Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7087/15.0T8STB.E1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: CONTRATO DE SEGURO DE DANOS
PRINCÍPIO INDEMNIZATÓRIO
ANTIGUIDADE
VALOR DO BEM
VALOR ESTIMADO
REGRAS DA BOA FÉ
REDUÇÃO DO VALOR DO PRÉMIO
Data do Acordão: 06/08/2017
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Referência de Publicação: COMENTÁRIO DE FRANCISCO RODRIGUES ROCHA, PUBLICADO NA REVISTA DE DIREITO E DE ESTUDOS SOCIAIS, A. 63 (36 DA 2ª SÉRIE), Nº 1-4 (JAN.-DEZ. 2022, P. 355-397
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITOS DOS SEGUROS - SEGURO DE DANOS / CAPITAL SEGURO / INDEMNIZAÇÃO.
DIREITO COMERCIAL - CONTRATOS COMERCIAIS / CONTRATO DE SEGURO.
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL.
Doutrina:
- Arnaldo Oliveira, Lei do Contrato de Seguro, 3.ª ed., 413, em anotação ao art. 128.º do RJCS.
- Catarina Batista, «Os danos indemnizáveis no seguro financeiro», na Revista de Concorrência e Regulação, ano VII, n.º 25, 124.
- F. Sanches Calero, Ley de Contrato de Seguro, 466 e ss..
- Francisco Rodrigues da Rocha, Do Princípio Indemnizatório no Seguro de Danos, 53 a 55, 91, 188, 190.
- Margarida Lima Rego, Contrato de Seguro e Terceiros, 255, 262, 263, 270.
- Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, 2.ª ed., 802, 803, 805.
- Romano Martinez, «Contrato de seguro – âmbito do dever de indemnizar», no I Congresso Nacional de Direito dos Seguros, 160, 166 e 167.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 236.º, 238.º, 334.º.
CÓDIGO COMERCIAL (CCOM): - ARTIGO 439.º.
DEC. LEI N.º 72/08, DE 16-4 (RJCS): - ARTIGOS 2.º, 92.º, 128.º, 131.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 18-6-2015, COM REMISSÃO PARA O QUE JÁ FORA DECIDIDO ANTERIORMENTE NOS ACS. DO STJ DE 24-3-12 E DE 23-1-14 (TODOS EM WWW.DGSI.PT).
Sumário :
I. Embora vigore no regime do contrato de seguro de danos o princípio indemnizatório (art. 439º do Cód. Com. e art. 128º da LCS), nos termos do qual a Seguradora apenas responde pelo valor do dano realmente causado, tal não afasta a possibilidade de as partes estabelecerem acordo prévio quanto ao valor do bem para esse efeito (valor estimado).

II. Verifica-se tal acordo prévio se o segurado especificou a existência, entre outros objectos de ouro e prata, de um faqueiro em prata do Séc. XIX, a que atribuiu o valor individualizado de € 20.000,00, e tendo questionado a Seguradora sobre a necessidade de se efectuar uma avaliação escrita desse bem, recebeu como resposta a dispensa dessa avaliação e a aceitação, sem reservas, desse valor.

III. Posto que se tenha provado, no âmbito da acção judicial, que o faqueiro tinha o valor de € 2.000,00, o facto de se tratar de uma antiguidade e de a Seguradora ter dispensado qualquer avaliação determina que responda pelo valor que o segurado, de boa fé, indicou.

IV. Age em abuso de direito a Seguradora que, apesar de ter dispensado o segurado da entrega da avaliação do faqueiro em prata e de se ter abstido de realizar qualquer diligência tendente a confirmar o seu valor, recusa pagar a quantia indicada pelo segurado depois de ser comunicada a ocorrência de um sinistro ao fim de cerca de 7 anos, período durante o qual a Seguradora arrecadou os prémios correspondentes ao valor que foi declarado.

V. Tendo sido comunicado à Seguradora o sinistro que afectou os bens que pelo segurado foram discriminados estava esta obrigada a proceder à redução do prémio na medida correspondente ao valor dos referidos bens.

Decisão Texto Integral:

I - AA propôs acção declarativa de condenação contra BB - Companhia de Seguros, S.A.

Alegou que celebrou com a R. um contrato de seguro “Multirriscos Habitação” pelo qual esta se responsabilizou a indemnizar o valor do recheio e bens que aquele possuísse na sua habitação, até ao limite do capital seguro de € 196.749,00. Na relação de bens que apresentou o A. declarou o valor € 34.420,00 relativamente aos objectos especificados, declaração que a R. aceitou.

Decorridos 7 anos, no dia 13-1-13, foram subtraídos do interior da habitação vários objectos, entre os quais objectos em ouro, em prata e um faqueiro em prata que constavam de uma relação junta ao referido contrato. Porém, comunicada a ocorrência do furto à R., esta recusou indemnizar o A. pela perda do faqueiro no valor por este indicado - € 20.000,00 - dispondo-se apenas a pagar a indemnização por essa perda em € 2.000,00, valor que alegou ser o que na realidade valia o faqueiro.

Sofreu danos de natureza não patrimonial, que devem ser compensados com a quantia de € 5.000,00.

Pediu que a R. fosse condenada a pagar-lhe uma indemnização no valor de € 39.420,00 e a devolver-lhe, desde o dia 14-1-14, a quantia por ele paga pelo prémio de seguro, na parte que diz respeito aos objectos roubados e que a R. tem continuado a cobrar ao A.

A R. contestou e alegou que procedeu ao apuramento dos objectos e respectivo valor, para cálculo do valor a pagar, em cumprimento do contrato de seguro. Reconhece que foram roubados os objectos indicados pelo A., mas o valor do faqueiro é apenas de € 2.000,00 e não € 20.000,00.

Foi realizado o julgamento, sendo a R. condenada no pagamento da quantia de € 16.420,00, computando-se em € 2.000,00 o valor do faqueiro que foi roubado, com juros de mora vencidos desde a data da citação e vincendos até integral e efectivo pagamento à taxa legal de 4%.

O A. apelou e a Relação, depois de considerar que a R. havia aceite na contestação o valor que pelo A. foi indicado na petição relativamente ao faqueiro, alterou a sentença e condenou a R. no pagamento da quantia de € 34.420,00, assim como na devolução, desde o dia 14-1-14, da quantia que pelo A. foi paga pelo prémio de seguro, na parte que diz respeito aos objectos roubados e que a R. tem continuado a cobrar ao A., quantia essa que deverá ser apurada em liquidação de sentença.

A R. interpôs recurso de revista em que se insurge contra a modificação da decisão da matéria de facto, por considerar que não havia motivo para concluir que tinha havido confissão da sua parte relativamente ao valor do faqueiro que foi indicado pelo A. na petição inicial. Considera, por isso, que apenas pode ser considerado o valor de € 2.000,00 que foi fixado pela 1ª instância. Insurge-se também contra a condenação na devolução do excedente dos prémios pagos, uma vez que cabia ao A. solicitar a redução do capital seguro depois da ocorrência do furto.

Houve contra-alegações.

Cumpre decidir, por vencimento.

II – Matéria de facto:

1. Na sentença primeira instância foi considerado provado que o valor do “faqueiro em prata do século XIX, para 12 pessoas” era de € 2.000,00.

A Relação alterou esse valor para € 20.000,00 por considerar que tinha existido confissão da R. desse facto que o A. alegara na petição inicial.

Considera a R. que deve modificar-se este segmento da decisão da matéria de facto, na medida em que não existem motivos para considerar ter existido confissão do referido valor, o qual foi objecto de impugnação.

Vejamos.

Numa perspectiva meramente formal, que convoca simplesmente as regras de direito adjectivo, não havia motivos para a Relação modificar a decisão da matéria de facto naquele ponto, na medida em que o valor a considerar para o faqueiro abarcado pelo contrato de seguro constituía o único motivo de discórdia entre as partes.

Com efeito, a análise da contestação revela que a R. reconhece que o A. indicou para o faqueiro o valor de € 20.000,00, o que não significa que tenha aceite no processo judicial que esse era o valor real do mesmo bem segurado.

Nesta medida, existiu um erro de direito na apreciação das normas sobre a confissão de factos, o qual deve ser corrigido por este Supremo Tribunal de Justiça, repondo a decisão de facto da 1ª instância.

2. Mas no recurso de apelação o A. havia impugnada a decisão da matéria de facto por forma a que se considerasse provado, através da apreciação de prova testemunhal, que o valor do faqueiro era efectivamente de pelo menos € 20.000,00 como fora declarado no seguro contratado.

Tal reapreciação foi considerada tacitamente prejudicada pela solução que foi encontrada quando a Relação considerou ter existido confissão desse mesmo na contestação.

Pese embora a referida omissão, cremos que não se justifica a remessa dos autos à Relação para efeitos de reapreciação da decisão da matéria de facto que, por aquela via, foi considerada prejudicada, uma vez que o resultado procurado pelo A. é alcançado mesmo sem essa pretendida alteração, como explicaremos no momento apropriado.

Assim, deve retomar-se a matéria de facto que foi fixada pela 1ª instância.


3. Factos que a 1ª instância considerou provados:

1. O A. celebrou com a R., no ano de 2001, um contrato de seguro Multirriscos Habitação, titulado pela apólice nº MR5…, pelo qual esta se responsabilizou a indemnizar, até ao limite do capital seguro de € 196.749,00, o valor do recheio e bens que aquele possuísse na sua habitação sita na R. …, lote 3…, …, Setúbal.

2. Em 2006, o A. fez incluir no referido contrato de seguro objectos de prata e ouro que constam discriminados no art. 2º da petição, indicando o respectivo valor e, concretamente, um faqueiro de prata, origem século XIX (12 pessoas) - € 20.000,00.

3. Quando os objectos supra descritos foram incluídos no contrato de seguro, o que foi elaborado através da gestora de conta do A., foi perguntado à R. se seria necessária uma avaliação escrita dos objectos, assim como fotografias dos mesmos, ao que a R. afirmou que seria somente preciso discriminá-los.

4. A R. aceitou sem reservas o valor e a responsabilidade indemnizatória pelos referidos objectos de ouro e prata e aumentou o preço do prémio a pagar pelo A. de € 98,00 para € 271,00.

5. No dia 13-1-13, cerca das 20h00, quando o A. regressou à sua residência após ter saído pelas 12h00 para trabalhar, constatou que, não obstante a existência de um alarme que até deverá ter disparado, a casa tinha sido assaltada e encontrava-se “remexida, na sua totalidade, denotando grande movimento na zona da cozinha de onde foram subtraídos diversos artigos”, de entre os quais os objectos em ouro e prata constantes do contrato de seguro celebrado com a R.

6. O A. participou nesse mesmo dia 13-1-13 à PSP, a qual accionou a inspecção judiciária, o roubo dos objectos a seguir discriminados no auto, que constitui o doc. nº 3 junto com a petição.

7. O A. participou de imediato o roubo dos objectos segurados à R. que, aceitando a responsabilidade pelo sinistro, após algumas diligências propôs-se indemnizar o A. pelo valor de e € 16.265,00.

8. O valor o faqueiro em prata do Séc. XIX, para 12 pessoas, tem o valor de € 2.000,00.

9. O valor de todos os objectos roubados e abrangidos pelo contrato de seguro celebrado com a R., totalizam o montante de € 14.420,00.

10. O prémio de seguro à data do acidente era de € 311,12.

11. Ainda hoje e mesmo após a comunicação à R. do roubo dos referidos objectos, continua a cobrar ao autor o prémio referido em 10.

III – O direito:

1. Suscita a R. duas questões em sede de integração jurídica do caso:

a) Saber se, tendo sido declarado na apólice de seguro que o faqueiro de prata segurado tinha o valor de € 20.000,00, esse valor cede perante a prova de que afinal o valor do faqueiro era apenas de € 2.000,00;

b) Saber se a restituição do valor dos prémios que foram pagos em excesso depois da ocorrência do sinistro dependia de solicitação do segurado.

2. No caso concreto, o A. pretendeu especificar na apólice de seguro certos bens mais valiosos que estavam na sua habitação, entre os quais um faqueiro de prata do Séc. XIX. Não se tratava de bens que tivessem sido adquiridos e cujo valor pudesse ser reflectido pelas respectivas facturas. Essencialmente quanto ao faqueiro, que é o único bem que está em causa nesta acção, tratava-se de uma antiguidade cujo valor não seria aferível de imediato através de um índice comercial. Por isso – numa postura que nos parece a todos os títulos irrepreensível – o A. confrontou a R. Seguradora, através da gestora de conta, inquirindo-a se “seria necessária uma avaliação escrita dos objectos”, ao que a R. respondeu que “seria somente previso discriminá-los”.

Foi o que o A. fez, depois de avisadamente os ter fotografado por sua livre iniciativa.

Em coerência com essa actuação, a R. aceitou, sem reservas, o valor que foi declarado, procedeu ao aumento do prémio do seguro e assumiu a responsabilidade indemnizatória pelos referidos objectos de ouro e prata, tendo cobrado o prémio correspondente ao risco que ficava coberto durante os subsequentes 7 anos.

Em 2013 ocorreu o sinistro que se traduziu num assalto à habitação do A., com apropriação de objectos em outro e prata, incluindo o faqueiro, o que levou o A. a participá-lo à R. Aceitando a existência do sinistro, a R. propôs-se pagar ao A. o valor dos bens roubados, com excepção do valor do faqueiro, considerando que era apenas de € 2.000,00. Foi, de facto, este o valor que foi apurado pela 1ª instância, embora contestado pelo A.

Quid juris?

2. A resposta que foi encontrada pela 1ª instância focou-se apenas num aspecto do regime do contrato de seguro que se traduz na aplicação estrita do disposto no art. 128º do RJCS aprovado pelo Dec. Lei nº 72/08, de 16-4, norma que consagra explicitamente o princípio indemnizatório como um dos pilares fundamentais dos contratos de seguros de danos, concretizando o que mais genericamente já constava do art. 43º, nº 2.

A Relação, por seu lado, para inverter esse resultado, seguiu a via mais fácil que a levou a dispensar a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto precisamente em relação ao ponto fulcral, ou seja, em relação à quantificação do valor real do faqueiro em prata na data em que ocorreu o sinistro, apoiando-se num argumento formal, mas manifestamente infundado, que a conduziu ao valor peticionado pelo A.

Nem uma nem outra das linhas decisórias nos parecem correctas: aquela peca por defeito, na medida em que se fixou no aludido princípio indemnizatório rigidamente interpretado e deixou de lado outros princípios e outras normas jurídicas que devem ser convocadas para a justa resolução do litígio; já a via que foi seguida pela Relação dispensou infundadamente a análise mais aprofundada do regime do contrato de seguro de danos que não pode deixar de ser enfrentada.

Atalhando desde já a solução, consideramos que deve ser mantida a solução que foi declarada pela Relação, embora sustentada em diferentes pressupostos factuais e jurídicos, pondo em relevo, por um lado, os comportamentos de cada uma das partes na fase da negociação e na fase da execução do contrato e, por outro, convocando para a resposta judiciária outras normas e outros princípios que permitem que se desconsidere neste momento o facto de a 1ª instância ter considerado provado que o faqueiro do Séc. XIX identificado e especificado pelo A. com o valor de € 20.000,00 tinha afinal um valor de apenas € 2.000,00.


3. Comecemos por identificar o regime jurídico a que obedece a resolução do caso presente. Em lugar da sujeição integral ao regime do contrato de seguros que foi aprovada pelo RJCS, a negociação e a posterior alteração do contrato, com a especificação dos bens em outro e prata, entre os quais se encontrava o faqueiro do Séc. XIX, ocorreu ainda na vigência dos preceitos do Cód. Comercial que regulavam o contrato de seguro e, em concreto, o seguro de danos.

Prescrevia então o art. 439º, § 1º, do Cód. Com., que “a indemnização devida pelo segurador é regulada em razão do valor do objecto ao tempo do sinistro …”, embora já então se ressalvasse que tal regra não se aplicaria quando “o valor foi fixado por arbitradores nomeados pelas partes”, caso em que o “segurador não o pode contestar”.

Neste preceito aflorava o princípio indemnizatório, nos termos do qual a prestação devida pela seguradora ao abrigo de contrato de seguro de danos está, em regra, limitada pelo valor do dano decorrente do sinistro, sendo este, por seu lado, determinado pelo valor actualizado da coisa segurada e tendo como limite máximo o capital acordado.

Aquele princípio e normas encontram algum paralelismo no que agora consta dos arts. 128º e 130º, nº 1 (quanto à regra geral) e do art. 131º, nº 1, da RJCS (quanto à referida excepção), prescrevendo este último preceito que, “sem prejuízo do disposto no art. 128º e no nº 1 do artigo anterior, podem as partes acordar no valor do interesse seguro atendível para o cálculo da indemnização, não devendo esse valor ser manifestamente infundado”. No Preâmbulo do diploma refere-se precisamente que “apesar de o princípio indemnizatório assentar basicamente na liberdade contratual, de modo supletivo, prescrevem-se várias soluções, nomeadamente quanto ao cálculo da indemnização …”.

Assim, embora o sinistro seja regulado pela lei vigente aquando da sua ocorrência, ainda que respeitante a contratos de seguro celebrados ao abrigo do regime anterior, nos termos do art. 2º do Dec. Lei nº 72/08, de 16-4, a delimitação da vontade das partes aquando da outorga ou da alteração do contrato não pode deixar de ser aferida através das regras que vigoravam na ocasião, com especial destaque para o referido art. 439º do Cód. Comercial.

Como se disse, este preceito já reflectia o princípio indemnizatório que encontra toda a justificação em sede de seguro de danos, visando impedir uma situação de enriquecimento do segurado à custa da seguradora designadamente quando a ocorrência do sinistro determinasse um resultado mais vantajoso (cfr. F. Sanches Calero, em Ley de Contrato de Seguro, págs. 466 e segs).

Segundo Menezes Cordeiro, tal princípio encontra uma tripla justificação: no plano histórico, visa esconjurar o risco da usura; numa perspectiva significativa e ideológica propõe-se arredar a outorga de seguros com objectivos de lucro; e no plano social visa a redução dos casos de fraude e de enriquecimento ilegítimo (Direito dos Seguros, 2ª ed., págs. 802 e 803).

Essa justificação é desmultiplicada por Francisco Rodrigues da Rocha, na monografia Do Princípio Indemnizatório no Seguro de Danos, págs. 53 a 55, aludindo ainda às dificuldades da seguradoras de provar a existência de comportamentos dolosos do segurado ou a má fé deste na contratação ou ainda as consequências ao nível dos cálculos actuariais.

Foi a tal princípio que se recorreu no Ac. do STJ, de 18-6-15 (relatado pelo ora relator e com intervenção do 1º adjunto), com remissão para o que já fora decidido anteriormente nos Acs. do STJ de 24-3-12 e de 23-1-14 (todos em www.dgsi.pt).

Tratava-se então de uma situação em que se verificava um diferencial entre o valor indicado pelo tomador do seguro e o valor real do objecto (veículo automóvel), traduzindo uma situação de sobresseguro que, por via daquele princípio, foi solucionada através da atribuição da indemnização correspondente ao valor real, para o que se revelou relevante a demonstração de que na ocasião da outorga do contrato de seguro o tomador estava ciente da existência desse diferencial, decidindo-se, com tal fundamento, que a indemnização devida pela seguradora não ultrapassaria o valor real do bem.

4. Porém, a realidade que circula pelos processos judiciais nem sempre encontra resposta adequada em regras ou princípios gerais tão singelos, não devendo abdicar-se de outras regras e princípios situados no mesmo plano, entre os quais emerge o princípio da liberdade contratual que preside a todo o regime dos contratos, com especial destaque para os contratos de seguros.

Diversas circunstâncias nos levam a ponderar, para efeitos de responsabilização da R. Seguradora, o valor que foi declarado pelo A. em relação ao faqueiro, em detrimento do que pelo tribunal de 1ª instância lhe foi atribuído por via indirecta (esse bem nem sequer pôde ser alvo de avaliação específica).

Tratava-se de um bem que pode qualificar-se como antiguidade o que naturalmente colocava uma dificuldade inicial tanto ao segurado como à seguradora no que concerne à determinação do seu valor real na ocasião em que foi integrado no contrato de seguro. A natureza desse e dos demais bens que pelo segurado foram especificados na alteração ao contrato indicia a existência de um possível conflito quanto ao critério de avaliação, pondo em relevo o valor estimativo que teria para o segurado (valor subjectivo) ou apontando unicamente para o valor de mercado pelo qual se regem as seguradoras, ou mais especificamente para o valor que poderia ser conseguido pela colocação desse bem no mercado de antiguidades (valor objectivo) que segue regras que naturalmente não são comparáveis com as que seriam aplicáveis a outros bens disponíveis no mercado generalista.

Tratava-se de um faqueiro do Séc. XIX, sendo por isso natural que o valor que o A. pretendia assegurar não correspondesse a qualquer valor comercial, tanto mais que não se tratava de um produto de uso corrente e nem sequer estava sujeito às leis do mercado. Na petição inicial alude, aliás, a um valor estimativo.

Foram essas dificuldades e o interesse do A. na consolidação do valor que julgava ajustado a tal bem que o levaram a confrontar a R. com a possibilidade/necessidade de avaliação do faqueiro, o que esta dispensou, limitando-se a aceitar sem reservas o valor indicado pelo A. e a responsabilidade pelo risco inerente a tal bem, passando a cobrar o prémio correspondente.

Depois da celebração do contrato naquelas condições a Seguradora, durante 7 anos, cobrou o diferencial entre € 98,00 e € 271,00 com base no valor que foi indicado pelo A., não havendo o menor indício de qualquer fraude quer na outorga do contrato, quer na verificação e comunicação do sinistro. Só quando lhe foi participado o sinistro a R. se rebelou contra o valor do faqueiro.

5. As especiais circunstâncias referidas exigiam da parte da R. maior diligência na aceitação da alteração ao contrato de seguro por forma a confirmar ou infirmar se o valor que era indicado pelo A. tinha ou não correspondência com o valor real do bem.

Uma postura que não fique presa ao princípio do indemnizatório e que, ao invés, privilegie a real vontade das partes e proteja as legítimas expectativas que foram geradas, permite extrair da actuação do A. e da contemporânea reacção/inacção da R. uma manifestação de concordância prévia quanto ao valor por que era transferido o risco relacionado com o faqueiro de prata do Séc. XIX.

A actuação do A. na ocasião em que comunicou a vontade de alterar o contrato, em confronto com a reacção da R. que dispensou não apenas a fotografia dos objectos como até a avaliação escrita (fosse obtida pelo A. e depois contraditada pela R., fosse obtida pela própria R. através de peritos ou por qualquer outra via) reconduz-nos à verificação de um acordo tácito quanto ao valor que seria atribuído ao bem em caso de eventual, ainda que indesejado, sinistro.

Para esta conclusão releva em especial o facto de não estarmos perante um bem de circulação corrente, de tal modo que o interesse na avaliação ou na aferição do valor do bem não era sequer exclusivo do A.; também a R. tinha interesse na certificação e estabilização do valor aproximado, o que teria permitido evitar o que afinal veio a ocorrer, ou seja, o questionamento serôdio por parte da R. do valor que aquele indicou.

6. Problemas semelhantes têm sido suscitados noutras latitudes em que o contrato de seguro se rege por regras e princípios paralelos aos que resultam da RJCS nacional.

Assim o ilustra Margarida Lima Rego quando cita Boivin segundo o qual “a prévia fixação do valor da indemnização é muito frequente no caso de bens de valor marcadamente subjectivo ou de difícil avaliação, como é o caso de jóias ou obras de arte ou bens de valor muito flutuante”. Menciona ainda Uria (Derecho Mercantil, pág. 762) quando diz que “a fixação definitiva do valor do interesse e o ajustamento do capital seguro é frequente nos seguros de obras de arte (pág. 255, nota 621). Apoios doutrinais que levam aquela autora a concluir que “o importante é - em todos os casos – o interesse avaliado ex ante na perspectiva de quem se precavê contra uma necessidade eventual e futura” (como, aliás, agiu o A.) (Contrato de Seguro e Terceiros ob. cit., pág. 270).

Ademais, não está sequer afastada a possibilidade de, perante uma assinalável divergência entre o valor que o A. considerava correcto e outro valor que porventura viesse a ser fixado com recurso a algum especialista, a catálogos de leilões de antiguidades ou a outras fontes de informação (sem exclusão sequer do fácil acesso a elementos indicativos que qualquer um, e mais ainda quem exerce a actividade seguradora, pode extrair de uma busca através da Internet), o A. viesse a abster-se da alteração do contrato ou a procurar outra forma de se prevenir contra eventuais riscos. Sempre seria seguro que a fixação e aceitação de um valor inferior ao que foi declarado determinaria para o A. uma redução do montante do prémio que, no entanto, teve de suportar durante os subsequentes 7 anos, até à ocorrência do sinistro.

Por outras palavras, o A. pretendeu transferir para a R. os riscos (dentro de um seguro da modalidade “Multirriscos Habitação”) inerentes a um determinado e identificado faqueiro de prata (do Séc. XIX, completo, com estojo e com marca do fabricante), não podendo o seu caso ser tratado como se pretendesse incluir no seguro um qualquer outro bem sem especiais atributos e cuja avaliação correspondesse pura e simplesmente ao valor praticado no mercado de produtos generalistas.

Em face dessa intenção e perante a vontade manifestada pelo A. de que fosse feita uma avaliação, as regras de diligência impostas à R. na aceitação e gestão dos contratos de seguro reclamavam que fosse feita uma avaliação que tornasse transparente para ambas as partes o valor do bem, em lugar de se transferir essa polémica para o momento mais inoportuno, ou seja, para a ocasião em que ocorreu o sinistro e em que o segurado, confiante no seguro que celebrara, se apresentou a reclamar o valor que a R. aceitara sem questionar.

A R. seguradora, como profissional que é, não poderia deixar de compreender o alcance da preocupação do proponente. Perante a singularidade daquele artefacto, segundo um critério de bonus pater famílias, deveria recomendar tal avaliação, evitando uma dispensável litigiosidade em torno de um sinistro real e em que nada deixa transparecer qualquer actuação ilícita do segurado.

À seguradora que, após a participação do sinistro e a reclamação da indemnização, teve a iniciativa de consultar dois peritos que deram o seu parecer extrajudicial (e que depois foram prestar depoimentos na audiência de julgamento), era exigível que tivesse agido antecipadamente, em lugar de, numa postura que privilegiou o lado comercial da sua actividade, ter comunicado a dispensa de qualquer avaliação, criando a legítima convicção de que aderia ao valor que o A. indicara e de que não iria questionar no futuro o valor da indemnização devida em caso de sinistro.

Assim tem sido considerado no sistema americano onde, segundo informação extraída de Margarida Lima Rego em torno dos seguros de incêndio relativos a imóveis, se concluiu que “quem estaria em melhor posição para evitar o fenómeno do sobresseguro seriam os próprios seguradores. Todavia, em lugar de o fazerem, os seguradores limitavam-se a recorrer ao princípio indemnizatório, que não combate eficazmente o sobresseguro, apenas a sobre-indemnização”. Observa ainda que esse resultado se mostrava “injusto para o consumidor de seguros que, em muitos casos, sobreavalia sem o saber a sua propriedade e paga, por conseguinte, prémios superiores aos que deveria pagar em troca da protecção do seu interesse na propriedade segura”, o que levou ao entendimento de que “o resultado final seria mais justo se o mercado de seguros se dedicasse a combater, na origem, o próprio fenómeno do sobresseguro” (ob. cit., págs. 262 e 263).

7. O art. 439º do Cód. Com. não previa expressamente a possibilidade de as partes acordarem na fixação de um determinado valor para efeitos de futura e eventual responsabilização da seguradora. Regulava apenas a avaliação segundo arbitragem, o que, contudo, não determinava que aquela modalidade de regulação dos interesses estivesse arredada, sendo o corolário do princípio geral da liberdade contratual.

A tal princípio apelam diversos autores que se dedicam ao actual e ao anterior regime do contrato de seguro, sendo de destacar Romano Martinez quando afirma que “o âmbito do dever de indemnizar … pode ser fixado por regras contratuais. Neste domínio impera a autonomia privada, pelo que a determinação do valor da indemnização, por acordo, pode assumir diversos contornos” (Contrato de seguro – âmbito do dever de indemnizar, no I Congresso Nacional de Direito dos Seguros, pág. 160). Acrescenta ainda que para apurar o valor do dano “os interessados podem socorrer-se, entre outros, de um acordo de peritagem ou de um pré-acordo, antes do sinistro, em que se avalia o bem (p. ex. obras de arte) ou, em geral, o prejuízo” (págs. 166 e 167).

O mesmo afirma Menezes Cordeiro, segundo o qual as partes “podem assentar na cifra a considerar, em caso de sinistro, desde que não seja manifestamente infundado” (ob. cit., pág. 805).

Outrossim Arnaldo Oliveira, quando afirma, em anotação ao art. 128º do RJCS, que “actualmente, de tão massivas, as denegações concretas do princípio indemnizatório, a doutrina refere a relegação do mesmo para o seu significado finalista, de declaração de princípios” que “abusos, enriquecimento excessivo e, no limite, a fraude” (Lei do Contrato de Seguro, 3ª ed., pág. 413).

O mesmo conclui Catarina Batista quando refere que “a determinação do risco assumido pode ser delineada pelas partes, ao abrigo da autonomia privada, em termos qualitativos ou em termos quantitativos, estabelecendo-se um quantum que a seguradora terá de indemnizar em caso de sinistro” (em “Os danos indemnizáveis no seguro financeiro”, na Revista de Concorrência e Regulação, ano VII, nº 25, pág. 124). E, afastando uma visão positivista do princípio indemnizatório, acrescenta que “existem, afinal, amplas excepções e, por isso, tal princípio deve ser relativizado mormente por via da admissibilidade de derrogações por vontade das partes”.

Excepções que são também admitidas por Francisco Rodrigues Rocha, ob. cit., pág. 190, onde refere que “são claramente admitidas as cláusulas de valor estimado, ainda que superiores ao valor do interesse, desde que o acordo do interesse atendível para a forma de cálculo da prestação não seja manifestamente infundado”.

Semelhante ideia perpassa da extensa obra de Margarida Lima Rego onde, focando-se precisamente nos seguros de danos em conjugação com o princípio indemnizatório ou da não especulação, observa que “mesmo nos casos habitualmente qualificados como seguro de danos, pode optar-se por uma indemnização inferior ou superior ao valor actual do dano”, actuação que se reconduz à prévia fixação do valor da indemnização (ob. cit., pág. 255).

Em suma, no quadro circunstancial da alteração ao contrato que foi promovida pelo A. e aceite pela R., apelando ao sentido normal da declaração negocial correspondente à enunciação do faqueiro e quantificação do seu valor (art. 236º do CC), ainda que imperfeitamente expresso (art. 238º), mas segundo os ditames da boa fé (239º), a mesma deve ser qualificada como estipulativa do sistema de valor acordado, sendo que a avaliação então prevista no art. 439º, § 1º, do C. Com., só não foi realizada por motivo exclusivamente imputável à R. Seguradora que da mesma prescindiu.

É, por isso, apropriado que, em resultado do sinistro que veio a afectar aquele específico bem, a R. responda pelo valor com que foi identificado na apólice de seguros e não pelo valor que a posteriori foi encontrado na fase contenciosa da regulação do sinistro.

8. Não se desconhece que o art. 131º, nº 2, do RJCS, determina que os eventuais acordos de indemnização não devem traduzir a obrigação de pagamento de “valor manifestamente infundado”.

No caso, este preceito pode ser trazido à colação, na medida em que, acreditando na matéria de facto provada, o faqueiro em prata do Sec. XIX que o A. identificou com o valor de € 20.000,00 tinha afinal o valor de € 2.000,00, ou seja, 1/10.

Estamos perante um conceito indeterminado que não pode ser integrado simplesmente pela comparação objectiva entre os dois valores referidos, devendo contar ainda com o facto de estarmos perante um bem cuja discriminação no contrato de seguro (a par da discriminação de numerosas peças em ouro e prata, cujo valor, também indicado unilateralmente pelo A., não foi questionado pela R.), por aditamento à apólice inicial, tinha subjacente um interesse específico do segurado que radicava na natureza do bem e na sua antiguidade, envolvendo, pois, para além, de um valor económico, um valor estimativo que não pode deixar de ser ponderado atentas as circunstâncias que rodearam a alteração do contrato.

Por outro lado, não nos parece que uma tal cautela do legislador, que parece sobrepor-se ao princípio da liberdade contratual, tenha em vista sinistros deste baixo calibre, ou seja, um vulgar sinistro ligado a um seguro “multiriscos habitação”, com discriminação de alguns bens que o segurado considerou mais valiosos mas que não deixam de ser bens de valor reduzido no contexto dos seguros em geral

Acresce que uma mera comparação entre aqueles valores objectivos deixa de lado um aspecto que não pode deixar de ser ponderado quando nos propomos interpretar e aplicar o conceito de “valor manifestamente infundado”.

Com efeito, à luz das regras da experiência comum, o faqueiro em causa não era um objecto transaccionável segundo os padrões correntes do mercado, ajustando-se mais a um mercado especializado em que se atribui relevo à vetustez, ao nível de conservação e à “história” do bem revelados quando o A. manifestou perante a A. o seu interesse subjectivo na avaliação escrita e no registo fotográfico para memória futura.

Por isso, na perspectiva do A., que a R. aceitou sem hesitar e sem demonstrar qualquer outra preocupação, não nos parece que possa considerar-se “manifestamente infundada” a indicação do valor que o A. atribuiu e que a R. aceitou nos termos já referidos, devendo ser dado realce ao interesse que estava em causa e não tanto ao valor que a posteriori veio a ser definido, depois da inércia inicial da Seguradora.

O referido interesse, no caso, também era e é digno de protecção legal que as partes concretizaram através da indicação e aceitação de um valor pecuniário, cumprindo o requisito do art. 43º do RJCS. Ou seja, nas palavras de Francisco Pereira da Rocha, revela-se a “existência de uma relação económica de uma pessoa com determinado bem, que, em termos gerais, se baseia na satisfação duma necessidade abstracta ex ante através dum negócio com finalidade previdencial”, de tal maneira que “não é o mero excesso de valor que infirma o seguro, mas sim um valor manifestamente infundado, sem qualquer relação com a coisa” (ob. cit., pág. 91).

9. Idêntica solução se atingiria seguindo uma via argumentativa diversa mas não menos ajustada às concretas circunstâncias que emergem da matéria de facto apurada.

Delas resulta a ilegitimidade da defesa apresentada pela Seguradora ao invocar, depois do sinistro e na presente acção, a diferença entre o valor segurado e o valor posteriormente atribuído ao bem em causa nesta acção.

Como já se disse, foi o próprio A. que, de forma espontânea, sugeriu à R. a avaliação do bem, o que esta dispensou, aceitando a alteração ao contrato e alterando o prémio de seguro por forma a corresponder ao aumento do risco assumido. Passou então a receber (recebimento que incompreensivelmente se mantém mesmo depois do sinistro) o prémio calculado sobre o novo valor do capital seguro, considerando, além do mais, o valor de € 20.000,00 atribuído ao faqueiro, desinteressando-se pura e simplesmente da avaliação efectiva do bem.

Se porventura a Seguradora tivesse avaliado o bem, o segurado poderia ter recusado a contratação do seguro e procurado outra solução, o que não se revelou necessário devido à actuação da Seguradora.

A figura do abuso de direito genericamente prevista no art. 334º do CC deve ser aplicada comedidamente; deve evitar-se o uso “abusivo” dessa figura, reservando-a para situações que não encontrem noutros preceitos ou regras jurídicas outra solução. Por isso preferimos sustentar a solução naquela base legal.

Todavia, em reforço da mesma, não podemos deixar de ponderar que a defesa apresentada pela R. sempre se revelaria ilegítima, porque atentatória das regras da boa fé objectiva que devem ser respeitadas por todos os contraentes, com especial destaque para entidades que, como as seguradoras, exercem uma actividade profissional que exige específico know how ou que, atenta a regulamentação a que estão sujeitas, permitem que se estabeleçam relações de confiança quanto aos efeitos da sua actuação.

O questionamento por parte da R. do valor que foi indicado pelo A. na fase extrajudicial e na fase judicial revela-se manifestamente contraditório com a posição que assumiu aquando da modificação do contrato e durante o tempo que mediou até à ocorrência do sinistro, assumindo foros de um verdadeiro venire contra factum proprium (Francisco Pereira da Rocha, ob. cit., pág. 188).

Dir-se-á, porventura, para contrariar esta solução, que se mostra inviável a avaliação sistemática de todos os bens que são identificados nos contratos de seguro de danos. Ou, quiçá, que essa opção, para além de dificultar a celebração de contratos, importaria ainda um aumento dos custos.

São observações legítimas e compreensíveis mas que também não devem ocultar o risco que as Seguradoras correm quando, para obviar àqueles efeitos e para incrementarem a carteira de seguros que emerge da facilitação da aceitação da outorga ou da modificação dos contratos, acabam por criar nos segurados a convicção de que não surgirão daí obstáculos futuros em caso de eventual sinistro.

Por outro lado, um tal argumento, a ser empregue, provaria demais. Não sendo de esperar que seja feita a avaliação de todos os bens que são identificados pelos segurados, ao menos se preste uma atenção mais cuidada a alguns bens que, em face das dúvidas suscitadas pelos segurados ou atentas, as regras da experiência que as Seguradoras bem conhecem podem acarretar problemas futuros, como ocorre precisamente quando estão em causa objectos de colecção, obras de arte, artefactos em prata ou antiguidades em geral cuja cotação não obedece a claras leis do mercado generalista.

Tal como é corrente e imprescindível que nos contratos de seguro de veículos automóveis (na categoria de danos próprios) se faça a consulta das tabelas indicativas do respectivo valor comercial, sem dar crédito automático aos valores que são indicados pelos segurados, também se espera e é exigível que, em face de bens especificamente sinalizados e que apresentem determinadas características, as seguradoras façam algo mais do que aceitar sem pestanejar os valores indicados, sem a menor diligência no sentido de confirmar as indicações dadas pelos segurados ou, ao menos, de contrastar esses valores com os que podem ser detectados através de uma simples consulta a terceiros ou a bases que contenham dados que permitam um certo controlo.

Porque a R. não agiu desta forma e, ao invés, dispensou até o A. de apresentar qualquer avaliação do faqueiro, revela-se manifestamente contrária às regras da boa fé a invocação posterior de uma divergência entre o valor de mercado e o valor atribuído pelo segurado, justificando-se que a R. responda por este valor que no momento oportuno não questionou nem pretendeu clarificar.

10. Resta apreciar o acórdão recorrido na parte em que condenou a R. a restituir o valor dos prémios excedentes que recebeu desde a participação do sinistro.

Para o efeito é convocado o art. 92º da LCS, nos termos do qual, “ocorrendo uma diminuição inequívoca e duradoura do risco com reflexos nas condições do contrato, o segurador deve, a partir do momento em que tenha conhecimento das novas circunstâncias, reflecti-lo no prémio do contrato”.

Assim deveria ter acontecido no caso presente.

Com efeito, tendo o aumento do prémio de seguro sido originado pela alteração contratual que se traduziu na especificação de determinados bens em ouro e prata com indicação do respectivo valor e tendo havido comunicação à R. Seguradora do sinistro, seguida de aceitação do mesmo, não poderia deixar de reflectir por sua iniciativa esse facto nos termos da apólice, levando à redução do prémio na medida correspondente à extinção do risco que estava inerente.

IV – Face ao exposto, ainda que com fundamentação não coincidente com a que foi exposta pela Relação, acorda-se na confirmação do acórdão recorrido.

Custas a cargo da R.

Notifique.

Lisboa, 8-6-17


Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Oliveira Vasconcelos (com Voto de Vencido)

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Declaração de voto
Inicial relator: Oliveira Vasconcelos

São as seguintes as razões pelas quais votei vencido, correspondentes ao meu projeto inicial do acórdão, como relator.

1. Na sentença proferida na 1ª instância, entendeu-se que “em princípio, a indemnização devida, no que ao caso interessa, numa situação de furto de objetos segurados, deve corresponder ao valor declarado na apólice, mas não pode exceder o valor real dos bens na data do furto” e, por isso “a medida da obrigação da ré é correspondente ao valor apurado dos bens à data da perda”.
E entendeu-se que esse valor era no montante de 16.420,00 €, tendo em conta a matéria de facto dada como provada, nomeadamente o valor do denominado “faqueiro em prata do século XIX, para 12 pessoas”, que se fixou em 2.000,00 € no ponto 11 daquela matéria.
No acórdão recorrido entendeu-se alterar este ponto no sentido do valor do faqueiro ser fixado em 20.000,00 €, considerando-se que a ré, na sua contestação, aceitou expressamente o alegado pelo autor no artigo 5º da sua petição inicial, ou seja, que a ré tinha aceitado sem reservas valor dos objetos em prata e em ouro declarados pelo autor no contrato de seguro.
A ré entende que aquele valor não podia ser alterado com base na sua confissão, uma vez que esta não existiu, limitando-se a aceitar o valor dos bens tal como foram indicados pelo tomador de seguro para efeitos da determinação do capital seguro e consequente determinação do prémio a pagar, mas não a aceitar que o valor real dos bens fosse aquele.
Como é sabido, o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, aplica definitivamente aos factos fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue aplicável – artigo 682º, n.º1, do Código de Processo Civil.
Consequentemente, não conhece de matéria de facto, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova - artigos 682º, n.º2 e 674º°, nº 3, do mesmo diploma.
A intervenção do Supremo, a este propósito, é residual e destinada a averiguar da observância das regras de direito probatório material – artigo 674º, nº1, já citado - que se reconduz à sua vocação para apenas conhecer de matéria de direito, visto que a sua missão, neste campo, consiste, não em sopesar o valor que for de atribuir, de acordo com a consciência e argúcia do julgador, aos diversos meios probatórios de livre apreciação, mas em assegurar que se respeite a lei, quando ela atribui a determinados meios probatórios um valor tabelado e insusceptível de ser contrariado por outros.
A questão que a recorrente coloca à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça cabe, dentro dos casos excecionais a que aludem os citados artigos 674º, n.º3 e 682°, n.º2, do Código de Processo Civil.
Na verdade, trata-se de saber se a ré não impugnou o valor do faqueiro indicado pelo réu aquando da inclusão dos objetos em prata e em ouro no contrato de seguro.
No acórdão recorrido e como já ficou referido, entendeu-se que a ré não impugnou esse valor.
Ora, salvo o devido respeito, parece não ter sido assim.
Desde logo, porque é o próprio autor a afirmar que a ré não aceitou esse valor – cfr. artigos 11º, 13º e 16º da petição inicial.
Depois, na sua contestação, a ré impugnou o valor indicado pelo autor – cfr. artigos 5º, 21º, 22º e 23º.
Finalmente, face à natureza da aceitação por parte de um segurador da declaração inicial de risco de um tomador de um seguro – que adiante explicitaremos – dessa aceitação não resulta desde logo que se podia considerar como confessado ou não impugnado o valor declarado por aquele tomador.
Por isso, não se podia no acórdão recorrido considerar como não impugnado pela ré seguradora o valor de 20.000,00 € atribuído ao faqueiro em prata pelo autor na sua declaração inicial, antes se devia considerar impugnado.
E, em consequência, resultando da matéria de facto dada como provada na 1ª instância que aquele faqueiro tinha o valo de 2.000,00 €, é esse o valor a ter em conta para a decisão da causa.
Nesta medida, decidiria repristinar o decidido na sentença proferida na 1ª instância quanto ao ponto 11 da matéria de facto dada como provada, no sentido de se dar como provado que o referido faqueiro tinha o valor de 2.000,00 €.
E em consequência, também continuar a constar da matéria de facto dada como não provada que esse faqueiro tivesse o valor de 20.000,00 €.
2. Quanto à aceitação da declaração do autor aquando da sua pretensão de incluir os objetos em ouro e prata no contrato de seguro, nomeadamente, quanto a valor referido nessa declaração do faqueiro em prata, é preciso não confundir entre a declaração inicial de risco, que é imposta a um tomador do seguro - que apenas tem que ser recebida pela seguradora nos termos do nº1 do artigo 24º do Regime Jurídico do Contato de Seguro (RJCS), aprovado pelo Decreto-lei 72/2008, de 16.04, sem que tal receção implique qualquer declaração de vontade, conforme adiante melhor de explicitará – com qualquer acordo, que eventualmente possa existir entre um tomador de um seguro e a seguradora, sobre o valor da indemnização no caso da ocorrência do risco.
Na verdade e nos termos do disposto mo nº1 do artigo 24º do Regime Jurídico do Contato de Seguro, aprovado pelo Decreto-lei 72/2008, de 16.04, “o tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exatidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deve ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador.”
E nos termos do disposto no nº1 do artigo 49º do mesmo diploma, “o capital seguro representa o valor máximo da prestação a pagar pelo segurador por sinistro ou anuidade de seguro, consoante o que esteja estabelecido no contrato”.
Sendo que “salvo quando seja determinado por lei, cabe ao tomador do seguro indicar ao segurador, quer no início, quer durante a vigência do contrato, o valor da coisa, direito ou património a que respeita o contrato, para efeito de determinação do capital seguro” - nº2 do referido artigo 49º.
Temos, pois, que, no caso concreto em apreço, situado no âmbito dos seguros facultativos e assim regidos pela autonomia privada, a regra é de que cumpre ao tomador do seguro indicar o valor da coisa para o efeito de determinação do capital seguro.
Sem embargo, pode o valor ou o capital seguro ser fixado por acordo, não devendo, o entanto, esse valor ser manifestamente infundado - cfr. o nº do artigo 131º do mesmo diploma - sem prejuízo de “a prestação devida pelo segurador estar limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro” – cfr. artigo 128º do mesmo diploma.
A declaração de risco, necessariamente a fazer pelo proponente a tomador de um seguro, não consubstancia uma declaração negocial, antes um ato de comunicação, ou seja, representa um” ato de exteriorização de um conteúdo declarativo do declarante”, sendo uma declaração recipienda, na medida em que se dirige a um destinatário, ou seja, o segurador – neste sentido, Luís Poças “in” O Dever de Declaração Inicial do Risco no Contrato de Seguro, 2013, páginas 374 e 376.
Como resulta do transcrito nº1 do artigo 24º do RJCS, a declaração de risco tem apenas como objetivo determinar qual o risco que o tomador pretende segurar e no seguro de danos – como o presente – qual o limite máximo da indemnização – cfr. artigo 128º do mesmo Regime – e, consequentemente, a base de cálculo para a determinação do prémio a pagar pelo tomador do seguro.
Eventualmente e como já foi dito, poderão as partes – tomador do seguro e segurador - através de declarações de vontade negociais, ao abrigo do princípio da liberdade contratual estabelecido no artigo 405º do Código Civil, “acordar no valor do interesse seguro atendível para o cálculo da indemnização não devendo esse valor ser manifestamente infundado” – nº1 do artigo 131º do mesmo Regime.
Mas mesmo assim e nos termos da primeira parte deste nº1, tal valor acordado está limitado pelo “ dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro” – artigo 128º do mesmo Regime – e no caso do “seguro de coisas”, como o que está aqui em causa - pelo “valor do interesse seguro ao tempo do sinistro” – nº1 do artigo 130º também deste Regime.
Estas limitações são decorrentes do chamado “princípio indemnizatório”, que é regra matricial de um seguro de danos e de que resulta o impedimento de um segurado enriquecer, sem causa, à custa do segurador.
No caso concreto em apreço e tendo em conta o que se acabou de dizer, do comportamento da ré seguradora, ao aceitar “sem reservas o valor e responsabilidade indemnizatória pelos (…) objetos em ouro e prata” não se pode concluir que aceitava o valor dos objetos segurados, antes que aceitava o risco e os limites acima referidos sem que e na ausência do acordo acima mencionado, renunciasse à possibilidade legal de questionar, na altura da eventual ocorrência do sinistro, o “valor declarado” na declaração de risco inicial feita pelo autor tomador do seguro.
Na verdade, por altura de ocorrência de um sinistro, pode um segurador tomar duas atitudes: ou conforma-se com o valor da coisa declarado pelo tomador do seguro na altura em que apresentou a inicial declaração de risco, ou contesta esse valor, alegando que à data daquela ocorrência, o valor real da coisa era inferior ao declarado inicialmente pelo tomador.
Neste caso, compete ao segurador que provar esse valor, ou seja, terá que provar que o valor da coisa na altura do sinistro era diferente do declarado pelo tomador.
Há aqui como uma presunção de que o valor da coisa é o valor declarado pelo tomador, presunção esta que terá que ser elidida pelo segurador, mediante prova em contrário.
Foi o que ocorreu no caso concreto em apreço.
O autor, tomador do seguro, declarou inicialmente o valor do bens segurados em causa no presente processo.
Na altura em que ocorreu o furto, a ré seguradora conformou-se com esse valor, menos com o atribuído ao faqueiro em prata, que o autor declarou ter o valor de 20.000,00 €.
Provou-se que naquela altura o faqueiro tinha o valor de 2.000,00 €.
Logo, a ré conseguiu elidir a aludida presunção, pelo que a indemnização que o autor terá direito em relação ao faqueiro terá de ser fixada em 2.000,00 €.
Por outro lado, não existem quaisquer factos que nos permitam concluir que, para além dessa declaração de risco inicial, tenha havido um acordo entre as partes no sentido de fixar o montante da indemnização.
Sendo assim, do facto de a ré seguradora ter aceitado os valores indicados pelo autor, tomador do seguro, aquando da inclusão dos objetos no contrato não se pode concluir que tinha aceitado automaticamente esses valores.
O que se pode concluir é que aceitou a declaração do autor segurado.
Nestes termos, a indemnização a pagar pela ré ao autor deveria ser no montante de 16.420,00 €, conforme o decidido na 1ª instância e, em consequência, teria que ser revogado o acórdão recorrido.
3. No acórdão recorrido entendeu-se que o autor não tinha que continuar a pagar o prémio de seguro no mesmo montante acordado antes da ocorrência do furto, uma vez que depois deste o seguro deixou de abranger o risco relativo a esses objetos, pelo que o montante desse prémio deveria ter sido reduzido pela ré seguradora a partir da data da ocorrência do furto.
A ré entende que competia ao autor, tomador do seguro, solicitar a redução do capital seguro, uma vez que a determinação do prémio está diretamente relacionada com o capital em risco e aos valores que o tomador pretende garantir.
Mais uma vez com todo o respeito pelo entendimento do acórdão recorrido, cremos que a recorrente tem razão.
Na verdade, o que o autor aqui pretende é reduzir o capital seguro após a ocorrência do furto dos objetos e assim, evitar uma situação de sobresseguro.
Mas para isso, teria que oportunamente solicitar à seguradora essa redução, sendo certo que esta, por sua própria iniciativa, não tinha que a fazer – cfr. o artigo 132º do RJCS
De facto, sem esse pedido, a seguradora não podia deixar de concluir que o segurado não pretendia alterar o capital seguro, quer porque os restantes bens podiam ser mais valorizados, quer porque os furtados podiam ser substituídos por outros.
Competia, assim, ao autor segurado, pedir a redução do prémio.
Não o tendo feito, não podia a ré seguradora ser condenada a devolver ao autor qualquer sobre prémio.
4. Por tudo o que se acabou de escrever, entendo que se devia conceder a revista, revogando-se o acórdão recorrido e repristinando-se a sentença proferida na 1ª instância.

Lisboa, 8 de Junho de 2017