Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2033/16.6T8CTB.C1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: ALEXANDRE REIS
Descritores: NULIDADE DE ACÓRDÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
POSSE
CORPUS
ANIMUS POSSIDENDI
CONSTITUTO POSSESSÓRIO
PRESUNÇÃO
POSSE TITULADA
POSSE DE BOA FÉ
Data do Acordão: 10/16/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL / INTERPRETAÇÃO E INTEGRAÇÃO – DIREITO DAS COISAS / POSSE / AQUISIÇÃO E PERDA DA POSSE.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – ACÇÃO, PARTES E TRIBUNAL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS / CONTESTAÇÃO / SENTENÇA / ELABORAÇÃO DA SENTENÇA / VÍCIOS E REFORMA DA SENTENÇA.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4.ª Edição, p. 26;
- Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8.ª Edição, p. 52;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 2.ª Edição, p. 29;
- Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 220 e ss. ; Escritos datados de 10-05-2014 e 23-03-2015, in blogippc.blogspot.pt.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 236.º, 237.º, 1251.º, 1252.º, 1256.º, 1257.º, 1263.º E 1264.º, N.º 1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 5.º, 574.º, 608.º, N.º 2, 609.º E 615.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 14-05-1996, PROCESSO N.º 085204, IN DR II S, N.º 144/96, DE 24-06-1996 E WWW.DGSI.PT;
- DE 17-03-2016, PROCESSO N.º 1129/09.5TBVRL-H.G1.S1.
Sumário :

I - A Relação não incorre em excesso de pronúncia, quando se limita a dar satisfação à pretensão recursiva do apelante, embora por fundamentos diferentes dos invocados por este.
II - Resulta da factualidade provada que o autor sucedeu, por via do constituto possessório (art. 1264.º, n.º 1, do CC), na posse do seu antecessor, não obstante não ter ficado demonstrado que este exerceu os respectivos actos materiais sobre o documento (“Torah” manuscrita) no correspondente animus de proprietário.
III - A realidade referida em II não deixa de aproveitar o autor, uma vez que os actos materiais praticados pelo antecessor sempre geraram a presunção da sua posse, a qual não foi ilidida.


Decisão Texto Integral:
                                                                                           


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
           

AA intentou acção contra o Município ..., pedindo a condenação deste a reconhecer o seu direito de propriedade sobre um manuscrito em pergaminho designado por Torah e a restituir-lho imediatamente, bem como a reparar‑lhe os prejuízos que lhe causa a sua privação, a liquidar em execução mas que estima ser de € 1.000 diários. Para tanto, alegou que o R detém e utiliza abusivamente esse seu documento, que o anterior proprietário lhe emprestou e cuja entrega o mesmo recusa.
O R contestou, impugnando que o A seja titular do direito a que se arroga e alegando que, face ao comodato de tal manuscrito com ele outorgado, tem direito de retenção sobre o mesmo, relativamente aos montantes que despendeu com a sua guarda e conservação, cujo reembolso também pediu reconvencionalmente.
 
Foi proferida sentença, absolvendo o R do pedido e declarando extinta a lide reconvencional, por inutilidade.

A Relação julgou parcialmente procedente a apelação que o A interpôs e, depois de aditar um item ao rol da matéria de facto tida por assente na sentença, decidiu: - condenar o R apenas a reconhecer o direito de propriedade do A sobre o dito manuscrito e a restitui-lo ao A; - julgar a reconvenção improcedente.

O R interpôs recurso de revista desse acórdão, cujo objecto delimitou com conclusões em que suscitou as seguintes questões:
1. O aditamento pela Relação do ponto 21 da matéria de facto [a violação dos arts. 574º do CPC e 236º e 237º do CC e as nulidades (por excesso de pronúncia, por constituir decisão surpresa e por violar os princípios do contraditório, da igualdade processual das partes e da proibição de indefesa)];
2. A aquisição por usucapião;
3. A presunção da titularidade do direito do A fundada no art. 1268º/1 do CC (e a não omissão de pronúncia pela 1ª instância sobre tal questão).

Nas suas contra-alegações, o recorrido, além do mais, requereu a ampliação do âmbito do recurso, para a eventualidade de este proceder quanto (1) ao concretizado aditamento da matéria de facto e (2) à aquisição originária por usucapião, suscitando as seguintes questões, respectivamente:
- (i) A anulação do acórdão recorrido para que seja cumprido o contraditório e/ou apreciada pela Relação a apelação quanto à impugnação aduzida sobre a decisão fáctica proferida em 1ª instância;
 - (ii) A (invocada pelo A) aquisição por ocupação.
*
Importa apreciar e decidir as enunciadas questões.

1. A matéria de facto.
Na sentença de 1ª instância foi consignada como assente, em suma, a seguinte factualidade:
a) O Sr. BB encontrou a aludida “Torah” em pergaminho no entulho de uma obra, no âmbito do exercício da sua profissão relacionada com a construção civil, guardou-a na sua casa e, no início de 2016, exibiu o documento a um arqueólogo que comunicou a sua existência ao R Município.
b) Na sequência, os representantes do R solicitaram a BB, a título de empréstimo, a entrega da “Torah” em pergaminho, para guarda e estudo (e subsequente exposição em eventos de natureza arqueológica e cultural), o que se concretizou em 30-05-2016, mediante um auto (de empréstimo) então lavrado.
c) Após contacto com o mencionado BB, os representantes do R anunciaram em conferência de imprensa, em 15-09-2016, que a referida “Torah” seria exibida no âmbito das Jornadas Europeias do Património (que se vieram a realizar em 23-09-2016).
d) Em 28-09-2016, o A e o aludido BB celebraram um contrato mediante o qual declararam aquele comprar e este vender o mencionado pergaminho, que o mesmo havia emprestado à C. Municipal ..., para análise e estudo.
e) O A comunicou aos representantes do R o seu interesse na devolução do documento depois de terminada a exposição, por carta de 29-09-2016, e na clara definição dos termos do empréstimo e da utilização do manuscrito pelo Município, por carta de 4-10-2016, tendo notificado o R, por carta de 2-11-2016, para lhe entregar a “Torah” no dia 9-11-2016.
f) Em 7-11-2016, o Presidente da C. Municipal ... remeteu ao A uma “minuta de Contrato de Comodato”, com que este não concordou.
g) O Presidente da C. Municipal ..., em 27-09-2016, após contacto telefónico, remeteu carta à Direcção de Cultura do Centro, a «comunicar o aparecimento de um Torá e (a) solicitar informações sobre o modo de proceder em relação ao mesmo (…) face às dificuldades relativas à posse e prosseguimento do estudo do referido documento». E, em 5-01-2017, remeteu carta a solicitar «informação sobre as diligências entretanto adoptadas».
h) Essa Direcção-Geral não se pronunciou até ao presente relativamente a tais cartas.
i) Também o A, por carta datada, de 10-10-2016.10, informou a Direcção Geral do Património Cultural ser proprietário do mencionado documento («de assinalável valor arqueológico e cultural»), solicitando informação sobre «as formalidades a cumprir para que a situação fique devidamente legalizada».
j) O R tem mantido o pergaminho nas suas instalações e nunca apresentou ao A qualquer resultado de análises ou estudos, apesar de este, por diversas vezes, ter solicitado a sua entrega.

No âmbito da apreciação que fez da apelação interposta pelo A, a Relação aditou a essa matéria a que inseriu no questionado item (21), com o seguinte teor:
l) BB exibiu o manuscrito a familiares, clientes, fornecedores e amigos, sem oposição de quem quer que seja e teve a posse de tal manuscrito durante mais de 20 anos, designadamente desde a data em que iniciou a profissão de servente da construção civil.

Sustenta agora o recorrente que, com este aditamento, o acórdão recorrido viola os arts. 574º do CPC e 236º e 237º do CC e incorre em nulidades (por excesso de pronúncia, por constituir decisão surpresa e por violar os princípios do contraditório, da igualdade processual das partes e da proibição de indefesa).
Vejamos.
Na apelação, o A impugnara a decisão sobre os factos, pedindo que se desse por provada, além do mais, a matéria tida por não provada sob a al. b) e correspondente à que veio a conformar o conteúdo do questionado item (21) aditado pela Relação.
Contudo, a Relação alijou a reponderação da decisão sobre a matéria de facto e a reapreciação da prova produzida, por entender que não o deveria fazer, uma vez que a factualidade alvejada pelo apelante, face ao teor dos articulados das partes, se deveria ter por assente, à luz do cominado na lei de processo (art. 574º do CPC).
Ora, contrariamente ao entendimento subjacente ao recurso, as causas de nulidade de sentença (ou de outra decisão), taxativamente enumeradas no art. 615º do CPC, visam o erro na construção do silogismo judiciário e não o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, ou a não conformidade dela com o direito aplicável. A arguição de tal nulidade não procede quando fundada em divergências com o decidido, sendo coisas distintas a nulidade da sentença e o erro de julgamento, que se traduz numa apreciação da questão em desconformidade com a lei.
Como tal, a nulidade consistente no excesso de pronúncia, no caso, no desrespeito pelo objecto do recurso, em directa conexão com os comandos ínsitos nos arts. 608º e 609º do CPC, só se verifica quando o tribunal se pronuncie sobre questões ou pretensões cuja apreciação lhe estava vedada por não lhe ter sido colocada.
Mas a expressão «questões», que se prende, desde logo, com as pretensões que os litigantes submetem à apreciação do tribunal e as respectivas causas de pedir, de modo algum se pode confundir com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os fundamentos, os motivos, os juízos de valor ou os pressupostos em que as partes fundam a sua posição na controvérsia.
Em suma, a previsão da citada al. d) prende-se com o incumprimento do dever (prescrito no art. 608º, nº 2, do CPC) de resolver todas e apenas as «questões» submetidas à apreciação do tribunal, exceptuando aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras ([1]). Por isso, ao Tribunal incumbe resolver as questões ou pretensões cuja apreciação lhes seja suscitada e, para o efeito, apenas se pode estribar nos factos essenciais que as partes tenham alegado, mas não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (arts. 5º e 608º do CPC). E é em face do objecto da acção, do conteúdo da decisão impugnada e das conclusões da alegação do recorrente que se determinam as questões concretas controversas que importa resolver.
Realmente, a (única) questão que ao Tribunal da Relação incumbia resolver era a de saber se, sim ou não, deveria considerar-se assente a aludida factualidade.
Por isso, nesse estrito sentido, a Relação não incorreu em excesso de pronúncia, uma vez que, mediante o falado aditamento, se limitou a dar satisfação à pretensão recursiva do então apelante, embora por fundamentos diferentes dos invocados por este.
Subsiste, todavia, o argumentado sobre a surpresa que o recorrente manifesta ter tido perante a aludida solução jurídica que a Relação ofereceu à questão suscitada pelo apelante.
Embora essa surpresa não se possa estender às razões (de facto e de direito) em que a solução assentou, porque resultantes dos termos dos articulados e dos comandos legais, também é certo que, numa visão ampla do princípio do contraditório (art. 3º do CPC), poderá admitir-se a conveniência de a Relação apenas a ter adoptado depois de as partes terem tido a possibilidade de sobre ela se pronunciarem, uma vez que se considerasse que essa formalidade poderia influenciar o exame ou a decisão da causa (cfr. art. 195º do CPC).
Efectivamente, vem sendo actualmente entendido que, se a verificação da omissão de uma formalidade de cumprimento obrigatório, tal como a da generalidade das nulidades processuais, deve ser objecto de arguição perante o tribunal onde é cometida, reservando-se o recurso para o despacho que sobre a mesma incidir, este regime já não se ajusta ao caso específico do vício que consista na violação do princípio do contraditório, por falta de audição previamente à decisão de uma qualquer questão.
Em tal caso, a «nulidade processual é consumida por uma nulidade da sentença por excesso de pronúncia (art. 615º, nº 1, al. d), do NCPC), dado que sem a prévia audição das partes o tribunal não pode conhecer do fundamento que utilizou na sua decisão» ([2]).
Assim, este Tribunal, no Ac. de 17-3-2016 (p. 1129/09.5TBVRL-H.G1.S1), decidiu: «a decisão‑surpresa alegada e verificada quanto ao acórdão da Relação constitui um vício intrínseco da decisão e não do iter procedimental, acarretando a nulidade do acórdão que assentou a sua decisão em dois fundamentos que não foram previamente considerados pela recorrente, que foram decisivos para a decisão e sobre os quais, antes, deveriam ter sido ouvidos recorrente e recorridos».
Porém, salvo o devido respeito pela argumentação do Recorrente, a questão que à Relação incumbia resolver, não obstante ter sido enfrentada com a apontada falta de audição prévia, obteve uma solução juridicamente correcta no acórdão recorrido, como agora veremos.
Nos termos do art. 574º do CPC, consideram-se admitidos por acordo os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo autor, se o réu, ao contestar, não tomar posição definida perante eles, salvo se os mesmos estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto.
O que se retirava da alegação contida nos artigos 4º e 5º da pi, e que forneceu o teor do questionado aditamento reproduzido na alínea l) supra, era que o indivíduo que veio a vender o manuscrito ao A teve-o em seu poder durante mais de 20 anos, desde a data em que iniciou a profissão de servente da construção civil [e em cujo exercício encontrara o pergaminho no entulho de uma obra (cf. al. a)], e exibiu-o a familiares, clientes, fornecedores e amigos, sem oposição de quem quer que fosse.
Ora, a posição tomada pelo R foi a de se limitar a dizer que o A não era proprietário do manuscrito, por a venda ser nula – uma vez que o vendedor do mesmo não era o seu proprietário originário, via ocupação (por não ter anunciado o achado nos termos legais) –, e por não ter sido pago o preço da compra (arts. 32º a 37º da contestação). É certo que no art. 56º do mesmo articulado o R também afirmou que toda a matéria alegada na pi era falsa ou inexacta.
Porém, como pertinentemente lembrou a Relação, essa afirmação genérica, no contexto de todo o articulado, não pode ser tida como uma «posição definida» perante a alegação da matéria de facto em questão e que constituía o núcleo da causa de pedir invocada pelo A, nem a mesma matéria se pode ter por refutada pela defesa considerada no seu conjunto.
Realmente, essa afirmação emerge como completamente inócua para o efeito impugnatório aqui em apreço, porque o contestante, ao longo do seu articulado, se encarregou de a contraditar globalmente, particularmente, ao reconhecer, concomitantemente com aquela afirmação, que o A lhe enviou cartas a reclamar o pergaminho, assim como que propôs ao A a celebração de um contrato de comodato referente ao mesmo e, sobretudo, que o dito vendedor lhe emprestara anteriormente o documento – o que muito releva, neste ponto, por exprimir o reconhecimento de que era o tal indivíduo quem o tinha em seu poder, o que lhe permitiu exibi-lo, nomeadamente, ao arqueólogo que comunicou a sua existência ao R.
Ora, uma vez que concordamos com a solução jurídica adoptada na decisão recorrida e que a mesma, ainda que, inicialmente, possa ter surpreendido o recorrente, foi já, entretanto, objecto de amplo debate entre as partes, redundaria num acto inútil e, por isso, proibido (art. 130º do CPC) a anulação daquela decisão e subsequente reiteração pela Relação de tal solução, para a observância meramente formal dos princípios realçados neste recurso.

Por conseguinte, improcede esta pretensão do recorrente.

2. A aquisição por usucapião.
Para a apreciação desta questão o que relevam são os actos possessórios, verificados ao longo dos tempos, incidentes sobre uma realidade física concreta, no caso, um documento em pergaminho, contendo, supostamente, a “Torah” manuscrita.
Como é sabido, a posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (art. 1251º do Código Civil ([3])), nela se distinguindo um elemento material – a actuação material praticada sobre a coisa – e um elemento intelectual – a intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos actos praticados ([4]) – e adquire-se, nomeadamente, pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito e mantém-se enquanto durar essa actuação ou a possibilidade de a continuar, podendo aquele que houver sucedido na posse de outrem por título diverso da sucessão por morte juntar à sua a posse do antecessor (arts. 1251º, 1252º, 1256º, 1257º e 1263º).
Ora, os termos em que foi definitivamente fixada a factualidade permitem afirmar, com segurança, que o dito documento foi adquirido pelo A, mediante compra e venda, numa data em que sobre o mesmo, constituindo uma realidade física autónoma, incidira, durante mais de 20 anos, a posse do transmitente. E assim é, essencialmente, porque o antecessor do A, durante tal período, praticou sobre essa realidade corpórea autónoma os actos materiais acima descritos, correspondentes ao exercício de um direito de propriedade, de forma continuada, à vista de todos e sem oposição de ninguém: o referido transmitente, que encontrara o aludido pergaminho no entulho de uma obra, guardou-o em seu poder e, sem oposição de quem quer que fosse, exibiu-o a familiares, clientes, fornecedores e amigos e, também, no início de 2016, a um arqueólogo que comunicou a sua existência ao R; tal indivíduo emprestou o pergaminho ao R, a solicitação dos representantes deste, os quais, (apenas) após contacto com o mesmo, anunciaram a exibição (exposição) da dita peça; e, aliás, já após a mencionada compra e venda, o R propôs ao A a celebração de um contrato de comodato relativo ao documento que continuava a deter.
Apenas não consta de tais factos que o antecessor do A tivesse a convicção de exercer um direito de propriedade sobre coisa sua ao praticar tais actos. Contudo, apesar de não se ter provado que a esse poder de facto subjazia o correspondente animus, a convicção de que o referido indivíduo exercia sobre o bem um pleno e exclusivo direito de propriedade, a realidade apurada não deixa de aproveitar ao A, uma vez que os actos materiais praticados pelo seu antecessor em relação ao questionado documento sempre gerariam a presunção da sua posse sobre o mesmo ([5]), conforme jurisprudência uniformizada por este Supremo, no AUJ de 14-05-1996 (in DR II S, nº 144/96, de 24-06-1996, também in www.dgsi.pt - p. 085204): «Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa».
Ora, tal presunção não foi ilidida.
E se não consta que também o próprio A tenha tido tal actuação material sobre o dito documento, o certo é que «Se o titular do direito real, que está na posse da coisa, transmitir esse direito a outrem, não deixa de considerar-se transferida a posse para o adquirente, ainda que, por qualquer causa, aquele continue a deter a coisa», e, «Se o detentor da coisa, à data do negócio translativo do direito, for um terceiro, não deixa de considerar-se igualmente transferida a posse, ainda que essa detenção haja de continuar» (art. 1264º) ([6]).
Para conduzir à usucapião, a posse tem de ser pública e pacífica, uma vez que os prazos que permitem tal modo de aquisição apenas se começam a contar desde que cesse a violência ou a posse se torne pública (arts. 1297º e 1300º, nº 1). E nada se retira dos factos que permita considerar que o aludido possuidor usou de coacção física ou moral para obter a posse (art. 1261º) ou que esta, desde o seu início, tenha sido exercida de modo a não poder ser conhecida pelos interessados (art. 1262º).
O que vale por dizer que o A, por via do constituto possessório, adquiriu a posse da coisa móvel em questão, não sujeita a registo, há mais de 20 anos, não obstante a detenção/ocupação que o R dela vem fazendo. Portanto, independentemente de se averiguar se a posse exercida era de boa-fé e titulada, a factualidade assente permite concluir que decorreu o período de tempo a que alude o art. 1299º para a aquisição por usucapião da mesma por banda do A, sendo certo que os efeitos da respectiva invocação retroagem à data do início da posse (art.1288º).

Em conclusão, mostrando-se ter bom fundamento o direito exercido pelo A na acção, improcede a pretensão do recorrente, também neste ponto, o que prejudica o conhecimento das demais questões suscitadas por ambas as partes.
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Decisão:
Pelo exposto, acorda-se negar a revista e, por consequência, em confirmar o acórdão recorrido.

Custas deste recurso pelo recorrente.           


Lisboa, 16/10/2018


Alexandre Reis

Lima Gonçalves

Cabral Tavares

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[1] Como escreve Teixeira de Sousa (“Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, 1997, pp. 220 e s), está em causa «o corolário do princípio da disponibilidade objectiva (artº 264º, nº 1 e 664º, 2ª parte) o que significa que o tribunal deve examinar toda a matéria de facto alegada pelas partes e analisar todos os pedidos formulados por elas, com excepção apenas das matérias ou pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se tornar inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta fornecida a outras questões».
[2] Neste sentido, Teixeira de Sousa, nos escritos datados de 10/5/14 e 23/3/15, em blogippc.blogspot.pt, e, identicamente, Abrantes Geraldes, “Recursos no NCPC”, 4ª ed., p. 26, e Amâncio Ferreira, “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 8ª ed., p. 52).
[3] Diploma a que pertencem as normas que doravante forem invocadas sem outra menção.
[4] Que, em caso de dúvida, se presume naquele que exerce o poder de facto (art. 1252º nº2).
[5] Por força do disposto no (citado) nº 2 do art. 1252º do CC.
[6] Como referem P. Lima e A. Varela, in CC Anot., III, 2ª ed., p. 29, o constituto possessório é uma forma de aquisição solo consensu da posse, isto é, uma aquisição sem necessidade de um acto material ou simbólico que a revele.