacos ministrados pelos RR. para actuação da anestesia local, a EE sofreu problemas cardíacos, vindo a falecer, três dias depois, no H. de S. José.
- Que os RR. não dispunham no local dos meios adequados à reanimação;
- Que os RR. Tardaram em chamar o INEM;
- Que o R. CC se arroga a qualidade de cirurgião plástico, não o sendo;
- Que os actos em causa tiveram lugar num consultório e não numa clínica, como indevidamente o local era designado;
- Que a morte sobreveio em consequência destes factores;
- Que a EE sofreu antes de morrer;
- Que os próprios sofreram com a perda da filha.

Os RR contestaram separadamente, impugnando o alegado pelos AA., no tocante à respectiva responsabilidade, considerando, em síntese, poder o R. EE praticar os actos para os quais se sentisse habilitado, estar o local devidamente equipado para a intervenção em causa, terem sido observados todos os deveres de cuidado e ter a EE falecido em consequência de um choque anafilático.
Requereram ambos a intervenção principal provocada da seguradora "A... P... - C.a de Seguros, S.A.", com fundamento na circunstância de terem transferido para a esta a responsabilidade emergente da prática de actos da sua profissão, o que foi admitido, tendo a interveniente impugnado o aduzido pelos AA. no tocante à responsabilidade dos RR ..
O processo foi saneado, fixaram-se os factos assentes por acordo das partes e por documentos dotados de força probatória plena e organizou-se a base instrutória, após o que se seguiu a instrução dos autos.
Foi interposto recurso do despacho que indeferiu o depoimento de parte do R. DD à matéria indicada pelo co-réu CC, que foi admitido como de agravo, a subir com o primeiro que depois dele houvesse de subir imediatamente, com efeito devolutivo.

Discutida a causa em audiência de julgamento (com gravação da prova testemunhal produzida) e decidida a matéria de facto controvertida, veio a ser proferida (em 5/6/2006) sentença final que Julgando a acção totalmente improcedente, por não provada, absolveu os RR. e a interveniente do pedido

Inconformados, os Autores interpuseram recurso de apelação da referida sentença, tendo a Relação assim decidido:

Acordam os juízes desta Relação em conceder parcial provimento ao presente recurso de Apelação, revogando a sentença recorrida e condenando os Réus/Apelados CC e DD a pagarem, solidariamente entre si, aos Autores as seguintes quantias:
a) a ambos os Autores/Apelantes, em conjunto, a quantia de € 49.879,79 (quarenta e nove mil, oitocentos e setenta e nove euros e setenta e nove cêntimos), a título de indemnização pela supressão do direito à vida da filha de ambos;
b) a cada um dos Autores a importância de € 49.879,79 (quarenta e nove mil, oitocentos e setenta e nove euros e setenta e nove cêntimos), a título de indemnização pelos danos de natureza não patrimonial sofridos pelos mesmos com a morte da sua filha EE;
c) juros moratórios, à taxa legal, sobre as quantias referidas em a) e b), desde a data da prolação do presente ares to.
Julgam-se, porém, improcedentes os demais pedidos indemnizatórios deduzidos contra os Réus/Apelados pelos Autores/Apelantes, absolvendo-se aqueles dos mesmos pedidos
Inconformados, pediram revista os RR., separadamente e, também os AA e a A.... ficando estes dois últimos pelo caminho, o primeiro , deserto por falta de alegações e o segundo por a recorrente não ser parte vencida na causa.

O R DD alegou e concluiu:
a) Os médicos (ora RR) obrigaram-se a prestar os melhores cuidados ao seu alcance, e não a um determinado resultado, agindo segundo as exigências da "leges artis" e com os conhecimentos científicos existentes, actuando de acordo com um dever objectivo de cuidado.
b) A distinção entre cirurgia estética e reparadora efectuada não pode ser, no entanto relevante, no que aos presentes autos diz respeito, porquanto "A EE bradicardizou na sequência da sedação e do início da administração da anestesia local" e por "o pedido, como é evidente, não visar a indemnização dos A.A. pela não obtenção do resultado cirúrgico pretendido, mas por aquilo que efectivamente ocorreu, e que foi o falecimento da operanda" .
c) Relativamente ao 1 ° R. a responsabilidade cai no domínio da contratual e quanto ao 2° R. no domínio da extracontratual, cabendo no domínio da responsabilidade civil extracontratual ao lesado provar que houve culpa do lesante e que o dano sofrido lhe é imputável (no. 1 do 487° do Código Civil).
d) Os AA não provaram, como lhes competia, a culpa do R. DD, não podendo o ora recorrente ser responsabilizado pela morte da EE ter resultado de um comportamento seu activo ou omissivo, violando o acórdão recorrido o disposto nos artigos 483° nº 1 e artigo 487°, ambos do Código Civil.
e) Pelo contrário, ficou ampla e exaustivamente demonstrado na sentença proferida pela 1ª Instância que a conduta do R. DD, como dos R. CC se pautaram pelo cumprimento de todas e quaisquer regras, agindo segundo as exigências da "leges artis" e com os conhecimentos científicos existentes, actuando de acordo com um dever objectivo de cuidado.
f) O acórdão recorrido conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento, atendendo a que não foram alegadas pelas partes, existindo excesso de pronúncia.
g) O acórdão é nulo, dado que o Tribunal se pronunciou sobre matéria cujo conhecimento lhe estava vedado, violando o disposto no artigo 668° nº1 d) do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 716 do C.PC.) e 664° e 264º do Código de Processo Civil.
h) Correu termos pelo 1°JuÍzo Criminal de Lisboa, P Secção, o processo nº 23219/99.0TDLSB, no qual se visava apurar a eventual responsabilidade criminal do RR relativamente à intervenção efectuada a EE no dia 9 de Dezembro de 1999.
i) Nos autos acima identificados ficou provado que "da matéria de facto provada não resulta que tenha existido qualquer actuação médica concreta integradora do conceito de negligência, em todos os seus critérios de avaliação, de forma a que se possa fazer uma imputação da morte a qualquer médico ou à omissão de qualquer actuação médica violadora da legis artis"
j) Por sentença proferida no dia 11 de Abril de 2007, transitada em 15 julgado no dia 26-04-2007, os RR foram absolvidos da prática de um crime de homicídio por negligência (documento um).
k) Ao abrigo do disposto artigo 706. ° do Código de Processo Civil deve esse documento ser junto aos presentes autos, atendendo a que a sua junção não foi possível até à presente data, atenta a data em que a sentença foi proferida e à data do respectivo trânsito em julgado.
1) Ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 674°-B do Código de Processo Civil, a decisão penal, transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer acções de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário.
m) A presunção anteriormente referida prevalece sobre quaisquer presunções de culpa estabelecidas na lei civil - nº2 do artigo 674°-B do Código de Processo Civil.
n) O critério de valoração e fixação do montante compensatório obedece exclusivamente a juízos de equidade, tendo presente as referências jurisprudenciais - art. 496, n03 do C. Civil, sendo o montante fixado pelo dano morte no Acórdão recorrido exagerado.
o) O montante indemnizatório correspondente aos danos não patrimoniais também deve ser calculado segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do agente, à sua situação económica e à do lesado e às demais circunstâncias do caso, bem como devem ser considerados os padrões de indemnização geralmente adoptados pela jurisprudência.
p) Atendendo aos critérios supram identificados, e aos factos considerados provados, é manifestamente exagerada a condenação pelos danos não patrimoniais sofridos por cada um dos autores, violando os artigos 496°, 494° e 566° do Código Civil.
São termos em que deve conceder-se a presente revista e revogar o Acórdão do Tribunal da Relação, absolvendo os R.R. do pedido, confirmando assim a sentença proferida pela 1 a Instância.

Contra alegaram os AA., contrapondo a todas as questões avançadas pelo recorrente
Por seu turno, o R CC alegou e concluiu:

Atenta a procedência da apelação e entendendo-se no acórdão recorrido que os RR. estão constituídos na obrigação de indemnizar os prejuízos decorrentes do falecimento da paciente, impunha-se que fosse retomada a apreciação da decisão proferida em 1 a Instância nos termos da qual "a responsabilidade da interveniente principal A... P... existirá na medida em que se venha a apurar a responsabilidade de algum ou de ambos os RR.", e que, em conformidade, se condenasse a seguradora no cumprimento daquela obrigação de indemnização.
Não o fazendo, o douto acórdão proferido incorre em nulidade por omissão de pronúncia, uma vez que deixou de conhecer de questões que deveria ter apreciado.
O Recorrente sufraga toda a extensa e maioritária doutrina e jurisprudência, também citada no acórdão recorrido, onde bem se sustenta que a presunção de culpa do devedor consagrada no art. 799°, nº 1, do Código Civil não tem lugar no domínio da responsabilidade civil médica.
IV. Note-se que a matéria que cumpre apreciar nestes autos não se reconduz ao incumprimento das obrigações contratuais de um médico devedor, trata-se aqui de imputar à conduta dos médicos o falecimento da paciente EE e, no entanto, o acórdão recorrido intenta levar a cabo esta tarefa através da aplicação analógica de uma ficção jurídica - a presunção de culpa que onera o devedor de uma obrigação assumida no âmbito da responsabilidade contratual.
V Sobre a putativa aplicação desta presunção de culpa, o acórdão recorrido incorre em duas falhas:
(i) não sustenta se e em que medida e com que fundamentos de facto e de direito propende OU não para a aplicabilidade dessa presunção de culpa no caso concreto, omissão esta que afecta de nulidade o acórdão proferido; e (ii) sustenta que a presunção de culpa não foi i1idida por não ter resultado demonstrado que a paragem cardio-respiratória sofrida pela EE fosse decorrente de choque anafilático, quando bastará à parte onerada demonstrar que o facto não procedeu de culpa sua, não lhe sendo exigível que demonstre a causa que originou o facto.
VI. Numa via jurídica alternativa também apreciada no acórdão recorrido, este baseia-se igualmente no accionamento de uma presunção, desta feita presumindo-se a negligência do médico e competindo-lhe, para a i1idir, demonstrar a inexistência de nexo de causalidade entre a sua conduta e o dano.
VII. Para fazer operar esta inversão do ónus da prova, o acórdão recorrido conhece de factos novos, não alegados nem julgados em 1a Instância, quais sejam que os RR. só realizaram a entubação orotraqueal da paciente muitos minutos depois da paragem cardio-respiratória; e que numa situação de paragem cardíaca deve proceder-se imediatamente à entubação orotraqueal quando alguém habilitado para o fazer estiver presente.
VIII. Ao conhecer de questões de que não podia tomar conhecimento, como é o caso dos citados factos novos, o acórdão recorrido incorre em nulidade e carece de fundamento para concluir pelo cometimento, na situação sub judice, de um "erro grosseiro" por parte dos RR., o que afasta a presunção de negligência destes e a consequente inversão do ónus da prova.
IX. Além de conhecer de questões de que não podia tomar conhecimento, o acórdão recorrido fá-lo em sentido frontalmente contrário aos depoimentos de testemunhas e peritos inquiridos sobre a necessidade de uma entubação orotraqueal imediata no âmbito do processo-crime, conforme resulta da certidão da sentença junta pelo R. EE com as suas alegações de recurso.
Perante os factos novos surgidos no aresto recorrido, caberia ao Recorrente alegar ex novo que a condução do processo de reanimação cárdio-respiratória de uma paciente, bem como a determinação das manobras concretas a seguir, são aspectos da exclusiva especialidade e competência do médico anestesista, o qual dá as instruções relevantes que a restante equipa se limita a executar, razão pela qual não seria imputável ao R. EE o cometimento de um "erro grosseiro" no campo das manobras de reanimação, que de todo o modo não se verificou.
XI. Por fim, ainda que subsistisse qualquer dúvida quanto à aplicabilidade in casu das presunções referidas no acórdão recorrido, sempre as mesmas ficariam definitivamente afastadas por força da eficácia da decisão penal absolutória proferida em 11 de Abril de 2007, transitada em julgado e fundada, além do mais, na inexistência de qualquer actuação médica concreta integradora do conceito de negligência e na inexistência de qualquer acto ou omissão médica violadora da leges artis, da responsabilidade dos arguidos e ao qual possa ser imputado o dano.
XII. A referida sentença penal absolutória faz operar a presunção legal de inexistência dos factos imputados aos RR., a qual prevalece sobre quaisquer presunções de culpa estabelecidas na lei civil.
XIII. Por todo o exposto, conclui-se que o acórdão recorrido incorreu em violação dos art°s 483°, 487° e 799°, nº 1, do Código Civil, bem como dos art°s 668°, 674°_8, 715°, nº 2, e 716° do CPC, os quais deveriam ter sido interpretados e aplicados nos termos sobreditos

Contra alegaram os AA.

II – Cumpre decidir
Factos Considerados Provados nas Instâncias:

Devidamente ordenados, segundo uma sequência lógica e cronológica, os factos que a sentença recorrida elenca como provados são os seguintes:
1) EE nasceu em 24-10-1978 e faleceu em 12-12- 1999.
2) - A EE era filha dos AA..
3) - A EE decidiu submeter-se a uma intervenção de lipoaspiração dos culotes, tendo escolhido para realizar a intervenção o R. CC.
4) - O R. CC é médico.
5) - O R. CC licenciou-se em medicina, pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, no ano de 1986, tendo realizado o internato geral entre 1987 e 1988 no Hospital de Santa Maria, o internato complementar em cirurgia geral no Hospital de São José em 1989 e o internato em cirurgia cardiotorácica no Hospital de Santa Maria nos anos de 1991 e 1992.
6) - Ao longo de três anos, entre 1993 e 1995, o R. CC completou a especialização em cirurgia plástica e reconstrutiva na Universidade Católica do Rio de Janeiro, no Brasil, tendo paralelamente frequentado e intervindo nos cursos e conferências referidos no doc.. de fIs. 52 a 66.
7) - O R. CC diz de si próprio ter feito uma especialização em cirurgia plástica numa universidade brasileira.
8) - O R. CC não é reconhecido pela Ordem dos Médicos como cirurgião plástico ou como tendo outra especialidade médica (doe. de fIs. 67).
9) - O R. CC está autorizado a exercer todos os actos médicos para os quais se sinta devidamente habilitado, incluindo actos próprios da especialidade de cirurgia plástica
10) - A EE recorreu ao R. CC na sequência de indicações de amigas de que se tratava de cirurgião plástico e na sequência de convicção gerada por este de que estava habilitada para o efeito.
11) - O R. CC enviou à Ordem dos Médicos o escrito de que se mostra junta cópia a fIs. 112, datado de 21-1-1998, em que informa ter o seu consultório na Av. ...., n.º ..., ... andar A, em Lisboa, encontrando-se o mesmo preparado e equipado não só para a efectivação de consultas, mas também para a realização de intervenções de pequena cirurgia. Caso V. Exas. entendam eventualmente visitá-lo, encontra-se à vossa disposição.
12) - Em 29 de Dezembro de 1997, o consultório dirigido pelo R. CC, denominado "C.C.P.R. - C... DE C... P... R... DR. J... M..., LDA.", Candidatou-se ao Regime de Incentivos às Microempresas (RIME), aprovado pela Resolução de Ministros n.º 154/96 de 17 de Setembro (doc. de fls. 185 a 197).
13) - E foi aprovado pela Comissão de Coordenação da Região de Lisboa e Vale do Tejo, do Ministério do Equipamento e da Administração do Território em 23.09.1998.
14) - Na sequência de participação, a Ordem dos Médicos realizou vistoria ao consultório do R. CC, não tendo intimado este a proceder a quaisquer alterações.
15) - A Ordem dos Médicos foi de parecer que: "0 equipamento é adequado a Anestesia Geral e Manobras de Reanimação", ou seja, que o equipamento encontrado excede as necessidades das intervenções realizadas no consultório do R. CC, nas quais o paciente é submetido a anestesia local (doc. de fls. 194).
16) - Antes da submissão à cirurgia, por indicação do R. CC, a EE realizou exames médicos que não revelaram qualquer contra-indicação à realização da intervenção.
17) - A EE deu o seu consentimento à operação, cfr. doc. de que se mostra junta cópia a fls. 41, em que assinaladamente se lê
...o médico informou-me que todos os procedimentos técnicos médico-cirúrgicos são com vista a um bom resultado. Fui também informado, apesar disso, de possíveis complicações no pós operatório, nomeadamente hematomas, cicatrizes alargadas, etc .... Foi-me garantido todo o acompanhamento pelo médico de forma a obter os melhores resultados. Também estou ciente de que o Dr. CC estará ocupado com a cirurgia e que a não ser que seja administrada uma anestesia local, a administração e manutenção da anestesia geral são funções da responsabilidade do anestesista e por isso consinto que me sejam administradas tais anestesia ou outras que o anestesista julgue aconselháveis neste caso.
18) - Em 9-12-1999, a EE foi para a sala de operações e sujeita a anestesia local.
19) - A administração da anestesia foi realizada com a intervenção R. DD, médico anestesista.
20) - O R DD é médico com a especialidade de anestesista.
21) - O estado de saúde da EE não fazia prever qualquer contra-indicação à ministração de anestesia e sedação.
22) - A EE não tinha nenhuma malformação cardio-respiratória.
23) - O R CC iniciou a administração da anestesia local.
24) - Logo antes, o R DD, como anestesiologista a quem competia fazer uma sedação consciente, para a intervenção cirúrgica ser mais suportável pela doente, devido à duração e ao incómodo do acto, começou a administrar as drogas para fazer a sedação vigil.
25) - A EE bradicardizou na sequência da sedação e do início da administração da anestesia local.
26) - No período necessário à actuação da anestesia local a EE bradicardizou (retardamento das contracções cardíacas).
27) - A EE sofreu uma paragem cardio-respiratória aquando da administração da anestesia local, com sedação.
28) - Os RR, perante o referido sob o n.º 27), de imediato administraram fármacos à EE, diligenciaram pela sua colocação em decúbito dorsal, já que se encontrava em decúbito ventral (de barriga para baixo), procederam a massagem cardíaca externa (o R CC) e a ventilação manual (o R DD).
29) - Visto que a EE não recuperava, foi feita uma entubação orotraqueal, e dada continuidade à ventilação manual.
30) - Enquanto se solicitava a presença de uma equipa de urgência do Instituto Nacional de Emergência Médica (lNEM).
31) - O chamamento da equipa do I N.E.M. impôs-se dado que a reanimação da EE obrigava à sua transferência para uma Unidade de Cuidados Intensivos.
32) - Aquando da chegada ao local a equipa do INEM tomou a responsabilidade pela reanimação, tendo designadamente ministrado atropia e adrenalina, tendo sido obtida pulsação decorridos 5 minutos e, mediante a ministração de mais fármacos, pulsação e pressão arterial volvidos mais 5 minutos.
33) - Tudo tendo conduzido a que a actividade cardíaca da EE tivesse recomeçado.
34) - Antes da chegada do INEM os RR. actuaram nas técnicas de ressuscitação da EE no intuito de conseguir a sua reanimação, tendo-se mantido disponíveis após a chegada da equipa do INEM.
35) - A equipa do INEM prosseguiu o esforço de reanimação.
36) - A EE foi transportada por equipa do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) para o Hospital de S. José, onde veio a falecer em 12-12-1999.
37) - No prédio onde a EE foi sujeita a anestesia uma maca normal não cabe no elevador e a EE foi transportada para a ambulância do INEM, pelo elevador, numa maca de vácuo ou moldável de que o INEM dispõe para estas circunstâncias.
38) - No local da intervenção existia, nomeadamente, o seguinte material: aparelho de anestesia com debitómetro de oxigénio e respectivos outlets para os sistemas de anestesia; sistema de Magill; máscaras de vários tamanhos; balas de oxigénio; CRITIKOM DINAMAP TR PLUS VITAL SIGNS - monitor com traçado electrocardioscópio + oximetria de pulso - frequência cardíaca + tensão arterial; desfibrilhador (FUKUDA DIUSHI DPS 2aspirador de alta pressão; laringiscópio com várias lâminas; AMBU; tubos endotraqueais de vários tamanhos; fármacos de emergência para uma reanimação cardio-respiratória (além dos fármacos da anestesia): sulfato de atropina, adrenalina, bicarbonato de sódio, cloreto de cálcio, nifedipina, efedrina, lidocaína, trandate, hidrocortisona, cordodopa, amiodarona
39) - Estes equipamentos e fármacos são os necessários à administração de anestesias locais, onde se incluem todos os equipamentos e fármacos necessários à reanimação.
40) - A intervenção e a ministração das doses referidas no n.º 35 da base instrutória e no doe. de fls. 120 podiam ter lugar no local em condições de segurança.
41) - O choque anafilático pode acontecer a qualquer pessoa que seja exposta a injecção de medicamento.
42) - O choque anafilático é absolutamente imprevisível, mesmo quando as doses anestésicas administradas são as correctas.
43) - À data do falecimento faltavam duas cadeiras para que a Rute Francisco concluísse o bacharelato em contabilidade.
44) - Os AA. sofreram e continuam a sofrer um profundo desgosto com a morte da filha, a quem os unia um profundo amor.
45) - Em 1996, o R. CC acordou com a seguradora A... UAP a constituição de um seguro de "responsabilidade civil profissional - médicos", traduzido na apólice n.º ..., em vigor em 9-12-1999 (doe. de fls. 164 e 165).
46) - Na sequência de uma operação de fusão, a A... P... assumiu os direitos e obrigações emergentes do contrato de seguro.
47) - Nos termos do art.º 1.º das condições especiais do contrato de seguro: "Fica garantida a responsabilidade civil em que possa incorrer o Segurado por danos Patrimoniais e não Patrimoniais causados aos seus clientes e a outros terceiros em consequência de actos ou omissões no exercício da sua profissão, por ocasião de consultas, visitas ou tratamentos, bem como os causados aos doentes em consequência de actos, omissões e erros profissionais cometidos em diagnósticos, prescrições ou aplicações terapêuticas e no decurso de tratamentos ou intervenções cirúrgicas." (doe. de fls. 166).

48) - Entre o R. DD e a A... P... - Companhia de Seguros, S.A. (ex ­A... UAP, S.A.) foi celebrado um contrato de seguro do Ramo Responsabilidade Civil Profissional (Profissões Médicas), nos termos da apólice nº932660/05, em vigor em 9 - 12 - 1999
49) - Em conformidade com o estabelecido no artigo 1.º das Condições Especiais do Contrato de Seguro, sob a epígrafe Objecto da Garantia, "Fica garantida a responsabilidade civil em que possa incorrer O segurado por danos patrimoniais e não patrimoniais causados aos seus clientes e a outros terceiros em consequência de actos ou omissões no exercício da sua profissão, por ocasião de consultas, visitas ou tratamentos, bem como os causados aos doentes em consequência de actos, omissões e erros profissionais cometidos em diagnósticos, prescrições ou aplicações terapêuticas e no decurso de tratamentos ou intervenções cirúrgicas" (doc. de fls. 204).
50) - Nos termos da aI. c) do art.º 8.º das condições particulares do contrato de seguro celebrado entre o R. CC e a A... P... - C.ompanhia de Seguros, S.A., entre outros, não estão compreendidos no seguro os danos resultantes do exercício de actividade profissional para a qual o segurado ou os seus auxiliares não tenham a devida autorização legal (doc. de fls. 166);
51) - Nos termos da aI. c) do art.º 8.º das condições particulares do contrato de seguro celebrado entre o R. DD e a A... P... - C.ompanhia de Seguros, S.A., entre outros, não estão compreendidos no seguro os danos resultantes do exercício de actividade profissional para a qual o segurado ou os seus auxiliares não tenham a devida autorização legal (doc. de fls. 204).
52) - Corre termos nos Serviços do Ministério Público da Comarca de Lisboa, um inquérito iniciado no ano de 2000 para apuramento da responsabilidade criminal dos RR. quanto aos factos dos presentes autos, no âmbito do qual os AA. se constituíram assistentes.
53) - O Hospital de S. José emitiu o relatório de fls. 120 e 121 a propósito do internamento da EE.
54) - Os serviços de anatomia patológica do Hospital de S. José emitiram o relatório anátomo - patológico de fls. 122 a 125.


Factos considerados Não Provados nas Instâncias.
Dentre os factos controvertidos incluídos na base instrutória, o tribunal a quo considerou não provados os seguintes:
a) que só trinta minutos depois de a EE ter bracardizado é que os RR. Chamaram uma equipa do Instituto de Emergência Médica (lNEM); (Quesito 2°)
b) que, em 9-12-1999, o R. CC não dispusesse no local de aparelhos de reanimação adequados; (Quesito 4°)
c) que fosse por isso que o R. CC teve que chamar uma equipa do INEM; (Quesito 5°)
d) que a EE tenha bracardizado na sequência de infiltração nas coxas de lidocaína e de adrenalina em excesso; (Quesito 6°)
e) que, se a EE estivesse num local devidamente equipado e se o R. CC tivesse chamado imediatamente a equipa do INEM, não teria morrido; (Quesito 7°)
f) que a EE tenha sofrido no período que antecedeu a morte; (Quesito 8°)
g) que o R. DD tenha administrado em sequência à EE o seguinte:
- após toma oral de Atarax de 25 mg, por sua indicação, cerca de 45 minutos antes da entrada daquela para a sala, iniciou-se um soro e administrou-se endovenosamente Droperidol 2,5 mg;
- seguiu-se a administração de Dormicum 1 mg.;
- depois começou um gota a gota de Propofol 10 ml por hora (1 ml = 10 mg), mais bolus SOS de 20 mg.;
- encontrando-se a doente devidamente monitorizada com Dinamap T.M. plus (monitorização de traçado electrocardiográfico, monitorização da T.A. e saturação de oxigénio); (Quesito 17°)
) que a paragem cardio-respiratória sofrida pela EE fosse decorrente do choque anafilático (reacção alérgica medicamentosa grave aos fármacos anestésicos); (Quesito 19°)
i) que a equipa do INEM tenha chegado ao local em cerca de 20 minutos; (Quesito 24º)
j) que as doses anestésicas administradas tinham sido as correctas ( quesito 34º)
l) que a morte da EE tenha sobrevindo em consequência da má formação artério venosa do cerebelo aludida no documento de fls 124 ( quesito 35º)


Como é sabido o thema decidendum dos recursos é definido pelas questões postas nas conclusões das alegações do recorrente, sendo certo que, como é jurisprudência firme, por questões a resolver não devem tomar-se as considerações argumentos, motivações, juízos de valor produzidos pelas partes, porquanto o tribunal apenas tem que dar resposta especificada ou individualizada às questões que directamente se reportam à substanciação do pedido e da causa de pedir (cfr. art. ° 684º nº 3, 690º nº 1 e 660º nº 2. todos do CPC).
Os recursos destinam-se a impugnar, alterar ou revogar as decisões dos tribunais inferiores; assim, os recursos para o Supremo Tribunal de Justiça destinam-se, ressalvada a situação do recurso, nos termos do artigo 725º do CPC- a impugnar as decisões da Relação e a argumentar contra os seus fundamentos.
O nosso sistema jurídico segue o modelo de recurso de revisão ou de reponderação. o que quer dizer que o tribunal de recurso não pode pronunciar-se sobre matéria não alegada perante o mesmo ou sobre pedidos que lhe não foram formulados (ver Teixeira de Sousa e Amâncio Ferreira em, respectivamente, Estudos Sobre o Novo Processo Civil pág. 395 e Manual Dos Recursos ... , 7ª Edição, pág. 155)

E, nesta sede, apenas uma nota para lembrar que o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista que é julga por princípio, só de direito. Residualmente, porém, intervirá na decisão da matéria de facto, ou seja no caso de ter havido preterição de exigência legal em sede de prova (v. artigos 722º nº 2, 729º n 2 do CPC), a chamada prova vinculada, podendo, ainda, reenviar o processo para que o tribunal recorrido complete o julgamento de facto (art. 729° nº 3), em duas situações, a saber:
a) Quando a matéria de facto, vinda das instâncias, é insuficiente para se chegar a urna decisão de direito e, claro, se for possível a sua ampliação, face aos factos articulados pelas partes ou que sejam de conhecimento oficioso, ou (e)
b) Quando o Supremo entenda que a matéria de facto provinda do tribunal recorrido encerra contradições inviabilizadoras de uma decisão jurídica da causa.
Deverá enfatizar-se em todo o caso que, como muito bem, a este propósito, faz notar o Conselheiro Lopes do Rego, os poderes do Supremo Tribunal de Justiça estão, agora, intencionalmente, orientados para um correcto enquadramento jurídico do pleito, princípio que, seguramente, trará legitimidade bastante para a sindicância por parte do Supremo, de determinadas incongruências, ilogismos ou manifesta e flagrantes violação de lei no julgamento da matéria de facto, que afinal, poderão passar a simples questão de direito.
É Karl Larenz (Metodologia da Ciência do Direito, 1977, pág. 433), quem afirma ser questão de direito tudo quanto se identifica com a qualificação do ocorrido em conformidade com os critérios da ordem jurídica.


No caso dos autos, os RR recorrentes põem várias questões para resolver.

O R CC
- Omissão de pronúncia sobre a transferência de responsabilidade para a seguradora
- Presunção de culpa em actos médicos
- Cometimento de um erro grosseiro pelo R. Mendia
O R DD
- As mesmas e ainda as presunções de culpa ilegítimas do acórdão recorrido, baseado em factos novos.
- Presunção derivada do caso julgado penal

Assim:
Por uma simples razão de método, tomaremos os recursos como um só e analisaremos, em conjunto, uma questão comum a ambos, cujo sentido da decisão, por divergente da ora em recurso, bem poderá tornar inútil o conhecimento das restantes
Antes de mais, diremos o seguinte.
Algumas das respostas aos quesitos parecem estar em contradição, mas tal não acontece.
Assim, vejamos:
No facto 6 afirma-se que...ao longo de três anos entre 1993 e 1995 o R CC completou a formação em cirurgia plástica na Univ. Católica do R de Janeiro...enquanto que no facto 7 se diz que o R CC diz de si próprio ter feito uma especialização em cirurgia plástica numa Universidade Brasileira
Uma leitura mais atenta concluirá que são compatíveis tais factos, ou seja, num diz-se que é... no outro, o R CC também diz que é.
No facto 8 (resultante da resposta do doc. de folhas 67, diz-se... o R CC não é reconhecido pela O. Médicos como cirurgião plástico ou como tendo outra especialidade médica enquanto que, no facto 9 se diz que...está autorizado a exercer todos os actos médicos para os quais se sinta devidamente habilitado, incluindo actos próprios da especialidade de cirurgia plástica, sendo este facto resultante da resposta ao quesito 13 (formulado na negativa) mas apoiado nas respostas dos ofícios da O Médicos de folhas 323, 354, e 355 e do artigo 8ºdo Estatuto da O Médicos, sendo de salientar que num daqueles ofícios se diz que...quem sem deter formação diferenciada, em determinada área da medicina, praticar actos próprios da mesma assume uma acrescida responsabilidade perante o resultado.
Passando agora a estar em causa o instituto da responsabilidade civil é oportuno recordar os seus pressupostos e mecanismos legais de actuação.

A responsabilidade civil, em geral, colhe os seus fundamentos na verificação de determinados pressupostos que são como é consabido: o facto e nexo de imputação, o dano ou prejuízo e o nexo de causalidade, o facto é entendido na sua objectiva consideração e que consubstancia a violação do direito de outrem (ou de qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios) - v. Prof. A. Varela "Das Obrigações em Geral" I, pág. 403-404 Prof. Manuel de Andrade, "Teoria Geral da Relação Jurídica", I pág. 337; Prof. Pereira Coelho "o nexo de causalidade na responsabilidade civil", pág. 64; Prof. Almeida Costa, "Direito das Obrigações", pág. 176 e segts.
O que fica dito respeita tanto à responsabilidade civil contratual como à extracontratual existindo naquela, porém, numa prévia relação jurídica obrigacional que nesta não existe.
O Código Civil (Artºs. 483, 496, 562 a 564 e 566, designadamente) regula, com rigor os pressupostos da responsabilidade civil extra contratual, tanto a derivada de actos ilícitos ou subjectivos como a derivada de actos licítos ou objectivos. Nos actos ilícitos a ilicitude ou a antijuricidade destes funciona como um elemento caracterizador, não constituindo elemento ou pressuposto autónomo.
O nexo de imputação ou ligação do facto ilícito (por acção ou omissão) ao agente há-de conter uma imputação culposa, subjectiva e compreende o juizo que o agente fez não só objectivamente injusto mas cuja injustiça ele conheceu ou pode conhecer e que tal lhe seja pessoalmente reprovável (Kart. Larenz "Derecho de Obligaciones", 11, 1959, pág. 570).
O mecanismo da responsabilidade civil funciona, em geral, sempre da mesma forma, o facto (seja ilícito ou proveniente de uma actividade lícita) há-de ligar-se ao agente por um nexo de imputação (de natureza subjectiva ou objectiva respectivamente) e o dano ou prejuizo, por seu turno, há-de ligar-se a facto pou um nexo de causalidade (V. Dário Martins de Almeida " Manual de Acidentes de Viação", 3a. edição, pág. 50).
É claro que se fala de causalidade adequada e esta não se refere ao facto e ao dano isoladamente considerados, mas no processo factual que, em concreto, conduziu ao dano.
Essencial, nesse mecanismo é que entre as condições do dano - que podem ser várias - esteja o facto ( v. Prof. A.Varela, cfr. cit., I, pág. 750 e 752 e ac. da Relação de Évora de 8.6.89 - C.J. 1989,3°., pág. 275).
Quanto à culpa, ela é a expressão de um juizo de responsabilidade pessoal da conduta do agente que, face ás circunstâncias especiais do caso, deveria ter agido doutro modo, ou por este ter actuado ou deixado de actuar contra o dever que se lhe impunha quer em actuação diferente, quer em actuação que não levou a cabo, tudo de acordo com as normas jurídicas tomadas na sua função imperativa estatuidoras de deveres ainda que gerais (v. Prof. A.Varela, cfr. cit., I; pág. 442; Prof. Pessoa Jorge "Ensaio" sobre os pressupostos da responsabilidade civil, pág. 315 e Prof. Figueiredo Dias "o Problema de Consciência da Ilicitude).
Por culpa deverá entender-se - diz Larenz (Derecho de Obligaciones II Vol. Pag.570) o juízo que o agente fez, não apenas objectivamente injusto, mas de cuja injustiça estava ciente ou podia estar.
O critério de avaliação da culpa reside na formulação de um juizo de prognose póstuma de acordo com o qual, ponderando o condicionalismo concreto, se tenha de concluir segundo as regras de experiência comum, que os outros., agindo em condições e pressupostos análogos aos que se verificaram e levaram à actuação do agente, teriam previsto a realidade típica do evento.
Pois bem: "In casu".


A questão nuclear deste processo reside na definição do quadro legal conceptuais da responsabilidade civil dos médicos, no exercício do acto médico, designadamente, qual o tipo da obrigação assumida (se de meios se de resultado) se tem natureza contratual ou extra contratual, eventuais situações de presunção de culpa designadamente por apelo à aplicação do consignado no art. 493 nº2 do CC , inversão do ónus da prova, etc.)

Cremos que a abordagem desta problemática tem sido feita, até há pouco tempo, de modo esparso, sem a preocupação, porventura, de obter uma síntese, não se vincando, por absolutamente indispensável, a importância do estatuto do paciente no binómio paciente - médico, ( "rectius", paciente - familiar acompanhante, por um lado, e médico e sua equipa, por outro.).


Porém, no momento, é assinalável o número e a qualidade dos estudos, reuniões e outros eventos, a que não é, seguramente, alheia a crescente importância do tema da responsabilidade civil (e penal) do médico e outras áreas (bioética, procriação assistida, eutanásia, enfim, em geral das ciências da vida) necessariamente abrangentes, a evolução cientifica e do conhecimento e da modernização e apuramento das meios técnicos de intervenção, por um lado e resultante, doutra parte, dos notáveis ganhos adquiridos, pelo estatuto dos pacientes, sobretudo na consciencialização dos seus direitos e deveres.


É porventura, também, a força interventora do Estado social, mormente na União Europeia, vinda dos Estados Membros e da própria União, mas tudo num plano multidiversificado, dinamizado, sobretudo, após o surgimento da Carta Europeia dos Direitos do Paciente, redigida em 2002 por Active Citizenship Network, que proclama 14 direitos do paciente, entre os quais os direitos á informação; ao consentimento livre e esclarecido e à dignidade (os de maior interesse para o nosso caso).


Hoje, sobretudo por efeito do enraizamento da chamada doutrina do consentimento informado - que se chama à colação como contributo para melhor compreensão de toda esta problemática - ( e da evolução da Bioética e da Ética Médica, ao longo de mais de cem anos, verifica-se uma tomada de consciência colectiva sobre a necessidade de elevar o estatuto do paciente, tendo-se este tornando finalmente um parceiro visível, afirmativo, livre e consciente, no contexto de prestação de cuidados de saúde, perspectivando-se para o paciente, uma real majoração da sua autonomia (veja-se, a respeito, o parecer do Comité Económico e Social Europeu sobre os Direitos do Paciente, in Jornal Oficial da União Europeia de 15/01 /2008)



Esse direito ao livre e esclarecido consentimento é um postulado axiológico e normativo, vigente em vários ordenamentos jurídicos incluindo o português, como se alcança da Declaração de Lisboa da Associação Médica Mundial de 1981, da Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina, do Conselho da Europa, do art°1°,25° e 26° da CR Portuguesa, art°70 do CCivil, art.o 156 e 147 do C Penal e art.o 38 do Código Deontológico da Ordem dos Médicos e Lei de Bases da Saúde (Base XIV nº 1 aI. e) da Lei n° 48/90 de 24/AGO; (Ver Conselheiro Álvaro Rodrigues, in Consentimento Informado - Pedra Angular da Responsabilidade Criminal do Médico (Relatório Final do Curso de Pós - Graduação em Direito da Medicina), Coimbra Editora, 2002; Prof. Costa Andrade, in Consentimento e Acordo em Direito Penal, Coimbra Editora, 1991; André Dias Pereira in O Dever de Esclarecimento e a Responsabilidade Médica. ­Revista dos Tribunais 2005 S Paulo pág.69 a 109)

Assim
Foi a partir da teorização e consciência social do risco médico que se valorizou a participação do paciente, dando-lhe por direito, toda a informação e consciência do referido acto, assim obtendo o paciente a sua própria autonomia deixando definitivamente de fora o velho padrão de paternalismo com que era visto e tratado desde a era Hipócrates.
Um marco fundamental dessa valorização situa-se, historicamente em 1957, quando um tribunal da Califórnia usou pela 1a vez a expressão "informed consent, tendo daí ingressado no direito anglo saxónio e no continente europeu (ver ainda, de Mestre Gonçalo Dias Pereira o Estudo "Responsabilidade Médica por Violação do Consentimento Informado" pág.5 e 6 e, ainda Prof. Lesseps dos Reis em RFML. série 111" Vol.- 5 nº 5)


Entre nós, seguindo de perto o estudo do Conselheiro Álvaro Rodrigues - Responsabilidade Médica em Direito Penal (Dissertação do Mestrado em Direito Almedina 2007) o consentimento informado releva essencialmente na área do Direito Penal,(mas tem , seguramente interesse no campo do direito civil).
É que a partir do Código Penal de 1982, surgiu um novo tipo legal de crime que é o do crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários, previsto e punível pelo art.o 1560 do C.Penal com referência ao art° 1570 que densifica o conceito de dever de esclarecimento.
O bem jurídico tutelado através deste tipo de ilícito, não é o corpo, a saúde ou a vida do paciente, pelo que a sua violação não integra nunca um crime de ofensas à integridade fisica ou de homicídio.
O bem jurídico que constitui objecto deste tipo é a auto-determinação do paciente sobre o seu corpo e sobre a sua vida, isto é, trata-se de um tipo legal que protege a liberdade, por isso situando-se a localização sistemática do mesmo no Código, entre os crimes contra a integridade fisica os crimes contra a liberdade, mais concretamente, entre a ameaça e o sequestro.
Trata-se uma figura que a doutrina alemã gizou há vários anos, mas que o legislador alemão nunca tipificou penalmente, pelo que, naquele País, embora se reconheça que se trata de um crime que visa tutelar o direito de autodeterminação ( do paciente) sobre o seu próprio corpo], como a lei não o prevê no Código Penal alemão (StGB), os Tribunais consideram-no como se de ofensas corporais se tratasse, encaixando a factualidade apurada na previsão normativa ( Tatbestand) das ofensas corporais.

Deste modo, se o médico operar sem o consentimento esclarecido do paciente, pode vir a ser acusado e condenado por um crime de ofensas corporais, porque o BGH que é o Supremo Tribunal Federal da Alemanha, construiu uma jurisprudência que tem merecido a censura da Dogmática, mas o aplauso dos profissionais forenses, segundo a qual, nestes casos o médico comete um atentado contra a integridade moral, anímica, do doente, logo contra o corpo deste que é um composto da parte biológica e da parte espiritual ou moral (unidade biopsicológica) e assim «encaixa» tal conduta omissiva do consentimento na previsão do delito de ofensas corporais, o que levou o famoso penalista Karl Binding, a afirmar que na Alemanha a Justiça equiparava «a incisão cirúrgica do médico à facada do brigão» já que ambas constituíam ofensas corporais, só podendo o médico ver excluída a ilicitude do seu acto, pelo recurso a uma causa de justificação, como o estado de necessidade justificante ( direito de necessidade) ou o conflito de deveres.
É o que se passava, entre nós, no domínio do vetusto Código Penal anterior ao de 1982.
Em Portugal e também na Áustria (§ 11 O do StGB austríaco), tal já não acontece, pelo que integra um ilícito penal autónomo que é o previsto no art. 1560 do nosso C.Penal de 1982 e subsequentes revisões.

Ao médico (seja qual for a sua obrigação, estando ou não vinculado por contrato) é exigido que cumpra as "Ieges artis" (também chamadas "medical standard of care" e "soins conforme aux donnés aquis de la science'?, com a diligência normal de um bom pai de família
É esta a forma de cumprimento lógica, coerente e consequente que o médico tem,do exercício de qualquer acto médico.
Convém não esquecer que neste domínio existem dois deveres, cuja observância é fundamental, a saber: o dever do médico de dar ao paciente um total e consciente esclarecimento sobre o acto médico que nele se vai realizar, suas características, o grau de dificuldade de necessidade ou desnecessidade, suas consequências e, acima de tudo, sobre o risco envolvente do referido acto médico; e o dever de colaboração do paciente fornecendo ao médico, com verdade qualquer facto da sua história clínica, com relevância para promover o sucesso ou evitar o insucesso do mesmo acto médico.
Realce-se que o dever de esclarecer o paciente subsiste, autonomamente, em relação a outros deveres resultantes de eventual contrato entre médico e doente
Este dever de colaboração (que será tanto mais optimizado quanto mais eficiente e completo tiver sido o esclarecimento ao paciente transmitido) inclui, em substância, para além da exposição e resposta com verdade e sem qualquer omissão ao seu histórico clínico, inclui também e designadamente a notícia de eventuais incompatibilidades ou restrições à toma de fármacos com incidência no campo da anestesiologia ..


Na relação médico-paciente e a propósito da prestação do médico, no exercício do acto médico, é usual distinguir-se aquela em obrigação de meios, de resultado e de garantia (Ver. Almeida Costa in Direito das Obrigações, 1968. pág.432).
Das duas primeiras, a de meios é aquela em que o devedor se compromete a desenvolver prudentemente e com diligência certa actividade para a obtenção de um determinado efeito, mas sem assegurar que o mesmo se produza ( v.g. a obrigação do médico de empregar a sua ciência na cura da doença); a obrigação de resultado verifica-se quando se conclui da lei ou do negócio jurídico que o devedor está adstrito à obtenção de um certo efeito útil (v. g. a obrigação da entrega de uma quantia em dinheiro, ou uma obrigação de prestação de facto: um exemplo: a do mestre de obras em levantar um edifício de acordo com determinada planta).

Acrescente-se, então. que, na obrigação de meios, o devedor fica exonerado no caso de o cumprimento demandar uma exigência maior que a que prometeu e que quer a impossibilidade subjectiva como a objectiva não imputáveis ao devedor o exonerem; e que, na obrigação de resultado, só a impossibilidade objectiva e não culposa libera o devedor


Aceitamos, sem qualquer esforço que, na actividade médica como de resto em tantas outras situações da vida possa ou não haver um contrato prévio (mesmo sem forma escrita, ou, puramente, consensual) e que, por isso o acto médico seja exercido sob responsabilidade de natureza contratual ou extra contratual, institutos muito semelhantes, porém, com subsunção a algumas normas específicas, como é sabido


Responsabilidade civil contratual e extracontratual são, então, duas modalidades que, em regra preenchem integralmente o campo da responsabilidade civil do médico no exercício da profissão, sendo irrelevante que o médico tenha a seu cargo uma obrigação de meios ou de resultado.


A responsabilidade pelo risco (artigo 483º nº2 do CC) não tem cabimento nesta sede pela razão de que (...só existe obrigação de indemnizar independente de culpa nos casos especificados na lei) como reza o segmento da norma atrás referido; e lei não existe em tal sentido


Em qualquer caso, não deverá perder-se de vista que a actividade médica é uma actividade demasiado técnica, demasiado relevante na sociedade (e dela estruturante), para que nela se não atente e se valorize essa especificidade.


Apesar disso não se vislumbram razões para. que a efectivação da responsabilidade civil do médico não decorra ao abrigo de todas as regras normativas inerentes aos dois regimes de responsabilidade civil; contratual ou extra contratual, nomeadamente, no concernente à presunção de culpa do médico na contratual e ao acolhimento integral das regras do ónus da prova (artigos 342, 343 e 344 do CCivil (neste sentido, a posição adoptada pelo Conselheiro Álvaro Rodrigues - in Reflexões em torno da responsabilidade civil dos médicos ­Revista Direito e Justiça 2000 ano XIV, nº3, pág. 183 182 e 138),


Entende-se assim que se aplica à responsabilidade contratual médica a presunção de culpa contida no artigo 799º nº 1 do CC, dado não existirem nessa situação razões específicas que justifiquem o afastamento dessa regra.
E isto é assim, quer se entenda estar-se perante uma obrigação de meios ou de resultado

Mas, não se deverá olvidar que a presunção se refere, tão só à culpa.

A prova da existência do vínculo contratual e da verificação dos factos demonstrativos do incumprimento ou cumprimento defeituoso do médico competirá sempre ao Autor.
O Prof. M Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, 1976 pág. 203) afirma que... quanto à existência de danos e à sua extensão e quanto ao nexo de causalidade, entre o ilícito contratual e os mesmos danos está claro que a prova recai sempre sobre o autor.
Porém, o ilustre professor de Coimbra acrescenta que, perante a dificuldade natural da prova de um facto o mais que pode acontecer é fazer uso da máxima “iis quae dificcillioris sunt probationis, levioris probationes admittuntur”; o que significa: para maiores dificuldades na prova, menos ezigência na sua aceitação (ob. cit. pág 202).


Ademais, alterar nessas circunstâncias, as regras de funcionamento dos institutos em causa, (responsabilidade civil contratual e extracontratual) representaria um dano considerável na confiança e na certeza do direito e mesmo a ofensa ao princípio da igualdade de armas.


E teria ainda outra consequência; é que, como referem Luís A Guerreiro e Anabela Salvado (in Responsabilidade civil dos médicos - Revista da F M L Série 111 vol.5 nº 5) o agravamento sistemático da responsabilidade civil dos médicos pode trazer efeitos preversos, ou seja o chamado exercício defensivo da medicina.
Aliás será o caso concreto que, analisado em toda a sua envolvência, individualidade e singularidade, há-de ditar se, naquele caso se está perante uma relação contratual ou extra contratual, se a obrigação é de meios ou de resultado, se houve ou não incumprimento, se a actividade médica podia ou não ter sido classificada de perigosa.
Adiante-se que a configurar-se a existência de um contrato ele pode ser meramente consensual, não exigindo forma escrita, designadamente.
Assente-se, contudo no seguinte:
A realização de qualquer acto médico, mediante pagamento de um preço, integra, por norma, um contrato de prestação de serviços médicos -artigo 1154.° do Código Civil.
Embora a execução de um contrato de prestação de serviços médicos possa implicar para o médico uma obrigação de meios ou uma obrigação de resultado,(de acordo com a natureza e objectivo do acto médico), o certo é que, na esmagadora maioria dos casos, o que se pretende é que o acto médico seja bem sucedido e alcance o objectivo pretendido (seja o de simples mitigar a dor ou a intervenção cirúrgica mais complexa.).
Com efeito, deve atentar-se, sempre ao caso concreto e todas as suas envolvências, pois só desse modo se conseguirá definir e rotular jurídicamente a situação em presença.


No caso de intervenções cirúrgicas. em que o estado da ciência não permite sequer, a cura mas atenuar o sofrimento do doente, é evidente que ao médico cirurgião está cometida uma obrigação de meios, mas se o acto médico não comporta, no estado actual da ciência, senão urna ínfima margem de risco, não podemos considerar que apenas está vinculado a actuar segundo as leges artis; ai, até por razões de justiça distributiva, haverá de considerar que assumiu um compromisso que implica a obtenção de um resultado
A prestação do médico, tanto na responsabilidade contratual, como na extra contratual, sendo a obrigação de meios ou de resultado) projecta-se, sempre no cumprimento diligente da legis artis e com a prova desse cumprimento se exonerará (com a ressalva de o se comprometimento poder ter sido mais abrangente, o que terá de se alcançar do dito contrato.) .



Ao paciente incumbirá a prova do contrato (tratando-se de responsabilidade contratual) e dos factos demonstrativos do incumprimento ou cumprimento defeituoso das leges artis e da devida diligência por banda do médico.
Não se olvidando em todo o caso, os deveres atrás referidos de colaboração e de informação , donde haverá de ter resultado o consentimento esclarecido do paciente.


Recorde-se que a justiça e o direito do caso concreto vem já do direito romano e encontrava-se espelhado no brocardo alemão "Am Anfang war der Fall".



A decisão sob censura

Argumenta-se no acórdão recorrido que:

“... Os ora RR cometeram um erro grosseiro ao não terem procedido de imediato após a paragem cardio-respiratória que a falecida EE sofreu, aquando da administração da anestesia local, com sedação, à entubação orotraqueal da paciente... só tendo realizado a entubação orotraqueal da paciente.,quando constataram, muitos minutos depois..que a paciente não recuperava, sendo certo que nenhum dos RR logrou provar a inexistência de qualquer nexo causal entre o dano morte e o erro de tratamento por eles cometido”
(...)
o ... ora 1° R. CC não logrou i1idir a presunção de culpa que o onerava, visto não ter conseguido provar a sua alegação fáctica de que a paragem cardio-respiratória sofrida pela EE fosse decorrente do choque anafilático (reacção alérgica medicamentosa grave aos fármacos anestésicos) - cfr. a resposta negativa dada ao Quesito 19° da Base instrutória -, sendo certo que ... se depois de uma intervenção cirúrgica simples as condições do paciente são piores do que as anteriores, presume-se que houve uma terapia inadequada ou negligente execução profissional. ( ...) Efectivamente. uma das regras de ouro da anestesiologia é a de que, numa situação de paragem cardíaca não imediatamente reversível, deve proceder-se imediatamente a uma E.a.T . (entubação orotraqueal) quando alguém habilitado para o tàzer estiver presente.


Ora as coisas não são necessariamente assim, como se passa a explicar
O tribunal recorrido tira presunções manifestamente a partir de factos não constantes dos autos e que não são factos notórios
Depois, divergimos do entendimento aí expresso, quanto a presunções, ónus da prova, como se vem explanando.

In casu, se bem compulsamos os autos, vistos os factos, não vislumbramos que os AA tenham provado quaisquer factos que permitam concluir pelo cumprimento ou incumprimento dos RR.
Aliás, bem se pode dizer, até que tal matéria não só não integra qualquer conduta lesiva por banda dos médicos como chega mesmo a afastar eventual culpa destes, revelando uma conduta - tudo indica - diligente e adequada (V. factos 18 a 20).
Na verdade, a equipa integrou um anestesiolgista (médico anestesista) e o médico que efectuou a cirurgia ( factos 18 a 20).
Ademais, ficou provado que o estado de saúde da paciente não fazia prever qualquer contra-indicação para a administração anestésica e sedação.
Note-se que a administração anestésica tem basicamente 2 efeitos:
a) Efeito analgésico.
b) Efeito sedante, que pode ir até à inconsciência do paciente, como acontece na grande cirurgia, onde se administra a anestesia geral em que se procura que o doente não só não sinta a dor ( analgesia), como não se aperceba das manobras cirúrgicas, de modo a evitar não apenas que não se enerve, mas também que não se mexa, para não ocorrer qualquer acidente no corte dos tecidos, num eventual acesso de tosse ou num vómito, que teria quase fatalmente consequências nefastas ( incluindo asfixia por vómito, pneumonia etc.etc).

Ora, desconhecendo-se) o tipo de anestésico usado e como está provado que nada fazia prever qualquer contra-indicação, na fase pré-anestésica, há que concluir que não era de contar, no caso com tal consequência para a paciente
Por outro lado, não ficou provado o nexo causal entre a paragem cárdio - respiratória e o choque anafilático

Portanto, não resultou provada qualquer violação das leges artis!

Aliás, se tivesse sido provada qualquer violação de uma lex artis medicinae, ainda que por presunção judicial, ela deveria constar do elenco factual apurado!

É importante reter, ainda que está provado que, antes da submissão à cirurgia, por indicação do médico Operador, a paciente realizou exames médicos que não revelaram qualquer contra-indicação à realização da intervenção ( facto 16°).
Assim , embora não tenha sido apurado que tipo de exames clínicos foram efectuados, deverão considerar-se implicitamente efectuados exames cardiológicos (ECC, ecografias, etc, consulta da especialidade), pois são rotineiros em caso de cirurgia e revelam diligência de quem efectuou a cirurgia.

Mas esta diligência dos médicos, também se evidencia nas manobras de ressuscitação, pois vem provado que a paciente foi entubada ( oro-traquealmente) e colocada em posição de decúbito dorsal, sendo-lhe efectuadas massagens cardíacas e ventilação manual, o que revela diligência na aplicação das técnicas reanimatórias em tais casos ( factos 28° a 34°).
Em resumo, não resultou provado que a paragem cardio-respiratória da jovem paciente, de que resultou a morte, fosse consequência da conduta errada ou indevida de qualquer dos médicos, nem sequer de choque anafilático.



Perfunctóriamente se referirá que em teoria, é possível a imputação objectiva do resultado à conduta ( por acção ou omissão) de acordo com a doutrina ou teoria da causalidade adequada entre nós consagrada (matéria de direito).
Porém se é sabido que a doutrina da causalidade adequada, sobretudo na área jurídico-penal, vai cedendo o passo às novas teorias da imputação objectiva, designadamente à teoria do incremento do risco, moderada pelo critério do âmbito da tutela da norma, o certo é também que, no caso, e como atrás se disse já , o ónus da diligência recai sobre o médico desde que o lesado faça prova da existência do vínculo contratual ( evidentemente nos casos em que haja contrato, porque em caso de responsabilidade extra­contratual terá de fazer prova até da culpa do autor da lesão - art° 487° do C.Civil).

No caso sub judicio como se trata de responsabilidade contratual, aos AA. caberia apenas, em tese, fazer prova dos pressupostos da responsabilidade contratual ( contrato e nexo causal) , porque a prova da diligência caberia aos médicos, por força da presunção da culpa na responsabilidade contratual, a que se refere o art° 799°, nº 1 do CCivil.

Ora, singularmente, o que sucede é que não só os AA não lograram fazer prova da violação das regras da arte e da conexão causal entre a conduta médica e o dano morte, como os próprios Réus provaram a diligência com que actuaram.
Diligência que, em direito civil médico, há-de aferir-se pelo conceito equivalente, não do bonus pater familias, mas do médico médio ou, como dizem os britânicos, do «reasonable doctor»!
Resta dizer que a influência da decisão penal absolutória é questão que face à decisão que flui se encontra prejudicada na sua apreciação, por quanto o seu efeito seria um mais a acrescentar ao sentido da decisão.

É vasta a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nesta matéria, defendendo a sua grande maioria as posições aqui também adoptadas,

III -Face ao exposto. Concede-se a revista, revogando-se a decisão impugnada, repristinando-se a de 1ª instância

Custas pelos recorrentes

Lisboa, 15 de Outubro de 2009

Rodrigues dos Santos (Relator)
João Bernardo (Voto vencido)
Oliveira Rocha
Oliveira Vasconcelos (Voto vencido)
Serra Baptista


I -
Votei vencido por entender que os réus médicos não cumpriram o ónus que, a meu ver, sobre eles impendia de demonstrarem que não agiram culposamente.

II -
Tem sido longa a discussão sobre se, quando o acto médico se integra no cumprimento dum contrato entre médico e paciente, vale contra aquele a presunção de culpa do artigo 799.º, n.º1 do Código Civil. Entendendo a esmagadora maioria dos autores que vale tal presunção (cfr-se uma enumeração em Pinto de Oliveira, Responsabilidade Civil em Instituições Privadas de Saúde, em Responsabilidade Civil dos Médicos, 231, podendo acrescentar-se Álvaro Rodrigues, Direito e Justiça, XIV, 3, Reflexões em Torno da Responsabilidade Civil dos Médicos, 209).
Também entendo que vale.

III -
Mas, mesmo para os cépticos relativamente a tal presunção, as particularidades do presente caso podem justificar um entendimento ressalvante.

Gira a discussão, fundamentalmente, na natureza da obrigação de meios que, salvo acordo em contrário, impende sobre o clínico. Este, por força do contrato, não se obriga a obter determinado resultado, mas a realizar os actos que de acordo com a legis artis são os mais indicados para a obtenção dele.
Só que, o caso presente não se reporta à obrigação principal de extrair a gordura das culotes da paciente. Interpôs-se uma realidade particularmente danosa que assume, no quadro da relação contratual, total autonomia. Não se trata agora de saber se os médicos/réus agiram ou não negligentemente quanto à extracção da gordura das culotes da paciente, mas de avaliar o modo como agiram relativamente à anestesia. Não, pois, de encarar esta como meio de obtenção do resultado estético pretendido.
Vem aqui ao de cima a referida autonomia, devendo a fase anestésica ser tratada como um capítulo próprio de toda a realidade debitória que os réus assumiram.

IV –
A anestesia geral visa colocar o paciente num estado de inconsciência a que se sucede, passado algum tempo, a retoma do estado consciente. No caso de anestesia apenas local, visa-se insensibilizar, certas zonas do corpo, com recuperação da sensibilidade passado também algum tempo.
Ao invés da recuperação, a doente entrou num estado que lhe produziu a morte.
Haviam os réus, contratualmente devedores, de demonstrar que a anestesia foi correctamente aplicada e que, perante a reacção gravíssima a ela, usaram as técnicas medicamente adequadas à situação.
No presente caso, não se pode, a meu ver, cindir a culpa (ou sua presunção) do comportamento devido. Portas adentro da sala de operações, cada fracção do comportamento devido (posição da doente, escolha dos anestésicos, modo de aplicação – oral, injectável, de uma só vez ou gradualmente – doses aconselhadas, conjugação e compatibiliadde entre os fármacos, detecção imediata do início da bradicardia ou outra reacção adversa, modo de agir imediato sob o prisma das legis artis, etc) estava e esteve determinada pela diligência, ou falta dela, dos clínicos.
A presunção de culpa abrange, no presente caso, a ideia de que não se teve o comportamento devido e de que daí derivou a morte.

V -
À conclusão da omissão do comportamento devido se chega, se necessário, como já chegou a Relação – trazendo o entendimento, que me parece de acolher, de Manual Rosário Nunes, O Ónus de Prova Nas Acções de Responsabilidade Civil, pág. 58 - pelo recurso à figura da prova da primeira aparência. A medicina não é uma ciência exacta. Cada doente pode constituir um caso particular. Mas, resultando uma morte duma anestesia local, numa doente sem dados clínicos desfavoráveis, é de considerar, em primeira aparência, a negligência de quem era o responsável pela administração da anestesia e/ou pela recuperação dela. Todos os dias, milhares e milhares de anestesias locais são aplicadas sem que haja o menor dano para os pacientes. A consequência mortal do caso agora em apreciação vai contra o normal evoluir das coisas, contra a sucessão vulgar dos acontecimentos, pelo que, atenta também tal figura, penso que caberia aos médicos demonstrar que a aplicação da anestesia foi correcta, que detectaram logo que algo se passava e que as tentativas de reanimação foram as mais adequadas, tudo de acordo com as legis artis. Como se entendeu - num caso, para o que aqui nos interessa, com semelhanças - no Acórdão da Audiência Provincial de Girona (Espanha), de 26.5.2000 (Transcrito, em parte, em Responsabilidad Civil II, Daños Personales e Quantum Indemnizatorio, de Miguel Mateos, Elena Orquín, Marta Goñi e Ainhoa Vigil, página 287): “… no es normal que una persona acuda a un hospital para que le tratem de un dolor y acabe com una paraplejía, por lo que si está claro que algo falló, lo lógico es pensar que la actuación médica fue incorrecta…”

VI –
A repartição do ónus de prova de acordo com o que vem sendo explanado parece-me, aliás, mais consentânea com o princípio da razoabilidade.
Como refere Carneiro de Frada, a propósito da responsabilidade médica e hospitalar (Direito Civil - Responsabilidade Civil, 116):
“Consoante os casos, são de admitir – naturalmente em graus e medidas diversos – facilitações de prova (prova prima facie) e inversões do ónus de prova em benefício do lesado, susceptíveis de abranger a causalidade fundamentante da responsabilidade, a ilicitude e a culpa…”
Indo a filha dos autores submeter-se a uma anestesia local e constatando-se que, na sequência dela, faleceu, é, a meu ver, extremamente violento, o entendimento de que os pais haviam de demonstrar quais as condutas dos médicos que, porventura, tenham estado, por negligência, na base da morte.
Tudo o que referimos no número anterior, (desde os produtos de anestesia e aí por diante) passou ao lado dos progenitores, quer pela imensidão de conhecimentos técnico-médicos envolvidos, quer pela completa reserva a pessoas estranhas com que estes actos médicos são levados a cabo, quer ainda pela não possibilidade de detecção da grande maioria dos erros médicos em exames posteriores.
Decerto que, mesmo perante acto médico tecnicamente impecável, pode acontecer a morte duma pessoa. É sabido de todos – e, como tal, facto notório – que a administração dum vulgaríssimo medicamento pode conduzir um paciente, com uma vulnerabilidade especial e não detectável, a resultados desastrosos. Mas, cabe ao médico, demonstrar que agiu correctamente, num quadro de razoável imprevisibilidade. De outro modo, o exercício dos direitos do paciente, ou herdeiros no caso de morte, fica gravemente esvaziado perante a possibilidade, ainda que de verificação raríssima, de ter lugar, imprevistamente, uma consequência fatal.

VII –
Traçado este quadro, atentemos nos factos provados.
No ponto 33 da matéria de facto, deu-se como provado que o réu José Mendia iniciou a administração da anestesia local. Ora, este réu não era o anestesista, era apenas o cirurgião.
No ponto 34.º da BI perguntava-se se as doses anestésicas administradas foram as correctas, tendo o tribunal que julgou a matéria de facto respondido “não provado”.
Os réus não demonstraram que, perante a bradicardização, o que a ciência médica impunha era a colocação da doente em decúbito dorsal, a massagem cardíaca externa e a ventilação manual (que fizeram de imediato), ficando a entubação oro-traqueal para o caso de não recuperação através daqueles métodos (cfr-se as respostas restritivas aos pontos 21.º e 22.º da BI).
A equipa do INEM tomou a responsabilidade pela reanimação, tendo, designadamente, ministrado atropia, adrenalina e mais fármacos, com o que conseguiu pulsação e pressão arterial (ponto 39.º). Fica sem se saber por que conseguiu o INEM estas pulsação e pressão arterial e não os réus que também tinham sulfato de atropina e adrenalina (cfr-se ponto 46 da enumeração factual).

VIII –
Negaria, pois, a revista.

Lisboa, 15 de Outubro de 2009

João Bernardo




AA e BB intentaram contra os médicos CC e DD a presente acção pedindo que eles fossem condenados a pagar-lhes uma indemnização,
alegando, em resumo, que
- foi acordado com o réu CC que a sua filha EE fosse por ele sujeita a uma intervenção cirúrgica denominada de “liopoaspiração aos culotes”, a efectuar numa clínica daquele CC;
- em 99.12.09, a EE deslocou-se a esta clínica para ser sujeita à intervenção acorda e quando se aguardava pela actuação da anestesia local a sua filha “bradicardizou”, ou seja, sofreu uma retardação das contracções cardíacas, tendo aos réus só trinta minutos depois, quando verificaram que não tinham meios técnicos para reanimar a EE, chamado o INEM, quanto ela já estava numa situação de “assistolia”, ou seja, uma situação de insuficiência cardíaca adiantada.
- a bradicardização ocorreu porque os réus ministraram à EE lidocaína em excesso e por o INEM só ter sido chamado trinta minutos depois da ela ter bradicarzado, sabendo desde logo os réus que não tinham meios adequados para reanimar a EE.

Os réus, nas suas contestações, alegaram que a sua actuação foi a correcta face às circunstâncias concretas do caso e que foi uma alergia grave às doses anestésicas administradas (choque anafilático) que esteve na causa do colapso cardíaco.

A questão que se põe é a de se saber se os réus se constituíram na obrigação de indemnizar os autores.

Os factos assentes e dados como provados e com interesse para a resolução da questão, são os seguintes:
- A EE decidiu submeter-se a uma intervenção de lipoaspiração dos culotes, tendo escolhido para realizar a intervenção o R. CC.
- O R. CC é médico.
- Antes da submissão à cirurgia, por indicação do R. CC, a EE realizou exames médicos que não revelaram qualquer contra-indicação à realização da intervenção.
- Em 99.12.09, a EE foi para a sala de operações e sujeita a anestesia local.
- A administração da anestesia foi realizada com a intervenção R. DD, médico anestesista.
- O R DD é médico com a especialidade de anestesista.
- O estado de saúde da EE não fazia prever qualquer contra-indicação à ministração de anestesia e sedação.
- A EE não tinha nenhuma malformação cardio-respiratória.
- O R CC iniciou a administração da anestesia local.
- Logo antes, o R DD, como anestesiologista a quem competia fazer uma sedação consciente, para a intervenção cirúrgica ser mais suportável pela doente, devido à duração e ao incómodo do acto, começou a administrar as drogas para fazer a sedação vigil.
- A EE bradicardizou na sequência da sedação e do início da administração da anestesia local.
- No período necessário à actuação da anestesia local a EE bradicardizou (retardamento das contracções cardíacas).
- A EE sofreu uma paragem cardio-respiratória aquando da administração da anestesia local, com sedação.
- Os RR, perante o referido, de imediato administraram fármacos à EE, diligenciaram pela sua colocação em decúbito dorsal, já que se encontrava em decúbito ventral (de barriga para baixo), procederam a massagem cardíaca externa (o R CC) e a ventilação manual (o R DD).
- Visto que a EE não recuperava, foi feita uma entubação orotraqueal, e dada continuidade à ventilação manual.
- Enquanto se solicitava a presença de uma equipa de urgência do Instituto Nacional de Emergência Médica (lNEM).
- O chamamento da equipa do INEM impôs-se dado que a reanimação da EE obrigava à sua transferência para uma Unidade de Cuidados Intensivos.
- Aquando da chegada ao local a equipa do INEM tomou a responsabilidade pela reanimação, tendo designadamente ministrado atropia e adrenalina, tendo sido obtida pulsação decorridos 5 minutos e, mediante a ministração de mais fármacos, pulsação e pressão arterial volvidos mais 5 minutos.
- Tudo tendo conduzido a que a actividade cardíaca da EE tivesse recomeçado.
- Antes da chegada do INEM os RR. actuaram nas técnicas de ressuscitação da EE no intuito de conseguir a sua reanimação, tendo-se mantido disponíveis após a chegada da equipa do INEM.
- A equipa do INEM prosseguiu o esforço de reanimação.
- A EE foi transportada por equipa do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) para o Hospital de S. José, onde veio a falecer em 12-12-1999.
- O choque anafilático pode acontecer a qualquer pessoa que seja exposta a injecção de medicamento.
- O choque anafilático é absolutamente imprevisível, mesmo quando as doses anestésicas administradas são as correctas.

Não se provou que
- só trinta minutos depois de a EE ter bradicardizado é que os RR. chamaram uma equipa do Instituto de Emergência Médica (lNEM) – resposta negativa ao ponto 2° da base instrutória
- a EE tenha bradicardizado na sequência de infiltração nas coxas de lidocaína e de adrenalina em excesso – resposta negativa ao ponto 6º da base instrutória;
- se a EE estivesse num local devidamente equipado e se o R. CC tivesse chamado imediatamente a equipa do INEM, não teria morrido – resposta ao ponto 7º da base instrutória;
- o R. DD tenha administrado em sequência à EE o seguinte:
após toma oral de Atarax de 25 mg, por sua indicação, cerca de 45 minutos antes da entrada daquela para a sala, iniciou-se um soro e administrou-se endovenosamente Droperidol 2,5 mg;
- seguiu-se a administração de Dormicum 1 mg.;
- depois começou um gota a gota de Propofol 10 ml por hora (1 ml = 10 mg), mais bolus SOS de 20 mg.;
- encontrando-se a doente devidamente monitorizada com Dinamap T.M. plus (monitorização de traçado electrocardiográfico, monitorização da T.A. e saturação de oxigénio); (Quesito 17°)
- a equipa do INEM tenha chegado ao local em cerca de 20 minutos – resposta ao ponto 24º da base instrutória;
- o colapso cardíaco tenha sido devido a um choque anafilático – resposta negativa ao ponto 19º da base instrutória;
- o esquema terapêutico iniciado pelos réus tenha sido o mesmo que a equipa do INEM utilizou aquando da sua intervenção – resposta restritiva ao ponto 29º da base instrutória;
- as doses anestésicas administradas tenham sido as correctas – resposta negativa ao ponto 34º da base instrutória.

Posto isto e no sentido de se apreciar a questão, atentemos em alguns conceitos que entendemos por correctos, seguindo de perto Rute Teixeira Pedro “in” A Responsabilidade Civil do Médico, Coimbra, 2008.

Um médico obriga-se não só a não prejudicar o aproveitamento das possibilidades (chances) de que o paciente dispõe de sucesso terapêutico, empregando a bagagem de meios (científicos e técnicos) com que ele está apetrechado, mas sobretudo a não abortar uma acreditada possibilidade médica de êxito.

Esta actividade debitória do médico não se compagina com uma mera tutela aquiliana, com um mero comportamento de “non nocere”, uma vez que assim, deixaria a descoberto aquela obrigação, que precisamente caracteriza o conteúdo do direito creditício que um doente tem face a um médico, e que se distingue, obviamente, daquele direito absoluto de exclusão, que o doente pode fazer valer contra qualquer pessoa.

Actualmente é comum o entendimento que entre o médico e o doente se celebra, em regra, um negócio jurídico bilateral, em que o primeiro se obriga a prestar, ao segundo, assistência médica, mediante retribuição.
Em princípio, o contrato será subsumível à categoria de um contrato de prestação de serviço.

Na decorrência da sua prestação e para satisfazer o interesse do doente, o médico tem de detectar o problema que o afecta, escolher e aplicar uma terapia que o debele ou atenue, segundo as melhores regras disponíveis no momento da prestação.

A efectivação da responsabilidade de um médico depende da verificação cumulativa de um conjunto de pressupostos, que têm que ser demonstrados em juízo.
Assim, quer se funde na responsabilidade contratual, quer na responsabilidade extracontratual, necessário é que o médico pratique um facto (positivo ou negativo), ilícito, culposo e que cause um dano ao doente.

Em princípio e de acordo com as normas da distribuição do ónus da prova – cfr. nº1 do artigo 342º do Código Civil – caberá ao autor/doente alegar e provar os factos demonstrativos da verificação daqueles pressupostos.

No entanto, o encargo probatório que recai sobre o doente – um leigo na matéria, com um acesso, muitas vezes dificultado, ao registo médico – revela-se muito pesado, tanto mais que o recurso a peritos é oneroso e nem sempre conclusivo.
Desta forma, a imposição do ónus probatório acima referido transforma-se num mecanismo de predeterminação sistemática de insucesso de uma delas – o doente – em favor da outra – o médico.

A obrigação de um médico é, em princípio, uma obrigação de meios e não de resultado, dada a elevada componente que a incerteza joga no êxito dos actos praticados por aquele, estando, pois, este apenas obrigado a uma obrigação de diligência ou de cuidado, de prudência.
Assim, um médico incorre numa situação de incumprimento quando se desvie do padrão de comportamento diligente e competente, a que, como profissional da área, deve obedecer.

O seu comportamento será ilícito se se desviou desse comportamento, tomado o seu agente como um elemento de um grupo caracterizado e diferenciado dentro da categoria geral dos profissionais médicos e da especificidade da situação.

E será culposo, se se tomando em conta a especificidade do circunstancialismo em que o concreto agente actuou, se puder concluir que ao agente era exigível outro comportamento.

Considerando a obrigação que um médico assume de prestar assistência a um determinado paciente, pode-se concluir que o resultado imediato é, então, constituído pelo aproveitamento das reais possibilidades (chances) que o doente apresenta de alcançar a satisfação do resultado imediato – a cura, a sobrevivência, a não consumação de uma deficiência ou incapacidade.
Tal aproveitamento verifica-se mediante a adopção de um comportamento atento, cuidadoso e conforme às “leges artis” – que constitui, em suma, a tradicional obrigação principal (de meios) assumida pelo profissional de saúde.

A ausência da verificação daquele resultado facilita a demonstração do incumprimento da obrigação de não destruir as possibilidades de êxito terapêutico, de que o doente dispunha.
A insatisfação do interesse final ou mediato, arrastando a insatisfação do interesse imediato ou intermédio, poderá funcionar como indício ou demonstração “prima facie”do inadimplemento da obrigação de não destruição das possibilidades de êxito terapêutico.

Demonstrado o incumprimento desta “outra” obrigação, caberá ao médico, para afastar a responsabilização pelo “dano de destruição das possibilidades (ou chances)” provar que aplicou a diligência ou aptidão que lhe era exigível – por outras palavras, que satisfez o interesse mediato – mas que por razões que não podia prever ou não podia controlar, a finalidade pretendida se gorou e as chances existentes se perderam.

Perante a falta de consecução daquele “outro resultado” devido poderá, e deverá, ser aplicado o regime geral da responsabilidade obrigacional, sem necessidade de operar qualquer desvio, nomeadamente quanto à presunção de culpa do devedor genericamente consagrada.

A culpa de um médico, na falta de qualquer norma especifica sobre o assunto, é avaliada pela regra geral contida no nº2 do artigo 487º do Código Civil, ou seja, pela “diligência do bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso”.

Importante para o direito não é erro cientifico em si, mas a causa humana do mesmo, ou seja, para o surgimento de uma obrigação de indemnizar não basta a verificação de um erro, antes se exige que ele assuma uma configuração tal, que torne o agente merecedor de um juízo de reprovação.
E sê-lo-á, quando o percurso seguido pelo médico deva ser censurado – seja culposo.

O desequilíbrio relacional é a nota característica da relação que se estabelece entre o doente e o médico e que se reflecte no plano probatório, na medida em que o paciente é um sujeito particularmente enfraquecido, porque física e mentalmente debilitado por força da patologia que o afecta e assimetria da relação ente o médico e o doente é aumentada pelo carácter especializado da prestação médica e pelo desnível de conhecimentos e preparação técnico-científica entre ambas as partes.
O médico devedor é um profissional de assistência médica e o doente-credor é, em regra, um leigo nessa matéria.

Posto isto, voltemos ao caso concreto em apreço.

Parece não haver dúvidas quer o réu CC – porque, apesar de cirurgião, iniciou a administração da anestesia local – quer o réu DD – porque, como anestesista, administrou drogas à EE para fazer a sedação vigil – estiveram na origem do facto que originou a bracardização desta e subsequentes consequências, ou seja, a administração da anestesia local.

Mas esta actividade dos réus nada teve a ver com o que posteriormente veio a acontecer, nomeadamente com a morte da EE?
Esta pergunta é feita com base no que acima ficou dito sobre a presunção de culpa que impendia sobre os réus.

Na verdade e uma vez que a EE não revelava qualquer contra indicação à realização da intervenção – e, consequentemente, à administração da anestesia – temos que concluir que o resultado imediato que se pretendia – a lipoaspiração, antecedida da anestesia local – estava perfeitamente ao alcance dos réus, tendo em conta as reais possibilidades – chances – que ela apresentava.

Face à matéria de facto dada como provada não se pode extrair com segurança qualquer conclusão sobre a diligência dos réus, ou seja, se a sua actuação se desviou ou não do padrão de comportamento diligente e competente.

Mas se não se pode retirar qualquer conclusão sobre o resultado imediato, pode, no entanto e infelizmente, concluir-se pelo resultado mediato: a morte da EE.

Sendo assim, com esta morte, perdeu-se a oportunidade, a chance, do aproveitamento da oportunidade que a EE tinha de ser operada com êxito.
E de acordo com o que acima ficou exposto, eram os réus que tinham de alegar e provar que aplicaram a aptidão e diligência possível, mas que por razões que não podiam prever ou não podiam controlar, a finalidade pretendida –a lipoaspiração, com a preliminar anestesia local – se gorou e as chances existentes se perderam.

Ora, os réus alegaram que a bradicardia se ficou a dever a uma reacção alérgica grave (choque anafilático) aos anestésicos.
Não conseguiram, no entanto, provar tal facto.
Não elidiram, assim, a presunção de culpa que incidia sobre eles, nos termos acima referidos.
Ou seja, não demonstraram qualquer causa externa à sua actuação que tenha estado na origem da bradicardização.
Por isso, presume-se a sua culpa.

Por outro lado e em relação aos acontecimentos posteriores à ocorrência da bradicardia, fica-se sem saber se os procedimentos efectuados pelos réus foram os mais adequados, ou seja, se os réus actuaram com um razoável e mediano grau de perícia e competência.
Na verdade, fica-nos a dúvida sobre se os réus, perante a bradicardia, não deviam imediatamente colocar a Rute em decúbito dorsal em vez de a manter no decúbito ventral, conforme de conclui a primeira parte da resposta ao ponto 21º da base instrutória.
E por se tratar de uma lipoaspiração, necessariamente com uma doente obesa, se o posicionamento ideal para permitir uma ventilação correcta não era desde logo o decúbito dorsal.
E estando na posição de decúbito ventral, se não deviam imediatamente fazer a entubação orotraqueal e não começar por fazer a ventilação manual, como fizeram.
Anote-se, a este respeito e como acima ficou dito, que não ficou provado que o esquema terapêutico iniciado pelos réus tenha sido o mesmo que a equipa do INEM utilizou aquando da sua intervenção – resposta restritiva ao ponto 29º da base instrutória.
Finalmente, também ficamos com dúvidas sobre se os réus não deveriam chamar imediatamente o INEM.
Tudo dúvidas que, face à presunção de culpa dos réus, estes deveriam esclarecer.

Limitaram-se os réus a dizer o que fizeram, no pressuposto de que o que fizeram era o que correspondia ao padrão de conduta que um médico medianamente competente, prudente e sensato, teria tido naquelas circunstâncias.
No entanto, ficamos sem saber, porque não alegados os respectivos factos, qual esse padrão.
A este respeito, há que anotar que não se provou o facto, por si alegado, de que as doses anestésicas administradas tenham sido as correctas – resposta negativa ao ponto 34º da base instrutória.

Por tudo o que acabou de se escrever, entendo que se verificam no caso concreto em apreço os pressupostos para os réus indemnizarem os autores, pelo que negaria a revista e confirmaria o acórdão recorrido.

Lisboa, 15 de Outubro de 2009

Oliveira Vasconcelos