Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06P3664
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: OLIVEIRA MENDES
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
PERDA DE BENS A FAVOR DO ESTADO
VEÍCULO
Nº do Documento: SJ200612130036643
Data do Acordão: 12/13/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Sumário : I - Segundo actual jurisprudência do STJ, a perda dos objectos do crime, nos termos do art. 35.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22-01, só é admissível quando entre a utilização do objecto e a prática do crime, em si próprio ou na modalidade, com relevância penal, de que se revestiu, exista uma relação de causalidade adequada, de forma a que, sem essa utilização, a infracção em concreto não teria sido praticada ou não o teria sido na forma, com significação penal relevante, verificada.
II - Trata-se de orientação que tem por fundamento a necessidade de existência ou preexistência de uma ligação funcional e instrumental entre o objecto e a infracção, de sorte que a prática desta tenha sido especificadamente conformada pela utilização do objecto. Decorre desta jurisprudência, que conforma o texto legal com os princípios constitucionais da necessidade, da adequação e da proporcionalidade, que a perda só deve ser declarada, em regra - e não sempre, visto que perante objecto de extrema perigosidade ou perante a existência de altíssimo risco da utilização daquele para a prática de outros crimes, poderá o julgador declarar a sua perda independentemente da existência de proporção entre o valor do objecto e a gravidade do ilícito, devendo para tanto sopesar, de acordo com um prudente juízo, os valores e interesses em conflito -, quando se mostre minimamente justificada pela gravidade do crime e não se verifique uma significativa desproporção entre o valor do objecto e a gravidade do ilícito.
III - Se do exame da decisão proferida sobre a matéria de facto decorre que o veículo automóvel pertença do recorrente, aquando da respectiva apreensão, era conduzido pelo seu filho, o arguido P, que tinha consigo duas embalagens com 1,850 g de cocaína, 80 em dinheiro, 5375 num saco de plástico, quantia esta que se preparava para entregar ao arguido N em pagamento do produto estupefaciente e parte da qual obtivera através de anteriores cedências a terceiros daquele produto mediante contrapartidas monetárias, uma pistola com as inscrições Ft Made in Italy, PSF modo Gt 28, calibre 6,35, com 5 munições, em boas condições de funcionamento, duas navalhas, uma de ponta e mola e outra normal, que utilizava para cortar/separar estupefacientes, 3 telemóveis, os quais também utilizava para contacto com consumidores e duas embalagens com 2,23, g de cocaína, há que concluir inexistir qualquer ligação funcional ou instrumental entre o automóvel do recorrente e o crime de tráfico perpetrado pelo arguido P, uma vez que entre o uso do automóvel e a prática do crime não se verifica uma relação de causalidade adequada, consabido que sem a utilização do veículo a infracção teria sido praticada na mesma, pois a quantidade de cocaína que o arguido tinha consigo podia ser por ele transportada por qualquer outra forma, inclusive a pé, tal como a cocaína que se preparava para adquirir ao co-arguido N. *

* Sumário elaborado pelo Relator.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



Em acórdão proferido no processo comum com intervenção do tribunal colectivo n.º 27/05. 6, do 2º Juízo da comarca de Torres Vedras, foram declarados perdidos a favor do Estado, entre outros bens, os veículos automóveis TE, marca Mercedes, e EN, marca VW (1).
Interpôs recurso CC, devidamente identificado, recurso circunscrito à vertente da decisão que declarou perdido a favor do Estado o veículo TE.
São do seguinte teor as conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada:
1. O douto acórdão final condenatório do Tribunal Colectivo de fls.1751 a 1776 dos autos veio decidir o perdimento a favor do Estado do veículo automóvel da marca Mercedes-Benz, modelo C220 CDI, com a matrícula TE, de que é proprietário o ora recorrente CC, interveniente acidental e pai do arguido AA.
2. O perdimento foi decretado sem que tenha resultado provado que o recorrente tivesse conhecimento da actividade ilícita levada a cabo pelo seu filho quando em posse do veículo.
3. Da discussão da causa e com relevo para a decisão respeitante ao destino a dar aos bens apreendidos ao arguido AA, o tribunal colectivo considerou assente (cf. fls.6, 7, 11 e 16 do douto acórdão): que no dia 7 de Junho de 2005 os arguidos BB e AA se encontraram na Malveira, conduzindo ao arguido AA o veículo Mercedes, modelo C220, com a matrícula TE; que o arguido BB retirou do seu carro a cocaína que trazia consigo para entregar ao AA e entrou no veículo deste, momento em que foram abordados por inspectores da Polícia Judiciária, trazendo o arguido AA consigo estupefacientes, algumas quantias em dinheiro e uma pistola; duas navalhas e três telemóveis.
4. E ainda que, na motivação da decisão: "(...) o Mercedes, que [o arguido AA] utilizava habitualmente (...) foi inequivocamente adquirido e pago pelos pais (...)".
5. Nem o recorrente nem a sua mulher são ou foram arguidos nos autos, sendo que não se levantou dúvida sobre a titularidade do veículo Mercedes C220 (veículo que o recorrente adquiriu com o seu dinheiro), face aos documentos juntos aos autos e por tal ter sido considerado provado em audiência de discussão e julgamento (cf. 2º parágrafo de fls. 16 do douto acórdão).
6. Não constou da acusação pública que o recorrente tivesse doado o veículo ao seu filho, arguido AA, tendo aquele alegado nos mesmos que apenas lho emprestava quando o solicitava, o que explica ter o arguido sido visto na sua posse por diversas vezes - conforme depoimentos de várias testemunhas em juízo.
7. Não restam dúvidas de que, uma vez que o ora recorrente não foi acusado de ter conhecimento da actividade criminosa desenvolvida pelo arguido AA, sendo tal ignorância desculpável e não tendo tal alegação sido posta em dúvida em audiência de discussão e julgamento, forçoso é considerar tratar-se aquele de um terceiro de boa fé, que não concorreu, de forma censurável, para a utilização do veículo para fins ilícitos e que não retirou quaisquer vantagens do facto.
8. Pelo que não se encontram preenchidos os pressupostos de facto enunciados na previsão normativa dos artigos 36º-A, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e 110º, do Código Penal.
9. Ao determinar a perda do veículo a favor do Estado do automóvel do ora recorrente, a douta decisão recorrida violou os artigos 36º-A, do Decreto-Lei n.º 15/93, e 110º, do Código Penal, bem como o artigo 62º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
10. No sentido do acima propugnado, maxime no que respeita à manifesta insuficiência da matéria de facto considerada provada para fundamentação da decisão ora recorrida, veja-se a jurisprudência firmada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14/04/1994, segundo a qual: «Actualmente, face ao Decreto-Lei n.º 15/93, para que possa ser declarada a perda dos objectos que serviram ou se destinavam a servir para a prática do crime, é necessário que eles, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, ponham em perigo a segurança das pessoas ou a ordem pública ou ofereçam sério risco de serem utilizados para cometimento de novos crimes. (...) Provando-se apenas que o arguido utilizava o automóvel no transporte de estupefacientes, não pode ser declarado perdido a favor do Estado.»
O recurso foi admitido.
Na contra-motivação apresentada a Exm.ª Procuradora da República formulou as seguintes conclusões:
a) O artigo 35º, n.º 1, do DL 15/93, com as alterações introduzidas pela Lei 45/96, impõe, como regra geral, que sejam "declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tivessem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infracção prevista" naquele diploma.
b) O artigo 36º-A, do mesmo diploma, consagra a possibilidade duma tal regra ser afastada quando, pertencendo os bens a terceiro, este não saiba que eles se achavam nalguma das situações do referido artigo 35º, n.º 1, sem que um tal desconhecimento lhe seja censurável.
c) Para que a regra geral do perdimento seja afastada, mister é que o terceiro prove, quer a titularidade do bem, quer a sua boa fé, prova essa que lhe cumprirá fazer no incidente autuado em apenso.
d) Só provado tal, deixará o bem de ser declarado perdido a favor do Estado para ser entregue ao respectivo dono.
e) Ao declarar perdida a favor do Estado viatura registada a favor do recorrente, sem que se mostrasse findo o incidente no qual aquele solicitara a respectiva entrega invocando a sua boa fé, o tribunal coarctou a possibilidade legal daquele fazer prova da sua propriedade e da sua boa fé, violando o disposto no artigo 36º A, do DL 15/93.
f) Assim, deverá revogar-se o acórdão na parte em que decretou o perdimento a favor do Estado do veículo Mercedes C220.
g) O facto de não ter sido feita a prova da boa fé do recorrente nos autos principais e de o acórdão ser omisso quanto a tal factualidade, não legitima que seja decretado o levantamento da apreensão e ordenada a entrega do bem ao recorrente.
h) O destino do bem deverá ser apreciado no âmbito do incidente originado em novo requerimento a formular pelo requerente nos termos do artigo 36º A, da Lei da Droga, acaso seja revogada a declaração de perdimento constante do acórdão.
O Exm.º Procurador-Geral Adjunto na vista que teve nos autos, após uma referência à validade e regularidade do recurso, promoveu a designação de dia para audiência.
Colhidos os vistos legais e realizada a audiência, cumpre decidir.

Única questão colocada no recurso é a da ilegalidade da perda do veículo automóvel da marca Mercedes-Benz pertença do recorrente a favor do Estado decretada na sentença.
Paralelamente, há que conhecer a questão suscitada pelo Ministério Público na resposta, atinente ao incidente deduzido nos autos pelo ora recorrente, tendente à produção de prova da sua boa fé.
O tribunal colectivo considerou provados os seguintes factos:

«1- O arguido AA decidiu, em data não concretamente apurada, mas seguramente pelo menos um ano e meio antes da data da sua detenção à ordem dos presentes autos, em Junho de 2005, e após ter cessado a sua actividade de exploração de um bar em Santa Cruz, dedicar-se à venda a terceiros de cocaína na zona de Torres Vedras, como forma de obter rendimentos.

2- Na sequência do assim decidido, e até 7 de Junho de 2005, data em que foi detido à ordem dos presentes autos, o arguido AA cedeu de forma regular cocaína a vários indivíduos consumidores que o contactavam para o efeito, por vezes mediante contrapartidas monetárias e noutras ocasiões gratuitamente.
3- Também o arguido BB, em data não concretamente apurada mas anterior a Janeiro de 2005, decidiu dedicar-se à venda a terceiros de estupefacientes, nomeadamente heroína e cocaína, como forma de obter rendimentos.
4- Desde essa data e até 7 de Junho de 2005, dia em que foi detido no âmbito dos presentes autos, o arguido BB cedeu de forma regular produtos estupefacientes, nomeadamente cocaína, a vários indivíduos que o contactavam para o efeito, mediante contrapartidas monetárias.
5- Em data não concretamente apurada, mas anterior a Janeiro de 2005, ambos os arguidos entraram em contacto entre si, no âmbito da actividade criminosa por cada um deles desenvolvida.
6- Acordaram então que o arguido BB passaria a ser fornecedor de cocaína ao arguido AA, produto estupefaciente que este destinava em parte ao seu próprio consumo e o restante à cedência a terceiros consumidores na zona de Torres Vedras.
7- Assim, desde pelo menos Janeiro de 2005 até Junho desse mesmo ano, que o arguido BB, pelo menos uma vez por mês, fez entrega ao arguido AA de uma média de 200 gramas de cocaína de cada vez, mediante a entrega por este do montante de € 5.500,00, produto estupefaciente que o arguido AA consumiu em parte, tendo cedido o restante a terceiros nesta zona de Torres Vedras, quer de forma gratuita, quer recebendo em troca contrapartidas monetárias.
8- De todas as vezes o arguido AA contactou previamente o arguido BB através do telefone a fim de efectuar a encomenda, combinando ambos a hora, dia e local de entrega, por regra, na Malveira.
9- No âmbito dessa actividade criminosa desenvolvida por ambos:
- no dia 16-02-05, o arguido AA contactou telefonicamente com o arguido BB a encomendar-lhe cocaína, tendo ambos acordado a entrega para o dia seguinte;
- no dia 28-02-05 o arguido AA encomendou 200 gramas de cocaína ao arguido BB, tendo ambos combinado a entrega para o dia 30;
- no dia seguinte, 29-03-05, o arguido BB contactou telefonicamente com o arguido AA, dizendo-lhe para não falar tão abertamente ao telefone sobre a sua actividade criminosa, dizendo-lhe para disfarçar utilizando termos como frutas e outras coisas. Confirmaram ainda a entrega de estupefaciente para o dia seguinte;
- na sequência desse contacto telefónico, no dia 30-03-05, cerca das 19hOO, os arguidos encontraram-se nas bombas de gasolina da Shell, na Malveira, em frente ao café restaurante "...", seguindo depois até à Rua das Forças Armadas, onde foi concretizada a entrega de cocaína;
- no dia 4-04-05 o arguido AA mandou uma mensagem SMS ao arguido BB a dizer-lhe que a qualidade da entrega era pior do que a anterior, o que lhe havia sido dito;
- a 6-04-2005 o arguido AA falou telefonicamente com o arguido BB, tendo dito que estava chateado com a queixa sobre a qualidade do estupefaciente, tendo o AA lhe dito que tinha tido uma reclamação dos clientes, que ele, AA, "não percebias muito da coisa";
- no dia 19-04-2005, cerca das 19h00, os arguidos voltaram a encontrar-se na Rua das Forças Armadas, na Malveira, tendo nessa altura o arguido BB entregue ao arguido AA cocaína;
- no dia 12-05-2005 o arguido BB falou com o arguido AA a combinar a entrega de estupefaciente para o dia seguinte;
- no dia 6-06-2005 combinaram nova entrega para o dia seguinte;

10- O arguido AA cedeu a terceiros parte da cocaína que recebeu, nomeadamente do BB, por vezes mediante contrapartidas monetárias, afectando o restante produto estupefaciente ao seu próprio consumo.

11- No âmbito das vendas efectuadas, o arguido AA:
- nos dias 3-02-05 e 7-02-05 foi contactado telefonicamente por um indivíduo de nome DD, que lhe encomendou estupefacientes;
- no dia 6-02-05 foi contactado por um indivíduo que lhe encomendou um grama de cocaína, pelo preço de 40 euros;
- no dia 24-02-05 foi contactado telefonicamente por um indivíduo que lhe encomendou estupefacientes;
- no dia 14-03-05 foi contactado telefonicamente por um indivíduo de nome EE que lhe encomendou estupefaciente;
- no dia 26-03-05 foi contactado telefonicamente por um indivíduo que não foi possível identificar, para combinar entrega de estupefaciente;
- no dia 13-05 recebeu uma encomenda de estupefaciente para esse mesmo dia;
- no dia 17-05-05 recebeu uma mensagem SMS a encomendar estupefaciente, exigindo o "cliente" boa qualidade;
- no dia 18-05-05 recebeu uma mensagem SMS de uma pessoa chamada FF a encomendar estupefaciente.

12- Por várias vezes, nos anos de 2004 e 2005, o arguido AA entregou cocaína a GG.
13- Numa outra ocasião, em data não concretamente apurada do ano de 2004 ou nos primeiros meses de 2005, mas anterior a 7 de Junho deste ano, o arguido vendeu um grama de cocaína a HH recebendo deste a contrapartida monetária de € 50,00.
14- Num período que se prolongou durante pelo menos 1 ano e até Junho de 2005, o arguido AA vendeu por várias vezes cocaína, ao preço de € 50,00 ou € 40,00 a grama, ao II, fazendo a entrega do produto estupefaciente na sua casa.
15- Em datas não concretamente apuradas do ano de 2005, mas anteriores a 7 de Junho desse ano, o arguido AA vendeu por várias vezes, em sua casa, cocaína a JJ, por € 50,00 cada grama.
16- Durante cerca de 1 ano, ano e meio e até à data da sua detenção em Junho de 2005, o arguido AA vendeu por várias vezes cocaína a KK, em casa do arguido ou na rua, a € 50,00 a grama.
17- No dia 7 de Junho de 2005, na sequência do combinado anteriormente, os arguidos BB e AA encontraram-se na Rua das Forças Armadas, Malveira, cerca das 15H40.
18- O arguido BB conduzia o veículo ligeiro de passageiros da marca VW, modelo Golf com a matrícula EN, e o arguido AA o veículo ligeiro de passageiros da marca Mercedes, modelo C220, com a matrícula TE.
19- Assim que se encontraram o arguido BB retirou do seu carro a cocaína que trazia consigo para entregar ao AA e entrou no veículo deste, momento em que foram abordados por inspectores da Polícia Judiciária.
20- O arguido BB, tinha então na sua posse dois sacos de plástico transparente contendo 198,257 gramas de cocaína, que se preparava para entregar ao arguido AA.
21- O arguido AA destinava parte deste produto ao seu próprio consumo e o restante à cedência a terceiros, também a título oneroso.
22- No veículo, o arguido AA tinha consigo:
- duas embalagens com 1,850 gramas de cocaína;
- € 80,00 em dinheiro;
- € 5.375,00 num saco de plástico, quantia esta que se propunha entregar ao arguido BB em pagamento do produto estupefaciente e parte da qual obtivera através de anteriores cedências a terceiros daquele produto mediante contrapartidas monetárias;
- uma pistola com as inscrições Ft Made in Italy, PSF modo Gt 28, calibre 6,35 com 5 munições, em boas condições de funcionamento;
- duas navalhas, uma de ponta e mola e outra normal, que utilizava para cortar/ separar estupefaciente;
- 3 telemóveis, os quais também utilizava para contacto com consumidores;
- duas embalagens com 2,23 gramas de cocaína.

23- Na ocasião o arguido AA tinha ainda consigo € 250,00.
24- Nesse mesmo dia 7 de Junho de 2005, na sua casa sita em ..., lote ..., ..., Praia de Sta. Cruz, o arguido AA tinha consigo:
- 3 telemóveis, que também utilizava nos contactos com consumidores;
- 2 canivetes, os quais usava para cortar/separar produto estupefaciente;
- duas embalagens com o peso global de 4,074 gramas de canabis (resina), vulgo haxixe;
- diversos sacos de plástico cortados, para acondicionar estupefacientes;
- duas navalhas para corte de estupefacientes;
- 4 munições;
- a quantia de € 665,94;
- um plástico com 0,604 gramas de cocaína (exame de fIs. 1072).

25- Nesse mesmo dia 7 de Junho de 2005 o arguido BB tinha consigo, na sua casa sita na Rua ..., ..., ..., Lisboa:
- uma balança digital da marca Tanita, modelo 1479V, de alta precisão para pesos até 120 gramas, destinada a pesar produto estupefaciente;
- na cozinha, € 1.960,00 em notas, quantia monetária proveniente da venda de estupefacientes;
- 68,183 gramas de cocaína, em duas embalagens, produto estupefaciente que destinava à entrega a terceiros mediante contrapartidas monetárias;
- 26,064 gramas de heroína, produto que também destinava à entrega a terceiros mediante contrapartidas monetárias;
- na cozinha, vários sacos de plástico transparente para embalagem de doses de heroína e cocaína.
26- Os arguidos AA e BB quiseram sempre agir como agiram, sabendo que detinham na sua posse cocaína (ambos), heroína (o arguido BB) e haxixe (o AA), querendo os arguidos deter tais produtos, destinando a cocaína e a heroína à cedência a terceiros, mediante contrapartidas monetárias, como forma de obter rendimentos.
27 - Com tal actividade, ambos os arguidos auferiram rendimentos.
28- O arguido AA quis ainda ter na sua posse a pistola, sem a mesma estar registada nem tendo ele licença para a respectiva posse, sabendo que tal era necessário para a ter em seu poder.
29- Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo serem proibidos os seus descritos comportamentos.
30- O arguido BB confessou a prática dos factos, de forma espontânea, integral e sem reserva.
31- Foi condenado por acórdão proferido em 21/2/2003 no âmbito do processo comum colectivo n.o 233/01.2 PXLSB, da 2ª secção da 8ª Vara Criminal de Lisboa na pena única de 220 dias de multa à taxa de 2,00 por dia, pela prática em 14/10/2001, de dois crimes de injúria agravada, p. e p. pelo art. 181°, n.o 1 e 184°, com ref. à aI. j) do n.o 2 do art. 132º, todos os preceitos do CP e dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. nos arts. 143°, n.o 1 e 146°, nos 1 e 2, com ref. à al. j) do n.o 2 do art. 132°, todos do CP.
32- O processo de crescimento do arguido BB decorreu em ambiente familiar muito conturbado, tendo vivenciado permanências em vários agregados até se autonomizar.
33- Até aos dois anos e meio o arguido viveu com os progenitores, em ambiente familiar caracterizado pela disfuncionalidade, na sequência de problemas de alcoolismo por banda do progenitor
34- Com a referida idade, juntamente com uma irmã mais nova, passou a residir com os avós matemos no bairro da Cruz Vermelha, contexto residencial bastante degradado e conotado com elevado índice de marginalidade.
35- Residiu com os avós até aos 9 anos de idade, tendo depois transitado para o agregado do progenitor, dada a existência de comportamentos desviantes, impossíveis de controlar pelos avós.
36- Concluiu a 4ª classe apenas com 13 anos de idade, com registo de várias reprovações por falta de assiduidade e desmotivação.
37- Foi expulso aos 16 anos de idade da casa do pai, passando a residir sozinho em quartos arrendados no Bairro da Serafina, trabalhando na construção civil por conta de outrem e também por sua própria conta, vindo a autonomizar-se aos vários níveis.
38- Iniciou-se então no consumo de heroína, o qual manteve durante cerca de 2 anos, após o que ingressou numa comunidade terapêutica em Espanha, onde permaneceu cerca de 1 ano.
39- O arguido mantém-se abstinente do consumo de produtos estupefacientes desde então.
40- À data da prática dos factos o arguido não trabalhava, subsistindo e4 exclusivo da venda de produtos estupefacientes.
41- O arguido vem mantendo comportamento institucional adequado, beneficiando de visitas regulares da progenitora e pontuais da avó, de uma irmã e de amigos do bairro da ....
42- O arguido AA é primário.
43- O processo de desenvolvimento deste arguido processou-se em meio familiar harmonioso, tendo-lhe sido transmitidos padrões considerados essenciais para uma vivência normativa, desfrutando ainda o agregado de situação económica privilegiada.
44- Interrompeu o percurso académico aos 13 anos de idade, após conclusão do 60 ano de escolaridade, data a partir da qual passou a auxiliar os progenitores na actividade comercial por estes desenvolvida de exploração de estabelecimentos (inicialmente um café na estação da CP de Torres Vedras e, posteriormente, bares em Santa Cruz).
45- Casou aos 21 anos de idade, relação da qual resultou uma filha, actualmente com 14 anos.
46- Em Setembro de 2002 a esposa encetou relacionamento de natureza amorosa com um empregado do bar cuja gerência era exercida pelo arguido, acabando por abandonar o lar conjugal, situação que provocou no AA grande desequilíbrio emocional.
47- O arguido iniciou-se então no consumo de produtos estupefacientes, cocaína e, esporadicamente, haxixe, tendo-se tornado dependente daquele primeiro produto estupefaciente, do qual chegou a consumir mais do que um grama por dia.
48- O arguido consumia com amigos e conhecidos durante festas que organizava e saídas nocturnas, ocasiões em que disponibilizava cocaína aos seus convivas.
49- Face ao agravamento do consumo o arguido, que auferia à data um salário, pago pelos progenitores, da ordem dos 300 000$00 mensais, o arguido passou a desviar quantias várias do apuro diário do bar, tendo os progenitores decidido trespassar o mesmo.
50- Assim, cerca de 6 meses depois da separação do casal formado pelo arguido e pela esposa, o bar cuja gerência era por aquele exercida foi trespassado, recebendo este dos progenitores o montante de € 50 000,00 correspondente a parte do produto de tal negócio, quantia que rapidamente dissipou, dado o seu estilo de vida e hábitos aditivos.
51- Os progenitores do arguido fixaram-se então no Algarve, procedendo a investimentos na zona.
52- O arguido não exerce qualquer profissão remunerada desde o início do ano de 2003, período ao longo do qual foi beneficiando de ajudas monetárias que lhe eram prestadas por sua mãe, vindo a manter o seu anterior estilo de vida, com satisfação da prestação relativa à amortização do empréstimo contraído para a aquisição da casa onde residia.
53- O veículo da marca Mercedes, modelo C220, com a matrícula TE, encontra-se registado em nome do pai do arguido AA, sendo certo que era habitualmente este quem o utilizava.
54- O arguido dispõe de incondicional apoio familiar.
55-A experiência que agora vivencia parece ter promovido um repensar do estilo de vida por si preconizado, apresentando o arguido planos com consistência para uma futura vivência em liberdade adequada aos padrões normativos vigentes.
56- O arguido mantém-se abstinente desde a data da sua prisão, beneficiando do apoio do psicólogo da instituição.
57- Durante a sua reclusão vem mantendo adequado comportamento institucional frequentando um curso de informática e mantendo ocupação como faxina.»


Vem alegado pelo recorrente, na defesa da ilegalidade da declaração de perdimento do seu veículo automóvel, não haver concorrido, de forma censurável, para a sua utilização para fins ilícitos, não tendo retirado qualquer vantagem do facto delituoso cometido pelo filho, arguido AA, para além de que desconhecia a actividade criminosa desenvolvida pelo mesmo.
Mais vem alegado, por referência a acórdão deste Supremo Tribunal, que para declaração de perdimento dos objectos que serviram ou se destinavam a servir para a prática do crime, é necessário que eles, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, ponham em perigo a segurança das pessoas ou a ordem pública ou ofereçam sério risco de serem utilizados para cometimento de novos crimes.
Primeira observação a fazer é a de que o regime originário da perda de objectos constante do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, segundo o qual constituía requisito essencial da declaração de perdimento a perigosidade do objecto, perigosidade objectiva e subjectiva (2), foi alterado pela Lei 45/96, de 3 de Setembro, a qual introduziu nova redacção ao artigo 35º, n.º 1, da Lei da Droga, amputando a sua parte final (3).
Daí a jurisprudência referenciada pelo recorrente, constante do acórdão deste Supremo Tribunal de 14 de Abril de 1994, jurisprudência que, obviamente, se encontra ultrapassada, pela assunção de orientação segundo a qual, na criminalidade punível pelo DL 15/93, de 22.01, a perda de objectos a favor do Estado, tratando-se de instrumentos do crime, depende apenas de um requisito em alternativa - que tenham servido, ou estivessem destinados a servir, para a prática de uma infracção prevista naquele diploma; tratando-se de produtos, a declaração de perda depende tão-só da sua natureza de ser um resultado da infracção (4) .
Mais recentemente, este Supremo Tribunal tem enveredado por uma interpretação do n.º 1 do artigo 35º de acordo com a qual a perda dos objectos do crime só é admissível quando entre a utilização do objecto e a prática do crime, em si próprio ou na modalidade, com relevância penal, de que se revestiu, exista uma relação de causalidade adequada, de forma a que, sem essa utilização, a infracção em concreto não teria sido praticada ou não o teria na forma, com significação penal relevante, verificada (5) .
Trata-se de orientação que tem por fundamento a necessidade de existência ou preexistência de uma ligação funcional e instrumental entre objecto e a infracção, de sorte que a prática desta tenha sido especificadamente conformada pela utilização do objecto (6), jurisprudência que conforma o texto legal com os princípios constitucionais da necessidade e da adequação, orientação que sufragamos, por isso, sem esquecer que há ainda que ter em atenção o princípio constitucional da proporcionalidade - artigo 18º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa -, princípio que preside a toda a providência sancionatória (7) - a significar que a perda só deve ser declarada, em regra, quando se mostre minimamente justificada pela gravidade do crime e não se verifique uma significativa desproporção entre o valor do objecto e a gravidade do ilícito (8).

Do exame da decisão proferida sobre a matéria de facto decorre que o veículo automóvel Mercedes Benz, pertença do recorrente, aquando da respectiva apreensão, era conduzido pelo seu filho, o arguido AA, que tinha consigo duas embalagens com 1,850 gramas de cocaína, € 80,00 em dinheiro, € 5.375,00 num saco de plástico, quantia esta que se propunha entregar ao arguido BB em pagamento do produto estupefaciente e parte da qual obtivera através de anteriores cedências a terceiros daquele produto mediante contrapartidas monetárias, uma pistola com as inscrições Ft Made in Italy, PSF modo Gt 28, calibre 6,35 com 5 munições, em boas condições de funcionamento, duas navalhas, uma de ponta e mola e outra normal, que utilizava para cortar/separar estupefacientes, 3 telemóveis, os quais também utilizava para contacto com consumidores e duas embalagens com 2,23 gramas de cocaína».
Ora, perante este factualismo há que considerar inexistir qualquer ligação funcional ou instrumental entre o automóvel do recorrente e o crime de tráfico perpetrado pelo arguido AA, uma vez que entre a utilização do automóvel e a prática do crime não se verifica uma relação de causalidade adequada, consabido que sem a utilização do veículo a infracção teria sido praticada na mesma.
Com efeito, a quantidade de cocaína que o arguido tinha consigo podia ser por ele transportada por qualquer outra forma, inclusive a pé, tal como a cocaína que se preparava para adquirir ao co-arguido BB.
Assim sendo, não se verificando aquele pressuposto do perdimento há que conceder provimento ao recurso.
Quanto à questão suscitada pelo Ministério Público é evidente que a mesma se mostra prejudicada.

Termos em que se acorda conceder provimento ao recurso, revogando-se o acórdão recorrido na parte em que declarou perdido a favor do Estado o veículo automóvel Mercedes Benz, com a matrícula TE, pertença do recorrente, veículo que a este deverá ser entregue.
Sem tributação.

Lisboa, 13 de Dezembro de 2006
Oliveira Mendes (relator)
Pires Salpico
Silva Flor
Santos Monteiro
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(1) - Pela prática do crime de tráfico de estupefacientes foram condenados os arguidos AA e BB, o primeiro na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, o segundo na pena de 5 anos de prisão. O arguido AA foi ainda condenado na pena de 180 dias de multa à taxa diária de € 5, pela prática de um crime de detenção ilegal de arma.
(2) - Era do seguinte teor o texto originário do n.º 1 do artigo 35º: «São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infracção prevista no presente diploma ou que por esta tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas ou a ordem pública, ou oferecerem sérios risco de serem utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos».

(3) - É do seguinte teor o texto actual do n.º 1 do artigo 35º: «São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infracção prevista no presente diploma ou que por esta tiverem sido produzidos».

(4) - Cf. entre muitos outros, os acórdãos de 98.07.23, 99.06.16 e de 02.03.14, o primeiro e o segundo proferidos nos processos n.ºs 694/98 e 1464/98, o terceiro e último publicado na CJ (STJ), X, I, 234.
(5) - Cf. entre outros os acórdãos de 99.06.02, 01.02.21 e 04.05.19, proferidos nos processos n.ºs 281/99, 2814/00 e 1118/04.

(6) - Cf. o acórdão deste Supremo Tribunal de 04.03.24, proferido no processo n.º 270/04.

(7) - Vide sobre a aplicação do princípio da proporcionalidade ao instituto da perda de objectos em ilícito contra-ordenacional Oliveira Mendes e Santos Cabral, Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas.
Vide também o acórdão deste Supremo Tribunal já citado de 02.03.14, publicado na CJ (STJ), X, I, 234.

(8) - Em regra, visto que perante objecto de extrema perigosidade ou perante a existência de altíssimo risco da utilização daquele para a prática de outros crimes, poderá o julgador declarar a sua perda independentemente da existência de proporção entre o valor do objecto e a gravidade do ilícito, devendo para tanto sopesar, de acordo com um prudente juízo, os valores e interesses em conflito.