Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A1302
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: AZEVEDO RAMOS
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
REQUISITOS
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: SJ200705290013026
Data do Acordão: 05/29/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I – São requisitos do enriquecimento sem causa : o enriquecimento, o empobrecimento, o nexo causal entre um e outro e a falta de causa justificativa da deslocação, patrimonial verificada .

2 – A falta de causa terá de ser não só alegada como provada, de harmonia com o princípio geral estabelecido no art. 342 , por quem pede a restituição .

3 – Não bastará para esse efeito, segundo as regras gerais do ónus da prova, que não se prove a existência de uma causa de atribuição ; é preciso convencer o tribunal da falta de causa .

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Em 16-10-02, AA instaurou a presente acção contra BB, pedindo que esta seja condenada:
a) – a pagar-lhe as quantias de 44.891, 81 euros, acrescidas de juros vencidos e vincendos, à taxa convencionada de 10% ao ano, e a quantia de 91.778,81 euros, acrescida de juros á taxa legal, desde Dezembro de 1999, até integral pagamento ;
b) - ou, quando assim se não entenda, a pagar-lhe as ditas quantias, a título de enriquecimento sem causa, acrescidas de juros nos termos referidos.
Para tanto, alegou, resumidamente, o seguinte :
No exercício da sua actividade de construção civil e compra e venda de imóveis, celebrou com a ré, em Dezembro de 1995, um acordo nos termos do qual lhe compraria os seis lotes que viessem a ser aprovados no loteamento a que iria proceder num seu prédio rústico, pagando-lhe o autor a quantia de 9.000.000$00 e efectuando obras de construção de uma moradia da ré, cujo preço do custo foi avaliado em 16.000.000$00.
Em 4 de Janeiro de 1996, o autor entregou à ré aquela quantia e, no início de 1997, concluiu as obras de construção civil a que se tinha obrigado, tendo a moradia sido entregue, pronta para habitar .
Como em finais de 1997, o loteamento ainda não tinha sido aprovado pela Câmara municipal de Viseu e não parecia que o viesse a ser em breve, fizeram um novo acordo nos termos do qual o autor já não compraria à ré os lotes em questão, comprometendo-se a ré a devolver àquele a quantia de 9.000.000$00 que lhe havia sido entregue, acrescida de juros, à taxa anual de 10%, desde a data da entrega, bem como a pagar-lhe o preço do custo das obras efectuadas, no montante de 16.000.000$00, acrescido de 15% correspondente ao lucro normal que o autor teria se as obras efectuadas o tivessem sido ao preço da venda, sendo que estes pagamentos só se efectuariam quando o loteamento tivesse sido aprovado.
O loteamento veio a ser aprovado em 1999, ocasião em que a ré lhe pediu que esperasse até que conseguisse vender os lotes .
Entretanto, a ré foi protelando o pagamento e já vendeu o prédio objecto do loteamento, pelo que o autor invoca em seu favor as regras do enriquecimento sem causa .
A ré contestou, dizendo que não celebrou com o autor qualquer acordo .
Acrescenta que, no âmbito do relacionamento sentimental mantido entre ambos, o autor lhe ofereceu os 9.000.000$00 e ainda efectuou alguns trabalhos de acabamentos, por sua conta e de livre vontade, com sentido de liberalidade e sem qualquer contrapartida.
Além disso, invoca a prescrição, relativamente à pretendida restituição por enriquecimento sem causa .
Houve réplica.
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O Ex-mo advogado do autor faltou à audiência de discussão e julgamento, que foi efectuada, à primeira marcação, sem a presença daquele .
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O autor interpôs recurso de agravo do despacho de fls 247 que indeferiu o pedido do Ex-mo Advogado do autor, solicitando o adiamento da audiência e a marcação de nova data, despacho esse que é do seguinte teor :
Atendendo ao teor da acta da audiência de fls 245 e à hora do fax que antecede ( 10h26), já depois de iniciada a audiência, não há fundamento para o adiamento e ainda mais de diligência já realizada “.

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Realizado o julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente .
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Apelou o autor, mas sem êxito, pois a Relação de Coimbra, através do seu Acordão de ..-6-06 negou provimento ao agravo, bem como à apelação, confirmando o despacho e a sentença recorridos .
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Continuando inconformado, o autor pede revista, onde resumidamente conclui :
1 – O mandatário do autor, logo que pode, comunicou ao tribunal que estava impossibilitado de estar presente na audiência de discussão e julgamento .
2 – Nos termos do art. 651, nº1, al. c) do C.P.C., a audiência deveria ter sido adiada, pois realizou-se sem a presença de um dos mandatários, na primeira data agendada, sem que nunca tivesse sido adiada.
3 – Por isso, deve ser considerada nula, nos termos do art. 201 do C.P.C., devendo ser agendada nova data para a sua realização .
4 – De qualquer modo, com a prova produzida, a acção não devia ter sido julgada improcedente .
5 – Tendo as obras sido realizadas pelo autor, cabia à ré provar ou que as havia pago ou que essas obras foram realizadas de forma gratuita .
6 – O que não fez.
7 – Julgou mal o Ex.mo Juiz ao dar como não provados os quesitos 4 e 5º da base instrutória .
8 – Devia a ré ser condenada a pagar as obras identificadas e avaliadas no relatório pericial, a título de enriquecimento sem causa, pedido que foi formulado subsidiariamente .
9 – Ficou provado que o autor entregou à ré, através de dois cheques, a quantia de 9.000.000$00 e que tal quantia foi entregue a título de princípio de pagamento do loteamento referido nos autos .
10 – Não conseguindo a ré provar que aquelas quantias lhe foram dadas a título de liberalidade, como de facto alegou, tem o dever de as restituir, não podendo apossar-se delas .

Não houve contra-alegações .

Corridos os vistos, cumpre decidir .

A Relação considerou provados os factos seguintes :

1- O autor AA dedica-se à actividade de construção civil e compra e venda de imóveis .

2 – A ré BB vendeu um prédio que foi objecto de loteamento a CC Construções e Promoção, tendo tal aquisição sido registada na Conservatória do Registo Predial de Viseu sob o nº .. ........ Apresentação nº4 de ......../...

3 – O autor e a ré mantiveram entre si um relacionamento sentimental no período compreendido entre 1994 e inícios de 1998.

4 – Em 4 de Janeiro de 1996, o autor entregou à ré, em dois cheques, que lhe haviam sido passados e entregues por DD, para pagamento de um apartamento, um deles no valor de 6.000.000$00 e outro no valor de 3.000.000$00 .

5 – A ré depositou tais cheques numa sua conta do Banco Nova Rede.

6 – O licenciamento da operação de loteamento respeitante ao processo identificado a fls 62 foi aprovado em reunião da Câmara Municipal de Viseu, realizada no dia 11 de Outubro de 1999.


O art. 722, nº1, do C.P.C. estabelece :
“Sendo o recurso de revista o próprio, pode o recorrente alegar, além da violação da lei substantiva, a violação da lei de processo, quando desta for admissível o recurso, nos termos do nº2, do art. 754, de modo a interpor do mesmo Acórdão um único recurso “.
No caso presente, além da violação da lei substantiva, o recorrente veio invocar a violação do art. 651, nº1, al. c) , do C.P.C. e ter sido cometida a nulidade do art. 201 do mesmo diploma, por a audiência de julgamento não ter sido adiada e ter sido realizada, à primeira marcação, sem a presença do seu Ex.mo Advogado .
Por se tratar da violação da lei de processo, não é admissível recurso do Acordão da Relação, na parte em que apreciou esta matéria processual e em que negou provimento ao agravo, pelo que se decide não conhecer do objecto desta parte do recurso, nos termos dos arts 722, nº1 e 754, nº2, 1ª parte do C.P.C.

Apreciando a restante matéria, cumpre dizer que o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista que é, se limita, em princípio, a aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido – art. 729, nºs1 e 2 do C.P.C.
O eventual erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo nos casos especiais previstos na 2º parte, do nº2, do art. 722, do C.P.C., que aqui não ocorrem .
Por isso, não pode este Supremo Tribunal considerar provada a matéria dos quesitos 4º e 5º da base instrutória, como pretende o recorrente .
Pelo contrário, é apenas com base nos factos julgados provados pela Relação, atrás descritos, e só com eles, que este Supremo tem de decidir o recurso .
Ora, perante os factos apurados pelas instâncias, é manifesto que o recurso está votado ao insucesso .
É que não chegou a apurar-se a causa, o motivo, pelo qual os dois cheques, no valor global de 9.000.000$00 foram entregues à ré .
Como se tem dito e redito, a resposta negativa a um quesito apenas revela que ele se não provou, não se podendo dela concluir ter-se provado o facto contrário .
Tudo se passa como se o facto não tivesse sido articulado .
O enriquecimento sem causa a que se refere o art. 473 do C.C., pressupõe os seguintes requisitos : o enriquecimento, o empobrecimento, o nexo causal entre um outro e a falta de causa justificava da deslocação patrimonial verificada.
O conceito de causa do enriquecimento é muito controvertido e o citado art. 473, intencionalmente, não o define, limitando-se a cautelosamente a facultar ao intérprete algumas indicações capazes de, como meros subsídios, auxiliarem a sua formulação .
É essa a principal finalidade do nº2, do mesmo preceito, quando afirma que a obrigação de restituir tem, de modo especial, por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que se não verificou .
Com vista a abranger todas as situações de enriquecimento injusto, poderá dizer-se que a falta de causa justificativa se traduz na inexistência de uma relação ou de um facto que, à luz dos princípios aceites no sistema, legitime o enriquecimento ( Ac. S.T.J. de 14-1-72, Bol. 213-214) .
Mas como observam Pires de Lima e Antunes Varela ( Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed., pág. 456). “, a falta de causa terá de ser não só alegada como provada, de harmonia com o princípio geral estabelecido no art. 342, por quem pede a restituição .
Não bastará para esse efeito, segundo as regras gerais do onus probandi, que não se prove a existência de uma causa de atribuição ; é preciso convencer o tribunal da falta de causa “.
Ora, no caso concreto, não se apurou se os 9.000.000$00 foram entregues pelo autor à ré, a título de princípio de pagamento do loteamento invocado na petição inicial, ou se a título de liberalidade, no âmbito do relacionamento sentimental mantido entre ambos .
Apesar de não se ter demonstrado a causa para a atribuição dos 9.000.000$00 à ré, o autor não fez prova positiva da falta de causa da entrega desse montante à mesma ré, como lhe incumbia, nos termos do art. 342, nº1, do C.C., por ser facto constitutivo do seu direito .
Daí que não se mostrem violadas as regras do ónus da prova e que a acção não pudesse deixar de naufragar.
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Termos em que negam a revista .
Custas pelo recorrente .

Lisboa, 29 de Maio de 2007

Relator : Cons. Azevedo Ramos
Adjuntos :Cons. Silva Salazar
Cons. Afonso Correia