Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
9526/10.7TBVNG.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: SOUSA LAMEIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
ULTRAPASSAGEM
MUDANÇA DE DIRECÇÃO
MUDANÇA DE DIREÇÃO
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
MOTOCICLO
INFRACÇÃO ESTRADAL
INFRAÇÃO ESTRADAL
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
EXCESSO DE PRONÚNCIA
ERRO DE JULGAMENTO
Data do Acordão: 11/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / VÍCIOS E REFORMA DA SENTENÇA – RECURSOS.
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA / RESPONSABILIDADE CIVIL / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO / NÃO CUMPRIMENTO / FALTA DE CUMPRIMENTO E MORA IMPUTÁVEIS AO DEVEDOR.
DIREITO ESTRADAL – TRÂNSITO DE VEÍCULOS E ANIMAIS / ALGUMAS MANOBRAS EM ESPECIAL / MUDANÇA DE DIREÇÃO.
Doutrina:
-Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 132;
-Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Volume I, 404;
-Galvão Telles, Manual de Direito das Obrigações, 196;
-Sinde Monteiro, RLJ, Ano 131.º, 378.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 615.º, N.º 1, ALÍNEAS C) E D) E 635.º.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 483.º, N.º 1, 487.º, N.ºS 1 E 2, 570.º, N.º 1 E 799.º, N.º 2.
CÓDIGO DA ESTRADA (CEST): - ARTIGOS 1.º, 35.º, N.º 1 E 43.º, N.º 1.
REGULAMENTO DE SINALIZAÇÃO DE TRÂNSITO (RST), APROVADO PELO DECRETO REGULAMENTAR N.º 22-A/98 DE 01 DE OUTUBRO): - ARTIGO 60.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 07-07-1994, IN BMJ 439, 526.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:


- DE 18-05-2000.
Sumário :
I - O erro de julgamento (por alegada subsunção errada dos factos ao direito) não integra a nulidade por oposição entre os fundamentos e a decisão prevista no art. 615.º, n.º 1, al. c), do CPC, posto que esta apenas se verifica quando aqueles fundamentos apontarem num certo caminho e a decisão final tomar um sentido completamente contrário.

II - O não conhecimento de todos os argumentos aduzidos pelas partes ou a errada interpretação dos factos feita na sentença não acarretam omissão ou excesso de pronúncia geradores da nulidade a que alude o art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, uma vez que inexiste esse vício quanto a fundamentos.

III - Tendo ficado provado, por um lado, que o autor, que circulava com um motociclo, por pretender virar à direita, atento o sentido de marcha que levava, passou a circular numa faixa de terreno, asfaltada, contígua à faixa de rodagem principal e separada desta por uma linha contínua, ultrapassando pela direita os veículos que se encontravam em fila na hemi-faixa de rodagem, sem atentar ao demais trânsito e, por outro lado, que o condutor do veículo seguro na ré, que vinha a circular em sentido contrário ao do motociclo, pretendendo virar à esquerda para aceder às unidades fabris ali existentes, imobilizou aquele no eixo da via, mas, ao reiniciar a marcha, o fez sem previamente se certificar que a mencionada faixa asfaltada se encontrava desimpedida e sem atentar na presença do autor que por aí vinha a circular, tendo ido embater no motociclo conduzido por aquele, é de concluir que o acidente se ficou a dever a ambos os intervenientes, por tanto um como outro terem violado regras estradais (arts. 35.º, n.º 1, e 43.º, n.º 1, do CEst e art. 60.º do Regulamento de Sinalização de Trânsito).

IV - Porém, mostrando-se a conduta do autor/lesado mais gravosa em termos de violação das referidas regras do que a conduta do condutor do veículo seguro na ré, devem as culpas ser repartidas na percentagem de 80% para o primeiro e de 20% para o segundo (arts. 483.º, n.º 1, 487.º, n.º 1, e 570.º, n.º 1, do CC).

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – RELATÓRIO

  

l.  No Tribunal da Comarca do Porto - V. N. Gaia, Instância Central - 3ª Secção Cível - J3, AA intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra BB e Companhia de Seguros CC, S.A., alegando que:

No dia 11-10-2007, seguia tripulando o seu motociclo pela EN 222, em V. N. Gaia, quando foi embatido pelo veículo ...-BI-..., conduzido por BB que, mudando de direcção para a esquerda, não atentou na sua passagem, embatendo contra si.

Daí resultaram danos diversos, incluindo lesões físicas que culminaram na amputação da sua perda esquerda.

Tendo já sido indemnizado por alguns danos, já que o acidente o foi também de trabalho, pretende agora a indemnização dos restantes.

Conclui pedindo a condenação dos Réus a pagarem-lhe a quantia de € 1.181,24, a título de indemnização pelos danos patrimoniais que lhe advieram de um acidente de viação de que foi vítima e cuja responsabilidade imputa ao referido BB, que conduzia um veículo seguro na ré CC. Mais pede que sejam condenados a pagar-lhe quantias a liquidar futuramente, relativas aos custos que terá de suportar com o recurso a serviços de terceira pessoa, acompanhamento fisiátrico e ortopédico e despesas com medicamentos e outros encargos que se venham a revelar necessários; e ainda a pagarem-lhe a quantia de € 200.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais.

2. Contestaram ambos os réus alegando, em resumo, que a culpa do acidente deve ser imputada exclusivamente ao autor, já que tripulava o motociclo pela berma da estrada, ultrapassando pela direita os carros que estavam sobre a faixa de rodagem, designadamente um que parara para permitir ao veículo BI a conclusão da manobra pretendida.

Impugnaram ainda os danos invocados.

3. Instruído o processo, foi proferido despacho saneador, procedeu-se ao julgamento, tendo sido de seguida proferida sentença que concluiu pela repartição de culpas entre os dois condutores, quanto à produção do acidente, na proporção de 40% para o autor e de 60% para o condutor do BI.

Contabilizando os danos não patrimoniais em 60.000,00€ e os patrimoniais em € 1.181,24, condenou a ré CC a pagar ao autor a quantia de 36 709,00 (trinta e seis mil setecentos e nove euros), bem como as despesas, a liquidar, que o Autor venha a suportar, decorrentes do acompanhamento fisiátrico e ortopédico de que necessita no futuro, designadamente despesas médicas e medicamentosas, despesas com exames de diagnóstico e com tratamentos fisiátricos, na proporção de 60% do respectivo quantitativo, até limite do capital seguro (tomando-se em consideração a condenação liquida ora proferida).

O 1º Réu BB foi condenado a pagar, na mesma proporção de 60%, o valor dessas mesmas despesas que venha a exceder o valor do capital seguro, sendo caso disso.

4. Inconformada com a decisão, foi interposto recurso, pela ré CC, que insistiu na responsabilização exclusiva do autor pela produção do acidente, ou, no limite, pela imputação do mesmo ao seu segurado, mas num grau de culpa não superior a 10%. Também impugnou o valor da indemnização atribuída.

O Tribunal da Relação do Porto, por Acórdão de 21 de Fevereiro de 2017, decidiu «julgar parcialmente procedente a presente apelação, em consequência do que substituem a decisão recorrida por outra nos termos da qual condenam a ré a pagar ao autor a quantia de 12.236,25€ (doze mil duzentos e trinta e seis euros e vinte e cinco cêntimos), correspondente à percentagem de 20% do montante adequado à indemnização dos danos não patrimoniais e patrimoniais por si sofridos e que eram objecto do pedido.

Em tudo o mais se manterá a decisão recorrida, mas com a limitação da responsabilidade da ré apelante a uma proporção de 20%, nomeadamente quanto à respectiva condenação a pagar ao autor o valor a liquidar em ulterior incidente de liquidação, referente a despesas decorrentes do acompanhamento fisiátrico e ortopédico de que necessite, designadamente despesas médicas e medicamentosas, despesas com exames de diagnóstico e com tratamentos fisiátricos, até limite do capital seguro e tomando-se em consideração a condenação liquida ora proferida».

5. Inconformado, o Autor, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formulou as seguintes conclusões:

1ª. Vem o presente recurso interposto do douto Acórdão proferido nos autos supra e à margem referenciados, por entender o Recorrente que o mesmo padece das nulidades previstas no art. 615°, n° 1. als. c) e d) do C.P.C, ou — ainda que assim se não entenda — que os factos dados como provados não são idóneos a sustentar a decisão do Tribunal recorrido;

2ª. Nos termos da disposição conjugada dos arts. 607°, n.os 3 e 4 com os arts. 615°, n° 1, al. c) - a contrario sensu - e d), todos do C.P.C., a decisão a proferir tem de assentar na factualidade tida por demonstrada nos autos, não sendo lícito ao Tribunal julgar a causa com fundamentos diversos dos oferecidos em tal contexto;

3ª. Tendo o Tribunal da Relação mantido, na íntegra, a decisão relativa à matéria de facto proferida em primeira instância, em nenhum ponto de tal decisão se teve por demonstrado - porque assim não ocorreu - que o Autor tivesse atravessado qualquer espaço de berma delimitado por linha contínua, nem tão pouco se apurou que o Autor tivesse deixado de ingressar na hemi-faixa direita da faixa de rodagem principal da EN222 por forma a, posteriormente, aceder à via onde acabou colhido pelo Réu BB, factualidade que também não foi alegada por qualquer das partes;

4ª. Porque resulta evidente do douto Acórdão em crise que a convicção do Tribunal da Relação assentou em factos arredados da discussão promovida em primeira instância e não demonstrados nos autos, existe uma contradição entre os factos provados e a fundamentação da decisão proferida, que (também) se debruça sobre questão que não foi chamada a conhecer, razão pela qual a mesma decisão padece das nulidades previstas no art. 615°, n° 1, als. c) e d) do C.P.C. - vício que deverá ser expressamente declarado, com as legais consequências;

5ª. A co-responsabilização do Autor pelo evento em apreço apenas lhe podia ser imputada se o mesmo tivesse infringido as normas de circulação estradal e se o acidente se tivesse verificado por força dessa mesma infracção;

6ª. Como bem julgou o Tribunal de primeira instância, a via em que o Autor circulava e foi colhido configura uma «'Via de trânsito' - zona longitudinal da faixa de rodagem destinada à circulação de uma única fila de veículos», conforme descrita na actual al. u) do art. 10 do CE. (anterior al. t), a que expressamente se reporta a decisão de primeira instância), carecendo de fundamento a conclusão nos termos da qual tal qualificação "pressupunha necessariamente a classificação da área asfaltada em questão como uma faixa de abrandamento"',

7. Pese embora a determinação das condições de circulação de uma determinada via só possa ser achada através da respectiva qualificação jurídica nos termos da lei - e não através da aplicação do regime das vias adjacentes ou das linhas que as delimitam —, a decisão em crise não oferece à via descrita no ponto 1.7 dos factos provados qualquer qualificação (ao abrigo das especificadas no art. 10 do CE.) da qual se possa retirar o regime jurídico aplicável à respectiva circulação;

8ª. A regra de que o Tribunal da Relação se socorre para apreciar a presente causa - art. 60° do RST - só se reporta ao atravessamento da linha descontínua que separa a hemi-faixa direita da EN222 da via descrita no ponto 1.7 dos factos provados, nada adiantando quanto às condições de circulação desta última via, o que impede o raciocínio do Tribunal recorrido, que pressupõe - sem fundamento legal - que a condução na via paralela à EN 222 estava vedada pela natureza da mesma;

9ª. A linha descontínua que separa a hemi-faixa direita da EN 222 da via descrita no ponto 1.7 dos factos provados não se cinge ao local de acesso às instalações da EE e à Travessa dos Emigrantes, acompanhando, em paralelo, a referida hemi-faixa ao longo de vários metros, o que força a conclusão de que a mesma linha não pretende demarcar - como em muitos casos sucede - um concreto ponto de atravessamento de uma linha contínua, mas sim ladear toda uma outra zona de circulação - a melhor descrita no ponto 1.7 dos factos provados - permitindo o seu atravessamento em toda a sua extensão;

10ª. O Autor poderia transpor a linha descontínua que separa a hemi-faixa direita da EN222 da via descrita no ponto 1.7 dos factos provados em qualquer ponto, não lhe podendo ser imputada qualquer conduta culposa com tal fundamento;

11ª.   Em nenhum dos pontos da decisão de facto se concretiza em que momento o Autor ingressou na via em apreço - se imediatamente antes da ocorrência do sinistro, se vários metros atrás -, o que sempre impediria a censura da respectiva conduta com base em tal circunstância, censura que o Tribunal da Relação formulou com recurso a factualidade não demonstrada nos autos;

12ª. Mesmo partindo dos (equívocos) pressupostos de facto em que o Tribunal de recurso fez assentar a respectiva decisão, no momento do sinistro, o Autor não efectuava qualquer manobra, limitando-se a prosseguir na via em que se encontrava em direcção à via que surgia defronte (Travessa dos Emigrantes), não podendo a respectiva conduta ser sancionada, assim - como foi -, por alegada inobservância do dever previsto no art. 43°, n° 1 do CE.;

13ª. E mesmo que se considerasse que o Autor havia ingressado em transgressão na faixa em que se deu o sinistro - nos termos (equivocamente) explicitados no douto Acórdão em crise -, tal circunstância nunca poderia ter-se por determinante da ocorrência do sinistro, atendendo a que "foi -repete-se - o condutor do BI que, não detectando a aproximação do motociclo - o que lhe era exigível, naquelas particulares circunstâncias e nada revela não lhe ter sido possível - avançou e foi colher o motociclo, que ali circulava (cfr. douto Acórdão recorrido);

14ª. Se o Tribunal da Relação considerou que foi o Réu BB que - omitindo a observância de um dever que lhe era imposto e que podia e devia ter sido observado - colheu o Autor da respectiva marcha, então não é aceitável - sendo mesmo contraditório - que reduza a responsabilidade daquele na causa do sinistro a apenas 20%;

15ª. Ao branquear a conduta reconhecidamente negligente do Réu BB - reduzindo a respectiva responsabilidade a uma percentagem exígua -, o Tribunal da Relação despreza a gravidade das consequências que o sinistro acarretou para o Autor - designadamente, as elencadas nos pontos, 1.40 e 1.71 dos factos provados -, sequelas a cuja consideração o art. 570°, n° 1 do C.C. também faz o apelo expresso;

16ª. No contexto dos factos tidos por provados, impunha a disposição conjugada dos arts. 483°, n° 1, e 570°, n° 1, ambos do C.C., que a proporção da culpa a atribuir ao Réu BB fosse consonante com a imprescindibilidade da respectiva conduta para a causa do sinistro ocorrido e com a gravidade das consequências da mesma decorrentes, sendo necessariamente superior, como tal, à proporção de responsabilidade atribuída ao Autor;

17ª. Ao decidir em sentido contrário ao constante da conclusão que antecede, a douta decisão recorrida violou os preceitos legais aí referidos, os quais deveriam ter sido interpretados e aplicados no sentido de concluir pela efectiva e determinante responsabilidade do Réu BB na ocorrência do sinistro de que o Autor foi vítima, com a consequente fixação da responsabilidade deste último na percentagem tida por adequada pelo Tribunal e, em todo o caso, nunca inferior à proporção de 60% fixada em primeira instância.

Conclui pedindo que o presente recurso seja julgado procedente e, em consequência, seja revogado o acórdão recorrido, devendo o mesmo ser substituído por outro que, decidindo como se conclui, fixe a responsabilidade do réu BB pela ocorrência do sinistro na percentagem tida por adequada pelo tribunal e, em todo o caso, nunca inferior à proporção de 60% fixada em primeira instância, assim se fazendo sã, serena e objectiva.

5. Veio, também, a DD, S.A., anteriormente denominada Companhia de Seguros CC, S.A., responder ao recurso interposto pelo autor e apresentar recurso subordinado, tendo formulado as seguintes conclusões:

1. Os autos demonstram manifestamente que a manobra decisivamente causal do acidente - e que a recorrida, em sede de recurso subordinado, tentará demonstrar ter sido a única manobra causadora do acidente - foi realizada pelo recorrente.

2. Devem pois improceder totalmente as conclusões do recurso, posto que a decisão recorrida não padece de qualquer um dos vícios apontados pelo recorrente.

3. O recurso deve pois ser julgado totalmente improcedente.

4. A não detecção, por parte do condutor segurado na recorrente, do motociclo onde seguia o autor foi o único facto pelo qual o Venerando Tribunal a quo considerou existir conduta censurável daquele. Isto é, nada mais, em qualquer dos momentos da manobra realizada pelo condutor segurado na recorrente, foi susceptível de merecer qualquer tipo de censura - e, na perspectiva do Venerando Tribunal a quo, a manobra exigia até particular atenção.

5. Afigura-se à recorrente que nem o condutor do veículo segurado na recorrente, nem qualquer outro condutor médio nas mesmas circunstâncias, tinha o dever ou obrigação de contar com a presença do motociclo conduzido pelo autor naquele local.

6. Tal é assim porque, desde logo, no local em causa não era autorizada a circulação de veículos em marcha como o fazia o motociclo do recorrido.

7. Como tal, não haveria que impor ao condutor segurado na recorrente outro dever de cuidado senão aquele que ele efectivamente tomou e que resulta da factualidade dada como provada referente à dinâmica do acidente, sob pena de intolerável sacrifício do princípio da confiança que rege e tem de reger a condução estradal.

8. Daqui se conclui não ter o condutor segurado na recorrente infringido qualquer tipo de norma.

9. Pelo contrário, demonstram os autos que, com a sua conduta, o recorrido foi o único e exclusivo culpado na produção do acidente.

10. Não existindo, pois, qualquer tipo de censura ao comportamento do condutor segurado na recorrente, e existindo culpa efectiva e exclusiva do recorrido na produção do acidente, terá a recorrente de ser absolvida do pedido.

Sem Prescindir,

11. Ainda que se considere ter o condutor segurado na recorrente contribuído para a produção do acidente - o que não se concede - ainda assim a medida dessa contribuição não deverá ser superior a 10% e, consequentemente, ser a responsabilidade atribuída à recorrente fixada em proporção não superior a 10%, considerando o comportamento de cada um dos condutores e a actuação manifestamente mais grave e negligente do recorrido.

12. No douto acórdão recorrido fez-se menos acertada aplicação e interpretação do disposto nos art.es 483º e 5702, ambos do C Civil, e do art.º 35º do C. Estrada.

Conclui pedindo que seja julgado improcedente o recurso interposto pelo autor e julgado procedente o recurso subordinado interposto pela ré.

O Tribunal da Relação admitiu ambos os recursos (fls. 676).

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

Foram dados como provados os seguintes factos:

1. No dia 11 de Outubro do ano de 2007, pelas 07h30m, na Estrada Nacional 222, freguesia de Avintes, concelho de Vila Nova de Gaia, ocorreu um embate que envolveu o motociclo de marca KIMKO, com a matrícula ...-...-VL, conduzido pelo Autor, seu proprietário, e o veículo ligeiro de passageiros ...-BI-..., propriedade do 1º Réu BB, e por este conduzido.

2. O Autor transportava consigo, no referido motociclo, a sua filha, FF.

3. Nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, as condições meteorológicas apresentavam-se favoráveis à circulação estradal, permitindo boa visibilidade.

4. O trânsito era intenso, o que é característica da via em causa.

5. O motociclo VL, conduzido pelo Autor, circulava no sentido Lever/Gaia.

6. O veículo BI circulava no sentido Gaia/Lever e virou à esquerda.

7. O local em que se deu o embate é uma faixa em asfalto, contígua à faixa de rodagem principal da EN 222, atento o sentido Lever/Gaia, que se desenvolve em paralelo a esta, e que dela é delimitada, no mesmo local, por uma linha descontínua - tudo conforme retratado nas fotos captadas aquando da inspecção ao local realizada no decurso da audiência.

8. A faixa contígua à EN 222, acima referida em 1.7., dá acesso à Travessa do Emigrante, que na EN 222 entronca à direita, alguns metros à frente, tudo atento o sentido Lever – Gaia - conforme retratado nas mesmas fotos –, e para a qual o Autor se encaminhava.

9. A mesma faixa, acima referida em 1.7. e 1.8., dava e dá acesso a unidade fabris e industriais, que se situavam e situam imediatamente do seu lado direito, tudo atento o sentido de marcha Lever/Gaia, conforme também retratado nas ditas fotos.

10. Naquele local, a EN 222 desenvolve-se numa recta que, atento o sentido Lever/Gaia, se inicia no final de uma ligeira curva à esquerda, como retratado nas mesmas fotos, em particular foto nº 4.

11. A zona de acesso às unidades fabris e industriais que existiam e existem do lado direito da EN 222, atento o sentido Lever/Gaia, referida em 1.9., localiza-se alguns metros após o início da recta, conforme retratado nas mesmas fotos.

12. A faixa de rodagem principal da EN 222 permitia, como hoje o permite, o trânsito nos dois sentidos, dispondo de duas hemi-faixas de rodagem, uma para cada sentido de marcha.

13. A anteceder o local do acidente, as referidas hemiataxias de rodagem da EN 222 eram separadas a meio e até ao final da curva acima referida em 1.10. por placa ajardinada, atento o sentido de marcha Lever – Gaia, conforme retratado na foto nº 1 da inspecção ao local.

14. A partir do final da curva, a referida placa ajardinada era, e é, substituída por zebrado e linha longitudinal contínua a separar a duas hemiataxias de rodagem da EN 222, como retratado nas fotos 1 e 4 da inspecção ao local.

15. Na zona de acesso à unidade fabril acima mencionada, a linha longitudinal contínua que separa as duas hemiataxias da faixa de rodagem principal da EN 222 passava, e passa, a tracejado descontínuo, por forma a permitir o acesso àquela zona aos utentes da via que circulassem, e circulem, no sentido Gaia/Lever, conforme retratado nas fotos 5 e 6 da inspecção ao local.

16. Nesse local, a linha que delimita a faixa de rodagem principal da EN 222 da faixa referida em 1.7 a 1.9, era, e é, constituída por uma linha descontínua - conforme retratado na foto 2, 3 e 4 da inspecção ao local.

17. A anteceder o local acima referido, existe, e existia, a delimitar, pela direita, a hemi-faixa direita da faixa de rodagem principal da EN 222, uma linha descontínua, na continuidade da acima referida em 1.16, e, à direita dela, uma linha contínua que se desenvolve em paralelo àquela e termina inflectindo à direita, antes da zona de acesso às unidades industriais, tudo atento o sentido Lever-Gaia, conforme retratado nas fotos nº 4 da inspecção ao local.

18. Os condutores que pretendiam aceder às referidas unidades fabris tinham necessariamente de transpor a faixa em asfalto referida em 1.7 e 1.9.

19. O Autor, pretendendo virar à direita, atento o seu sentido de marcha Lever/Gaia, na saída que existe e existia para a Travessa dos Emigrantes, passou a circular à direita da linha descontínua que delimita a faixa principal da EN 222, referida em 1.17., junto ao início da placa ajardinada acima referida em 1.13., aproximadamente no local em que se encontra um veículo de cor branca na foto nº 1 da inspecção ao local.

20. No momento do embate o Autor circulava pela faixa em asfalto acima referida em 1.7., pretendendo virar à direita na saída que aí existe para a Travessa dos Emigrantes, por onde se encaminhava.

21. O condutor do BI circulava pela hemi-faixa direita da EN 222, atento o sentido de marcha Gaia – Lever.

22. O condutor do BI pretendia aceder a uma das fábricas servidas pela zona de acesso acima referida, concretamente às instalações da EE, seu local de trabalho

23. Ao aproximar-se do local acima referido, o condutor do BI diminuiu gradualmente a velocidade que imprimia ao veículo que conduzia e aproximou o mesmo do eixo da via.

24. Ao mesmo tempo que accionou o sinal luminoso pisca-pisca da esquerda do BI.

25. Ao chegar à zona de acesso da fábrica, o condutor do BI, imobilizou o mesmo no eixo da via, junto ao tracejado descontínuo aí existente (quesito 27º, art.º 26º da contestação 2ª R.).

26. A imobilização do BI, nas condições acima referidas, tornou-se necessária em virtude de o trânsito que circulava em sentido oposto se processar em grande intensidade e em fila compacta.

27. Alguns momentos após o condutor do BI, ora 1ª Réu, ter imobilizado o veículo, o condutor de um outro veículo, que circulava no sentido Lever – Gaia e integrado na fila de trânsito acima referida, parou a fim de ceder passagem ao condutor do BI.

28. Para o que deu indicações ao BI nesse sentido.

29. Então o condutor do BI reiniciou a sua marcha em direcção às instalações da EE.

30. Fê-lo sem previamente se certificar que a faixa de asfalto referida em 7. se encontrava desimpedida e sem atentar na presença do Autor .

31. O embate ocorreu quando o BI se encontrava com a parte da frente direccionada para a zona de acesso à fábrica e para lá da linha descontínua delimitadora da EN nº 222, na faixa de asfalto referida em 1.7.

32. O condutor do VL circulava no sentido Lever – Gaia pela faixa de asfalto acima referida em 1.7

33. Ao assim transitar, o motociclo VL circulava mais rápido que a fila de veículos que ocupava a hemi-faixa direita da faixa de rodagem principal da EN 222, sempre atento o sentido Lever – Gaia.

34. O embate ocorreu totalmente na faixa de asfalto acima referida em 1.7., a cerca de um a dois metros de uma tampa de saneamento existente no local, situada à frente da entrada para as instalações da unidade industrial EE, sensivelmente no ponto em que se encontra o guarda participante nas fotos nº 3 e 4 da inspecção do local.

35. O embate ocorreu entre a frente do BI e o lado esquerdo do motociclo.

36. O veículo BI atingiu a perna esquerda do Autor.

37. Em consequência do embate, o motociclo conduzido pelo Autor foi projectado, e com ele a filha do Autor, a cerca de 4 metros do local do embate.

38. À data do acidente, a responsabilidade civil por danos ocasionados pelo veículo ...-BI-... encontrava-se transferida para a 2ª Ré, por meio do contrato de seguro, titulada pela Apólice nº 07-09…9.

39. O acidente em causa foi simultaneamente de viação e de trabalho (acidente in itinere) tendo sido participado à GG - Companhia de Seguros, SA, para quem a entidade patronal do Autor havia, por contrato de seguro, transferido o risco de acidentes de trabalho.

40. Após o embate, o Autor foi assistido por uma equipa de emergência médica e, posteriormente, transportado para o Hospital … – Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, tendo dado entrada pelo Serviço de Urgência no dia 11/10/2007, pelas 08:11 (art.º 15º pi, q. 40º).

41. O Autor permaneceu internado no referido Hospital de Vila Nova de Gaia até 7.11.2007, após o que passou a ser seguido na consulta externa do mesmo Hospital e a fazer penso diário no centro de saúde (art.º 15º pi, 2ª parte, quesito 41º).

42. Como consequência directa e necessária do referido embate, resultaram lesões corporais várias para o Autor, designadamente na perna esquerda (fractura exposta dos ossos da perna, com esfacelo de 1/3 distal) e no braço esquerdo (art.º 16º pi, q. 42º).

43. No dito hospital, o Autor foi, ainda, no dia 11.10.2007, submetido a uma intervenção cirúrgica, destinada ao tratamento da sua perna esquerda (gravemente ferida por esmagamento), redução fechada de fractura da tíbia e perónio que consistiu em osteotaxia com fixador de Hoffmann e plastia das partes moles (art.º 18º pi; q. 43º).

45. Em 22.10.07, o Autor foi submetido a nova cirurgia, destinada a extrair a prótese de fixação interna do fémur, atento o facto de a mesma ter sido rejeitada pelo respectivo organismo, e redução fechada da fractura com fixação interna (tíbia e perónio) (art.º 19º, q. 44º e 45º).

46. Ainda no CHVNG o Autor em 30.10.07 foi sujeito a outra operação cirúrgica consistente em desbridamento excisional da ferida (art.º 19º e 20º da pi, q. 44º e 45º).

47. Apesar dos esforços envidados pelos médicos no sentido de salvar a sua perna esquerda, atenta a respectiva irrecuperabilidade adveniente do grau de esmagamento de que padecia, em 31.10.07 foi submetido a nova operação cirúrgica na qual foi amputado 1/3 proximal da perna esquerda (amputação abaixo do joelho) - (art.º 25º da pi, q. 45º e 49º).

48. O Autor foi no CHVNG submetido a vários procedimentos clínicos e meios complementares de diagnóstico, radiológicos e outros (artº21º da pi, q. 46º).

49. Em Janeiro de 2008, o Autor começou o A. a ser seguido no Hospital de …, onde efectuou inúmeros tratamentos e foi submetido a duas intervenções cirúrgicas, uma em 8.01.2008 e outra em 11.07.2008, prospectivamente, por perda de substância em coto de amputação e por lesão cutânea por coto malformado (art.º 22º da pi, q. 47º).

50. O Autor esteve internado no Hospital de …, para a realização desses tratamentos e operações cirúrgicas, entre 8.01.08 a 15.01.08 e entre 11.07.08 a 12.07.08 (art.º 23º da pi, q. 48º).

51. O Autor tem de usar uma prótese substitutiva para o resto da vida (art.º 26º da pi, q.50º).

52. Desde então, o Autor tem dificuldade em manter-se de pé por períodos superiores a dez-quinze minutos (art.º 27º da pi, q. 51º).

53. Padecendo constantemente de dores intensas, que vai controlando através do recurso permanente a medicação variada (art.º 28º pi, q. 52º).

54. O Autor foi sujeito a tratamentos e acompanhamento fisiátrico durante, pelo menos, cerca de noventa dias (art.º 29º, 1º parte, da pi, q. 53º)

55. Em consequência das lesões sofridas, o Autor não consegue correr, saltar nem colocar-se de cócoras, apresenta marcha claudicante, sente dificuldade em percorrer pisos inclinados e pisos irregulares, e está limitado na execução do conjunto de tarefas do dia-a-dia, como fazer a sua higiene, vestir-se e despir-se, tomar banho (q. 54º).

56. O Autor necessitou de ajuda de uma terceira pessoa ir à casa de banho, para fazer a sua higiene pessoal, para se vestir e despir, para se deitar e levantar da cama, para apanhar objectos do chão, para subir e descer escadas, durante cerca de dois anos após o acidente, e, após essa data, necessitou e continua a necessitar de ajuda exterior para a realização de alguns actos, como tomar banho devido a limitações a entrar e sair da banheira (art.º 30º pi e q. 55º).

57. Essa ajuda foi-lhe prestada pela sua companheira e pela filha e hoje continua a ser prestada, quando necessário, pela sua companheira (art.º 31º pi e q. 56º).

58. O Autor necessitará de acompanhamento fisiátrico e ortopédico ao longo de toda a sua vida, com os custos inerentes, nomeadamente o pagamento a clínicas fisiátricas, honorários médicos, análises clínicas, exames médicos, despesas com medicamentos e outros encargos (art.º 34º pi, q.58º).

59. (…)

60. Aquando da ocorrência do sinistro, o Autor sofreu um enorme susto – dada a violência do embate –, tendo receado não apenas pela própria vida, mas também pela vida da filha, que o acompanhava (art.º 39º pi, q. 60º).

61. Não obstante a gravidade das lesões sofridas, em nenhum momento o Autor perdeu a consciência do que lhe sucedia, razão pela qual entrou em pânico, tormento e aflição (art.º 40º da pi, q. 61º).

62. O Autor sofreu dores intensas durante os tratamentos, intervenções cirúrgicas e exames médicos a que foi submetido, sendo o quantum doloris fixável no grau 5 numa escala crescente de 1 a 7 (art.º 41º pi, q. 62º).

63. O Autor padece de imensa tristeza e frustração face às limitações físicas resultantes das lesões sofridas o acidente e suas sequelas (art.º 45º pi, q. 63º).

64. Antes do acidente, o Autor era um pessoa alegre, bem disposta, sem quaisquer preconceitos em relação ao seu corpo ou aparência (art.º 46º pi, q. 64º).

65. Em consequência das lesões sofridas, o Autor perdeu a sua auto-estima e a disposição com que encarava a vida, e sem esperança no futuro (art.º 47º da pi, q. 65º).

66. À data do acidente, o Autor era funcionário da Câmara Municipal de …, em regime de requisição na empresa Águas de … E.M, com a categoria de …, destacado para a manutenção na ETAR de … (art.º 49º, 1ª parte, da pi, q. 66º).

67. Era tido pelos colegas como um profissional alegre, dedicado e cumpridor, que desempenhava de forma ágil e desembaraçada todas as tarefas inerentes à sua actividade profissional (art.º 49º, 2ª parte da pi, q. 67º).

68. Carregando matérias-primas de construção civil, subindo e descendo escadas com a referida carga com grande desenvoltura e manuseando com grande facilidade todos os instrumentos de trabalho inerentes à sua profissão (art.º 51º da pi, q. 68º).

69. A partir da ocorrência do acidente dos presentes autos, o Autor não mais exerceu, nem poderá exercer, a sua actividade profissional de trolha que exercia à data do acidente (art.º 52º da pi; q.69º).

70. O Autor foi submetido, em 23/02/2010, à Junta Médica da Caixa Geral de Aposentações, tendo-lhe sido fixado:

- Incapacidade permanente absoluta para o exercício das suas funções;

- 10% relativamente à capacidade residual para o exercício de outra função compatível;

- Incapacidade permanente parcial de 90% de acordo com o Capítulo I – 13.2.3, al. a) da T.N.I.; (Art. º 53º da pi, q. 70º).

71. O Autor nasceu em 27 de Novembro de 1957.

III – DA SUBSUNÇÃO – APRECIAÇÃO

Verificados que estão os pressupostos de actuação deste tribunal, corridos os vistos, cumpre decidir.

A) O objecto do recurso é definido pelas conclusões da alegação do Recorrente, artigo 635 do Código de Processo Civil.

Lendo as alegações do recurso principal bem as do recurso subordinado, e tendo em consideração as conclusões formuladas por ambos os Recorrentes, as questões concretas de que cumpre conhecer são as seguintes:

No recurso principal

1ª- O Acórdão recorrido é nulo nos termos do artigo 615 n.º 1 al. c) d) do CPC?

2ª- A definição do grau de culpa de cada um dos intervenientes no acidente não pode ser a fixada no Acórdão recorrido (80% para o Autor e 20% para o condutor do BI)?

No recurso subordinado

1ª- O acidente ficou a dever-se a culpa exclusiva do lesado, ou, considerando haver concorrência de culpas, a contribuição do condutor do BI não deve ser considerada superior a 10%?

Vejamos

B) Analisemos a primeira questão arguida pelo Recorrente: O Acórdão recorrido é nulo, nos termos do artigo 615 n.º 1 al. c) e d) do CPC?

Nos termos do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, relativo às causas de nulidade da sentença uma sentença é nula quando:

a) Não contenha a assinatura do juiz;

b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.

Estas são as causas de nulidade de sentença.

Tendo presentes estes princípios jurídicos, sumariamente enunciados, vejamos se os fundamentos estão em oposição com a decisão ou ocorre alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível e se o Tribunal se pronunciou indevidamente sobre uma questão de que não podia tomar conhecimento.

A resposta terá necessariamente que ser negativa.

Refira-se que é «frequente a enunciação nas alegações de recurso de nulidades da sentença, numa tendência que se instalou e que a racionalidade não consegue explicar, desviando-se do verdadeiro objecto do recurso que deve ser centrado nos aspectos de ordem substancial. Com não menos frequência a arguição de nulidades da sentença acaba por ser indeferida, e com toda a justeza, dado que é corrente confundir-se o inconformismo quanto ao teor da sentença com algum dos vícios que determinam tais nulidades», Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, pág. 132.

No caso concreto, entendemos, sem margem para dúvidas que o acórdão recorrido não é nulo, seja nos termos da al. c) seja nos termos da al. d), ambas do n.º 1 do artigo 615 do CPC, como afirma o Recorrente.

Importa recordar que apenas existe nulidade de sentença pelo facto de os fundamentos estarem em oposição com a decisão se aqueles fundamentos (de facto ou de direito apontarem num certo caminho e a decisão final vier a tomar um sentido completamente contrário.

No caso concreto o Recorrente defende que o Acórdão é nulo pois que apesar de manter inalterados os factos em que assenta a apreciação da causa formou uma convicção que não encontra amparo na factualidade provada.

Como é evidente não estamos perante qualquer nulidade prevista na al. c) em apreço, pois que o Tribunal após descrever os factos provados faz uma subsunção dos mesmos ao direito e decide de acordo com esse direito.

Se essa subsunção está correcta ou não, isto é se há ou não um erro de julgamento isso não se integra na nulidade em análise, que repita-se não se verifica, pois que o acórdão descreve e enuncia claramente os factos provados, enuncia também o direito aplicável e, em seguida decide de acordo com aqueles factos e aquele direito.

Se o faz bem ou (o que não se analisa, de momento) não integra qualquer nulidade.

No caso concreto o Acórdão conheceu das questões que devia conhecer e que lhe foram colocadas e não tomou conhecimento de questões de que não podia tomar conhecimento, pois que decidiu quanto à culpa na produção do acidente e aos danos sofridos pelo lesado.

E, só há nulidade da sentença, por omissão ou excesso de pronúncia, se o Juiz não considerou e decidiu as questões que concretamente lhe foram colocadas. Já não haverá nulidade se o Juiz conhecendo das questões postas ao tribunal não abordou os argumentos das partes que sustentavam tais questões, ou se errou na análise feita.

Nem o não conhecimento de todos os argumentos aduzidos pelas partes nem a errada interpretação dos factos feita na sentença acarretam omissão ou excesso de pronúncia, nem há omissão ou excesso de pronúncia quanto a fundamentos, neste sentido, Cfr. Ac. STJ de 7.7.1994, BMJ, 439-526.

No caso concreto, repete-se, o Exmº Juiz a quo analisou e decidiu as questões que interessavam à correcta decisão do litígio.

O Acórdão está fundamentado, uma vez que enuncia os factos provados, aplica as normas jurídicas que julga adequadas á situação fáctica, decidindo em conformidade, independentemente de se saber se a decisão está correcta ou não e fá-lo de forma coerente pois que não se vislumbra contradição entre a fundamentação e a decisão, nem se verifica que se tenha pronunciado sobre questão que não foi colocada.

O Acórdão enuncia claramente os «fundamentos de facto» provados que servem de suporte à aplicação do direito, ou seja enuncia também os «fundamentos de direito» que justificam a decisão que acaba por ser proferida. E sem qualquer contradição o faz.

Pode não se concordar quer com os factos provados quer com a subsunção jurídica (que é exactamente a posição da Recorrente) mas isso nunca significa que a sentença esteja ferida de nulidade porque os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou porque conheceu de questão que não podia conhecer.

Não assiste razão ao recorrente, não estando o Acórdão recorrido ferido das invocadas nulidades.

Em suma, o Acórdão não é nulo, seja nos termos do artigo 615 n.º 1 al. c) seja nos termos da al. d), do CPC, improcedendo, assim, a primeira questão colocada pelo Recorrente.

 

C) Importa decidir a questão seguinte: A definição do grau de culpa de cada um dos intervenientes no acidente não pode ser a fixada no Acórdão recorrido (80% para o Autor e 20% para o condutor do BI)?

1 - A questão a decidir (e que afectará a resposta também a dar ao recurso subordinado) nos presentes é apenas uma a saber:

Quem foi o culpado pela produção do acidente em causa?

Foi o condutor do BI? Ou terá sido o lesado? Ou foram ambos os intervenientes e em que proporção?

Vejamos.

A presente acção tem por objecto a responsabilidade civil por danos decorrentes de acidente de viação.

Em matéria de acidente de viação a obrigação de indemnização tem por fonte a responsabilidade civil emergente de facto ilícito ou do risco.

Nos termos do artigo 483º, nº 1 do Código Civil (de cujo diploma passarão a ser os demais normativos que se vierem a citar sem referência à origem), «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».

Dispõe o art. 487º, nº 1 do C.C. que “é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa”.

Estatui também o n.º 1 do artigo 570.º que «quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída».

Devem ainda ter-se em consideração as disposições constantes dos artigos 1, 35 n.º 1 e 43 n.º 1 todos do Código da Estrada bem como o estabelecido no Regulamento de Sinalização de Trânsito (RST- Decreto regulamentar n.º 22-A/98 de 1.10), designadamente no seu artigo 60.

O primeiro dispositivo atrás citado onde se consagra a teoria tradicional fixa, como pressupostos da obrigação de indemnizar, o facto, a ilicitude, o nexo de imputação do facto ao agente, o dano e o nexo de causalidade entre este e o facto, cfr. A. Varela «Das Obrigações em Geral», Vol. I, pág. 404.

E a lei geral, consagrada no art. 483º, nº 1 do Cód. Civil, estabelece como pressuposto fundamental da responsabilidade civil por factos ilícitos a existência de culpa, seja na modalidade de dolo ou de mera culpa.

A responsabilidade objectiva ou pelo risco só existe em casos especificados na lei e inexiste «qualquer disposição legal abrangedora deste caso, que comine responsabilidade a título objectivo ou responsabilidade por acto lícito». Assim, como « não deve ser considerada qualquer presunção de culpa » ( cfr., neste sentido, Sinde Monteiro, RLJ, ano 131º, pág. 378, e o citado Ac. da RP de 18/05/2000 ).

A culpa na definição dada pelo Prof. Galvão Telles, in «Manual de Direito das Obrigações», pág. 196, é a imputação psicológica de um resultado ilícito a uma pessoa. Se se produz um evento contrário à lei e esse evento é psíquico ou moralmente imputável a certo indivíduo diz-se que este agiu com culpa.

No Código Civil a culpa é apreciada em abstracto (artigo 487º, n.º 2 e 799, n.º 2).

2 - Impõe-se apreciar agora, face aos supra enunciados princípios legais, o caso concreto.

Relembremos a matéria de facto com interesse para a decisão.

No dia 11 de Outubro do ano de 2007, pelas 07h30m, na Estrada Nacional 222, freguesia de Avintes, concelho de Vila Nova de Gaia, ocorreu um embate que envolveu o motociclo, matrícula ...-...-VL, conduzido pelo Autor, seu proprietário, que circulava no sentido Lever/Gaia e o veículo ligeiro de passageiros ...-BI-..., propriedade do 1º Réu BB, e por este conduzido, que circulava no sentido Gaia/Lever e que virou à esquerda.

Nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, as condições meteorológicas apresentavam-se favoráveis à circulação estradal, permitindo boa visibilidade.

O trânsito era intenso, o que é característica da via em causa.

O local em que se deu o embate é uma faixa em asfalto, contígua à faixa de rodagem principal da EN 222, atento o sentido Lever/Gaia, que se desenvolve em paralelo a esta, e que dela é delimitada, no mesmo local, por uma linha descontínua - tudo conforme retratado nas fotos captadas aquando da inspecção ao local realizada no decurso da audiência.

A faixa contígua à EN 222, acima referida, dá acesso à Travessa do Emigrante, que na EN 222 entronca à direita, alguns metros à frente, tudo atento o sentido Lever – Gaia - conforme retratado nas mesmas fotos –, e para a qual o Autor se encaminhava.

A mesma faixa, dava e dá acesso a unidade fabris e industriais, que se situavam e situam imediatamente do seu lado direito, tudo atento o sentido de marcha Lever/Gaia, conforme também retratado nas ditas fotos.

Naquele local, a EN 222 desenvolve-se numa recta que, atento o sentido Lever/Gaia, se inicia no final de uma ligeira curva à esquerda, como retratado nas mesmas fotos, em particular foto nº 4.

A faixa de rodagem principal da EN 222 permitia, como hoje o permite, o trânsito nos dois sentidos, dispondo de duas hemi-faixas de rodagem, uma para cada sentido de marcha.

A anteceder o local do acidente, as referidas hemiataxias de rodagem da EN 222 eram separadas a meio e até ao final da curva acima referida em 1.10. por placa ajardinada, atento o sentido de marcha Lever – Gaia, conforme retratado na foto nº 1 da inspecção ao local.

A partir do final da curva, a referida placa ajardinada era, e é, substituída por zebrado e linha longitudinal contínua a separar a duas hemiataxias de rodagem da EN 222, como retratado nas fotos 1 e 4 da inspecção ao local.

Na zona de acesso à unidade fabril acima mencionada, a linha longitudinal contínua que separa as duas hemiataxias da faixa de rodagem principal da EN 222 passava, e passa, a tracejado descontínuo, por forma a permitir o acesso àquela zona aos utentes da via que circulassem, e circulem, no sentido Gaia/Lever, conforme retratado nas fotos 5 e 6 da inspecção ao local.

Nesse local, a linha que delimita a faixa de rodagem principal da EN 222 da faixa referida em 1.7 a 1.9, era, e é, constituída por uma linha descontínua - conforme retratado na foto 2, 3 e 4 da inspecção ao local.

A anteceder o local acima referido, existe, e existia, a delimitar, pela direita, a hemi-faixa direita da faixa de rodagem principal da EN 222, uma linha descontínua, na continuidade da acima referida em 1.16, e, à direita dela, uma linha contínua que se desenvolve em paralelo àquela e termina inflectindo à direita, antes da zona de acesso às unidades industriais, tudo atento o sentido Lever-Gaia, conforme retratado nas fotos nº 4 da inspecção ao local.

Os condutores que pretendiam aceder às referidas unidades fabris tinham necessariamente de transpor a faixa em asfalto referida em 1.7 e 1.9.

O Autor, pretendendo virar à direita, atento o seu sentido de marcha Lever/Gaia, na saída que existe e existia para a Travessa dos Emigrantes, passou a circular à direita da linha descontínua que delimita a faixa principal da EN 222, referida em 1.17., junto ao início da placa ajardinada acima referida em 1.13., aproximadamente no local em que se encontra um veículo de cor branca na foto nº 1 da inspecção ao local.

No momento do embate o Autor circulava pela faixa em asfalto acima referida em 1.7., pretendendo virar à direita na saída que aí existe para a Travessa dos Emigrantes, por onde se encaminhava.

O condutor do BI circulava pela hemi-faixa direita da EN 222, atento o sentido de marcha Gaia – Lever.

O condutor do BI pretendia aceder a uma das fábricas servidas pela zona de acesso acima referida, concretamente às instalações da EE, seu local de trabalho

Ao aproximar-se do local acima referido, o condutor do BI diminuiu gradualmente a velocidade que imprimia ao veículo que conduzia e aproximou o mesmo do eixo da via.

Ao mesmo tempo que accionou o sinal luminoso pisca-pisca da esquerda do BI.

Ao chegar à zona de acesso da fábrica, o condutor do BI, imobilizou o mesmo no eixo da via, junto ao tracejado descontínuo aí existente.

A imobilização do BI, nas condições acima referidas, tornou-se necessária em virtude de o trânsito que circulava em sentido oposto se processar em grande intensidade e em fila compacta.

Alguns momentos após o condutor do BI, ora 1ª Réu, ter imobilizado o veículo, o condutor de um outro veículo, que circulava no sentido Lever – Gaia e integrado na fila de trânsito acima referida, parou a fim de ceder passagem ao condutor do BI.

Para o que deu indicações ao BI nesse sentido.

Então o condutor do BI reiniciou a sua marcha em direcção às instalações da EE.

Fê-lo sem previamente se certificar que a faixa de asfalto referida em 7. se encontrava desimpedida e sem atentar na presença do Autor .

O embate ocorreu quando o BI se encontrava com a parte da frente direccionada para a zona de acesso à fábrica e para lá da linha descontínua delimitadora da EN nº 222, na faixa de asfalto referida em 1.7.

O condutor do VL circulava no sentido Lever – Gaia pela faixa de asfalto acima referida em 1.7

Ao assim transitar, o motociclo VL circulava mais rápido que a fila de veículos que ocupava a hemi-faixa direita da faixa de rodagem principal da EN 222, sempre atento o sentido Lever – Gaia.

O embate ocorreu totalmente na faixa de asfalto acima referida em 1.7., a cerca de um a dois metros de uma tampa de saneamento existente no local, situada à frente da entrada para as instalações da unidade industrial EE, sensivelmente no ponto em que se encontra o guarda participante nas fotos nº 3 e 4 da inspecção do local.

O embate ocorreu entre a frente do BI e o lado esquerdo do motociclo.

3 - Perante esta factualidade a decisão da 1ª. Instância entendeu que o acidente se ficou a dever à culpa de ambos os condutores, tendo fixado a percentagem em 40% de culpa para o Autor e em 60% para o segurado da Ré Companhia de Seguros.

Após recurso a Relação, com base na mesma factualidade provada, decidiu alterar aquela percentagem, fixando-a em 80% para o Autor e em 20% para o segurado da Ré.

Em revista, pretende o Autor que se altere a percentagem fixada pela Relação, mas que nunca deverá ser inferior à proporção de 60% fixada em 1ª. Instância (A Ré Seguradora no recurso subordinado defende que a culpa deve ser totalmente atribuída ao lesado/autor ou, se assim não se entender, deverá ser fixada em apenas 10% a percentagem de culpa do seu segurado).

Perante entendimentos tão diversos qual a posição a adoptar?

Qual a percentagem correcta e justa da culpa de ambos os intervenientes no acidente?

Apesar da subjectividade que a concretização das condutas humanas sempre comporta, afigura-se-nos, sem qualquer dúvida, que a razão se encontra do lado do Acórdão recorrido, que não merece censura.

Da factualidade provada resulta inequivocamente que ambos os condutores tiveram culpa no desenrolar do acidente.

O Autor/recorrente circulava numa faixa de asfalto, contígua à faixa de rodagem principal da EN 222, atento o sentido Lever/Gaia, que se desenvolve em paralelo a esta, e que dela é delimitada, no mesmo local, por uma linha descontínua - tudo conforme retratado nas fotos captadas aquando da inspecção ao local realizada no decurso da audiência.

Essa faixa de asfalto dá acesso não só a várias fábricas mas também à Travessa do Emigrante.

No local do acidente a linha que delimita a faixa de rodagem principal da EN 222 da faixa em que circulava o autor/recorrente é constituída por uma linha descontínua - conforme retratado na foto 2, 3 e 4 da inspecção ao local.

A anteceder o local acima referido, existe, e existia, a delimitar, pela direita, a hemi-faixa direita da faixa de rodagem principal da EN 222, uma linha descontínua e, à direita dela, uma linha contínua que se desenvolve em paralelo àquela e termina inflectindo à direita, antes da zona de acesso às unidades industriais, tudo atento o sentido Lever-Gaia, conforme retratado nas fotos nº 4 da inspecção ao local.

Ora, o Autor ao circular naquela faixa devia ter tomado cautelas acrescidas. Cautelas essas que claramente não tomou.

Efectivamente, como bem se refere na análise do acidente feita pelo acórdão recorrido, o autor, «porque pretendia enveredar pela Travessa dos Emigrantes e estando a hemi-faixa de rodagem de sentido Lever/Gaia ocupada por veículos em fila, avançou mais depressa do que estes, pela direita destes e fora daquela hemi-faixa. Isto evidencia perfeitamente o trajecto do velocípede: na faixa de aceleração em que se encontrava, não progrediu inflectindo para a sua esquerda, de forma a entrar na faixa de rodagem, como lhe era imposto pela linha contínua que delimitava essa faixa, pelo lado direito; antes evoluiu em frente, atravessando essa linha continua que, no termo da faixa de aceleração, passava a delimitar a berma. Depois, mantendo a trajectória, atravessou novamente essa linha contínua que inflectia para a direita, em direcção ao portão da EE, passando a circular pela área asfaltada descrita em 1.7, que é contígua à faixa de rodagem, dela delimitada por uma linha descontínua e fronteira ao portão da EE. E sobre essa área circulava, dirigindo-se à Travessa dos Emigrantes que, pouco à frente, se desenvolvia em diagonal desde e para a EN222».

Concordamos inteiramente com o acórdão recorrido neste ponto particular.

Temos que o Autor foi imprudente na sua conduta, circulando de forma temerária por uma faixa de terreno, ainda que asfaltada, sem atentar ao demais trânsito, ou melhor procurando a ele fugir, pois que o ultrapassava pela direita nas condições descritas.

O autor/recorrente pretendia ultrapassar a fila de trânsito que se apresentava no sentido Lever/V. N. Gaia e, para isso veio sempre a direito, ocupando a faixa supra referida, passando a linha contínua que a separa, circulando algum espaço na berma (bem delimitada pela linha continua, cfr. foto de fls. 447 a qual é bem esclarecedora) até ser embatido pelo condutor do BI.

Que o Autor/recorrente tem culpa na produção do acidente é inegável (sendo que nem o Autor/recorrente imputa totalmente a culpa ao condutor do BI).

E será que ao condutor do BI também pode ser imputada alguma culpa?

Afigura-se-nos que sim, apesar das dúvidas que se possam levantar.

Ninguém coloca em causa que o condutor do BI, que circulava no sentido Gaia/lever, pretendia virar à sua esquerda para entrar na fábrica.

O condutor do BI diminuiu a velocidade que imprimia BI e aproximou-o do eixo da via, ao mesmo tempo que accionou o sinal luminoso pisca-pisca da esquerda.

Ao chegar à zona de acesso da fábrica, imobilizou o BI no eixo da via, junto ao tracejado descontínuo aí existente e, alguns momentos após o condutor do BI ter imobilizado o veículo, o condutor de um outro veículo, que circulava no sentido Lever – Gaia e integrado na fila de trânsito parou a fim de ceder passagem ao condutor do BI, dando-lhe indicações nesse sentido.

Até este momento o condutor do BI cumpriu com todas as regras que lhe eram exigidas, não se podendo apontar qualquer falha na sua conduta.

Porém está provado igualmente que de seguida o condutor do BI reiniciou a sua marcha em direcção às instalações da EE fazendo-o sem previamente se certificar que a faixa de asfalto referida em 7. se encontrava desimpedida e sem atentar na presença do Autor, tendo o embate ocorrido entre a frente do BI e o lado esquerdo do motociclo.

Ou seja é o BI quem vai embater no motociclo.

O condutor do BI também desrespeitou uma regra estradal pois que deveria ter-se assegurado que a sua manobra não iria provocar qualquer perigo (artigo 35 n.º 1 do CE).

Escreveu o Mmº. Juiz a quo a este propósito:

«O que, afirmamos, maior cuidado exigia ao condutor do BI, na concretização daquela manobra. Porém, o condutor do BI não detectou a aproximação do autor e do seu motociclo e, avançando, foi colidir com este, no seu lado esquerdo; não foi o motociclo que, avançando sobre a área em questão, veio colidir com o veículo que legitimamente a atravessava em direcção à EE; foi – repete-se - o condutor do BI que, não detectando a aproximação do motociclo – o que lhe era exigível, naquelas particulares circunstâncias e nada revela não lhe ter sido possível – avançou e foi colher o motociclo, que ali circulava».

E prossegue «Tal conduta é censurável, pois que naquelas concretas circunstâncias se exigia ao condutor do BI uma superior atenção à presença de outros utentes da via, exigência essa a que ele não correspondeu e que teria sido apta a prevenir que a manobra que executava redundasse no evento danoso que se verificou».

Não vislumbramos razões para discordar desta posição.

Sendo exigível ao condutor do BI uma outra conduta, adequada a evitar o embate, podemos então afirmar que também o condutor do BI teve culpa na produção do acidente.

A conduta do condutor do BI deve, tal como a do lesado/autor, considerar-se culposa.

Em suma, o acidente em causa nos autos ficou a dever-se a ambos os intervenientes, lesado e segurado na Ré, pois que ambos tiveram «culpa» no desenrolar do mesmo.

Concluindo-se que ambos os intervenientes tiveram culpa na produção do acidente importa agora fixar o grau de culpa de ambos.

Não é uma tarefa isenta de dificuldades, como se verifica pelas diferentes posições que os intervenientes processuais assumem ao longo do processo.

O Recorrente/lesado entende que deve ser atribuída uma percentagem de culpa superior ao segurado na Ré (60%) enquanto a Ré Seguradora defende que a culpa deve ser totalmente atribuída ao Recorrente/lesado, ou se assim não se entender deve ser fixa a percentagem de culpa do seu segurado em apenas 10%.

Afigura-se-nos que a posição adoptada no Acórdão recorrido se mostra totalmente justa e adequada ao caso concreto e aos factos apurados.

Tendo em conta toda a dinâmica do acidente entendemos, tal como a decisão recorrida, que o Autor/lesado teve um grau de culpa superior no desenrolar do acidente, pois que a sua conduta se mostra mais gravosa e violadora das regras estradais.

Podemos concluir que a repartição de culpas deve de ser a encontrada pelo acórdão recorrido, pelo que fixa em 80% a percentagem de culpa do Autor/recorrente e em 20% a percentagem de culpa do condutor do BI.

Assim, impõe-se a improcedência total das alegações do recorrente, pelo que se nega a revista.

D) Resta apreciar o recurso subordinado

Ponderando o que ficou dito supra quanto à culpa dos intervenientes no acidente e uma vez que o recurso da Ré/seguradora apenas incidia sobre esta mesma questão – pois que pretendia que a culpa na produção do acidente devia ser totalmente atribuída ao lesado/autor ou, se assim não se entendesse, deveria ser fixada em apenas 10% a percentagem de culpa do seu segurado – entendemos que a questão está prejudicada pelo decidido.

A culpa na produção do acidente foi de ambos os intervenientes na proporção de 80% a percentagem de culpa do Autor/recorrente e em 20% a percentagem de culpa do condutor do BI.

Impõe-se, assim, de igual modo, a improcedência do recurso da Ré Seguradora.

III – DECISÃO

Pelo exposto, decide-se negar a revista do Autor/lesado bem como o recurso subordinado da Ré Seguradora, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelos Recorrentes na proporção dos respectivos decaimentos.  



Lisboa, 09 de Novembro de 2017


José Sousa Lameira (Relator)

Hélder Almeida

Maria dos Prazeres Beleza