Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
96P361
Nº Convencional: JSTJ00030136
Relator: SOUSA GUEDES
Descritores: BURLA RELATIVA A SEGUROS
Nº do Documento: SJ199607040003613
Data do Acordão: 07/04/1996
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/PATRIMÓNIO / TEORIA GERAL.
DIR PROC PENAL - RECURSOS.
Legislação Nacional:
Jurisprudência Nacional:
Sumário : O crime de burla representa a forma evoluída de captação do alheio em que o agente se serve do erro ou engano da vítima para que esta incautamente consinta na sua espoliação.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1. O Tribunal de Círculo de Santa Maria da Feira condenou os arguidos José António Santos Costa e
António Joaquim Reis Almeida, ambos com os sinais dos autos, pela seguinte forma:
- O José António, como autor material de um crime de incêndio previsto e punido pelo artigo 253, n. 2 do
Código Penal de 1982, na pena de 24 meses de prisão e
75 dias de multa a 800 escudos por dia; como autor material de um crime de burla relativa a seguros, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 219, ns.
1, alínea a) e 4 alínea b), 202, alínea b) e 73 do
Código Penal de 1995, na pena de 24 meses de prisão; e como co-autor de um crime de burla agravada previsto e punido pelos artigos 313 e 314, alínea c) do Código
Penal de 1982, na pena de 24 meses de prisão; em cúmulo jurídico, na pena única de 3 anos de prisão e 60000 escudos de multa, na alternativa de 50 dias de prisão;
- O António Joaquim, como co-autor do referido crime de burla agravada previsto e punido pelos artigos 313 e
314, alínea c) do Código Penal de 1982, na pena de 18 meses de prisão;
- o tribunal declarou suspensa a execução desta pena pelo período de 3 anos ao José António e de 2 anos ao
António Joaquim com a condição de, em três meses, efectuarem os seguintes pagamentos: 1000000 escudos a
Manuel Joaquim Gomes Pinheiro, apenas o arguido José
António; e 1000000 escudos a Central Hispano Leasing, ambos os arguidos solidariamente;
- foram ainda os arguidos condenados nas custas e demais alcavalas legais.
2. Recorreram os arguidos desta decisão.
Na sua motivação concluíram, em síntese, que:
- verificaram-se na audiência irregularidades graves na obtenção e apreciação da prova que geraram vícios arguíveis nos termos do artigo 410, n. 2 do Código de
Processo Penal;
- ao dar-se como assente matéria de facto de forma geral, foi postergado o princípio do contraditório e prescindiu-se de um exame crítico das provas, sendo violados os artigos 374 e 379 do Código de Processo
Penal e 32 da Constituição da República Portuguesa;
- existem no acórdão contradições e erros notórios que resultam da conjugação dos documentos do processo, das provas produzidas e das regras da experiência comum, tudo a gerar nulidades sindicáveis, nos termos do artigo 410, n. 2 do Código de Processo Penal, e a violar os artigos 124 e 340 do Código de Processo
Penal;
- dadas as insuficiências e omissões graves na apreciação, recolha e valorização da prova, deverá o acórdão ser declarado nulo, nos termos do artigo 688 do
Código de Processo Civil;
- não se provaram os requisitos essenciais dos crimes de incêndio e burla relativa a seguros, sendo que nem sequer foi definido com clareza o prejuízo patrimonial efectivo derivado do evento;
- de resto, não era punível no Código Penal de 1982 a burla na forma tentada; e,
- quanto ao crime de burla, não houve artifício fraudulento que enganasse o pretenso burlado; aliás, se a seguradora declarou, após o incêndio, o seguro nulo, não pode existir tentativa quanto a algo que não vigora;
- também não existe o crime de burla agravada imputado aos arguidos, pois as vendas foram feitas de forma legal e perfeita;
- assim, e a não ser anulado o acórdão recorrido, deverão os arguidos ser absolvidos.
Na sua resposta, o Ministério Público bateu-se pela improcedência do recurso.
3. Procedeu-se à audiência com observância do formalismo legal e cumpre agora decidir.
É a seguinte a matéria de facto que o Colectivo considerou provada:
1) - O arguido José António é desde 7 de Setembro de
1992 o único proprietário da fábrica de calçado denominada "José António Santos Costa", mais conhecida por "Calçado Chiné", a funcionar no Lugar do Casal, S.
Vicente de Pereira, Ovar, instalada no prédio rústico inscrito sob o n. 403, descrito na Conservatória de
Registo Predial de Ovar sob o n. 111/030287, São
Vicente da Pedreira;
2) - Este prédio, adquirido pelo arguido em 8 de
Novembro de 1991 pelo preço de 8000000 escudos, compreendia um anexo adaptado a habitação e um pavilhão amplo, com área coberta de 240 metros quadrados, onde funcionava a fábrica referida;
3) - Neste anexo, desde a Páscoa de 1992, passou a residir com a esposa o empregado do arguido, José Pinho da Silva, que exerce as funções de cortador de calçado, motorista e guarda das instalações, a única pessoa que, com o arguido José António, possuía as chaves da fábrica;
4) - A laboração da fábrica processava-se com as máquinas que o arguido José António transportou da antiga sede da firma, sita em Cucujães, Oliveira de
Azeméis, todas descritas a folha 145 (que aqui se dão por reproduzidas) e encontravam-se seguradas na
Companhia de Seguros Metrópole desde 7 de Março de
1990, sob a apólice n. 3134203, no valor total de
8000000 escudos, cujo titular inicial era a esposa do arguido José António, Emília Pereira Ribeiro da Costa, i.d. folha 197;
5) - Em Junho de 1991, tal apólice - ainda com o mesmo titular - foi alterada para 30000000 escudos;
6) - Em 1 de Outubro de 1991, processou-se a mudança para o nome do arguido José António, que passou a ser o respectivo titular;
7) - Todavia, o arguido, já desde 24 de Setembro de
1991 que havia segurado também nove das máquinas descriminadas a folha 145 designadamente para o ramo de incêndio;
8) - Naquela ocasião, o arguido José António declarou à Inter-Atlântico que o risco de incêndio que pretendia cobrir não estava, total ou parcialmente, seguro noutra
Companhia de Seguros, assinalando com um NÃO, no local próprio do impresso da proposta de seguro respectiva, que assinou com o seu próprio punho, bem sabendo que tal declaração não correspondia à verdade;
9) - O arguido José António efectuou duplo seguro daquelas máquinas que designa e valoriza de maneira diferente para conseguir o "leasing" que lhe permitisse obter, um financiamento favorável, o dinheiro que precisava para o pagamento do prédio rústico n. 403 acima aludido; para tanto, solicitou ao arguido António
Joaquim, que anuiu, a elaboração da factura junta a folha 130 (que aqui se dá por reproduzida), de favor, a estabelecer a compra, em 24 de Setembro de 1991, de uma máquina de centrar marca CERIM K78, uma máquina de montar calquinheiras, uma máquina de rebater/senhora, um transportador com 10 metros, 40 carros, uma máquina de moldar contrafortes quente/frio, uma bigorna fixa, uma máquina de cardar e um humificador de bicos, totalizando, com IVA a importância de 9354150 escudos, relativa a máquinas na realidade já pagas na quase totalidade e adquiridas ao António Joaquim, ainda pela
Maria Emília Pereira Ribeiro, esposa do arguido José
António, em data anterior a Junho de 1991;
10) - No seguimento deste acordo entre ambos, o arguido
António Joaquim, dizendo-se dono das máquinas referidas, exibiu a factura à empresa Hispano-Americana
Leasing S.A., a qual, na convicção de que a factura reflectia a realidade e de que o dinheiro pretendido se destinava ao pagamento das máquinas que especificava, e só por isso, concedeu o financiamento em igual quantia, recebendo o arguido António Joaquim o dinheiro correspondente;
11) - De seguida, e após descontar o equivalente a uma pequena dívida anterior, o António Joaquim entregou ao
José António, conforme o acordado, o dinheiro recebido mediante o financiamento leasing naquelas circunstâncias, que lhe serviu para pagar o prédio acima aludido, como era sua intenção;
12) - Em 15 de Setembro de 1992, o arguido José António alterou o capital seguro para 60000000 escudos, discriminando 25000000 escudos para o "imóvel industrial", 3000000 escudos para "anexos ao edifício principal", 2000000 escudos por aumento de rubrica anterior e 30000000 escudos relativos a existências anteriores;
13) - E, no dia 27 de Março de 1993, entre as 8 horas e
30 minutos e as 9 horas, o arguido José António dirigiu-se no seu automóvel Citroen, de cor cinzenta, à fábrica de calçado já referida, sito no Lugar do Casal,
São Vicente de Pereira, Ovar;
14) - Aí chegado, o arguido José António espalhou cola de contacto pelo chão da fábrica e sobre as máquinas aí existentes e, seguidamente, com um objecto não apurado mas apto para o efeito, lançou fogo à cola de contacto em três locais distintos, de modo a que esta entrasse em combustão e, em consequência, se propagasse a todo o edifício e ao conteúdo aí existente, o que efectivamente veio a acontecer; de seguida, o arguido afastou-se da fábrica no seu automóvel;
15) - Cinco a dez minutos mais tarde, os vizinhos que residiam a cerca de 100 metros do local, alertados pelo fumo que entretanto começava a sair da fábrica, dirigiram-se ao anexo contíguo a esta para socorrer
Cristina Maria Coelho Ferreira, esposa de Domingos
Leite, que na altura se encontrava na cama, no fim do período de gravidez, retirando-a para o exterior;
16) - Ao tempo do incêndio, existiam no interior da fábrica os seguintes bens:
1 - uma máquina de costura no valor de 10610 escudos;
2 - 10 contentores sem divisórias no valor de 17000 escudos;
3 - 4 contentores com divisórias no valor de 8000 escudos;
4 - 1 pasta de pele no valor de 12500 escudos;
5 - 2 mesas de costura com tampa de pedra no valor de
28000 escudos;
6 - 2 cadeiras de costura no valor de 7200 escudos;
7 - 1 balancé de braços e mobiliário de escritório no valor de 250000 escudos;
8 - 1600 pares de socos no valor 2320000 escudos;
9 - 3500 pares de sandálias no valor de 3355000 escudos;
10 - 36 pares de sapatos de senhora no valor de 25200 escudos;
11 - 150 metros de forro no valor de 100500 escudos;
12 - 110 metros de forro no valor de 33000 escudos;
13 - 700 pares de saltos no valor de 44100 escudos;
14 - 2200 pares de palmilhas no valor de 77000 escudos;
15 - 2800 pares de solas no valor de 189000 escudos;
16 - 150 sintéticos de várias cores no valor de 2250000 escudos;
17 - 50 folhas de tela no valor de 35000 escudos;
18 - 4 latas de cola de 25 quilos cada no valor de 9000 escudos;
19 - 3 embalagens de fita adesiva com 24 rolos cada, no valor de 28800 escudos;
20 - 36 tubos de linha de algodão no valor de 50400 escudos;
21 - 25 quilos de pregos no valor de 7500 escudos;
22 - 950 pares de contrafortes no valor de 35625 escudos;
23 - 5 litros de óleo no valor de 650 escudos;
24 - 410 caixas de sapatos de senhora no valor de
200000 escudos;
25 - 3 pacotes de pele com 540 pés no valor de 121500 escudos;
26 - 34 pares de sapatos no valor de 22100 escudos;
27 - 1 máquina de Centar, marca CERIM, no valor de
4750000 escudos;
28 - 1 máquina de montar calcanheiras no valor de
1000000 escudos;
29 - 1 máquina de rebater no valor de 250000 escudos;
30 - 1 transportadora com 10 metros no valor de 200000 escudos;
31 - 40 carros no valor de 180000 escudos;
32 - 1 máquina de moldar contrafortes no valor de
1150000 escudos;
33 - 1 bigorna fixa no valor de 15000 escudos;
34 - 1 máquina de cardar no valor de 330000 escudos;
35 - 1 humificador de bicos no valor de 120000 escudos;
36 - 36 pares de sapatos a 2100 escudos, no valor total de 75600 escudos;
37 - 64 formas no valor de 73320 escudos;
17) - Os bens referidos nos items 36 a 37 são propriedade da "Lual", e os referidos nos items 8 e 9 são propriedade de Manuel Joaquim Gomes Pinheiro, antigo sócio da firma Talismã;
18) - Mercê da acção do fogo, resultaram danos em algumas máquinas, no edifício fabril, nas matérias primas e produtos acabados cujo prejuízo se estimou em
2700000 escudos; e ficou ainda danificado o veículo
Toyota Hiace, matrícula RQ-78-44, no valor de 2903000 escudos, propriedade de CISF-Equipamentos, que se encontrava estacionado próximo da porta da fábrica;
19) - O incêndio só não destruiu a fábrica e a residência anexa na sua totalidade devido à pronta intervenção dos Bombeiros de Ovar, alertados atempadamente pela vizinhança;
20) - Em 31 de Março de 1993 e 22 de Abril de 1993, o arguido José António participou os danos causados pelo incêndio, ocorrido em 27 de Março de 1993, às
Companhias de Seguros Inter-Atlântico e Metrópole, respectivamente, a fim de ser ressarcido dos prejuízos sofridos;
21) - Reclamou ele da Companhia de Seguros Metrópole os seguintes valores:
- 17505527 escudos relativos ao recheio (maquinaria, matérias-primas e produto acabado);
- 12063000 escudos relativos à reconstrução do pavilhão fabril (serviço de pedreiro, instalação eléctrica, três portões e cobertura de Lusalite);
- valor dos salários e respectivos encargos do pessoal desde a data do sinistro;
- indemnização pelo período de laboração;
22) - Da Inter-Atlântico reclamou os prejuízos referentes às máquinas tidas como adquiridas em leasing, cuja locadora é a Hispano-Americana, S.A.;
23) - As máquinas referidas nos items 27 a 35 estavam seguradas quer na Inter-Atlântico quer na Metrópole, algumas delas por valores e com designações diferentes;
24) - Assim, a máquina de montar bicos estava segura contra risco de incêndio na Metrópole pelo valor de
8000000 escudos e na Inter-Atlântico pelo valor de
4750000 escudos, embora nesta última com a designação de máquina de centrar marca CERIM K78; a máquina de fechar calcanheiras estava segura contra risco de incêndio na Metrópole pelo valor de 3500000 escudos e na Inter-Atlântico pelo valor de 1000000 escudos, embora nesta última com a designação de máquina de montar calcanheiras; e a máquina de cardar forros estava segura na Metrópole pelo valor de 500000 escudos e na Inter-Atlântico pelo valor de 330000 escudos, embora nesta última com a designação de máquina de cardar;
25) - O arguido José António é devedor do CRSS da quantia de 1739820 escudos, respeitantes a contribuições e juros de mora respectivos, pelo período de Janeiro de 1992 a Fevereiro de 1993; a firma, por falta de encomendas, deixou de ter fabrico próprio, para trabalhar à peça para outras fábricas; foram devolvidos vários cheques por falta de provisão, cujo montante se desconhece;
26) - À data dos factos, o mesmo arguido tinha débitos de montante nunca inferior a 5000000 escudos;
27) - Dois meses antes do incêndio, o arguido José
António começou a ter dificuldades acrescidas no pagamento dos salários dos seus trabalhadores, em virtude das poucas encomendas que tinha;
28) - Em finais de Dezembro de 1991, o arguido José
António ofereceu a Paulo Costa - na altura seu empregado - 40000 escudos, para que este ateasse fogo à fábrica, para assim receber a indemnização de seguro a que tinha direito;
29) - Os arguidos José António e António Joaquim fabricaram a factura junta a folha 130 de modo a que passasse a representar perfeitamente a compra das máquinas ali especificadas, bem sabendo que, desse modo, faziam constar nela facto juridicamente relevante que conheciam bem não corresponder à realidade, com a intenção de o José António conseguir benefício económico a que não tinha direito, como aconteceu;
30) - Exibiram, através do António Joaquim, a factura em questão à Hispano-Americana Leasing S.A., desse modo logrando obter, como era sua intenção, o financiamento leasing que pretendiam, fazendo crer à empresa, erroneamente, que comprara as máquinas ali especificadas, circunstância que a determinou a praticar factos que lhe acarretaram prejuízos patrimoniais, designadamente a ausência de garantia ao dinheiro que entregava;
31) Agiram ambos voluntária e conscientemente, de comum acordo, seguindo um plano previamente elaborado entre ambos, com identidade de propósitos e fins, ambos contribuindo objectiva e conjuntamente para a obtenção do resultado pretendido;
32) - O arguido José António, ao assinalar com um NÃO no sítio próprio da apólice a inexistência de outro seguro de incêndio relativo às máquinas descritas na factura, negou, voluntária e conscientemente, à Inter-Atlântico, o seguro de incêndio anteriormente efectuado dos mesmos bens, bem sabendo que, desse modo, fazia constar em documento facto juridicamente relevante que não correspondia à realidade, com a intenção de obter para si (indemnização das duas companhias) benefício económico a que se sabia sem direito e, reflexamente, causar prejuízo correspondente
às companhias de seguros;
33) - O arguido José António, com o fim de obter as indemnizações, provocou, de forma livre, consciente e voluntária, incêndio na sua fábrica, tentando desse modo fazer crer às duas seguradoras que o fogo foi acidental, assim as enganando e determinando-as à prática de actos que lhes acarretariam prejuízos patrimoniais, que só não se verificaram por motivos alheios à sua vontade;
34) - O arguido José António sabia que os anexos eram habitados por uma família e que, entre as 8 horas e 30 minutos e as 9 horas do dia 27 de Março de 1993, ali se encontrava na cama e no período final da gravidez a
Cristina Ferreira; sabia também que no interior da fábrica estavam os bens referidos nos items 36, 37, 8 e
9 da alínea 16), conhecendo os seus valores e sabendo que lhe não pertenciam;
35) - Os arguidos determinaram-se sempre de forma livre, voluntária e consciente, conhecendo bem que os factos que praticavam eram ilícitos e criminalmente puníveis;
36) - Os arguidos negaram os crimes; admitiram, porém, o que resulta da diversa documentação junto aos autos; nada consta dos seus registos criminais;
37) - O José António aufere actualmente, como vendedor de calçado, cerca de 80000 escudos por mês; tem 2 filhos, de 8 e 13 anos de idade;
38) - O António Joaquim é industrial, actividade de que aufere cerca de 150000 escudos mensais;
39) - Ambos os arguidos gozam de bom comportamento no meio social em que estão inseridos.
Não se provou que o arguido José António tivesse previsto e quisesse criar perigo para a vida e integridade física da família que habitava no anexo e/ou aos vizinhos; não se provou também que previsse e quisesse criar perigo para bens patrimoniais alheios.
4. Os recorrentes alargam-se em longas considerações em que pretendem demonstrar um enorme acervo de nulidades, insuficiências, erros, contradições e falta de exame crítico das provas, a viciar o acórdão recorrido.
Todavia, fazem-no fora das balizas estabelecidas nos normativos processuais que invocam, seja dos artigos
374 e 379, seja do artigo 410 do Código de Processo
Penal.
Quanto aos primeiros, relativos à fundamentação, deve dizer-se que o tribunal criteriosamente obedeceu ao respectivo modelo legal: o acórdão contém a enumeração dos factos provados e não provados, a exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão e a indicação das provas que serviram para formar a convicção dos juízes (v. fr. 178). Não deixou mesmo de explicitar o raciocínio que o levou a dar como provados determinados factos relevantes para a decisão da causa, por forma a não deixar dúvidas sobre a consistência do critério que presidiu ao julgamento da matéria de facto.
Para contrariar a fundamentação, não podem os recorrentes esgrimir com os vícios da instrução, com o modo como determinada testemunha depôs, com a condução do próprio julgamento pelo juiz-presidente ou com as provas que deveriam ter sido, e não foram, produzidas, pois tudo isso está fora da sindicância deste Supremo
Tribunal (artigo 433 do Código de Processo Penal).
No que toca aos pretensos vícios do artigo 410, n. 2 do
Código de Processo Penal, a sua existência teria de ser demonstrada, e não o foi, face ao texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
No fundo, o que os recorrentes se limitam a proclamar é a sua discordância relativamente à produção e apreciação das provas (a seu ver, dever-se-iam ter produzido outras provas e dever-se-iam ter apreciado de forma diferente as efectivamente produzidas) e ao julgamento de facto.
Mas aí não se consubstanciam os vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou o erro notório na apreciação da prova (nenhum deles demonstrado nos termos precisos do artigo 410, n. 2 do
C:digo de Processo Penal), mas tão-só o eventual erro de julgamento da matéria de facto, insindicável pelo
Supremo.
5. No que diz respeito à incriminação, também a razão não está do lado dos recorrentes.
O acórdão procede a uma subsunção dos factos às normas jurídico-penais aplicáveis que não sofre censura; ao contrário, trata-se de uma subsunção devidamente explicitada e pormenorizada caso por caso.
Não se concebe, mesmo, como é que os recorrentes pretendem sustentar não terem praticado nenhum dos crimes por que foram condenados.
Sem que seja necessário repetir toda a argumentação do
Colectivo, que os recorrentes não conseguem abalar, razão tem o digno Magistrado do Ministério Público, na sua resposta, quando sustenta estarem presentes todos os elementos típicos de tais crimes.
Com efeito, estão demonstrados todos os requisitos essenciais do crime de incêndio do artigo 253, n. 2 do
Código Penal de 1982 (em confronto com os do artigo
272, n. 2 do Código Penal de 1995), do crime de burla relativa a seguros, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 219, n. 1 alínea a) e 4 alínea b), 202, alínea b) e 73 do Código Penal de 1995 (em confronto com os do artigo 315 ns. 1 alínea a) e 2, 22, 23 e 74 do Código Penal de 1982) e do crime de burla agravada previsto e punido pelos artigos 313 e 314, alínea c) do
Código Penal de 1982 (em confronto com os do artigo
218, n. 2 alínea a) do Código Penal de 1995), e igualmente fundamentada a opção, em cada caso, pelo regime concretamente mais favorável aos agentes, nos termos do artigo 2, n. 4 do Código Penal.
Contrariamente ao que pretendem os recorrentes, não pode duvidar-se de que o incêndio foi consciente e voluntariamente ateado (ou provocado, na expressão legal) pelo arguido José António; de que o mesmo arguido quis induzir em engano as seguradoras, com a intenção de obter um benefício ilegítimo, designadamente provocando fraudulentamente, através do incêndio, um resultado (cujo valor - ao contrário do alegado - está determinado no acórdão) cujo risco estava coberto pelo seguro, só não conseguindo receber o respectivo valor por circunstâncias alheias à sua vontade; e de que os dois arguidos, através da falsificação de documentos, conseguiram induzir em engano a Hispano-Americana Leasing S.A., determinando desse modo esta a entregar-lhes a quantia de 9354150 escudos, resultantes dos factos 9) e 10) do n. 3, sem qualquer contrapartida válida, causando-lhe o correspondente prejuízo.
Por último, não é verdade que a tentativa do crime de burla em causa não fosse punível no Código Penal de
1982. Basta atentar no disposto nos artigos 315, ns. 1 alínea a) e 2 e 23, n. 1 desse código.
E, quanto ao pressuposto da apresentação da queixa, agora inserido no n. 3 do artigo 219 do Código Penal de
1995, a sua colocação neste n. 3, tendo o artigo cinco números, não pode deixar de significar que a necessidade da queixa para o procedimento criminal só se refere ao crime dos ns. 1 e 2 e já não ao crime do n. 4 que, pela sua gravidade, o legislador entendeu considerar crime público.
De dizer, ainda, que os problemas de direito civil e comercial que os recorrentes abordam na sua motivação, designadamente o da nulidade do seguro de incêndio ou o da natureza jurídica do contrato de locação financeira em nada interferem na verificada tipicidade criminal quanto à burla: o que acontece é que o erro ou engano em que se faz cair ou se pretende fazer cair a vítima é potenciado precisamente pelo aspecto exterior de legalidade dos contratos que o agente faz presumir ao sujeito passivo.
Como se afirmou no acórdão deste Supremo Tribunal de
Justiça de 19 de Dezembro de 1991, recurso 42388, o crime de burla apresenta-se como a forma evoluída de captação do alheio, em que o agente se serve do erro ou engano para que incauteladamente a vítima se deixe espoliar.
Portanto, quanto maior for a aparência de legalidade do estratagema montado para enganar, mais possibilidades tem o agente de obter o resultado almejado. E, no aspecto criminal, mais intenso é o dolo.
Não discutindo os recorrentes - para a hipótese de não vingarem as razões da sua motivação - o aspecto sancionatório do acórdão recorrido, está este fora do objecto do recurso (artigo 403, n. 2, alínea c) do
Código de Processo Penal).
6. Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso e confirmar o acórdão impugnado, condenando-se o recorrente José António em 7 Ucs e o António Joaquim em
4 Ucs, ambos com 1/3 de procuradoria e o legal acréscimo.
Fixam-se em 10000 escudos os honorários à Excelentíssima Defensora Oficiosa nomeada em audiência.
Lisboa 4, de Julho de 1996.
Sousa Guedes,
Ferreira da Rocha,
Nunes da Cruz.
Bessa Pacheco.