Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
279/16.6T8GRD.C2.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
PRÉDIO DOMINANTE
PRÉDIO SERVIENTE
EXTINÇÃO DE DIREITOS
ÓNUS DA PROVA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
QUESTÃO DE FACTO
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
CONDENAÇÃO EXTRA VEL ULTRA PETITUM
Data do Acordão: 11/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / ELABORAÇÃO DA SENTENÇA / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO / RECURSO DE REVISTA.
Doutrina:
- Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª ed. p. 653;
- Carvalho Fernandes, Direitos Reais, 4ª edição, p. 450;
- J. Rodrigues Bastos, Direito das Coisas, (1975), IV, p. 214;
- Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 2ª edição, p. 660;
- Luís Miguel de Andrade Mesquita, RLJ, Ano 143.º, p. 134 e ss.;
- Miguel Teixeira de Sousa, Prova, poderes da Relação e convicção: a lição da epistemologia, Cadernos de Direito Privado n.º 44, Outubro/Dezembro de 2013, p. 29 e ss.;
- Oliveira Ascensão, Desnecessidade e Extinção de Direitos Reais, Separata da Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, Ano de 1964, p. 10 ; Direitos Reais, 4ª edição, p. 440;
- Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Os Artigos da Reforma, 2014, 2ª Edição, Vol I, Almedina, p. 588 e 589.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 609.º, N.º 1, 662.º, 674.º, N.º 3 E 682.º, N.ºS 1 E 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 13-11-2012, PROCESSO N.º 10/08.0TBVVD.G1.S1;
- DE 24-09-2013, PROCESSOS N.º 1965/04.9TBSTB.E1.S1;
- DE 16-01-2014, PROCESSO N.º 695/09.0TBBRG.G1.S1;
- DE 09-07-2014, PROCESSOS N.º 299709/11.0YIPRT.L1.S1;
- DE 25-11-2014, PROCESSOS N.º 6629/04.0TBBRG.G1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

- ACÓRDÃO N.º 55/85, IN BMJ 360 (SUPLEMENTO), P. 195.
Sumário :
I - Os poderes do Supremo Tribunal de Justiça são muito limitados quanto ao julgamento da matéria de facto, cabendo-lhe, fundamentalmente, e salvo situações excepcionais (artigo 674º nº 3 in fine e artigo 682º nº 2 do CPC), limitar-se a aplicar o direito aos factos materiais fixados pelas instâncias (682º nº 1 do CPC) e não podendo sindicar o juízo que o Tribunal da Relação proferiu em matéria de facto.

II - Contudo, o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, pode censurar o modo como a Relação exerceu os poderes de reapreciação da matéria de facto, já que se tal for feito ao arrepio do artigo 662º do Código do Processo Civil, está-se no âmbito da aplicação deste preceito e, por conseguinte, no julgamento de direito.

III - Tendo sido pedida a retirada da vedação, que se constata ser um portão com cerca de 4,10 m de largura, a condenação na entrega da respectiva chave não ultrapassa os limites estabelecidos pelo artigo 609º, nº1 do CPC, porquanto se tem entendido que constitui um minus relativamente ao que foi pedido.

IV – Havendo servidão de passagem, o proprietário do prédio serviente não está impedido de vedá-lo, desde que entregue as chaves ao proprietário do prédio dominante e lhe garanta idêntica facilidade de acesso.

V - A desnecessidade da servidão tem apenas a ver com a conexão íntima entre o prédio dominante e os factos que a determinaram. Tem-se em vista libertar os prédios de servidões desnecessárias ou impraticáveis que desvalorizam os prédios servientes, sem que valorizem os prédios dominantes.

VI – A desnecessidade tem de ser objectiva, típica e exclusiva e supõe uma mudança na situação do prédio dominante.

VII - Só deve ser declarada extinta por desnecessidade uma servidão que deixou de ter qualquer utilidade para o prédio dominante.

VIII - Incumbe ao proprietário do prédio serviente que pretende a declaração judicial da extinção da servidão o ónus da prova da desnecessidade.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




I - RELATÓRIO


AA - Sociedade Agrícola, Lda intentou acção sob a forma do processo comum de declaração, contra BB e esposa CC, pedindo que sejam estes sejam condenados a:

“a) reconhecer que a autora é dona e legítima possuidora do prédio misto identificado no artigo 2º da petição inicial.

b) reconhecer que o seu [dos RR.] prédio misto, inscrito na matriz rústica nº 2993 e na matriz urbana nº 649, descrito na Conservatória do … sob o nº 2…1/20041008, está onerado por uma servidão predial de passagem a pé e veículos motorizados, constituída por destinação de pai de família, a favor do prédio da autora que se inicia a partir de um caminho que entronca na estrada nacional nº … (sentido A… - V… e vice versa), caminho de terra batida, que se revela por sinais visíveis e permanentes através da ausência de ervas ou plantas e dos sulcos provocados pelos rodados dos veículos que ali circulam há mais de 60 anos, com uma extensão de 2098 metros e com uma largura (leito) de 5 a 6 metros que atravessa o prédio dos réus e continua para o prédio da autora, conforme planta de localização que constitui o doc. nº 12 e das três aerofotografias, autenticadas, do Instituto Geográfico do Exército Português, referente à carta militar nº …, datadas do ano de 1947, 1958 e 1996.

c) quando assim se não entenda, condenar-se os réus a reconhecer que o seu prédio misto, inscrito na matriz rústica nº 2993 e na matriz urbana nº 649, descrito na conservatória do … sob o nº 2…1/20041008, está onerado por uma servidão predial voluntária de passagem a pé e veículos motorizados, constituída por usucapião, há mais de 60 anos, a favor do prédio da autora que se inicia a partir de um caminho que entronca na estrada nacional nº … (sentido A… - V… e vice versa), caminho de terra batida, que se revela por sinais visíveis e permanentes através da ausência de ervas ou plantas e dos sulcos provocados pelos rodados dos veículos, quer de tração animal, quer motorizados, que ali circulam há mais de 60 anos, com uma extensão de 2098 metros e com uma largura (leito) de 5 a 6 metros que atravessa o prédio dos réus e continua para o prédio da autora, conforme planta de localização que constitui o doc. nº 12  e  das  três aerofotografias, autenticadas, do Instituto Geográfico do Exército Português, referente à carta militar nº …, datadas do ano de 1947, 1958 e 1996.

d) retirar os portões que colocaram no início do caminho e no limite da parte do caminho que percorre o seu prédio.

e) absterem-se de, por qualquer meio, estorvar o uso e fruição da passagem referida em b) e ou c).

f) pagar à autora uma indemnização, por danos patrimoniais e não patrimoniais, pelos motivos supra alegados, a liquidar em execução de sentença.”


Em síntese, alegou que a A. e os RR são donos dos 2 prédios mistos (vizinhos) que identificou, os quais, há quase cem anos, fizeram parte de um único prédio misto, conhecido e designado por “Quinta das …”, que se autonomizou em três prédios distintos; prédio aquele - a inicial Quinta das … - cujo acesso sempre se fez por um caminho de terra batida (que descreve) que entronca na EN …, que atravessa o que é hoje o prédio dos RR e que liga ao caminho que se encontra no que é hoje o prédio da A., pelo que, com a separação física dos três prédios, o referido caminho continuou a servir os três prédios, assim se constituindo em servidão por destinação de pai de família, ou, a não se entender assim, por usucapião.

Mais alegou a A. que o seu prédio não tem, a não ser por tal caminho, acesso directo à EN …; e que os outros dois caminhos (que admite que existem) de terra batida que o ligam à via pública são de circulação insuficiente e limitada no tempo (nomeadamente, no período do Inverno), razão pela qual necessita do descrito caminho (devido às suas actividades e dimensão).

E alegou ainda que os RR colocaram, no início do caminho no prédio deles, um cadeado com portão, impedindo a utilização do descrito caminho pela A. e dificultando a exploração do prédio da A., com a consequente diminuição do seu valor.


Os RR contestaram, alegando, em resumo, que sobre o caminho existente no prédio deles (RR) não tem a A. qualquer direito de servidão de passagem, dado que, quando os 3 prédios eram um único prédio, havia outros 4 caminhos de acesso ao que é hoje o prédio da A., mantendo, actualmente, o prédio da A. o acesso por tais outros 4 caminhos; e acrescentam que pelo caminho em causa - que só passou a existir a partir dos anos 50 - apenas muito esporadicamente e com autorização deles/RR se passou para o prédio da A..

Alegaram ainda que o caminho em causa está largo e transitável devido à intervenção que os RR fizeram no mesmo e que a A. poderá/deverá fazer o mesmo em relação aos referidos 4 caminhos que dão acesso ao seu prédio, inexistindo por isso qualquer encrave, relativo ou absoluto, não se encontrando assim reunidos os requisitos de que a lei faz depender a constituição de uma servidão legal de passagem, não se tendo também esta constituído quer por destinação de pai de família quer por usucapião.

E, acrescentam, a ter-se a mesma por constituída, deverá a mesma ser julgada extinta por desnecessidade, em virtude da existência dos outros caminhos que dão bom (desde que a A. proceda à sua manutenção e limpeza) e directo acesso ao prédio da A. Razão pela qual concluem pela improcedência da acção e deduzem pedido reconvencional, em que pedem que seja “declarada a extinção da servidão de passagem por desnecessidade da mesma, condenando-se a A/reconvinda a reconhecer tal extinção e a abster-se de praticar actos conducentes à sua passagem pelo prédio dos RR/reconvintes”.


A A. replicou, mantendo o alegado na PI e assim se opondo ao pedido reconvencional.


Em 04.12.2018 foi proferiu sentença, em que concluiu o seguinte:

“ (…)

- julgar a presente acção parcialmente procedente e, em consequência:

condenar os réus BB e CC a reconhecer que a autora AA - Sociedade Agricola, Lda é dona e legítima proprietária do prédio misto, sito em …, denominado “Quinta das …”, com a área total de 1683299,95 m2, área coberta de 363,35 m2, área descoberta de 1682936,6, inscrito na matriz rústica nº 2978 e na matriz urbana nº 641.

- condenar os RR BB e CC a reconhecer que o seu prédio misto, inscrito na matriz rústica nº 2993 e na matriz urbana nº 649, descrito na Conservatória do … sob o nº 2…1/20041008, está onerado por uma servidão predial de passagem a pé e veículos motorizados, constituída por destinação de pai de família, a favor do prédio da autora que se inicia a partir de um caminho que entronca na estrada nacional nº …. (sentido A… V… e vice versa), caminho de terra batida, com uma extensão de 2098 metros e com uma largura (leito) de 4,5 metros que atravessa o prédio dos réus e continua para o prédio da autora, nos termos constantes da planta de localização que constitui o Doc nº 12 e das aerofotografias do Instituto Geográfico do Exército Português, referente à carta militar nº …, datadas do ano de 1947, 1958 e 1996, condenar os RR BB e CC a retirar os portões que colocaram no início do caminho e no limite da parte do caminho que percorre o seu prédio.

- condenar os RR BB e CC a absterem-se de, por qualquer meio, estorvar o uso e fruição da passagem referida.

- absolver os RR BB e CC do pedido de pagamento à autora uma indemnização, por danos patrimoniais e não patrimoniais a liquidar em execução de sentença.

- julgar improcedente a reconvenção deduzida pelos RR BB e CC e em consequência absolver a A. “AA - Sociedade Agrícola Lda.” do pedido reconvencional deduzido pelos Réus.


Em 30.04.2019, a Relação de Coimbra proferiu acórdão que decidiu do seguinte modo:

“ decide-se julgar parcialmente procedente a apelação e consequentemente:

Revoga-se a sentença recorrida na parte em que a mesma declara que se encontra constituída por destinação de pai de família a servidão de passagem que descreve; e, em sua substituição, declara-se que a servidão de passagem assim descrita (na sentença recorrida) se encontra tão só constituída por usucapião;

Revoga-se a sentença recorrida na parte em que a condena os RR a retirar os portões que colocaram no início do caminho e no limite da parte do caminho que percorre o seu prédio; e, em sua substituição, condenam-se os RR a entregar as chaves de tais portões à A. (no prazo de 10 dias, após o trânsito); e

Confirma-se em tudo o mais a sentença recorrida”.


Não se conformando com aquele acórdão, autora e réus recorreram, cada qual apresentando as suas alegações.


CONCLUSÕES DA AUTORA:

1) Vem o presente recurso de revista do douto acórdão recorrido, ora em crise, que revogou a sentença do tribunal judicial de 1ª instância nos exactos termos que constam do mesmo e cujo conteúdo aqui se reproduz para os devidos e legais efeitos.

2) O douto acórdão recorrido fez um mau uso dos seus poderes em sede de reapreciação da matéria de facto dos pontos de facto do probatório relacionados com a separação/divisão do prédio inicial e com a constituição da servidão por destinação de pai de família (pontos 13, 20,22 e 25).

3) Existe manifesto erro de direito na apreciação de tais pontos do probatório revelador de ilogicidade e incoerência probatória pois resulta difícil compreender que o recurso a presunções judiciais seja recusado, pelo acórdão recorrido, para prova de certos factos mas já sirva para prova doutro facto no mesmo momento temporal, isto é, que a “Quinta das …” em momento anterior a 1921 já tinha quatro caminhos internos.

4) O tribunal recorrido fez, pois, um mau uso dos seus poderes em sede de alteração da matéria de facto violando as regras de direito probatório material o que constitui um manifesto erro de direito a ser sindicado por este mais alto Tribunal que deve alterar as respostas introduzidas pelo tribunal recorrido substituindo-as pelas redacções originais fixadas pelo tribunal de 1ª instância de acordo com aplicação correcta das presunções judiciais aplicadas e que levaram, aliás de forma bem fundamentada, a considerar como provado que à data da divisão/separação da “Quinta das …” já existia o caminho que servia a quinta.

5) A factualidade apurada, e erradamente modificada pelo tribunal recorrido, como supra referido, demonstra, sem margem para dúvidas, a constituição de uma servidão predial, constituída por destinação de pai de família, pelo que o tribunal recorrido ao decidir como decidiu violou por deficiente interpretação o artigo 1549º do Código Civil.

6) A modificação, oficiosa, mitigada do pedido só deve ser efectuada após convite às partes para se pronunciarem, em prazo a conceder, pois, doutro modo – no que não se concede – existe uma verdadeira decisão surpresa e uma violação grave do princípio do contraditório.

7) A modificação mitigada do pedido efectuada pelo tribunal recorrido substituindo a retirada dos portões que impedem a passagem pela condenação de entrega das chaves, não avaliou a realidade do caso, introduziu uma injustiça grave no caso concreto pois torna completamente inoperacional o uso da servidão de passagem por parte da autora aqui recorrente.

8) O douto acórdão recorrido, ora em crise, mal julgou, pois aplicou incorrectamente a lei e o direito aos factos violando os artigos 349º, 1544º e 1549º todos do Código Civil e, ainda, os artigos 3º, 5º, 7º e 607 nº 4 e 5 do CPC.

Termina, pedindo que a revista seja julgada procedente, revogando-se, em consequência, a decisão recorrida, devendo ser substituída pela sentença de 1ª instância.

  

CONCLUSÕES DOS RÉUS

1ª – O direito de propriedade é um direito fundamental com assento Constitucional que apenas admite as restrições legalmente previstas e na medida em que sejam indispensáveis ao exercício de outros direitos.

2ª – O exercício do direito de propriedade implica ainda o direito à livre destinação do respectivo objecto, incluindo mesmo a própria inércia do objecto da propriedade.

3ª – Porque é assim, demonstrada a desnecessidade de uma servidão de passagem adquirida por usucapião decorre directamente desse facto (sem necessidade de qualquer outra ponderação) a extinção da servidão independentemente do benefício ou vantagem que tal extinção possa (ou não) implicar para o prédio serviente.

4ª – Ainda que assim não se entendesse, a falta de vantagem ou benefício para o prédio serviente decorrente da extinção da servidão por desnecessidade é facto essencial que tem de ser alegado e provado como excepção (impeditivo do direito de ver extinta a servidão) não podendo o tribunal suprir a falta dessa alegação.

5ª – Uma servidão pode constituir-se por ser útil ao prédio dominante e pode extinguir-se se essa utilidade desaparecer, bastando ao proprietário do prédio serviente provar que a servidão deixou de proporcionar utilidade ao prédio dominante para que consiga obter a sua extinção, sem que lhe seja exigível demonstrar quais as vantagens que, em concreto, alcançará.

Terminam, pedindo que o acórdão recorrido, na parte impugnada, deve ser revogado e substituído (nessa parte) por aresto que julgue procedente o presente recurso e, nessa senda, declarando-se a extinção da servidão em causa por desnecessidade.


A autora contra-alegou, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:

1) Vem o presente recurso de revista normal interposto pelos recorrentes do acórdão que antecede quanto ao segmento decisório que julgou, confirmando, improcedente o pedido reconvencional

2) O recurso interposto pelos recorrentes é inadmissível pois existe uma uniformidade absoluta no entendimento de ambas as instâncias na rejeição do pedido reconvencional deduzido pelos recorrentes o que configura uma “dupla conforme” que obsta ao conhecimento do recurso de revista normal atento o preceituado no artigo 671º nº 3 do CPC

3) Mas mesmo que assim não se entendesse - o que só se admite por mera cautela de patrocínio – também a hermenêutica jurídica, com fundamento no elemento racional e teleológico, que o STJ tem efectuado do nº 3 do artigo 671º do CPC obsta à admissibilidade do recurso de revista normal interposto pelos recorrentes pois o conteúdo decisório do acórdão recorrido é mais favorável comparado com a decisão de primeira instância existindo portanto dupla conforme.

4) Quanto ao conteúdo motivatório do recurso que pretende a extinção por desnecessidade do reconhecimento da servidão predial de passagem a pé e de veículos motorizados, constituída por usucapião, a favor do prédio da recorrida o mesmo é manifestado infundado pois no caso em apreço a factualidade provada e não provada não permite retirar qualquer ilação de desnecessidade.

5) Neste particular de reconhecimento da referida servidão de passagem, constituída por usucapião - pese embora a discordância da recorrida, já manifestada nos autos, quanto ao segmento decisório do acórdão em que se declarou a extinção do direito de servidão de passagem constituída por destinação de pai de família – o tribunal recorrido mais não fez do que aplicar a lei e o direito aos factos.

Termina, pugnando pela improcedência do recurso interposto pelos réus/recorrentes.


Colhidos os vistos, cumpre decidir.



II - FUNDAMENTAÇÃO


A) Fundamentação de facto

 

Mostra-se assente a seguinte matéria de facto:

1. A autora, “AA - Sociedade Agrícola, Lda”, é uma sociedade comercial que se dedica à exploração agrícola, cinegética, animal, florestal e silvicultura.

2. O prédio misto, sito em …, denominado “Quinta das …”, com a área total de 1683299,95 m2, área coberta de 363,35 m2, área descoberta de 1682936,6, inscrito na matriz rústica nº 2978 e na matriz urbana nº 641, com a seguinte composição e confrontações:

- Parte urbana: casa de rés-do-chão - S. coberta: 363,35 m2 - S. descoberta: 336,65 m2 - Norte, sul e nascente, herdeiros de DD; poente, EE;

- Parte rústica: cultura de sequeiro, lameiro, pinhal, mato, pastagem, mata de carvalhos, mata de acácias - Norte, FF, EE; Sul, EE; nascente, fronteira de …; poente, caminho; encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial do … sob o nº4…4/20081231, com inscrição a favor da autora pela AP. 391 de 2009/02/10.

3. Por escritura pública de compra e venda celebrada, no dia seis de Fevereiro de dois mil e nove, no cartório notarial do notário GG, lavrada a fls. 55 a fls. 57, do livro de notas para escrituras diverso número duzentos e quarenta, HH, II, JJ, LL, MM e NN declararam vender e a aqui autora “AA - Sociedade Agrícola, Lda” declarou comprar o prédio misto supra identificado.

4. O avô das pessoas identificadas como vendedoras na escritura pública referida em 3., OO e a esposa PP, no dia de 20 de Agosto de 1919, por escritura pública de venda e quitação, exarada respectivamente a folhas 7 a 8 verso, do livro nº 59, do Notário QQ, do cartório Notarial de …, declararam comprar metade da Quinta das … a RR e mulher SS.

5. O referido OO e esposa, em 09 de Setembro de 1921, outorgaram escritura pública de divisão amigável com os sucessores e representantes de TT proprietários da outra metade da quinta das …, exarada respectivamente nas folhas 45 verso a 48, do livro nº 24, do Notário UU, do Cartório Notarial do … .

6. A autora há mais 70, 80 anos que, por si ou pelos seus ante possuidores, anteriores proprietários do prédio misto supra identificado (em 2), vêm possuindo e fruindo tal prédio, como coisa sua, de boa-fé, de forma contínua, à vista de toda a gente, pacificamente, cultivando-o e colhendo os seus frutos, benfeitorizando, usando e pagando os inerentes impostos, sem oposição ou estorvo de ninguém, com a convicção de que o pode fazer por ser a única dona e o reconhecimento geral de que tem tal direito, na ignorância de qualquer vício dos títulos pelos quais adquiriu.

7. O prédio misto, sito na Quinta das …, com a área total de 930000 m2, área coberta de 187 m2 e área descoberta de 929813 m2, inscrito na matriz rústica nº 2993 e na matriz urbana nº 649 com a seguinte composição e confrontações: terreno de centeio, lameiro, mato e pastagem e dependências agrícolas com 1210 m2 e casa de cave, rés-do-chão e sótão com 187 m2 - norte, VV; sul, limite de …; nascente, caminho de aldeia …; poente, limite de Aldeia …, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial do … sob o número 2…1/20041008 e aí inscrito a favor dos RR.

8. Tal prédio misto identificado veio à titularidade e posse dos RR. por sucessão familiar e por divisão de coisa comum que efectuaram com a irmã do R. marido, XX.

9. A referida XX e marido ZZ vieram, posteriormente, a vender o prédio rústico 6.979, que lhes coube na divisão de coisa comum, a um cidadão de nacionalidade espanhola de nome AAAA.

10. O prédio misto da A., o prédio misto dos RR e o prédio do AAAA faziam parte de um único prédio misto conhecido e designado por Quinta das … .

11. Este inicial prédio designado de Quinta das … dividiu-se, em 09/09/1921, em duas parcelas prediais: uma que ficou a pertencer à família C… e que é a parcela/prédio que esta família vendeu à A. em 06/02/2009; outra parcela/prédio que ficou a pertencer aos sucessores de TT, tendo esta parcela/prédio, por divisão de coisa comum entre o R. e a sua irmã XX, após o terem recebido por sucessão, sido dividido, em data anterior a 08/04/2004, em dois prédios, sendo um deles o dos RR (melhor identificado em 7) e o outro (referido em 9) o que hoje pertence ao cidadão de nacionalidade espanhola de nome AAAA.

12. O cidadão de nacionalidade espanhola AAAA, referido em 9, 10 e 11, tem a aquisição do prédio rústico 6.979 registada desde 16/11/2006.

13. O acesso às duas parcelas prediais que resultaram da primeira divisão (em 09/09/1921) da Quinta das … era também efectuado, desde por volta de 1945, a partir de um caminho de terra batida que entronca na estrada nacional nº … (sentido A… - V… e vice-versa).

14. O seu percurso não teve alterações ao longo dos anos.

15. O caminho referido em 13. é um caminho de terra batida, com uma extensão de cerca de 2098 metros e com uma largura média de 4,5 metros no leito do caminho.

16. O caminho é plano, não apresentando desigualdades relevantes de nível.

17. O leito do caminho, em todo o seu percurso, não tem ervas ou plantas, evidenciando sulcos provocados pelos rodados dos veículos que ali circulam.

18. Uma parte da extensão do referido caminho atravessa o prédio misto dos RR até chegar ao limite do prédio da A. onde se situa a metade das antigas casas senhoriais da quinta …, sendo que a outra metade das casas “senhoriais” situa-se na propriedade dos RR.

19. No prédio da A., o referido caminho de terra batida vai até às suas instalações agrícolas.

20. Desde por volta de 1945 (estando a inicial Quinta das … já dividida, desde 09/09/1921, em dois prédios distintos e autónomos, pertencentes a proprietários diferentes: a família C… e os sucessores de TT) e posteriormente (estando a inicial Quinta das … dividida, desde data anterior a 08/04/2004, em três prédios distintos e autónomos, pertencentes a proprietários também distintos) que o referido caminho de terra batida serviu de acesso (desde 1945) aos dois prédios e actualmente aos três prédios: da A., dos RR. e do AAAA.

21. Na referida escritura de divisão de 09/09/1921 não existe qualquer declaração de vontade a propósito de constituição/manutenção/extinção de encargo ou servidão.

22. A autora e ante possuidores do seu prédio utilizavam o referido caminho de terra batida para acesso ao seu prédio, a pé, de tractor, veículos ligeiros e pesados, à vista de toda a gente, designadamente dos RR e dos seus antecessores, sem estorvo ou oposição de ninguém desde a data de 1945 referida nos factos anteriores.

23. O transporte de produtos para amanhar e semear terra, a posterior recolha e transporte de frutos e produtos armazenados, bem como o transporte de animais e o transporte de materiais de construção para reparações e reconstruções da casas e instalações agrícolas era feito através do referido caminho.

24. O prédio da A. não confronta com a estrada nacional nº … .

25. Quando ainda era um único prédio, em data anterior a 09/09/1921, a Quinta das … já tinha quatro caminhos de acesso ao seu interior.

26. O prédio da A. tem quatro entradas que estão ligadas a caminhos públicos.

27. O prédio da A., para além do caminho que passa no prédio dos réus, referido em 13., pode ter os seguintes acessos: o caminho que confronta com a aldeia …, o caminho que confronta com a fronteira espanhola, o caminho de Aldeia … e o caminho da sua entrada principal que dá acesso a um caminho público, que, por sua vez, entronca na E.N. … .

28. Os outros caminhos de terra batida que ligam o prédio da A. à via pública, são, designadamente, os dois últimos referidos no facto anterior, ou seja, o caminho interno do prédio da autora e o conhecido e designado pelo caminho da “Aldeia …”, no qual existe um portão de entrada e no chão uma “portadela canadiana” com vista a impedir a entrada e saída de animais.

29. O caminho denominado “interno”, supra referido, liga a entrada principal do prédio da A, a um caminho que, por sua vez, entronca com a E.N. … .

30. Assim, o prédio da A. tem também como acessos o caminho interno, da sua entrada principal, que dá acesso ao caminho público, que vai entroncar na E.N. …; e o caminho de Aldeia … .

31. O senhor de nacionalidade espanhola, tem também acesso à sua propriedade pelo caminho de Aldeia … .

32. Os caminhos de terra batida referidos em 28 a 30, têm extensão de 3.400 metros, e 3.300m, respectivamente; e largura de 2,90m e 2,60m, respectivamente.

33. O caminho interno do prédio da autora tem troços com declives e pendentes acentuados, e é ladeado por azinhas, que constituem espécie legalmente protegida.

34. O caminho de terra batida da Aldeia … tem colocados, no seu início e mais adiante do seu percurso, dois portões.

35. Este caminho tem, no seu percurso, algumas valas.

36. E durante os meses de Inverno, mais chuvosos, forma baixios, que acumulam água.

37. Pelo que, no tempo chuvoso, partes do caminho ficam com água.

38. Da aerofotografia, autenticada, do Instituto Geográfico do Exercito Português, referente à carta militar nº …, datada de 1996, correspondente às coordenadas GPS 40°27'8.30"N 6°51'34.02"W do Google Earth, não aparece evidenciado este caminho.

39. Os caminhos que ligam à aldeia das … e à Aldeia …, existem e sempre foram também passagem para quem neles quisesse passar para se deslocar às referidas aldeias.

40. O caminho designado por caminho interno do prédio da A, é um caminho que também liga a aldeia das …, aldeia vizinha ao prédio da A., ao designado por caminho de Aldeia … .

41. Este caminho tem duas entradas directas que confrontam com a via pública em dois pontos opostos do prédio: o caminho da aldeia das … que atravessa o prédio da A até ao caminho da Aldeia …; e do outro lado, o caminho da Aldeia … que liga ao caminho da Aldeia das … .

42. E dá acesso a um caminho público que entronca na E.N. …, que se situa a cerca de 300 ou 400 metros da entrada do prédio dos RR, do lado esquerdo, no sentido de marcha E.N. 332 - Quinta das … .

43. O seu leito tem a largura referida em 32. e pode ser transitável, a pé, de bicicleta, de mota, de carro, ou mesmo de tractor, carrinha, camião ou semi-trailer, desde que mantido, limpo e também alargado, designadamente nos troços em que possui declives acentuados, para permitir a passagem deste último tipo de veículos.

44. O designado caminho de Aldeia …, tem início na E.N. …, atravessa um caminho de terra batida que vai entroncar no referido caminho interno do prédio da A, que segue até à aldeia das … e encontra-se transitável desde o troço da E.N. …, onde entronca, até ao limite da propriedade do senhor de nacionalidade espanhola, e também a partir do início da propriedade do referido proprietário.

45. Por este caminho passam pessoas com interesse pessoal ou profissional em deslocar-se à Quinta das …, podendo ser utilizado pela Autora e seus colaboradores.

46. A passagem por este caminho pode ser feita para a ligação Aldeia … - … e vice-versa, podendo ser utilizada por qualquer interessado.

47. Desde que os RR colocaram o aloquete no portão, que passam neste caminho veículos da A., de seus colaboradores, associados ou visitantes, para acederem ao prédio da A.

48. A portadela canadiana existente no chão, referida em 28, é um obstáculo a que os animais passem para aquele caminho.

49. A A. pode utilizar este caminho, que dá acesso da referida estrada nacional até ao interior do seu prédio, sem ter de atravessar o prédio dos RR., passando por um caminho público que entronca com a referida E.N.

50. Este caminho é exterior e circunda parte do prédio da A. pelo lado do caminho da aldeia das … .

51. Foi neste caminho, perto da entrada, que a A colocou uma placa ou reclame em metal, enterrado no solo, com mais de dois metros de altura, com as inscrições “A.C.L.; Quinta das …; …”,

52. A A., seus colaboradores, clientes, convidados, fornecedores podem aceder pela referida entrada na qual se encontra o referido reclame, que serve para indicar o início e a entrada daquela exploração agrícola ao público.

53. Este caminho encontra-se limpo de mato e de outra vegetação, com rodeiras de passagem de viaturas.

54. Existe um acesso interno do prédio da A. ao referido caminho.

55. No caminho que liga directamente o prédio da A. à fronteira de …, existe um portão com um cadeado.

56. Essa entrada dá acesso ao caminho, bem como à E.N. que dá acesso à localidade espanhola de BBB, localidade vizinha da aldeia portuguesa das ... .

57. A A., seus colaboradores, fornecedores e visitantes também utilizam este caminho.

58. O facto de ser território espanhol não impede a entrada dos mesmos.

59. Este caminho tem uma largura nunca inferior a 2,80m, está limpo de mato e tem rodeiras de passagem de viaturas.

60. Pode ser utilizado pela A., colaboradores, fornecedores, visitantes, para aceder ao prédio da A. sem ter de atravessar o prédio dos RR.

61. É um caminho transitável, sendo costume o representante legal da A, actualmente, passar por ele.

62. Veterinários, fornecedores e clientes têm acedido ao prédio da A. sem necessitarem de atravessar o prédio dos RR.

63. Tanto um veículo ligeiro de passageiros, como um camião TIR podem transitar nos caminhos referidos em 27., desde que os mesmos sejam arranjados e preparados para o efeito.

64. A A. pode limpar, alargar, alisar, colocar terra, designadamente em buracos, regos e declives, nos caminhos que dão acesso à sua propriedade,

65. O caminho, designado por “caminho interno”, cujo leito tem 2,90m de largura, pode ser transitável, a pé, de bicicleta, de mota, de carro, ou mesmo de tractor, carrinha, camião ou semi-trailer, desde que mantido, limpo e também alargado, designadamente nos troços em que possui declives acentuados, para permitir a passagem deste último tipo de veículos.

66. Pelo caminho designado por “caminho de Aldeia …”, ou pelos outros três caminhos que dão acesso ao prédio da A. podem passar carros, carrinhas e camiões ou semi-trailer, desde que nos caminhos sejam arranjados, preparados e alargados nos termos referidos em 63 a 65.

67. Nos caminhos que confrontam com o prédio da A. poderão transitar, tanto um veículo ligeiro de passageiros, como um camião TIR ou semi-trailaer, desde que os mesmos sejam arranjados e preparados para o efeito, envolvendo tal preparação, no sentido de possibilitar o trânsito deste último tipo de veículos, também o seu alargamento.

68. A autora é uma sociedade agrícola, com intuito e fins lucrativos, e que explora o prédio designadamente na área animal e exploração agrícola.

69. A autora além do investimento que realizou para adquirir o prédio - 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros) - tem realizado investimentos para a exploração agrícola.

70. Investimentos que se materializaram e materializam na reconstrução e construção de infra-estruturas agrícolas designadamente;

-    Bebedouros e comedouros para os bovinos;

-    Armazém para recolha de fardos de palha e outros materiais agrícolas;

-   Curral para animais com manga para tratamento veterinário;

-     Silo para alimentos de animais.

71. A autora tem projectos de expansão agrícola que passam pela construção de mais infra-estruturas de apoio à actividade agrícola e exploração animal designadamente ampliação do armazém, construção de um novo curral e pequenas barragens.

72. O que implica o transporte para o seu prédio de materiais de construção civil.

73. Bem como o acesso ao prédio da autora de operários da construção civil.

74. A autora já aprovou um projecto urbanístico de ampliação e reconstrução da metade das casas “senhoriais” da quinta das …, que se encontram em ruínas, para fins de agroturismo.

75. O prédio da autora é zona de caça turística concessionada pela portaria nº 391/2010 de 25 de Junho.

76. No prédio da autora existem mais de 84 bovinos de raça limousine.

77. A autora tem dezenas de porcos pretos.

78. A autora tem marca nacional registada no instituto nacional de propriedade industrial, com o número 45…4, para os produtos e serviços que produz na quinta das … .

79. Os bovinos são alimentados por fardos de palha e por silagem.

80. Cada fardo de palha pesa em média 250 K e os rolos de silagem 800K cada um.

81. Cada semi-trailer tem um comprimento aproximado de 19 metros e 2.55 metros de largura.

82. Em cada abastecimento, um semi-trailer pode transportar mais de 24.000 mil toneladas de carga, sendo que o peso total do semi-trailer é de cerca de 46 toneladas.

83. Ao prédio da autora deslocam-se vários fornecedores, clientes e veterinários que sempre lá acederam pelo caminho que atravessa o prédio dos réus.

84. Os réus colocaram o primeiro portão na entrada do caminho que entronca na estrada nacional nº 332 (sentido aldeia … - V… e vice-versa), e que atravessa o seu prédio.

85. Tal portão não tinha fecho e ou cadeado, sendo que a autora e aqueles que se deslocavam ao seu prédio, bem como os que se deslocavam ao prédio dos réus, utilizavam o caminho sem qualquer constrangimento, abrindo e fechando o portão.

86. Em data não concretamente apurada, os réus colocaram um novo portão, sem fecho ou cadeado, no limite da parte do caminho que percorre o seu prédio.

87. Em data não concretamente apurada, os réus colocaram cadeados nos portões, impedindo o acesso ao prédio da autora pelo referido caminho.

88. O legal representante da A., que reside na cidade da …, teve conhecimento de tal fato praticado pelos RR pelo seu pai, que vive na aldeia de … .

89. Os RR, com o seu comportamento, estão a dificultar a exploração agrícola da autora.

90. Na certidão matricial da parte rústica refere-se que o prédio da A, a nascente, confronta com fronteira de Espanha e a poente confronta com caminho.

91. Os portões referidos em 85. e 86. foram colocados pelos RR para prevenir que os animais da sua exploração agrícola fugissem da mesma e fossem para a estrada ou para os prédios rústicos dos vizinhos.

92. Inexiste qualquer documento ou declaração de vontade de constituição de qualquer direito de passagem ou servidão.

93. O caminho que dá acesso à entrada principal do prédio dos RR, (em causa nos presentes autos), encontra-se largo e em boas condições de circulação porque os RR tratam dele, limpando-o, refazendo as valetas, desobstruindo-as após a estação invernosa, retirando o mato e outra vegetação, colocando terra para tapar os buracos e os regos provocados pelas chuvas e alisando-o, o que fazem todos os anos, várias vezes.

94. Foi o pai do Réu marido, em data não concretamente apurada, que melhorou o caminho que passa pelo prédio dos RR, para poder passar com o automóvel em segurança.

95. O R marido apresentou queixa junto das autoridades policiais, cujo inquérito correu termos sob o n.º 89/14.5G…, na … Secção do DIAP da Comarca da … .


B) Fundamentação de direito


As questões colocadas nas conclusões da autora e dos réus e que este tribunal deve decidir, nos termos dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, são as seguintes:

- Erro na apreciação das provas e na fixação dos factos;

- Decisão surpresa e violação do princípio do contraditório;

- Constituição da servidão: por usucapião ou por destinação do pai de família?

- Extinção da servidão por desnecessidade.


ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS E NA FIXAÇÃO DOS FACTOS


Nas suas alegações, a autora, ora recorrente, insurge-se contra o acórdão recorrido, referindo que fez um mau uso dos seus poderes em sede de reapreciação da matéria de facto dos pontos de facto do probatório relacionados com a separação/divisão do prédio inicial e com a constituição da servidão por destinação de pai de família (pontos 13, 20,22 e 25).

Pugna pela alteração das respostas introduzidas pela Relação, substituindo-as pelas redacções originais fixadas pelo tribunal de 1ª instância de acordo com aplicação correcta das presunções judiciais aplicadas.


Cumpre decidir.

Como é sabido, os poderes do Supremo Tribunal de Justiça são muito limitados quanto ao julgamento da matéria de facto, cabendo-lhe, fundamentalmente, e salvo situações excepcionais (artigo 674º nº 3 in fine e artigo 682º nº 2 do CPC), limitar-se a aplicar o direito aos factos materiais fixados pelas instâncias (682º nº 1 do CPC) e não podendo sindicar o juízo que o Tribunal da Relação proferiu em matéria de facto.



Efectivamente, preceitua o nº 3 do artigo 674º do CPC que “o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

Contudo, o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, pode censurar o modo como a Relação exerceu os poderes de reapreciação da matéria de facto, já que se tal for feito ao arrepio do artigo 662º do Código do Processo Civil, está-se no âmbito da aplicação deste preceito e, por conseguinte, no julgamento de direito[1].

Ou seja, e nas palavras do acórdão do STJ de 06/07/2011[2], “se a este Supremo Tribunal de Justiça lhe é vedado sindicar o uso feito pela Relação dos seus poderes de modificação da matéria de facto, já lhe é, todavia, possível verificar se, ao usar tais poderes, agiu ela dentro dos limites traçados pela lei”.

Trata-se, por conseguinte, de verificar se o Tribunal da Relação, ao usar os seus poderes, respeitou a lei processual, o que é inequivocamente, e como também destaca o Acórdão do STJ de 06/07/2011, matéria de direito[3].


Entremos agora na questão nuclear que diz respeito, essencialmente, à fundamentação da matéria de facto e à análise crítica das provas.


Se se exige que o Tribunal da Relação forme livremente a sua própria convicção, ainda que a mesma porventura possa coincidir com a (também ela livre) convicção do julgador de 1ª instância, a fundamentação da decisão deve, de modo transparente, mostrar o caminho próprio que o Tribunal da Relação seguiu ao formar essa convicção e ao decidir da matéria de facto.


Nas palavras do Acórdão do STJ de 08.06.2011[4], “motivar é justificar a decisão de modo a que possa ser controlada, desde logo, pelo tribunal e, naturalmente, pelos sujeitos processuais e pelas instâncias de recurso”.


Assim, da fundamentação deve resultar, com clareza, o caminho próprio que o Tribunal da Relação seguiu para formar a sua própria convicção, não podendo ser suficiente uma remissão ou concordância genérica com a fundamentação da 1ª instância, como destacou, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/09/2013[5], anotado em sentido concordante por Miguel Teixeira de Sousa[6], e em que se afirma inequivocamente que “a reapreciação das provas não pode traduzir-se em meras considerações genéricas, sem qualquer densidade ou individualidade que as referencie ao caso concreto”.


Sobre esta matéria prescreve o artigo 607º nº 4 do C.P.Civil o seguinte:

“Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência”.


No regime de fundamentação da sentença ou do acórdão sobre matéria de facto, para além da fundamentação das respostas positivas, o juiz passa a ter de justificar as respostas negativas; por outro lado, a decisão, para além de especificar os fundamentos que foram decisivos para convicção do julgador, tem de proceder à análise crítica das provas.


Isto significa que o juiz deve esclarecer quais as provas que o levaram a formar a sua convicção e deve ainda analisar criticamente as provas produzidas, explicando os motivos que o levaram a optar por uma determinada resposta.


Para Antunes Varela, “além do mínimo traduzido na menção especificada dos meios de prova geradores da convicção do julgador, deve este ainda, para plena consecução do fim almejado pela lei, referir, na medida do possível, as razões da credibilidade ou da força decisiva reconhecida a esses meios de prova”[7].


Miguel Teixeira de Sousa refere que “ o tribunal deve indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado. A exigência da motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão. Através da fundamentação, o juiz passa de convencido a convincente”[8].


Em anotação ao artigo 653º nº 2 (a que corresponde o actual 607º nº 4), Lopes do Rego escreveu: “… a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, provada e não provada, deverá fazer-se por indicação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz, o que compreenderá não só a especificação dos concretos meios de prova, mas também a enunciação das razões ou motivos substanciais por que eles relevaram ou obtiveram credibilidade no espírito do julgador – só assim se realizando verdadeiramente uma “análise crítica das provas”. Tal circunstância determinou a alteração do preceituado no nº 5 do artigo 712º do CPC, podendo ter lugar a remessa do processo à 1ª instância para fundamentação da decisão proferida sobre a matéria de facto sempre que ela se não mostre “devidamente fundamentada” (e não apenas quando omita a menção dos concretos meios de prova que a suportaram)[9].


Segundo o acórdão nº 55/85 do Tribunal Constitucional[10], a fundamentação das decisões jurisdicionais cumpre, em geral, duas funções:

a) Uma, de ordem endoprocessual, que visa essencialmente impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da decisão, permitindo às partes o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação e ainda colocar o tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente com o decidido;

b) Outra, de ordem extraprocessual, já não dirigida essencialmente às partes e ao juiz “ad quem”, que procura, acima de tudo, tornar possível o controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão – e que visa garantir, em última análise, a “transparência” do processo e da decisão.


Não sendo satisfatoriamente cumprida, quanto a algum facto essencial, a exigência de fundamentação emergente do estatuído no nº 2 do artigo 653º, pode a parte prejudicada requerer que o tribunal de 1ª instância supra a nulidade, procedendo à fundamentação adequada. Face à actual relevância – constitucional e legal – da exigência de fundamentação, temos como duvidosa a solução consistente em considerar que a lei não estabelece qualquer

sanção para a falta de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto: o que, a nosso ver, decorre do nº 5 deste artigo 712º é que a nulidade cometida, quando reclamada adequadamente pela parte, deve, na medida do possível, ser sempre suprida pela 1ª instância; mas, se tal suprimento for impossível, não nos parece excluída a possibilidade de a Relação anular o julgamento com base numa omissão essencial e relevante de fundamentação (sublinhado nosso)[11].


A fundamentação deve conter, como suporte mínimo, a concretização do meio probatório gerador da convicção do julgador e ainda a indicação, na medida do possível, das razões da credibilidade ou da força decisiva reconhecida a esses meios de prova, a menção das razões justificativas da opção feita pelo julgador entre os meios probatórios de sinal oposto relativos ao mesmo facto[12].


“Quando a prova é gravada, a sua análise crítica constitui complemento fundamental da gravação; indo, nomeadamente, além do mero significado das palavras do depoente (registadas em audiência e depois transcritas), evidencia a importância do modo como ele depôs, as suas reacções, as suas hesitações e, de um modo geral, todo o comportamento que rodeou o depoimento”[13].


A análise crítica das provas prevista para o julgamento referido na primeira parte do nº 4 do artigo 607º do Código de Processo Civil não difere funcionalmente do exame pressuposto no julgamento regulado na segunda parte deste número: ambos visam concluir se a prova produzida é, em concreto, bastante para a demonstração do facto. O modo como se chega a tal conclusão é, no entanto, profundamente diferente, o que se reflecte na motivação da convicção.

Na motivação da decisão sobre os factos julgados de acordo com a norma constante da primeira parte do nº 4, o juiz explica por que razão, de acordo com a sua livre convicção (primeira parte do nº 5), o meio é idóneo, em abstracto e em concreto, à prova do facto; na motivação do julgamento feito no contexto da segunda norma, o juiz partindo da certeza e afirmando que o meio é, em abstracto, idóneo (v.g. um documento), esclarece por que razão se extrai dele (ou não) o facto a provar (segunda parte do nº 5).


Num caso, o juízo de conformidade entre os factos alegados e a realidade histórica estriba-se na prudente convicção do julgador; noutro, este juízo funda-se, em especial, no valor que a lei atribui a determinados meios de prova[14].


Alega ainda a autora, ora recorrente, que o tribunal recorrido fez um mau uso dos seus poderes em sede de alteração da matéria de facto, violando as regras de direito probatório material o que constitui um manifesto erro de direito a ser sindicado por este mais alto Tribunal que deve alterar as respostas introduzidas pelo tribunal recorrido substituindo-as pelas redacções originais fixadas pelo tribunal de 1ª instância de acordo com aplicação correcta das presunções judiciais aplicadas e que levaram, aliás de forma bem fundamentada, a considerar como provado que à data da divisão/separação da “Quinta das Batoquinhas” já existia o caminho que servia a quinta.


Cumpre decidir.


As presunções judiciais não são propriamente meios de prova, mas ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (artigo 349º do Código Civil).


Constitui jurisprudência corrente que é lícito aos tribunais de instância tirarem conclusões ou ilações lógicas da matéria de facto dada como provada, e fazer a sua interpretação e esclarecimento, desde que, sem a alterarem, antes nela se apoiando, se limitem a desenvolvê-la.

Ao STJ está, porém, vedado o uso de presunções judiciais para dar como assentes factos deduzidos de outros factos julgados provados – cfr. artigo 674º nº 3 do CPC.

Por outro lado, o Supremo só pode sindicar o uso de presunções judiciais pela Relação para averiguar se ela ofende qualquer norma legal, se padece de alguma ilogicidade ou se parte de factos não provados.

A questão de saber se houve ou não erro por parte da Relação ao não usar de uma presunção judicial é insindicável pelo Supremo, que não pode fazer mais do que suprimir o facto presumido (nos termos referidos)[15].


Ao Supremo está vedado o uso de presunções judiciais e, conhecendo, por regra, tão só de matéria de direito, apenas pode sindicar o juízo presuntivo feito pela Relação se ele "ofende qualquer norma legal, se padece de alguma ilogicidade ou se parte de factos não provados".

Daí também que, por regra, não possa o Supremo sindicar se houve ou não erro da Relação ao não usar de uma presunção judicial.

De todo o modo, a presunção judicial só é legítima se não alterar os factos que foram objecto de prova e das respostas do julgador (não impugnadas)[16].

Voltemos ao caso concreto para verificar se, tal como alega a recorrente, ocorre o apontado erro na apreciação dos pontos de facto nºs 13, 20, 22 e 25, que justifique a sua substituição pela redacção original fixada pelo tribunal de primeira instância.


Lendo o acórdão da Relação sobre a fundamentação das respostas à matéria de facto (2º volume, fls. 407 a 414 vº), verificamos que a mesma, quase de forma exaustiva e bastante linear, analisou criticamente as provas, especificou, de forma racional, coerente e lógica os fundamentos que foram decisivos para a respectiva convicção e com respeito pela prova testemunhal e documental produzida, declarações de parte e inspecção judicial.

Não vislumbramos que tenha havido grosseira valoração da prova que foi feita no acórdão recorrido relativamente aos factos postos em crise pela recorrente.

Pelo contrário, a prova foi apreciada com análise crítica e com o cuidado e atenção devidos, dando o tribunal credibilidade ao que merecia e refutando o que considerou sem interesse para a decisão de facto. Apreciou livremente as provas, fazendo o seu próprio juízo com total autonomia.

Por outro lado, e como já se deixou dito, o uso de presunções judiciais pela Relação para averiguar se ela ofende qualquer norma legal, se padece de alguma ilogicidade ou se parte de factos não provados, não pode ser sindicado pelo Supremo.


Nesta conformidade, improcedem as conclusões da recorrente, no tocante aos pontos nºs 13, 20, 22 e 25 da matéria de facto provada, confirmando-se o acórdão da Relação,


DECISÃO SURPRESA E VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO


Argumenta a autora que existe uma decisão surpresa e uma grave violação do princípio do contraditório, pois o acórdão recorrido modificou o pedido de forma mitigada, ao substituir a retirada dos portões, que impedem a passagem, pela condenação dos réus na entrega à autora das chaves de tais portões.


Cumpre decidir.

O pedido formulado pela autora na petição inicial contém uma alínea d) com a seguinte redacção:

“ Condenar-se os réus a retirar os portões que colocaram no início do caminho e no limite da parte do caminho que percorre o seu prédio”.


Este pedido foi julgado totalmente procedente na sentença da primeira instância (2º vol. fls 498 vº).

O acórdão recorrido julgou parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, revogou a sentença na parte em que a condena os réus a retirar os portões que colocaram no início do caminho e no limite da parte do caminho que percorre o seu prédio; e, em sua substituição, condenou os réus a entregar as chaves de tais portões à autora, no prazo de 10 dias, após o trânsito.


A servidão de passagem deverá satisfazer as necessidades normais e previsíveis dos proprietários dos prédios dominantes; no entanto, a sua satisfação deve ter em conta o menor prejuízo possível para o prédio serviente.


Nesta colisão de direitos (artigo 335º do Código Civil) - de passagem da proprietária do prédio dominante e de não ser estorvada no exercício da servidão (artº 1568º/1 do CC) e de personalidade e segurança dos proprietários do prédio serviente, que podem proceder à sua tapagem ou vedação (artº 1356º do CC) - devem estes dotar aquela das condições técnicas - entrega de chaves - que lhe permita aceder ao seu terreno através da servidão de passagem e deve aquela suportar o incómodo de ter de abrir e fechar o portão para aceder ao seu prédio.


O proprietário de prédio onerado com servidão de passagem pode proceder à sua vedação, colocando um portão nos respectivos acessos, desde que não seja impedido ou dificultado o uso da servidão ao proprietário do prédio dominante.

A conciliação dos interesses opostos dos proprietários serviente e dominante deve ser analisada em função das circunstâncias de cada caso concreto, devendo atender-se, além do mais, ao tipo de construção efectuada e ao conteúdo da servidão[17].


O princípio do pedido deve ser hoje entendido mitigadamente[18], ou seja, sempre que uma parte requeira uma medida “drástica” (retirada dos portões) e o juiz entenda conveniente e justo o decretamento duma medida menos radical e qualitativamente diferente (entrega das chaves dos portões), deve/pode fazê-lo, dentro da ideia de que o juiz deve intervir sempre com a finalidade de tornar o processo um caminho privilegiado para alcançar um resultado materialmente justo e eficiente.

Ou seja, “por detrás desta solução erguem-se, com toda a evidência, os interesses da economia processual e da justiça material do caso concreto. A Justiça liberta-se de um potencial novo processo relativo ao mesmo litígio. A condenação na entrega da chave resolveu o conflito em vez de o perpetuar. No fundo, qual é a essência do pedido? O autor, bem vistas as coisas, queria exercer a servidão de passagem. Logo, o juiz foi ao encontro dessa pretensão”[19].


Foi exactamente isto o que aconteceu nos pressentes autos. Na verdade, tendo sido pedida a retirada do portão, a condenação na entrega da respectiva chave não ultrapassa os limites estabelecidos pelo artigo 609º nº 1 do Código de Processo Civil, porquanto se entende que constitui um menos (minus) relativamente ao que foi pedido, mas nunca outra coisa ou coisa diversa (aliud).


Sendo assim, também não se pôs em causa a norma do artigo 3º do mesmo diploma legal, não existindo qualquer decisão surpresa e, por conseguinte, violação do princípio do contraditório.

Deste modo, improcedem as conclusões 6ª e 7ª das alegações de revista da autora.



CONSTITUIÇÃO DA SERVIDÃO: POR USUCAPIÃO OU POR DESTINAÇÃO DO PAI DE FAMÍLIA?


A servidão predial é, na definição legal do artigo 1543º do Código Civil, o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia.


A autora é dona do prédio dominante (o misto identificado em 2. dos factos provados) e os réus são donos do prédio serviente (o misto identificado em 7.).


A autora pede que seja reconhecido que o prédio dos réus está onerado por uma servidão predial de passagem a pé e veículos motorizados, constituída por destinação de pai de família, a favor do prédio da autora. Pede ainda que, caso assim se não entenda, devem os réus serem condenados a reconhecer que o seu prédio está onerado por uma servidão predial voluntária de passagem a pé e veículos motorizados, constituída por usucapião, há mais de 60 anos, a favor do prédio da autora.


A sentença da primeira instância reconheceu à autora que o direito de servidão foi constituído por destinação de pai de família, enquanto a Relação declarou que a servidão de passagem se encontra tão só constituída por usucapião.


Vejamos então.


O artigo 1549º do Código Civil (Constituição por destinação do pai de família), dispõe que:

“Se em dois prédios do mesmo dono, ou em duas fracções de um só prédio, houver sinal ou sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos, que revelem serventia de um para com outro, serão esses sinais havidos como prova da servidão quando, em relação ao domínio, os dois prédios, ou as duas fracções do mesmo prédio, vierem a separar-se, salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respectivo documento”.


Do artigo 1549º do Código Civil resulta que os factos constitutivos do surgimento de servidão são os seguintes:

(i) - Que os dois prédios ou as duas fracções de um só prédio tenham pertencido ao mesmo dono;

(ii) - A existência de sinais visíveis e permanentes que revelem a serventia de um prédio para o outro ou de uma fracção para a outra;

(iii) - Que ao tempo da separação dos prédios ou das fracções, não haver, no documento relativo à separação, uma declaração contrária à servidão.


A prova da contrariedade cabe a quem nega a servidão.

Mostra-se preenchido o primeiro requisito (os dois prédios pertenciam ao mesmo dono, fazendo parte de um único prédio misto conhecido e designado por Quinta das … – 10.).


Também se mostra provado o terceiro requisito (na referida escritura de divisão de 09/09/1921 não existe qualquer declaração de vontade a propósito de constituição/manutenção/extinção de encargo ou servidão” – (21).


Todavia, não se mostra provado o segundo requisito, ou seja, que existissem os sinais visíveis, aparentes e permanentes reveladores da serventia de uma fracção para a outra, “relação de serventia” que, caso tivesse ficado provada, se transformaria, com a separação/autonomização das fracções e a inexistência de declaração oposta à constituição da servidão, em direito de servidão predial, constituído por destinação de pai de família.


Ora, não se provou que, antes de 1945, existisse a aparência de serventia (Cfr factos provados nºs 13 a 19) entre as fracções/partes em que se dividiu a inicial Quinta das …, razão pela qual, não se provando haver sinais visíveis e permanentes (em pelo uma das partes/fracções) reveladoras da serventia de uma fracção para a outra, aquando da divisão do domínio, em 09/09/1921 (factos provados 20 e 21), não ficou preenchido o segundo requisito supra enunciado.


Daqui se conclui que a autora não provou o modo de aquisição invocado a título principal, ou seja, a destinação de pai de família.

Por conseguinte, bem andou a Relação ao declarar que a servidão apenas se constituiu por usucapião (pedido subsidiário formulado pela autora).

Deste modo, improcede a conclusão 5ª das alegações de revista da autora.


EXTINÇÃO DA SERVIDÃO POR DESNECESSIDADE


Na reconvenção, os réus pediram que seja declarada a extinção da servidão de passagem por desnecessidade da mesma, condenando-se a autora a reconhecer tal extinção e a abster-se de praticar actos conducentes à sua passagem pelo prédio dos réus.


A reconvenção foi julgada improcedente pela primeira instância, o que foi confirmado pela Relação.

 

O acórdão da Relação, aqui questionado pelos réus em sede de revista, declarou que, em benefício do prédio da autora (referido no nº 2 dos factos provados), se encontra constituída, por usucapião, uma servidão de passagem sobre o prédio dos réus (referido no nº 7 dos factos provados).


Nas suas conclusões do recurso de revista, os réus não questionam essa servidão da autora, constituída por usucapião, mas pugnam para que a mesma seja extinta, por se mostrar desnecessária ao prédio dominante.


Vejamos então se há que declarar extinta a servidão por desnecessidade.

É sobre a parte que requer a extinção da servidão por desnecessidade que recai o ónus de provar os factos de onde se possa concluir por essa desnecessidade – artigo 342º nº 1 do Código Civil.


Considerando que a extinção por desnecessidade opera quando a servidão deixou de ter qualquer utilidade para o prédio dominante, o que implica a ocorrência de um facto superveniente que tenha esse efeito; que o ónus da prova da desnecessidade incumbe à parte que requer a extinção[20].


Uma servidão constituída por usucapião, como é o caso da dos autos, pode ser declarada extinta, a pedido do proprietário do prédio serviente, se se mostrar desnecessária ao prédio dominante (nº 2 do artigo 1569º do Código Civil).

Apenas as servidões constituídas por usucapião e as servidões legais (nº 3 do mesmo artigo) podem ser extintas por desnecessidade. Esta deve ser apreciada em termos objectivos, ou seja, abstraindo da situação pessoal do proprietário do prédio dominante.


Antunes Varela escreveu[21] que os encargos constituídos por usucapião “ são impostos pelos factos; uma vez desaparecidos, ou ultrapassados a latere, os factos que lhes deram origem, nenhuma reserva se levanta contra a extinção da servidão”.

São os factos que impuseram a constituição e são agora os factos que determinam a sua extinção[22].

Por conseguinte, a desnecessidade da servidão tem apenas a ver com a conexão íntima entre o prédio dominante e os factos que a determinaram.

Tem-se em vista libertar os prédios de servidões desnecessárias ou impraticáveis que desvalorizam os prédios servientes, sem que valorizem os prédios dominantes.


Para o Professor Oliveira Ascensão, “a desnecessidade tem de ser objectiva, típica e exclusiva da servidão, não se confundindo com a desnecessidade subjectiva, que assentaria na ausência de interesse, vantagem ou conveniência pessoal do titular do direito. A servidão assenta numa relação predial estabelecida de maneira que a valia do prédio aumenta, graças a uma utilização "latu sensu" de prédio alheio. Quando essa utilização de nada aproveite ao prédio dominante surge-nos a figura da desnecessidade” [23].

E continua o mesmo autor: “a desnecessidade, que em matéria de servidão se considera, supõe uma mudança na situação, não no prédio onerado ou serviente, mas do prédio dominante. Por virtude de certas alterações neste sobrevindas, aquela utilização, sempre possível, do prédio serviente, perdeu utilidade para o prédio dominante”[24].


O que o legislador de 1966 entendeu é que deveria ser dado aos tribunais maior liberdade de apreciação dos casos em que se questione a extinção da servidão por desnecessidade[25].


Considerando que “as servidões prediais consistem num encargo imposto a um prédio em benefício de outro prédio, pertencente a dono diferente” – artigo 1543º do Código Civil -, tal desnecessidade há-de ser aferida em função do prédio dominante, e não do respectivo proprietário.


Como se dá nota no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 16.01.2014[26] “a desnecessidade tem ainda de ser superveniente em relação à constituição da servidão de passagem e de decorrer de alterações ocorridas no prédio dominante (cfr. por exemplo o acórdão deste Supremo Tribunal de 1 de Março de 2007, www.dgsi.pt, 07A091); no entanto, como se escreveu também no acórdão de 16 de Março de 2011, “a precisão de que terá de decorrer de alterações no prédio dominante tem de ser devidamente entendida: são ainda alterações, para o efeito que agora releva, por exemplo, modificações verificadas nos prédios vizinhos ou em vias de acesso próximas ou contíguas, que se repercutam nas condições de acesso do prédio em causa.” Este requisito da superveniência não é, todavia, consensual (cfr. acórdão de 25 de Outubro de 2001 (www.dgsi.pt, proc. 277/07.0TCMR-G1.S1).


E continua o mesmo acórdão: “Como se observa no acórdão de 21 de Fevereiro de 2006 (www.dgsi.pt, proc. nº 05B4254), a propósito do conceito de desnecessidade relevante para o efeito que agora releva, “tem este Tribunal entendido que o conceito de "desnecessidade da servidão" abstrai da situação pessoal do proprietário do prédio dominante, devendo ser apreciada em termos objectivos. Só quando a servidão deixou de ter para aquele qualquer utilidade deve ser declarada extinta (acórdãos de 27 de Maio de 1999, revista n.°394/99, e de 7 de Novembro de 2002, revista n.°2838/02). Como no primeiro destes acórdãos se observa, não interessa, assim, saber se, mediante determinadas obras, o proprietário do prédio encravado podia assegurar o acesso imposto pela normal utilização desse prédio. O que se torna necessário é garantir uma acessibilidade em termos de comodidade e regularidade ao prédio dominante, sem onerar desnecessariamente o prédio serviente. E é nesta perspectiva que também a "necessidade da servidão" deve ser considerada como requisito da sua constituição por usucapião“.


De tudo o que vem exposto e em concordância com o acórdão recorrido, o que importa é uma ponderação actualizada da necessidade do encargo sobre o prédio, deixando ao prudente alvedrio do julgador tal avaliação, segundo um juízo de proporcionalidade subjacente aos interesses em jogo; em que devem ser ponderadas as circunstâncias concretas de cada caso, a existência de alternativa que, sem ou com um mínimo de prejuízo para o prédio dominante - na medida em que esteja garantida uma acessibilidade, em termos de comodidade e regularidade, ao prédio dominante, sem onerar, desnecessariamente, o prédio serviente - permite eliminar o encargo incidente sobre o prédio serviente.


Voltando ao caso dos autos, o principal argumento esgrimido nas conclusões pelos réus/reconvintes e ora recorrentes, com vista à desnecessidade da servidão de passagem a favor do prédio dominante consta da conclusão terceira, segundo a qual, “demonstrada a desnecessidade de uma servidão de passagem adquirida por usucapião decorre directamente desse facto (sem necessidade de qualquer outra ponderação) a extinção da servidão independentemente do benefício ou vantagem que tal extinção possa (ou não) implicar para o prédio serviente. Além disso desapareceu a utilidade da servidão para o prédio dominante e não existe qualquer benefício para o prédio serviente.


Vejamos.

O que importa é verificar se no caso sub judice ocorreu alguma efectiva mudança na situação do prédio dominante que deixe de justificar o exercício da servidão.

Os factos provados não apontam qualquer alteração posterior à constituição desse encargo.


Está provado que:

- O prédio da A. não confronta com a estrada nacional nº … – (24).

- Quando ainda era um único prédio, em data anterior a 09/09/1921, a Quinta das … já tinha quatro caminhos de acesso ao seu interior – (25).

- O prédio da A. tem quatro entradas que estão ligadas a caminhos públicos – (26).

- O prédio da A., para além do caminho que passa no prédio dos réus, referido em 13., pode ter os seguintes acessos: o caminho que confronta com a aldeia das …, o caminho que confronta com a fronteira espanhola, o caminho de Aldeia … e o caminho da sua entrada principal que dá acesso a um caminho público, que, por sua vez, entronca na E.N. 332 – (27).

- Os outros caminhos de terra batida que ligam o prédio da A. à via pública, são, designadamente, os dois últimos referidos no facto anterior, ou seja, o caminho interno do prédio da autora e o conhecido e designado pelo caminho da “Aldeia …”, no qual existe um portão de entrada e no chão uma “portadela canadiana” com vista a impedir a entrada e saída de animais – (28).


Iremos agora analisar os referidos caminhos, tal como o fez o acórdão recorrido.

Além da servidão de passagem, cuja extinção os réus pedem, por desnecessidade, o prédio dominante (da autora) tem quatro entradas que estão ligadas a caminhos públicos (26).

Vejamos as características de cada um desses caminhos:


Quanto à servidão de passagem:

É um caminho que entronca na EN nº … (sentido A… - V…); atravessa o prédio misto dos RR. até chegar ao limite do prédio da A. (onde vai até às suas instalações agrícolas); é de terra batida, plano, com o leito sem ervas ou plantas, não apresentando desigualdades relevantes de nível; tem uma extensão de cerca de 2.098 metros (desde a E. N. n.º …) e uma largura média de 4,5 metros no leito do caminho; é utilizado pela A. para acesso a pé, de tractor, veículos ligeiros e pesados (para amanhar e semear terra, a posterior recolha e transporte de frutos e produtos armazenados, bem como o transporte de animais e o transporte de materiais de construção para reparações e reconstruções da casas e instalações agrícolas) – Cfr factos provados sob os nºs 13,14.15.16 e 17.


Quanto ao denominado “Caminho de Espanha”:

É um caminho que dá acesso à E.N. que liga à fronteira de Espanha e à localidade espanhola de BBB (localidade vizinha da aldeia portuguesa das …).

Tem uma largura nunca inferior a 2,80 (incluindo as bermas, até à vedação e azinheiras, são no total 4,60 metros de largura; tendo 4,10 metros junto ao portão), está limpo de mato e tem rodeiras de passagem de viaturas; é um caminho transitável (embora o leito apresente algumas irregularidades); e desde o prédio da A. até à localidade espanhola de BBB são 2.500 metros.

Pode ser utilizado pela A., colaboradores, fornecedores, visitantes, para aceder ao prédio da A. sem ter de atravessar o prédio dos RR. - Cfr factos provados sob os nºs 55 a 62.


Quanto ao “Caminho de …”:

No seu início tem 3,10 metros de largura e tem uma inclinação acentuada.

No seu percurso mais estreito, tem 2,80 metros; é muito irregular e nalguns pontos do seu percurso tem uma inclinação muito acentuada.

Desde o seu início, até ao portão que dá acesso ao prédio da A., percorrem-se 900 metros; e no interior do prédio da A. mais 1.000 metros – Cfr fls 475.


Quanto ao Caminho da Aldeia …

Tem a extensão de 3.300 metros (até à EN 332) e a largura (na parte mais estreita) de 2,60 m (sendo 3,20 metros no seu inicio).

Tem colocados, no seu início e mais adiante dois portões.

Tem, no seu percurso, algumas valas; durante o tempo chuvoso dos meses de Inverno forma baixios, que acumulam água, ficando assim partes do caminho com água.

Encontra-se limpo de mato e de outra vegetação, com rodeiras de passagem de viaturas.

Por este caminho passam pessoas com interesse pessoal ou profissional em deslocar-se à Quinta das …, podendo ser utilizado pela Autora e seus colaboradores.

A passagem por este caminho pode ser feita para a ligação Aldeia … - … e vice-versa, podendo ser utilizada por qualquer interessado.

A A. pode utilizar este caminho, que dá acesso da referida estrada nacional até ao interior do seu prédio, sem ter de atravessar o prédio dos RR., passando por um caminho público que entronca com a referida E.N. … – Cfr factos provados nºs 34 a 37, 44 a 54.


Quanto ao denominado “Caminho Interno”:

Liga a entrada principal do prédio da A. a um caminho que, por sua vez, entronca com a E.N. … .

Tem extensão de 3.400 metros e a largura de 2,90 m (e incluindo as bermas e até à vedação e azinheiras, tem 4,80 metros de largura)

Tem troços com declives e pendentes acentuados e é ladeado por azinheiras.

É transitável a pé, de bicicleta, de mota, de carro, ou mesmo de tractor, carrinha, camião ou semi-trailer, desde que mantido limpo e também alargado, designadamente nos troços em que possui declives acentuados, para permitir a passagem deste último tipo de veículos -. Cfr factos provados nºs 29 a 33.


Voltemos à questão da desnecessidade da servidão em relação ao prédio dominante.

Verificam-se duas orientações sobre o requisito da desnecessidade:

Para uns, só releva a alteração das circunstâncias existentes à data da constituição da servidão, ou seja, a desnecessidade superveniente[27].

Noutro entendimento, tanto a desnecessidade superveniente, como a originária dão lugar à extinção, pois determinante é a cessação das razões que justificavam a afectação de utilidades do prédio serviente ao prédio dominante[28].


No caso dos autos não basta provar que o prédio da autora está dotado de mais quatro acessos. O que é imperioso saber é se a comunicação por esses quatro acessos proporciona as mesmas utilidades que o caminho da servidão de passagem pelo prédio dos réus.

Não vemos que a manutenção da servidão seja um encargo que, só por si, traga um ónus ou mesmo uma significativa desvalorização para o prédio serviente e que o mesmo obtenha significativas vantagens em dela se libertar.


Estamos perante uma servidão com as características descritas nos pontos 13º e seguintes dos factos provados, que aqui recuperamos:

“13. O acesso às duas parcelas prediais que resultaram da primeira divisão (em 09/09/1921) da Quinta das … era também efectuado, desde por volta de 1945, a partir de um caminho de terra batida que entronca na estrada nacional nº 332 (sentido A… - V… e vice-versa).

14. O seu percurso não teve alterações ao longo dos anos.

15. O caminho referido em 13. é um caminho de terra batida, com uma extensão de cerca de 2098 metros e com uma largura média de 4,5 metros no leito do caminho.

16. O caminho é plano, não apresentando desigualdades relevantes de nível.

17. O leito do caminho, em todo o seu percurso, não tem ervas ou plantas, evidenciando sulcos provocados pelos rodados dos veículos que ali circulam.

18. Uma parte da extensão do referido caminho atravessa o prédio misto dos RR até chegar ao limite do prédio da A. onde se situa a metade das antigas casas senhoriais da quinta das batocas, sendo que a outra metade das casas “senhoriais” situa-se na propriedade dos RR.

19. No prédio da A., o referido caminho de terra batida vai até às suas instalações agrícolas.

20. Desde por volta de 1945 (estando a inicial Quinta das … já dividida, desde 09/09/1921, em dois prédios distintos e autónomos, pertencentes a proprietários diferentes: a família C… e os sucessores de TT) e posteriormente (estando a inicial Quinta das … dividida, desde data anterior a 08/04/2004, em três prédios distintos e autónomos, pertencentes a proprietários também distintos) que o referido caminho de terra batida serviu de acesso (desde 1945) aos dois prédios e actualmente aos três prédios: da A., dos RR. e do AAAA.

21. Na referida escritura de divisão de 09/09/1921 não existe qualquer declaração de vontade a propósito de constituição/manutenção/extinção de encargo ou servidão.

22. A autora e ante possuidores do seu prédio utilizavam o referido caminho de terra batida para acesso ao seu prédio, a pé, de tractor, veículos ligeiros e pesados, à vista de toda a gente, designadamente dos RR e dos seus antecessores, sem estorvo ou oposição de ninguém desde a data de 1945 referida nos factos anteriores.

23. O transporte de produtos para amanhar e semear terra, a posterior recolha e transporte de frutos e produtos armazenados, bem como o transporte de animais e o transporte de materiais de construção para reparações e reconstruções da casas e instalações agrícolas era feito através do referido caminho”.


Em síntese, como bem refere o acórdão recorrido, estamos perante uma servidão de passagem para transportar produtos, amanhar e semear terra, recolher e transportar frutos e produtos armazenados, bem como animais e materiais de construção, iniciada há mais de 70 anos, com 4,5 metros de largura, podendo por ela passar inclusivamente pesados semi-trail.

Um “título” com este conteúdo e extensão só se terá formado, por a servidão aproveitar as utilidades daquilo que é o caminho de acesso ao prédio dos réus, ou seja, com ou sem manutenção da servidão, a fruição da respectiva parcela de terreno do prédio dos réus continuará a ser a mesma, pelo que o prédio dos réus não obtém significativas vantagens ao libertar-se da servidão.


Isto significa que esta servidão se estabeleceu por uma necessidade específica e acima assinalada, que continua a manter-se, não obstante o prédio dominante estar directamente servido por outros acessos. E não ocorreu uma alteração posterior à constituição da servidão que a torne desnecessária.


Por conseguinte, mantém-se a necessidade da servidão, do ponto de vista da situação específica do prédio dominante.

Daí que não deva ser extinta por desnecessidade, não obstante ter sido constituída por usucapião.

Não basta a existência de outros acessos do prédio dominante à via pública, para que se julgue extinta, por desnecessidade, uma servidão de passagem constituída por usucapião. É necessário que, após a sua constituição, tenham sobrevivido alterações no prédio dominante de que resulte ficar este servido de acessos de tal modo que tudo volte a passar-se como se aquela servidão nunca tivesse sido necessária.

Só assim se compreende que os proprietários do prédio serviente se não tenham oposto à posse durante o tempo que conduziu à usucapião. Se, apesar da existência desses outros acessos, consentiram na utilização do seu prédio para acesso ao da autora é porque entenderam que tal era necessário para a economia desta.


Nesta conformidade, improcedem as conclusões das alegações dos réus.



III - DECISÃO

Atento o exposto, nega-se provimento às revistas, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes em cada uma das revistas.


Lisboa, 07 de Novembro de 2019


Ilídio Sacarrão Martins (Relator)

Nuno Manuel Pinto Oliveira

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

__________

[1] Ac STJ de 13/11/2012, in www.dgsi.pt Proc.º nº 10/08.0TBVVD.G1.S1/jstj
[2] Proc.º nº 645/05.2TBVCD.P1.S1, in www.dgsi.pt/jstj
[3] Proc.º nº 8609/03.4TVLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt/jstj
[4] Proc.º nº 350/98.4TAOLH.S1, in www.dgsi.pt/jstj
[5] Proc.º nº 1965/04.9TBSTB.E1.S1, in www.dgsi.pt/ jstj
[6] Prova, poderes da Relação e convicção: a lição da epistemologia, Cadernos de Direito Privado nº 44, Outubro/Dezembro de 2013, pp. 29 e ss.
[7] Manual de Processo Civil, 2ª ed. pág. 653.
[8] Estudos sobre o novo Processo Civil, pág. 348.
[9] Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2ª edição, 2004, pág. 545.
[10] BMJ 360 (Suplemento), pág. 195, citado por Lopes do Rego, loc e ob cit.
[11] Lopes do Rego, ob cit, em anotação ao artigo 712º, pág. 610.
[12] Antunes Varela, ob cit pág. 653 a 655.
[13] Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 2ª edição, pág. 660.
[14] Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro “Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil- Os Artigos da Reforma”, 2014, 2ª Edição, Vol I, Almedina, pág588 e 589.
[15] Ac STJ de 09.07.2014, Procº n.º 299709/11.0YIPRT.L1.S1, in www.dgsi.pt/jstj
[16] Ac STJ de 25.11.2014, Procº nº 6629/04.0TBBRG.G1.S1, in www.dgsi.pt/jstj
[17] Cfr.ac Ac. STJ de 19.04.1995, Procº nº 086608, in www.dgsi.pt/jstj.
[18] “A flexibilização do princípio do pedido à luz do moderno processo civil” – Luís Miguel de Andrade Mesquita, in RLJ, Ano 143.º, pág. 134 e ss, em anotação ao acórdão do TRP de 08.07.2010.
[19] Autor, ob, e loc, cit,, pág 147.
[20] Cfr Ac. STJ de 16.12.2014, Procº nº 695/09.0TBBRG.G2.S1, in www.dgsi.pt/jstj.  
[21] Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª edição, pág 676.
[22] J. Rodrigues Bastos, Direito das Coisas, (1975), IV, 214.
[23] Desnecessidade e Extinção de Direitos Reais” (Separata da Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, Ano de 1964, pág 10.
[24] Autor e ob cit, pág 12.
[25] Rodrigues Bastos, ob. cit. pág. 214.
[26] Procº nº 695/09.0TBBRG.G1.S1, in www.dgsi.pt/ jstj.
[27] Oliveira Ascensão, “Direitos Reais”, 4ª edição, pág, 440 e Ac. STJ de16.01.2014, supra mencionado.
[28] Carvalho Fernandes, ““Direitos Reais”, 4ª edição, pág, 450 e Ac STJ de 27.05.1999, in BMJ 487, pág 313.