Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
639/13.4TBPBL.C1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
PROCEDIMENTOS CAUTELARES
IMPROCEDÊNCIA
DEVER DE DILIGÊNCIA
CULPA
DIREITO DE AÇÃO
PRINCÍPIO DO ACESSO AO DIREITO E AOS TRIBUNAIS
Data do Acordão: 03/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - A formulação legal do art.º 374.º n.º1 CCiv conjuga-se com os pressupostos habituais exigidos pela doutrina para a prova da responsabilidade civil aquiliana, tal como prevista no art.º 483.º n.º1 CCiv, constituindo uma particular situação de responsabilidade civil extra-contratual pelos prejuízos emergentes de actuação culposa do requerente de uma providência cautelar que omite deveres de prudência e cuidado que lhe eram exigíveis, ao requerer, sem fundamento legítimo, a referida providência.

II - O insucesso de uma providência, além de poder resultar das contingências da prova, não deve afectar o direito de acção e de acesso ao Tribunal dos cidadãos, direitos que podem ter variadas causas, que o insucesso da demanda é insuficiente para explicar; ir além dessa sanção é pôr em questão preceitos constitucionais, convencionais internacionais e legais.

III - O momento a atender para se julgar acerca da falta de normal prudência do requerente é aquele em que este age, ou seja, é, essencialmente, aquele em que o requerente intenta o procedimento cautelar.

IV - Se a convenção anterior ao negócio sempre pressupôs que o negócio não incluía o rés-do-chão da vivenda, casa de morada dos RR., tais RR. e requerentes da providência cautelar não afrontaram a diligência ou prudência normal, característica do homem médio definido no art.º 487.º n.º2 CCiv, tendo-se tão só movido entre diversas decisões e interpretações judiciais, situadas em momento posterior ao requerimento da providência e ao momento das diligências efectuadas para o sustentar.

V - Para situações de incumprimento de uma decisão judicial existem mecanismos coercivos, processualmente regulados, dos quais o adimplente pode lançar mão, de modo a obter o cumprimento, reconstituindo a situação anterior à decretação da providência, mediante a entrega coactiva, por ordem judicial e com o concurso, se necessário, da força pública.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


                  

As Partes, o Pedido e o Objecto do Processo

Modelcare, Centro de Valorização e Recuperação Humana, Ldª, intentou a presente acção, com processo de declaração e forma comum, contra AA e mulher BB.

Formulou os seguintes pedidos:

a) Serem os Réus condenados na quantia de 196.821,57.

b) Serem os Réus condenados a pagar todos os custos que a Autora tenha que suportar com a desmontagem e remoção da cozinha provisória, assim que a mesma puder voltar a ter a situação anterior ao Procedimento Cautelar, completamente reposta.

c) Serem os Réus condenados a pagar a quantia de € 750 mensais até à efectiva entrega de todas as divisões que ficaram afectadas com a tapagem ocorrida no âmbito do procedimento cautelar.

d) Serem os Réus condenados a pagar a quantia que se apurar em sede de liquidação de sentença das quantias gastas a título de custas e honorários por parte da Autora.

e) Serem os Réus condenados a pagar a quantia de € 3 750,00 mensais, até à efectiva entrega de todas as divisões que ficaram afectadas com a tapagem supra mencionada.

f) Serem os Réus condenados a repor todos os elementos e divisões supra mencionados nos exactos termos em que os mesmos foram concebidos nos termos do projecto aprovado para a implantação do Lar.

g) Serem os Réus condenados a repor os equipamentos em pleno funcionamento de modo que possam ser plenamente usados pela Autora para o efeito a que são destinados.

h) Serem os Réus condenados a pagar a quantia de 100 euros mensais até permitirem o acesso da Autora à torneira de segurança, instalarem canalização independente e requisitarem o respectivo contador independente.

i) Serem os Réus condenados a pagar, a título de indemnização compulsória na quantia de 50 Euros por cada dia de atraso após serem condenados nos termos supra peticionados.

j) Serem os Réus condenados a pagar a quantia que se apurar em sede de liquidação de sentença correspondente o prejuízo decorrente da Autora não poder ter acesso ao crédito.

Alegou que, sendo a A. locatária, no âmbito de um contrato de locação financeira, de um imóvel destinado a «Lar» (estando actualmente ali instalado o Lar Modelcare), os RR. intentaram uma providência cautelar, com vista ao encerramento de parte desse «Lar», alegando terem sido ocupadas para o mesmo divisões pertencentes à moradia dos RR., afirmações que estes sabiam serem falsas.

O Tribunal, enganado pelos RR., deferiu a providência e ordenou a entrega da cozinha do «Lar» aos RR., o que foi cumprido no dia 30/04/2010, procedendo-se à entrega efectiva, com tapagem no local mediante a construção de uma parede, com o que ficou vedado o acesso da A. a: a) Cozinha; b) Wc; c) Dispensa; d) Hall de ligação à sala de refeições; e) Acesso ao exterior; f) Acesso ao gás; g) Acesso à distribuição da água, nomeadamente às torneiras de segurança.

Tendo a A. recorrido dessa decisão cautelar, o Tribunal da Relação ordenou a reconstituição da situação anterior, mas os RR. não entregaram as divisões cujo acesso tinha sido vedado com a referida tapagem, conduta que provocou diversos prejuízos à A., nos moldes enunciados no pedido que formulam.

Os RR. contestaram e deduziram reconvenção.

Alegaram terem agido na convicção de que a Fracção B, que prometeram vender e, depois, venderam, não englobava o rés-do-chão da sua vivenda (estavam convencidos de que os edifícios se encontravam separados, com constituição em regime de propriedade horizontal).

A A., mesmo após a realização da escritura de compra e venda, continuou a afirmar que restituiria a cozinha aos RR., facto que levou estes a instaurar a providência cautelar, bem como a acção principal.

A A. tinha conhecimento de que os RR. usavam a parte restante do rés-do-chão como habitação, bem como que estavam convictos de que a mesma integrava a fracção A.

Por via de a providência cautelar ter sido revogada, a A. entrou de imediato na posse da referida parcela, não tendo havido obstrução ao uso e fruição de quaisquer divisões do Lar, como não foram alteradas as divisões, nem impedido o acesso ao fornecimento de água, ou a qualquer parte do imóvel.

Através de um comportamento de má fé no decurso do processo negocial, a A. logrou comprar a referida fração por um montante muito inferior ao valor de mercado, sendo que não observou os deveres de informação, lealdade e honestidade durante a fase preparatória do contrato, com o objetivo de obter para si uma vantagem patrimonial injustificada, causando um correspondente prejuízo aos RR., superior a € 200.000,00.

Formulam, portanto, reconvenção, no sentido de a A./Reconvinda ser condenada no pagamento aos RR. da quantia de € 200.000,00, a que acrescem os juros de mora vencidos, desde a data de notificação dessa reconvenção.


As Decisões Judiciais

Após julgamento, foi proferida sentença que julgou acção e reconvenção improcedentes, com a inerente absolvição do pedido dos demandados.

Em decisão da apelação, interposta pela Autora, acordou-se em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a sentença recorrida.


A Revista 

A Autora interpõe agora recurso de revista excepcional, fazendo-o ao abrigo das normas do art.º 672.º n.º 1 als. a) e b) CPCiv.

A Formação deste Supremo Tribunal de Justiça admitiu o recurso, por cumprir os requisitos indicados no art.º 672.º n.º 2 al. a) CPCiv, em função da relevância jurídica da questão suscitada no recurso.


A pretensão recursória traduz-se na seguinte alegação conclusiva:

1. A presente ação tem como objeto, essencialmente, a condenação dos Réus, ora Recorridos, no ressarcimento à Autora, ora Recorrente, dos danos a esta provocados pela conduta extremamente negligente e imprudente – caracterizada em absoluto por um desvio da prudência normalmente esperada – que se consubstanciou, numa primeira fase, no requerimento de uma providência cautelar injustificada e, numa segunda fase, no incumprimento de uma decisão judicial definitiva em sede cautelar.

2. Os Recorridos postularam em processo cautelar a entrega de determinadas divisões do imóvel, alegando que não sabiam fazerem parte da fração objecto do contrato – quando, em boa verdade e até à luz das regras de experiência comum, não podiam desconhecer que aquelas divisões lhes não pertenciam, uma vez que foram os próprios recorridos que providenciaram pelo processo de licenciamento do lar, assim como foram aqueles que contrataram os serviços de uma Ilustre Advogada para a constituição da propriedade horizontal, id est, transformação do edifício em duas frações autónomas.

3. A decisão cautelar foi no sentido procedente, o que acarretou a entrega imediata de divisões do imóvel aos ora Recorridos – vendo-se a Recorrente privada do acesso à cozinha, ao Wc, à dispensa, ao Hall de ligação à sala de refeições, ao exterior, ao gás e à distribuição da água (cfr. pontos 10 a 12 da matéria de facto dada como provada).

4. Entretanto, em sede de recurso, a providência cautelar foi revogada, revertendo-se a situação e passando a valer a decisão do Tribunal da Relação ..., que determinou a reconstituição da situação anterior à vedação de acesso à Recorrente – cfr. ponto 15 da matéria de facto.

5. Não obstante, os Recorridos não cumpriram a decisão judicial, ou seja, não restituíram à Recorrente o acesso às divisões vedadas por si mesmos através da construção de muro (pontos 17 e 18 da matéria de facto assente).

6. Esta situação gerou inúmeros e graves danos e perdas à Recorrente e à sua atividade de assistência aos utentes idosos, que permaneceram sem acesso a diversas divisões do Lar, e com vários gastos acrescidos, como bem explicitado e assente nos pontos 17, 18, 24 25, 26, 27, 29, 31 a 36 da matéria de facto provada.

7. No entanto, apesar da magnitude da situação e dos danos que vimos de referir, o Tribunal a quo decidiu não conceder qualquer indemnização, afirmando para tal: i) que a factologia subjacente ao caso em apreço extravasa a previsão da norma convocada (artigo 374.º do CPC); ii) e que mesmo que assim não se entendesse não se encontravam verificados os pressupostos de que depende a responsabilidade civil dos Recorridos no âmbito do procedimento cautelar (artigos 374.º do CPC e 483.º do CC), mormente uma conduta “manifestamente imprudente”; e iii) que para situações de incumprimento de uma decisão judicial existem mecanismos coercivos para obter o cumprimento – argumento que utilizou para arredar toda e qualquer responsabilidade dos Recorridos pelos danos causados à Recorrente.

8. Salvo o merecido respeito, existe manifesto erro de julgamento, a vários passos, pelo que se impõe a interposição de recurso de revista excecional fundamentado nos termos das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, rogando-se que seja admitido, como verdadeira válvula de escape do sistema, sob pena de cometimento de gritante injustiça.

9. No caso em apreço, e no mínimo, estamos indubitavelmente perante uma situação de relevante interesse jurídico, por diversos motivos, que, aliás, já têm sustentado controvérsia na dogmática e apresentam uma clara linha evolutiva quer na dogmática quer na jurisprudência – como viemos de referir ao longo do presente recurso.

10. Desde logo e s.m.r., o Acórdão recorrido erra manifestamente no que concerne ao âmbito de aplicação do artigo 374.º do CPC, reduzindo – erroneamente, decalque-se – a sua aplicação às situações em que a conduta do requerente no âmbito do procedimento cautelar se revela “manifestamente imprudente”.

11. Não restam dúvidas que a descrita atuação dos recorridos consubstancia culpa, no mínimo na modalidade de negligência, encontrando-se, por isso, verificados todos os requisitos para a mobilização do artigo 374.º do CPC –

nomeadamente a ausência de “prudência normal” por parte dos requerentes, requisito que a mais hodierna dogmática e jurisprudência, supra citada e explicitada, considera preenchido com a existência de negligência.

12. Destarte, o acórdão recorrido ao sustentar que a mobilização do artigo 374.º do CPC depende do facto de a conduta do requerente ser “manifestamente imprudente” – fazendo, por essa via e tanto quanto parece, depender a sua aplicação da existência de uma culpa grave – incorre em flagrante e manifesto erro de julgamento, violando desde logo o elemento literal da norma (cfr. Artigo 9.º do CC).

13. Neste ponto, recorde-se que os Recorridos requereram uma providência cautelar com base num direito que sabiam não ser titulares – o que, indubitavelmente, determina que aquela seja injustificada.

14. Acresce que, a possibilidade de mobilização e de aplicabilidade do art. 374.º do CPC, em articulação, se necessário com o art. 483.º do CC, assume igualmente uma relevância social manifesta, não apenas pela inequívoca importância prática, como ainda pela acentuada suscetibilidade da questão controvertida se expandir para além dos limites da situação singular, resultando da mesma a possibilidade de repetição da questão noutros casos e, portanto, da necessidade de garantir uma interpretação atualizada e conforme a Constituição, o que apenas poderá ser feito pela instância de cúpula do sistema judicial.

15. A outro passo, a revista sempre deverá ser admitida, pois que se trata de matéria que apresenta complexidade jurídica assinalável e, por isso, reveste relevância jurídica fundamental – afinal, está em causa a compatibilização de princípios jurídicos atinentes à responsabilidade civil, à força e obrigatoriedade das decisões judiciais, à tutela jurisdicional efetiva que a Constituição garante, entre outros.

16. O Tribunal a quo, ao admitir expressamente a culpa dos Recorridos no âmbito de incumprimento de decisão judicial em sede cautelar (e ao dar como provados inúmeros e gravosos danos) e ao não extrair daí quaisquer consequências para os prevaricadores, salvo o merecido respeito, contraria manifestamente o artigo 205.º, n.º 2 da Lei Fundamental e, assim, o princípio da obrigatoriedade das decisões judiciais, estatuído por aquele – deixando transparecer a perigosa ideia de que os Recorridos podem incumprir livremente a decisão do Tribunal, sem que nada lhes aconteça.

17. Salvo o merecido respeito, no caso concreto (atenta a magnitude da situação e dos danos provocados), a inexistência de condenação dos Recorridos e da atribuição de uma justa compensação aos lesados (seja ao abrigo de que instituto jurídico for) afronta o basilar direito fundamental de acesso ao direito e de tutela jurisdicional efetiva, que é um corolário do estruturante princípio do Estado de direito democrático (cfr. arts. 2.º, 18.º e 20.º da CRP).

18. Mais: esta conceção anquilosada e formalista do instituto da responsabilidade civil e da sua concretização, plasmada no art. 374.º do CPC, que se encontra vertida no acórdão recorrido (que exige que a conduta do requerente da providência seja “manifestamente imprudente”, ao arrepio da própria lei), viola ainda – e de forma evidente – direitos fundamentais da Recorrente constitucionalmente protegidos, como são o direito à propriedade privada da Recorrente (artigo 62.º da CRP), o direito ao trabalho e ao desenvolvimento da actividade económica privada (artigo 58.º e 61.º da CRP) e, sendo o caso tão manifesto, que se coloca em crise o próprio direito à dignidade pessoal dos seus legais representantes, que se vêem deturpados e vilipendiados pelos recorridos e desprotegidos pelo sistema judicial (artigos 1.º, 2.º, 18.º e 26.º da CRP).

19. Em suma, a admissão da presente revista visa evitar a formação e consolidação de uma corrente jurisprudencial manifestamente errónea acerca desta matéria (que, note-se, se pode repercutir numa série indefinida e incalculável de processos), assim como – perdoe-se-nos a frontalidade – a própria descredibilização do poder jurisdicional e ou implantação de um sentimento de verdadeira impunidade no seio dos prevaricadores – revelando-se, por tudo isto, claramente necessária para uma melhor aplicação do direito e como orientação dos Tribunais inferiores em situações idênticas.

20. No que concerne aos danos sofridos pela Recorrente em virtude da instauração de uma providência cautelar injustificada não poderia jamais o Tribunal a quo escudar-se no argumento de que a situação extravasa a previsão legal específica de responsabilidade prevista no artigo 374.º do CPC, pois que, por um lado, nos termos do artigo 5.º, n.º 3 do CPC: “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” e, por outro lado, deve ao lesado ser sempre conferida protecção da lei (artigo 2.º, n.º 2 do CPC).

21. Por outro lado, o direito da Recorrente à atribuição de uma indemnização pelos danos que lhe foram causados é inequívoco e manifesto – ao contrário do que, em manifesto erro de julgamento, decidiu o Acórdão recorrido – pois que se verificam todos os requisitos de que depende a responsabilidade civil dos recorridos, nos termos do artigo 483.º do CC: facto, ilicitude, culpa, danos e nexo de causalidade (como já expusemos, de forma detalhada, supra).

22. Em resumo, refira-se apenas que:

i) In casu, verifica-se a existência de um facto voluntário, pois os Recorridos requereram a providência cautelar, mesmo devendo saber que as divisões em causa não lhes pertenciam;

ii) Existe ilicitude, pois que com a sua conduta violaram, entre o mais, o direito de propriedade e o direito ao trabalho, à iniciativa privada e desenvolvimento da actividade económica da recorrente (cfr. mormente artigos 62.º, 58.º, 61.º da CRP), dado que a recorrente ficou privada daquelas divisões e, assim, do lar na sua integralidade;

iii) Verifica-se a existência de culpa por parte dos Recorridos (dolo ou, pelo menos, negligência), na medida em que estes não actuaram com a prudência exigível a “um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso” – cfr. artigo 487.º, n.º 2 do CC –, porquanto, apesar de plenamente cientes de que iriam perturbar a atividade exercida pela Recorrente (deteriorando, nomeadamente, as condições dos serviços prestados a diversos utentes, os idosos residentes no Lar em apreço) requereram uma providência cautelar realizando que não lhes assistia o direito no qual se escudaram.

iv) Sendo certo que não é legalmente admissível exigir a existência de uma ação "manifestamente imprudente" dos lesantes, ao invés do que decidiu o Tribunal a quo, em flagrante erro de julgamento, porquanto, desde logo, o elemento literal da norma não permite erigir tal exigência (cfr. art. 9.º do CC), bem como de acordo com a mais recente dogmática e jurisprudência citada no corpo das alegações (cfr. por todos, Acórdão deste STJ de 25/02/2021, no proc.7147/10.3TBMTS.P2.S1).

v) A Recorrente sofreu inequivocamente perdas e danos, inclusive viu-se obrigada a despender de avultados recursos financeiros na compra de parte da comida já confecionada a outras empresas e restaurantes de modo a poder continuar a proporcionar refeições quentes e com segurança aos seus utentes, assim como se viu obrigada a construir uma cozinha provisória de modo a poder assessorar o Lar em termos de refeições, e perdeu irremediavelmente relevante financiamento adveniente de protocolos com entidades sociais - cfr. nomeadamente pontos 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30 a 34 da matéria de facto assente, já supra mencionados. Note-se até que os recorridos até usaram e se apoderaram, ilegal e abusivamente, da água paga pela recorrente, num prejuízo de pelo menos 3.500 euros, que foram dados como assentes (cfr. pontos 35 e 36 da matéria de facto assente), mas nem isso o Tribunal condena os lesantes (!).

f) E, por fim, verifica-se a existência de um evidente nexo de causalidade entre os danos sofridos pela Recorrente e a instauração da providência cautelar injustificada e da forma como a mesma foi concebida pelos recorridos.

23. Colocando o enfoque no requisito que respeita à “ausência de prudência normal”, importa realçar o seguinte: os Recorridos não podiam desconhecer que as partes ou divisões em causa pertenciam ao lar, uma vez que foram os próprios recorridos que providenciaram pelo processo de licenciamento do referido lar que venderam aos recorrentes, assim como os termos em que a propriedade horizontal foi delineada não teve qualquer intervenção da ora Recorrente, tendo sido realizado pelos próprios Recorridos, que contrataram, em 2008, os serviços de uma Ilustre Advogada para a constituição da propriedade horizontal e a transformação do edifício em duas frações autónomas, à época em que resolveram alienar o imóvel – sendo que da fração B (lar) fazia parte a cozinha e demais divisões aqui em causa, como resta provado no ponto 4 da matéria de facto assente.

24. Ora, da postura apresentada pelos Recorridos ao longo de todo o

processo, mostra-se de extrema evidência (o que nem seria necessário, como vimos) o caráter imprudente e negligente da sua conduta, absolutamente desviado da prudência normal e da diligência de um bom pai de família.

25. Por tudo quanto vimos de referir, concluímos, sempre salvo o merecido respeito, pela existência de manifesto e evidente erro de julgamento, verificando-se a violação nomeadamente dos artigos 2.º, n.º 2 e 374.º do CPC, 9.º, 483.º e 487.º do CC e, ainda, 58.º, 61.º e 62.º da CRP.

26. Por outro lado, os Recorridos, mesmo perante ordem judicial de reconstituição da situação anterior, proferida no âmbito de providência cautelar que restou indeferida em sede recursal, não procederam à entrega das áreas do imóvel com acesso vedado à Recorrente.

27. Sobre o assunto pronunciou-se o Tribunal a quo negando a indemnização peticionada pelos Recorrentes a título de danos causados pelo incumprimento da decisão judicial sustentando que “para situações de incumprimento de uma decisão judicial existem mecanismos coercivos, processualmente regulados, que se impõem ao inadimplente, dos quais a ora A./Apelante podiam querendo, ter lançado mão, de modo a obter o cumprimento (...) o que só não fez por sua vontade/opção, com o que teria evitado o avolumar dos danos de que se queixa”.

28. Em abono da verdade, importa realçar que a recorrente instaurou uma execução contra os ora recorridos, mas mesmo perante a entrega da cozinha à ora recorrente, os recorridos voltaram a apoderar-se da cozinha e das divisões.

29. Independentemente do que vimos de dar nota, a verdade é que aquele entendimento do Tribunal, que faz recair sobre a Recorrente/lesada os custos resultantes dos danos emergentes do incumprimento de uma decisão judicial protagonizado pelos Recorridos, é de afastar e não deve ser mantido.

30. Não recai nem pode recair sobre o lesado um ónus de execução de sentença judicial, porquanto não pode este ver-se seriamente prejudicado – suportando, nomeadamente, custos e perdas – por mor do precípuo incumprimento da sentença judicial pelos Recorridos, e ter ainda o ónus de recorrer, uma e outra vez, aos Tribunais.

31. Aqui chegados, e à semelhança do que já alegámos a propósito dos danos decorrentes do decretamento da providência cautelar requerida injustificadamente pelos Recorridos, temos, também nesta sede, por preenchidos todos os pressupostos para que se efetive a responsabilidade civil relativa aos custos emergentes do incumprimento da decisão judicial.

32. Em resenha, temos que:

a) Verifica-se a existência de um facto voluntário, pois os Recorridos não cumpriram a ordem judicial, os quais não procederam à entrega das divisões cujo acesso restou vedado à Recorrente – sublinhe-se, o acesso à cozinha continuou obstruído uma vez que os Recorridos destruíram a escada e a rampa que dava acesso à sala de refeições;

b) existe ilicitude, pois que com a sua conduta violaram, entre o mais, o direito de propriedade e o direito ao trabalho, à iniciativa privada e desenvolvimento da actividade económica da recorrente (cfr. mormente artigos 62.º, 58.º, 61.º da CRP);

c) verifica-se culpa dos Recorridos (dolo ou, pelo menos, negligência) – nos termos do artigo 487.º, n.º 2 do CC não atuaram com a diligência “um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso”–, uma vez que mesmo cientes de que diversos utentes, idosos residentes no Lar, estavam a ser prejudicados, mantidos com alimentação adquirida exteriormente, e que a recorrente estava sem acesso às divisões do imóvel, os Recorridos permaneceram inertes quanto à obrigação, determinada judicialmente, que impendia sobre si;

d) A Recorrente sofreu danos e perdas, como se encontra comprovado nos autos, e inclusive viu-se obrigada a despender recursos financeiros para proceder à reconstituição da situação que existia no momento anterior ao decretamento da providência – obrigação, note-se, que cabia aos Recorridos.

e) existe inequívoco nexo de causalidade entre os danos sofridos pela Recorrente e a conduta mantida pelos Recorridos – não fosse, o incumprimento da decisão judicial pelos Recorridos e a Recorrente não teria sofrido aqueles danos.

33. Pelo que, sempre salvo o merecido respeito, ao não atribuir qualquer indemnização à recorrente lesada, o erro de julgamento é manifesto e evidente, verificando a violação nomeadamente dos artigos 1.º e 2.º do CPC, 1.º, 2.º, 18.º, 20.º, 26.º, 58.º, 61.º, 62.º e 205.º, n.º 2 da CRP e, ainda, 483.º do CC, rogando-se pela intervenção pacificadora deste Alto Tribunal.


Foram os seguintes os Factos Provados:

1. A Autora é uma sociedade comercial que tem como objecto comercial a assistência à 3ª idade, apoio a idosos, com alojamento.

2. Por escrito denominado “título de compra e venda”, outorgado em 19 de Maio de 2009, no posto de atendimento “Casa Pronta” da Segunda Conservatória do Registo Predial ..., em ..., AA, com autorização da sua mulher BB, declarou vender e Caixa Leasing e Factoring – Instituição Financeira de Crédito, S.A., declarou comprar, pelo preço de 400.000€, o prédio urbano “fracção B – correspondente ao rés-do-chão esquerdo”, sito na Rua da Fonte do Vale, n.º 26, Ranha de S. João, freguesia de Vermoil, Pombal, descrito na Conservatória do Registo Predial competente sob o n.º ...39....

3. Mais ficou exarado em tal escrito que a parte compradora declara que o imóvel adquirido se destina a ser dado em locação financeira à sociedade com a firma Modelcare – Centro de Valorização e Recuperação Humana, Lda., aqui Autora.

4. A fracção B, objecto do referido escrito, é composta por: uma sala de oração, 13 quartos, 21 casas de banho, 1 copa, 1 gabinete de saúde, 1 gabinete de direcção, 1 gabinete de administração, 2 halls, 1 sala de reuniões, 1 sala de refeições, 1 sala de estar e ocupação, 4 salas para arrumos, 1 cozinha, 1 garagem, 2 arrecadações e cave composta por 2 casas de banho, 1 sala de pessoal, 1 sala de vestiário, 1 casa das máquinas, 1 lavandaria, arrumos, 1 garagem e sótão.

5. O Lar supra mencionado foi anteriormente denominado “Lar de Santa Teresinha do Menino Jesus” sito em Rua Fonte Vale Vicente, 26-B, Ranha de São João, 3105-426, Vermoil – Pombal e agora é apenas designado como Lar Modelcare.

6. Sendo a Autora a actual “locatária financeira” da referida fracção, que anteriormente era propriedade dos Réus AA e mulher, por força de escrito particular com reconhecimento presencial de assinaturas, denominado “contrato de locação financeira imobiliária n.º ...41”, datado de 19/5/2009, celebrado entre a Autora e a Caixa Leasing e Factoring – Instituição Financeira de Crédito, S.A.

7. Os aqui Réus AA e mulher intentaram uma providência cautelar no Tribunal ..., pedindo que fosse ordenada a imediata entrega “da cozinha que constitui parte da fracção “A”.

8. Providência cautelar essa que correu termos no ... Juízo do Tribunal da Comarca ... sob o n.º 716/10.... (posteriormente apensada aos autos com o n.º 958/10...., como Apenso A).

9. O Tribunal, por decisão de 19/3/2010, deferiu tal providência e ordenou que se entregasse a cozinha do Lar aos aqui Réus.

10. No dia 30 de Abril de 2010, procedeu-se à entrega efectiva da cozinha aos aqui Réus.

11. Tendo-se, para o efeito, procedido à tapagem no local com a construção de uma parede em alvenaria de blocos e cimento.

12. Com esta tapagem, ficou vedado o acesso da Autora não só à cozinha, mas também a outras divisões objecto do escrito referido em 2. e necessárias para o bom funcionamento do Lar.

13. Assim, ficou vedado o acesso da Autora a:

a. Cozinha;

b. Wc;

c. Dispensa;

d. Hall de ligação à sala de refeições;

e. Acesso ao exterior;

f. Acesso ao gás;

g. Acesso à distribuição de água, nomeadamente às torneiras de segurança.

14. A aqui A. deduziu oposição, que foi julgada improcedente a 21/7/2010, mantendo-se a providência cautelar determinada.

15. A aqui Autora interpôs recurso dessa última decisão, com sucesso, tendo o Tribunal da Relação ... ordenado, por acórdão de 5/4/2011, a “reconstituição da situação anterior”.

16. Consta da fundamentação do acórdão referido no ponto anterior, para além do mais, o seguinte: “(…) Deu-se como devidamente provado o requisito da probabilidade séria da existência do direito de propriedade em que se funda a devolução/entrega pretendida. Concorda-se. Acrescentando-se, em resposta às conclusões VI, VII e VIII da recorrente, que os documentos juntos não impõem uma decisão de facto diversa da considerada na decisão a quo, isto é, os documentos juntos não permitem, por si só, afirmação factual diversa da que resulta dos factos provados da decisão recorrida – e que é a da cozinha em causa ser parte integrante da fracção “A” (propriedade dos requerentes”. Sem prejuízo de se poder/dever dizer que o título constitutivo da propriedade horizontal – acto modelador e com eficácia real do estatuto da propriedade horizontal (art. 1418.º do C. Civil) – é determinante para tal decisão de facto; isto é, via de regra, apresentados os documentos e desenhos que são procedimentais no iter da constituição da propriedade horizontal, serão os mesmos determinantes para uma decisão de facto que se traduza em saber se um concreto espaço integra ou pertence à fracção “x” ou à fracção “y” (ou, inclusivamente, se é um espaço comum). Dá-se o caso, porém, dos documentos juntos não permitirem tirar qualquer conclusão; sendo-se exacto e completo, não nos é sequer permitido perceber onde se situa, concretamente, o “espaço” a que se refere e que constitui o objecto da providência. (…) Deu-se ainda como devidamente provado, na decisão recorrida, o requisito do “periculum in mora”. Ponto com que não se concorda com a decisão recorrida”. (…) Enfim, tudo visto e ponderado, os factos provados não configuram uma situação de “periculum in mora” que justifique e careça da tutela provisória e urgente conferida pela providência cautelar comum (…)”.

17. Todavia, apesar da ordem dada pelo Tribunal Superior, a mesma não foi devidamente cumprida.

18. Já que não foram entregues as divisões referidas em 13.

19. O acesso à cozinha continua obstruído, já que os Réus destruíram a escada e a rampa que dava acesso à sala de refeições, ficando um desnível de cerca de um metro entre aquela sala e a cozinha, o qual impede a passagem e circulação entre ambos os compartimentos.

20. Para além do referido no ponto anterior, os Réus transformaram o hall de ligação com a colocação de azulejo e retiraram o corrimão em inox que separava a escadaria de uma rampa.

21. A Autora ainda não tem acesso ao sistema de gás ou às torneiras de segurança.

22. No acesso ao exterior, os Réus subiram os muros e alteraram o portão, sendo que não entregaram as chaves à Autora.

23. Quanto ao parque de estacionamento, os Réus removeram o piso e implantaram uma horta nesse espaço.

24. Desde a data referida em 10. e até final de Julho de 2010, altura em que construiu uma cozinha provisória de modo a poder confecionar refeições para o Lar, a Autora teve de comprar parte da comida já confecionada a outras empresas e restaurantes de modo a poder continuar a proporcionar refeições quentes e com segurança aos seus utentes.

25. O que representou um acréscimo na despesa de mais 5.000€ até final de Julho de 2010.

26. Acresce que, para ir buscar a comida fora, a Autora gastava, em média e por dia, a quantia de 20 euros em deslocações,

27. O que implicou, até ao momento referido em 24., um encargo de 1.850€.

28. Por outro lado, a construção da cozinha provisória implicou um gasto para a Autora na quantia de 13.332,45€.

29. Se a Autora tivesse de arrendar um espaço (cozinha) similar, tal nunca seria inferior a 750 euros mensais.

30. A situação supra descrita impediu a Autora de obter o respectivo alvará, porque a mesma não tinha a funcionar todas as divisões que tinham sido licenciadas para o efeito pelas autoridades competentes.

31. Como não é possível ter alvará, a Autora está impedida de celebrar protocolos com entidades sociais.

32. A Autora tem actualmente 25 utentes residentes.

33. Caso dispusesse de alvará e de uma cozinha devidamente equipada, a Autora poderia cobrar mensalmente mais 150 euros por cada utente.

34. O que se traduz, até à entrada em juízo da petição inicial, num prejuízo de 131.250€.

35. Os Réus têm vindo a usar água da rede pública do contador da Autora, para fins domésticos,

36. O que se traduz no acréscimo na factura da água em cerca de 100 euros mensais, acarretando para a A., até à entrada da petição inicial, um prejuízo de 3500 Euros.

37. Não obstante a intervenção que a Caixa Leasing e Factoring – Instituição Financeira de Crédito, S.A. veio a ter no negócio referido em 2., as negociações preliminares à sua celebração decorreram apenas entre os legais representantes da Autora, em representação desta, e os Réus.

38. Os quais acordaram as condições do negócio, preço e forma de pagamento.

39. Quando celebraram o escrito referido em 2., os Réus pensavam que a Fracção B não englobava o rés-do-chão da sua vivenda.

40. Os Réus estavam convencidos de que os edifícios se encontravam separados, enquanto realidades físicas distintas, porquanto, em 2008, solicitaram os serviços de uma advogada para proceder à respectiva cisão, através da constituição da propriedade horizontal.

41. E que, de uma única realidade física, tinham surgido então, duas fracções, a “A” e a “B”, sendo que a primeira corresponderia ao edifício da vivenda, composta por rés-do-chão, primeiro andar e sótão e a segunda, pelo edifício do Lar, com cave, rés-do-chão e sótão.

42. No entanto, a fracção “B” continuou a ser servida por uma cozinha integrada no rés-do-chão da vivenda dos Réus, bem como uma despensa e uma casa de banho existentes naquela zona.

43. Foi assim durante o período em que Réus foram donos e exploraram o Lar, de 2003 a 2008, sensivelmente, como continuou a sê-lo a partir de Agosto de 2008, data em que a Autora, começou a explorar aquela unidade.

44. A 18 de Novembro de 2008, os RR., enquanto promitentes vendedores e a A., enquanto promitente compradora, subscreveram documento particular com reconhecimento presencial de assinaturas, na qual os primeiros prometiam vender e a segunda prometia comprar a supra identificada fracção B.

45. Até hoje, a Autora não ocupou a área correspondente ao rés-do-chão da habitação dos Réus, à excepção da área da cozinha, despensa e casa de banho de apoio ao Lar.

46. Quer nas negociações preliminares, quer no dia da escritura de compra e venda, os legais representantes da Autora sempre afirmaram, porque isso havia sido convencionado com os Réus, que o negócio não incluía o rés-do-chão da vivenda desta.

47. Antes da celebração do negócio, bem como em período anterior, entre os legais representantes da Autora e os Réus, existia um ambiente quase familiar.

48. A Ré estava bastante debilitada, quer a nível físico, quer a nível psicológico, estava acamada e a legal representante da Autora passava grande parte do tempo no quarto daquela.

49. A Autora tinha conhecimento de que os Réus usavam a parte restante do rés-do-chão como habitação.

50. Já na pendência da acção declarativa que correu os seus termos com o n.º 958/10...., a Autora intentou a acção de declarativa de condenação que correu termos sob o n.º 2560/10...., no ... Juízo do Tribunal Judicial ..., pedindo a condenação dos Réus na restituição de determinadas divisões do rés-do-chão da sua habitação.

51. A Autora aceitou receber em locação financeira o imóvel referido em 2., sabendo que os RR. não pretendiam vender o rés-do-chão da vivenda à Caixa Leasing e Factoring – Instituição Financeira de Crédito, S.A. e aceitou o negócio nos termos convencionados entre os RR. e a Caixa Leasing e Factoring – Instituição Financeira de Crédito, S.A., acreditando que a mencionada fracção “B” não incluía aquela parcela.

52. Se os Réus se tivessem apercebido de que o rés-do-chão da sua vivenda fazia parte do Lar (“Fração B”), fruto da forma como foi constituída a propriedade horizontal, não o teriam vendido à locadora financeira.

53. À data da escritura referida em 2., o imóvel vendido pelos Réus (incluindo-se aqui o rés-do-chão da vivenda) tinha um valor de mercado de 673.400€.

Mais se apurou que:

54. Na acima referida acção declarativa com o n.º 958/10...., os aqui RR. pediam que se declarasse que a fracção “A” incluía a cozinha e partes a ela afectas (despensa, hall, casa de banho para o pessoal), sendo a Ré condenada a restitui-las aos Autores; a aqui A., em pedido reconvencional, pediu que fosse “restituída de imediato a cozinha à R., dado que lhe pertence na qualidade de locatária, na sequência do contrato de locação financeira efectuado com a proprietária do imóvel” e ainda que os AA. fossem “condenados a liquidar o pedido reconvencional à R. pelos prejuízos causados, durante todo o tempo em que a mesma estiver privada da utilização da cozinha, valor a fixar em liquidação de sentença, dado que, não é possível por ora quantificar os prejuízos, pois desconhece-se a data em que a cozinha será reposta como parte integrante da fracção “B””.

55. Por despacho de 6/10/2010, o pedido reconvencional foi admitido apenas na parte em que a Ré pretendia a restituição da cozinha.

56. A final, com data de 24/1/2013, veio a ser proferida decisão, transitada em julgado a 5/3/2013, que julgou parcialmente procedente a acção, condenando a Modelcare a reconhecer que a fracção “A” era propriedade dos aqui RR. AA e mulher, improcedendo a acção no demais peticionado em sede de petição inicial/reconvenção.

57. Consta da fundamentação da referida decisão o seguinte: “Formula a Ré, na parte da reconvenção que foi admitida, pedido no sentido de lhe ser reconhecido o direito a ter na sua posse a referida área. Acontece porém que, apesar de ter resultado da ação que essa área está incluída na fracção “B”, a mesma que foi objecto de contrato de locação financeira e na qual ela tem a qualidade de locatária financeira, a verdade é que neste caso se não verificam, quanto a ela, os pressupostos que estão na base da acção de restituição ou manutenção da posse devido à singela, mas fundamental, razão de que o que esteve na base da privação dessa sua posse foi uma decisão judicial proferida no procedimento cautelar apenso – e não pois qualquer ato ilícito de perturbação ou esbulho da sua posse – decisão essa que, tendo de facto ordenado a restituição aos autores da posse, veio depois em recurso a ser revogada, restituindo-se de novo a ré a essa posse”.».


Foi julgado como não provado:

a) Passado algum tempo após a Autora estar a trabalhar com o Lar, os Réus AA e mulher começaram a causar muitos problemas e entraves com vista a importunar o bom e normal funcionamento do Lar.

b) Os Réus sabiam que o que afirmavam na providência cautelar era falso.

c) O Tribunal foi levado a tomar a decisão referida em 9. e 14. por alegação errónea e deliberadamente deturpada por parte dos Réus.

d) Os quais, alegando factos que sabiam não serem verdadeiros, quiseram e conseguiram vedar e impedir a Autora de usar a cozinha que pertence e sempre pertenceu ao Lar.

e) Os Réus induziram em erro o oficial de justiça, no momento referido em 10. e 11.

f) O Wc ficou tapado por uma chapa de inox e os Réus ainda não a removeram nem entregaram a respectiva chave;

g) Os RR. retiraram uma instalação telefónica e alteraram a instalação elétrica existente no hall de ligação à sala de refeições.

h) Os Réus retiraram as floreiras do exterior e construíram um telheiro em chapa.

i) Os Réus alteraram as torneiras e a canalização.

j) Para proceder à reconstituição da situação anterior, a Autora foi obrigada a despesas com a agente de execução, as quais se traduziram no valor de 414,12€.

k) Bem como foi obrigada a pagar custas e honorários para repor tal situação.

l) No âmbito da diligência levada a cabo por agente de execução, a Autora foi ainda obrigada a despender a quantia de 225€ que pagou a um seu funcionário para dar assistência à agente de execução no âmbito da diligência de remoção da parede em blocos que havia sido construída na sequência da providência cautelar interposta pelos Réus.

m) Enquanto a Autora esteve privada do uso das divisões supra referidas, os equipamentos e mobiliário da cozinha ficaram deteriorados.

n) Os Réus têm vindo a usar a água do contador da Autora para fins agrícolas.

o) Por ter sido demandada em vários processos em tribunal, a Autora ficou “mal vista” na área perante futuros e potenciais clientes.

p) Por causa dos processos intentados pelos Réus, a Autora não se consegue financiar na banca.

q) Os Réus apenas tiveram conhecimento de que estavam a vender a referida fracção à “Caixa Leasing” no próprio dia do negócio, porquanto a Autora lhes omitiu esse facto.

r) Os Réus estavam convencidos de que iriam vender o Lar à Autora.

s) Chegou a ser elaborado um acordo, por uma advogada, a pedido de ambas as partes, cuja assinatura, conforme havia ficado acordado, ocorreria no dia da escritura, em 19/5/2009, no qual a Autora se comprometeu a restituir a cozinha aos Réus no prazo máximo de um ano.

t) Porém, a Autora recusou assinar o referido documento, apesar de continuar a afirmar, mesmo após a realização da escritura, que restituiria a cozinha aos Réus.

u) O que fez de má fé, com o intuito de enganar os Réus.

v) Antes da celebração do negócio, os legais representantes da Autora tiveram contacto com toda a documentação referente às fracções, nomeadamente, plantas e escritura da constituição da propriedade horizontal,

w) Aí, aperceberam-se de que em tais documentos estava incluído o rés-do-chão da casa dos réus.

x) A Autora tinha conhecimento de que os RR. estavam convictos de que o rés-do-chão da vivenda integrava a “Fracção A”.

y) Porém, apesar de saberem que os Réus estavam enganados em relação à realidade física e composição de cada fracção, na medida em que pensavam que o rés-do-chão, após a cisão dos edifícios, fazia parte da “Fracção A”, os legais representantes da Autora, manifestamente de má fé, mantiveram os Réus no engano.

z) A Autora, já durante as negociações, tinha conhecimento de que o rés-do-chão integrava a “Fracção B”.

aa) Sabia que os Réus estavam enganados a esse respeito e aproveitou-se desse engano para vir pedir a entrega daquela parcela.

bb) Se os Réus se tivessem apercebido de que o rés-do-chão da sua vivenda fazia parte do Lar (“Fração B”), fruto da forma como foi constituída a propriedade horizontal, tê-lo-iam vendido por um valor superior.

cc) O Lar alberga mais utentes actualmente do que em 19/5/2009, o que fez aumentar o volume de facturação, bem como o lucro da Autora em cada exercício.

dd) Os RR. sempre tiveram conhecimento de que a fracção que corresponde ao Lar “fracção B”, se estende ao piso inferior ao rés-do-chão da fracção A,

ee) Tanto mais que se candidataram a fundos públicos (PAIPS), assinando documentos nos quais se comprometeram perante a Seg. Social a manter a área a que corresponde a Fracção B completa, isto é, incluindo as divisões que estão incluídas no piso inferior ao rés-do-chão da fracção A, pelo período de 20 anos.


Conhecendo:


I


A matéria da presente revista prende-se com a aplicação ao caso dos autos do disposto no art.º 374.º n.º1 CPCiv, nos termos do qual, “se a providência for considerada injustificada ou vier a caducar por facto imputável ao requerente, responde este pelos danos culposamente causados ao requerido, quando não tenha agido com a prudência normal”.

Visa-se assim sancionar civilmente o requerente que tenha adoptado uma conduta censurável, atenta a menor segurança que confere a prova de mera aparência em que se baseia o julgamento de uma providência, bem como a possibilidade de o requerido não ter sido ouvido em momento prévio ao decretamento da providência (assim, Maria dos Prazeres Beleza, RDES, 1994, pgs. 429ss.).

Trata-se porém de uma formulação legal que respeita, ou se conjuga, com os pressupostos habituais exigidos pela doutrina para a prova da responsabilidade civil aquiliana, tal como prevista no art.º 483.º n.º1 CCiv, a saber: o evento, o dolo ou a culpa, a ilicitude, o dano e o nexo de causalidade (cf. Ac.S.T.J. 26/2/2019, p.º 618/12.9TVPRT.P1.S2, e Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, CPC Anotado, I, 2.ª ed., pg.461) – nesse sentido, uma particular situação de responsabilidade civil extra-contratual pelos prejuízos emergentes de actuação culposa do requerente de uma providência cautelar que omite deveres de prudência e cuidado que lhe eram exigíveis, ao requerer, sem fundamento legítimo, uma providência cautelar.

A norma do art.º 374.º n.º1 CPCiv deve ser lida, aliás, de par com o que, em matéria do cautelar arresto, consta do disposto no art.º 621.º CCiv, que igualmente pressupõe que o requerente responsável pelos danos não tenha agido com a prudência normal.

A ratio particular da norma encontra-se no facto de o requerente se poder prevalecer do carácter de urgência da providência e da summaria cognitio que implica apenas o decretamento respectivo.

Temos assim que, em nosso entendimento, nos encontramos perante matéria que cabe ao lesado/autor provar, na acção intentada com vista a responsabilizar o requerente de providência cautelar, nos termos da norma apontada do art.º 374.º n.º1 CPCiv.

Recai sobre o lesado, designadamente, o ónus de provar a culpa do autor da lesão – art.º 487.º n.º1 CCiv.

Significa isto que nos afastamos do entendimento de certa doutrina que integra a norma do art.º 374.º n.º1 CPCiv numa “terceira via de responsabilidade civil, que pressupõe um regime particular apurado em relação a diversos pontos em concreto, que exigem uma integração específica de lacunas”, cabendo assim aplicar à integração da norma, por igual, o regime da presunção de culpa, próprio da responsabilidade contratual (cf. art.º 799.º CCiv) – nesse sentido, Rita Lynce de Faria, A Tutela Cautelar Antecipatória no Processo Civil Português, Revista do CEJ, 2018, 1.º, pgs. 38 a 63, cit. in Ac.S.T.J. 25/2/2021, pº 7147/10.3TBMTS.P2.S1.

Como, para a providência de arresto, sempre fundamentou a jurisprudência: “Não basta assim o facto objectivo de o arresto vir a ser julgado injustificado ou infundado, mas é necessária ainda a prova da culpa do arrestante, traduzida em conduta censurável, por falta do cuidado normalmente exigível, o que deve ser apreciado em face das circunstâncias de cada caso concreto e cuja prova cabe ao lesado (art.º 487.º CCiv)” – cf. Ac.S.T.J. 30/11/94 Bol.441/243 (Martins Costa).

Na verdade, o insucesso de uma providência, além de poder resultar das contingências da prova, não deve afectar o direito de acção e de acesso ao Tribunal dos cidadãos, direitos que podem ter variadas causas, que o insucesso da demanda é insuficiente para explicar.

Como escreveu o Dr. Joaquim Pires de Lima, R.O.A., 51º, pg.104, em considerandos que inteiramente assumimos, “a responsabilidade civil parece a sanção adequada ao caso; mas ir além dessa sanção é pôr em questão preceitos constitucionais, convencionais internacionais e legais”.

“Com efeito, o artigo 20.º da Constituição estabelece que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais: o artigo 13.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem estabelece que toda a pessoa tem direito à concessão de um recurso efectivo ante uma instância nacional para defesa dos seus direitos: o artigo 2.º n.º2 do CPCiv, embora com excepções legais, fixa a regra de que a todo o direito corresponde uma acção para o fazer valer.”



II


A “culpa”, associada ao elemento “prudência normal”, da norma do art.º 374.º n.º1 CPCiv (que reproduz a 1.ª parte do n.º1 do art.º387.º CPCiv61), é inegável que, em matéria de integração da vontade do agente, compreende o elemento dolo, enquanto intelecção e vontade de um comportamento, dolo que pode também assumir a forma eventual (a representação como possível de determinado resultado, mas a aceitação das consequências do comportamento).

O conceito integra ainda o comportamento negligente, englobando a negligência consciente e a negligência inconsciente.

 O comportamento negligente, de maneira independente ao seu reporte ao estado psicológico, deve ser apreciado ou valorado, na acepção da norma do artº 487º nºs 1 e 2 CCiv, por comparação com a diligência do bom pai de família.

Esta comparação permite estabelecer várias gradações de culpa:

A culpa grave, na acepção da doutrina, consiste em não fazer o que faz a generalidade das pessoas, em não observar os cuidados que todos em princípio observam – cf. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1973, pg. 452 – ou, noutra definição, consiste numa negligência grosseira em que só cai um homem excepcionalmente descuidado, distinta da culpa leve (negligência em que não cairia um homem mediano) ou da culpa levíssima (aquela em que só não cairia um homem excepcionalmente diligente) – cf. Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, I, artº487º, e Pessoa Jorge, Dtº das Obrigações, 75/76, pgs. 572 e 573.

Como visto, a norma do art.º 374.º n.º1 CPCiv exige que os danos provocados pela injustificação da providência tenham sido causados culposamente, e quando o agente não tenha utilizado a “prudência normal”.

É de entender assim que o critério a preencher se basta com a culpa leve, isto é, com uma conduta do requerente da providência que não tenha observado deveres de cuidado exigíveis e que seriam adoptados pelo bom pai de família, o homem normalmente (medianamente) prudente ou cuidadoso, frisando-se a nota ética da noção do bom cidadão, transcendendo uma ideia meramente estatística (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, loc. cit.).

Exclui-se assim apenas a culpa levíssima, pelo que nos encontramos em face de padrões de avaliação idênticos aos da genérica responsabilidade civil aquiliana – art.º 483.º n.º1 CCiv.

Todavia, e não contraditoriamente, há que conjugar o grau de culpa típico da “prudência normal” com o facto, salientado por Vaz Serra, Revista Decana, 102º/175 (cit. in Ac.S.T.J. 30/11/94 supra), a propósito da providência de arresto, mas aqui mutatis mutandis, que a providência cautelar é um meio posto à disposição dos credores ou lesados em geral para legítima defesa do seu direito e raríssimos serão os casos em que o requerente pode ter a certeza de que o tribunal virá a dar-lhe razão, dada a aludida contingência das decisões judiciais, pelo que uma excessiva responsabilidade seria praticamente incompatível com o uso daquele meio legal, e até em face do princípio geral de que o litigante só responde por má fé.



III


Outras notas se devem acentuar para a integração da noção legal de responsabilidade do requerente da providência cautelar.

Em primeiro lugar, que na norma do art.º 374.º n.º1 se compreendem não apenas situações de falta de titularidade do direito invocado pelo requerente da providência, titularidade essa sumariamente apreciada, em termos de probabilidade, verosimilhança ou aparência do direito (o fumus boni juris da doutrina), como também as situações em que, apesar da existência do direito, não existe o justo receio de lesão (cf. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, III, pg.264, e M. Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, pgs. 233 e 254).

Depois, que o fundamento legal para a injustificação da providência poderá decorrer, desde logo, da decisão do incidente de oposição (art.º 372.º CPCiv), do recurso de apelação interposto (art.º 372.º n.ºs 1 al.a) e 3 CPCiv), sem prejuízo ainda do que se vier a demonstrar na acção principal.

Aquilo que se deve demonstrar em contradição com o decretamento da providência são, como visto, os casos de ocultação intencional da verdade, mas também os casos de actuações imprudentes, segundo o padrão do comportamento explanado do bom pai de família, tendo influenciado o tribunal no momento da decisão cautelar.

Significativo ainda o juízo de que “a responsabilidade do requerente pressupõe que a providência é injustificada no momento em que é requerida ou não vem a ser confirmada pela decisão proferida na acção principal” (M. Teixeira de Sousa, Estudos cit., pg.254).

Como se exprimiu o Ac.S.T.J. 26/9/2002, p.º 02B1938 (Sousa Inês), oportunamente citado na decisão recorrida:

“O momento a atender para se julgar acerca da falta de normal prudência do requerente é aquele em que este age (tenha agido, diz a lei), ou seja, é, essencialmente, aquele em que o requerente intenta o procedimento cautelar; é este o momento em que o requerente age.”

“É em relação ao tempo em que o requerente agiu, essencialmente intentando a acção (podendo relevar ainda a conduta, no tempo em que se realizou a audiência), que haverá que determinar se o requerente ocultou intencionalmente factos, ou os deturpou conscientemente, ou agiu imprudentemente, ou com erro grosseiro ou, até, com culpa ofensiva da prudência exigível do bom pai de família.”

“Não são fundamento de responsabilidade do requerente, nos termos deste preceito legal, o requerer a providência com ausência de fundamento de facto ou de direito, ou com fundamento em errada ou discutível interpretação do direito mas que, não obstante, conduza ao decretamento da providência (embora com posterior revogação da decisão). Os erros de julgamento são do tribunal, não justificam a responsabilização do requerente da providência.”



IV


O que os autos demonstram, e as instâncias adequadamente sublinharam, é que os ora RR. intentaram providência cautelar comum pedindo que fosse ordenada imediata entrega da cozinha, por constituir parte integrante da fracção A do condomínio, fracção no domínio dos ora RR.

Não apenas a providência foi decretada como foi mantida, mesmo após oposição da ora Autora.

Da decisão proferida após oposição foi interposto recurso de apelação, cuja decisão divergiu da 1.ª instância, nos seguintes pontos:

- Deu-se como provado o requisito da probabilidade séria da existência do direito de propriedade em que se funda a devolução/entrega pretendida. Concorda-se. Acrescentando-se que os documentos juntos não impõem uma decisão de facto diversa da considerada na decisão a quo, isto é, os documentos juntos não permitem, por si só, afirmação factual diversa da que resulta dos factos provados da decisão recorrida – e que é a da cozinha em causa ser parte integrante da fracção “A” (propriedade dos requerentes).

- Sem prejuízo de se poder/dever dizer que o título constitutivo da propriedade horizontal – acto modelador e com eficácia real do estatuto da propriedade horizontal (art. 1418.º do C. Civil) – é determinante para tal decisão de facto; isto é, via de regra, apresentados os documentos e desenhos que são procedimentais no iter da constituição da propriedade horizontal, serão os mesmos determinantes para uma decisão de facto que se traduza em saber se um concreto espaço integra ou pertence à fracção “x” ou à fracção “y” (ou, inclusivamente, se é um espaço comum).

- Dá-se o caso, porém, dos documentos juntos não permitirem tirar qualquer conclusão; sendo-se exacto e completo, não nos é sequer permitido perceber onde se situa, concretamente, o “espaço” a que se refere e que constitui o objecto da providência.

- Deu-se ainda como devidamente provado, na decisão recorrida, o requisito do “periculum in mora”. Ponto com que não se concorda com a decisão recorrida”. Os factos provados não configuram uma situação de “periculum in mora” que justifique e careça da tutela provisória e urgente conferida pela providência cautelar comum.

Decidiu-se pois, em 2.ª instância, na base da dúvida sobre o direito invocado e da inexistência de prejuízo por via da demora na decisão da causa, enquanto fundamentos da providência decretar.

Repare-se que, sem prejuízo da denegação do periculum in mora, sobre o específico direito invocado, incidiu apenas a dúvida do decisor.



V


Depois, atentar-se-á noutra factualidade:

- não obstante a intervenção que a Caixa Leasing e Factoring – Instituição Financeira de Crédito, S.A. veio a ter no negócio de compra e venda da fracção, as negociações preliminares à sua celebração decorreram apenas entre os legais representantes da Autora, em representação desta, e os Réus (37), que acordaram as condições do negócio, preço e forma de pagamento (38), pensando os Réus que a Fracção B não englobava o rés-do-chão da sua vivenda (39), por se  encontrarem convencidos de que os edifícios se encontravam separados, enquanto realidades físicas distintas (em 2008, tinham solicitado os serviços de uma advogada para proceder à respectiva cisão, através da constituição da propriedade horizontal – 40) e que, de uma única realidade física, tinham surgido então, duas fracções, a “A” e a “B”, sendo que a primeira corresponderia ao edifício da vivenda, composta por rés-do-chão, primeiro andar e sótão e a segunda, pelo edifício do Lar, com cave, rés-do-chão e sótão (41);

- aliás, quer nas negociações preliminares, quer no dia da escritura de compra e venda, os legais representantes da Autora sempre afirmaram, porque isso havia sido convencionado com os Réus, que o negócio não incluía o rés-do-chão da vivenda da Autora, o que tudo decorria em ambiente quase familiar e sabendo a Autora que os Réus usavam a parte restante do rés-do-chão como habitação (46, 47 e 49).

E mais:

- a Autora aceitou receber em locação financeira a fracção, sabendo que os RR. não pretendiam vender o rés-do-chão da vivenda à Caixa Leasing e Factoring – Instituição Financeira de Crédito, S.A. e aceitou o negócio nos termos convencionados entre os RR. e a Caixa Leasing e Factoring – Instituição Financeira de Crédito, S.A., acreditando que a mencionada fracção “B” não incluía aquela parcela (51);

- e se os Réus se tivessem apercebido de que o rés-do-chão da sua vivenda fazia parte do Lar (“Fracção B”), fruto da forma como foi constituída a propriedade horizontal, não o teriam vendido à locadora financeira (52).

Ou seja:

A convenção anterior ao negócio sempre pressupôs que o negócio não incluía o rés-do-chão da vivenda, casa de morada dos Réus.

É inequívoco que, no contexto dos autos e da matéria provada e fixada nas instâncias, os ora Réus não afrontaram a diligência ou prudência normal, característica do homem médio definido no art.º 487.º n.º2 CCiv.

Moveram-se entre diversas decisões e interpretações judiciais, sempre situadas em momento posterior, a jusante do decisivo momento do requerimento da providência e das diligências efectuadas para o sustentar.

As situações de incumprimento da decisão judicial invocadas na revista, não relevam para a apreciação do direito invocado pela Autora.

Como se afirma no acórdão recorrido, e que aqui vai corroborado:

“É certo que os ora RR./Recorridos não cumpriram o determinado, em sede de procedimento cautelar, no acórdão da Relação, conduta esta de ostensiva inobservância do imposto por um Tribunal Judicial, o que, obviamente, deve merecer censura, sendo os danos invocados, na perspetiva recursiva, decorrentes deste incumprimento (a jusante dele).”

“Mas para situações de incumprimento de uma decisão judicial existem mecanismos coercivos, processualmente regulados, que se impõem ao inadimplente, dos quais a ora A./Apelante podia, querendo, ter lançado mão, de modo a obter o cumprimento («reconstituição da situação anterior» à decretação da providência, mediante a entrega coativa, por ordem judicial e com o concurso, se necessário, da força pública, tanto mais que a decisão da Relação se tornou definitiva na esfera cautelar), o que só não fez por sua vontade/opção, com o que teria evitado o avolumar dos danos de que se queixa (cfr., designadamente, o art.º 375.º do CPCiv., contemplando medidas adequadas à execução coerciva, como é apanágio, em geral, das decisões judiciais impositivas revestidas de caráter definitivo).”

E como dispõe a norma do art.º 373.º n.º3 CPCiv, tal como, desde a reforma de 95/96, dispunha o anterior art.º 389.º n.º4 CPCiv, o que compreende a determinação judicial de reposição da situação anterior (cf. M. Teixeira de Sousa, Estudos cit., pg. 253, e Abrantes Geraldes, Temas cit., pg. 261).


Em resumo:

I - A formulação legal do art.º 374.º n.º1 CCiv conjuga-se com os pressupostos habituais exigidos pela doutrina para a prova da responsabilidade civil aquiliana, tal como prevista no art.º 483.º n.º1 CCiv, constituindo uma particular situação de responsabilidade civil extra-contratual pelos prejuízos emergentes de actuação culposa do requerente de uma providência cautelar que omite deveres de prudência e cuidado que lhe eram exigíveis, ao requerer, sem fundamento legítimo, a referida providência.

II - O insucesso de uma providência, além de poder resultar das contingências da prova, não deve afectar o direito de acção e de acesso ao Tribunal dos cidadãos, direitos que podem ter variadas causas, que o insucesso da demanda é insuficiente para explicar; ir além dessa sanção é pôr em questão preceitos constitucionais, convencionais internacionais e legais.

III - O momento a atender para se julgar acerca da falta de normal prudência do requerente é aquele em que este age, ou seja, é, essencialmente, aquele em que o requerente intenta o procedimento cautelar.

IV - Se a convenção anterior ao negócio sempre pressupôs que o negócio não incluía o rés-do-chão da vivenda, casa de morada dos RR., tais RR. e requerentes da providência cautelar não afrontaram a diligência ou prudência normal, característica do homem médio definido no art.º 487.º n.º2 CCiv, tendo-se tão só movido entre diversas decisões e interpretações judiciais, situadas em momento posterior ao requerimento da providência e ao momento das diligências efectuadas para o sustentar.

V - Para situações de incumprimento de uma decisão judicial existem mecanismos coercivos, processualmente regulados, dos quais o adimplente pode lançar mão, de modo a obter o cumprimento, reconstituindo a situação anterior à decretação da providência, mediante a entrega coactiva, por ordem judicial e com o concurso, se necessário, da força pública.


Decisão:

Nega-se a revista.

Custas pela Recorrente.


STJ, 10/03/2022


Vieira e Cunha (relator)

Manuel Tomé Soares Gomes

Maria da Graça Trigo