Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
034141
Nº Convencional: JSTJ00004257
Relator: VERA JARDIM
Descritores: CARCERE PRIVADO
ACÇÃO PENAL
FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ197412110341413
Data do Acordão: 12/11/1974
Votação: MAIORIA COM 6 VOT VENC
Referência de Publicação: BMJ Nº 242 ANO 1975, PÁG. 154 - DR IS DE 1975/01/17, PÁG. 62 - RT ANO 93 PÁG. 115
Tribunal Recurso:
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O PLENO.
Decisão: TIRADO ASSENTO.
Indicações Eventuais: ASSENTO DO STJ.
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/PESSOAS.
Legislação Nacional: CP886 ARTIGO 291 ARTIGO 330 PAR1 PAR2 ARTIGO 331 N2 ARTIGO 359 PAR1.
CONST76 ARTIGO 8 N8.
DL 35007 DE 1945/10/13 ARTIGO 3.
CPP29 ARTIGO 646 N6.
Legislação Estrangeira: CP DA BELGICA ART434 ART435.
CP DA ALEMANHA ART229.
CP DA FRANÇA ART341 ART342.
CP DO BRASIL ART148.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO RL DE 1964/02/26 IN BMJ N134 PAG370.
Sumário :
E aplicavel ao crime previsto no artigo 330, paragrafo 1, do Codigo Penal, o regime estabelecido no artigo 359 do mesmo Codigo sobre legitimidade para o procedimento criminal.
Decisão Texto Integral:
O representante do Ministerio Publico junto do Tribunal da Relação de Lisboa interpos recurso, nos termos do disposto no artigo 669 do Codigo de Processo Penal, do acordão da mesma Relação, de 24 de Outubro de 1973, invocando oposição entre ele e o acordão de 20 de Julho de 1962.
Na sua alegação diz que enquanto o acordão recorrido decidiu que o crime do paragrafo 1 do artigo 33 do Codigo Penal (retenção, como preso, de qualquer pessoa por menos de 24 horas, sem quaisquer consequencias medico-legais) e um crime particular, no sentido de que o respectivo procedimento depende de acusação do ofendido, o acordão de 20 de Julho de 1962 decidiu que esse mesmo crime e publico, livremente persecutivel pelo Ministerio Publico.
Acrescenta que ambas as decisões foram proferidas no dominio da mesma legislação, dado que, desde 20 de Julho de 1962 ate ao presente, quer o artigo 330, quer o artigo 359 do Codigo Penal, permaneceram inalteraveis, e que o acordão recorrido, dada a pena aplicavel ao crime do artigo 359, paragrafo 1, não era susceptivel de recurso ordinario para o Supremo Tribunal de Justiça, ex vi do artigo 646, n. 6, do Codigo de Processo Penal.
Verificados pela secção os pressupostos da admissibilidade do recurso para o Tribunal Pleno, foi mandado seguir o recurso tendo o Ministerio Publico produzido a sua alegação, na qual termina por concluir que deve ser proferido assento em que se decida que e aplicavel ao crime previsto no artigo 330, paragrafo 1, do Codigo penal o regime estabelecido no artigo 359 do mesmo diploma sobre legitimidade para o procedimento criminal.
Como a decisão proferida sobre a existencia da oposição não e definitiva, e essa a primeira questão a conhecer.
Do enunciado ja feito, não podem, no entanto, restar duvidas sobre a oposição, que e patente, razão por que o Tribunal Pleno deve conhecer de fundo e proferir assento.
Pelo enunciado feito, ve-se claramente qual e a questão posta e a decidir.
Vejamos então, como a encararam e a resolveram os dois acordãos em oposição.
No acordão de 1962 racionou-se assim: "Este preceito (artigo 330) esta integrado na secção respeitante ao crime de carcere privado que e caracterizado como retenção de alguem como preso em alguma casa ou outro lugar onde seja retirado e guardado de tal maneira que não seja com toda a liberdade. Assim, desde que haja a indevida retenção por certo tempo de alguem como preso nas circunstancias referidas no corpo do artigo 330 e seus paragrafos, do Codigo Penal, verifica-se este crime, que se reveste de gravidade porque a pessoa retida sofre do seu direito originario garantido pelo artigo 8, n. 8, da Constituição Politica, de não ser privado de liberdade pessoal nem ser preso sem culpa formada, a não ser nos casos especiais que essa lei e outras previnem. A circunstancia de a retenção por periodo inferior a vinte e quatro horas ser considerada como ofensa corporal, não retira ao acto o caracter especifico integrador do crime de caracter privado, pois o tempo de retenção e unicamente factor que influi na pena a aplicar. Este crime existe desde que seja afectada a liberdade, o pleno e livre gozo dos direitos do individuo, quer se trate de retenção simples, quer de encerramento em casa ou noutro lugar; e ainda que a ofensa corporal referida no paragrafo
1 do artigo 330 do Codigo Penal seja das previstas no artigo 359 do mesmo Codigo, ela não deixa de revestir a natureza de crime publico e pode conhecer-se dele independentemente de o ofendido se constituir ou não assitente".
Por seu lado, o acordão de 24 de Outubro de 1973, na esteira, alias, do acordão da Relação de Lisboa, de 26 de Fevereiro de 1964 (Boletim, n. 134, pag 370), considera como simples retenção para efeitos do paragrafo 1 do artigo 330, a detenção por menos de 24 horas. E que o qualificativo "simples" do dito paragrafo, diz, não se refere a ser ou não a retenção com encarceramento do ofendido em casa fechada ou em outro lugar, mas sim a ser essa retenção acompanhada ou não das ameaças ou ofensas corporais a que se refere o n. 2 do artigo 331 do mesmo Codigo. E assim, so existira crime de carcere privado, se a retenção dura 24 horas, ou, a durar menos, se tiver sido acompanhado das referidas ameaças ou ofensas corporais.
E acrescenta: "Deste modo, cremos ter conciliado e mostrado a necessidade do corpo do artigo e do seu paragrafo 1, pois pode haver crime de carcere privado por menos de 24 horas, desde que se verifiquem cumulativamente os requisitos dos artigos 330 e 331, n. 2, do Codigo Penal.
Se se verificarem apenas os do artigo 330 e essa situação durar menos de 24 horas, então não estamos peante um crime de carcere privado, mas tão-somente de ofensas corporais. De facto, atentos os termos do paragrafo 1 do artigo 330, conjugados com as nossas Ordenações (Livro V, volume I, pagina 95) base deste artigo e seu paragrafo I, temos que houve um proposito de considerar a retenção por de 24 horas apenas como ofensa corporal, punida conforme as regras da lei em tais casos, aqui as do artigo 359 do Codigo Penal.
E, na verdade, os termos desse paragrafo I levam-nos assim a esta conclusão pois são no sentido não de apenas remeter para a punição do crime de ofensas corporais, mas de considerar essa retenção como crime desta natureza, ou seja, de ofensas corporais.
Mas mesmo aceitando que na hipotese do paragrafo I se mantem a natureza do crime de carcere privado a solução seria a mesma, dados os termos dessa remissão, uma vez que ai se diz "e punida conforme as regras da lei em tais casos", e essas regras seriam as do artigo 359 do Codigo Penal que exige, para a punição de tal crime, a acusação do ofendido, a menos que seja menor de 16 anos ou incapaz, bastando então participação sua ou do seu representante legal. E que, como nos parece cristalino, o paragrafo I não se limita a mandar aplicar a pena do crime de ofensas corporais, mas a punir a hipotese nela ventilada, conforme as regras da lei em tais casos, isto e, como se se tratasse de um crime de ofensas corporais do artigo 359 do Codigo Penal, e nas condições ai estipuladas".
Conhecidos, pelo que vem de ser transcrito, os fundamentos dos dois acordãos em oposição, vamos agora ver como deve ser decidida a questão.
A classsificação dos crimes em publicos, semipublicos e particulares deriva da natureza dos bens, ou direitos, ofendidos. Efectivamente, a lei exige, relativamente a algumas infracções, a denuncia ou a participação do ofendido e quanto a outras a acusação deste, deixando assim ao mesmo ofendido a decisão sobre se o facto que integra a infraccão deve ser ou não perseguido.
A lei toma esta posição por razões de varia ordem que, por conhecidas, não vale a pena referir.
Como, porem, a lei (artigo 3 do Decreto-Lei n. 35007) não faz uma enumeração das infracções conforme aquela classificação, antes fazendo depender o exercicio da acção penal conforme a exigencia em cada caso concreto (denuncia ou acusação particular, expressões que englobam terminologia varia usada na lei penal), torna-se necessario saber se o Ministerio Publico pode livremente promover a acção penal ou se a acção esta limitada pela existencia de algum pressuposto, sem a verificação do qual tal acção não pode ser exercida.
No caso nos ocupa (artigo 330, paragrafo I, do Codigo Penal) a lei não refere expressamente a existencia do pressuposto da acusação particular, limita-se a dizer que a simples retenção por menos tempo (24 horas) e considerada como ofensa corporal, e punida conforme as regras da lei em tais casos.
Esta disposição esta incluida na secção segunda do Capitulo I do Titulo IV, que trata de carcere privado, mas, em principio, parece fazer-se uma distinção entre este (carcere privado) e simples retenção.
Na verdade, enquanto o corpo do artigo define carcere privado como a retenção, por individuo particular, ate 24 horas, de alguem, retendo-o como preso em alguma casa ou em outro lugar onde seja reteudo, e guardado em tal maneira, que não seja com toda a sua liberdade, posto que não tenha nenhuma prisão, o paragrafo I diz que a simples retenção por menos tempo e considerada como ofensa corporal, e punida conforme as regras da lei em tais casos.
Tanto no corpo do artigo como no paragrafo citado, pune-se o atentado contra a liberdade das pessoas, fazendo-se, no entanto, uma distinção, mencionadamente quanto ao tempo da retenção: se esta se da pelo espaço de 24 horas, a gravidade da infracção e maior do que se a mesma se verificar por um espaço de tempo inferior. Neste ultimo caso, e faltando os outros elementos a que se refere o corpo do artigo define-a o paragrafo I como simples retenção, considerando-a como ofensa corporal a punir confome as regras da lei em tais casos.
Parece, assim, estarmos em face de dois tipos diferentes de infracções, embora ambas prevejam e punam o atentado contra a liberdade das pessoas.
Disposição semelhante a do referido do paragrafo I não se encontra em outras legislações, que não exigem lapso de tempo para a verificação do crime de carcere privado, ou sequestro, embora, em geral, se faça derivar a gravidade do crime do periodo do sequestro (Codigo Penal belga, artigos 434 e 435, Codigo Penal alemão, artigo 229, Codigo Penal frances, artigos 341 e 342, Codigo Penal brasileiro, artigo 148), como de resto sucede com o Codigo Penal Portugues - artigo 330, paragrafo 2.
Mas sera que a simples retenção, conforme e definido no paragrafo I, deixa de integrar o crime de carcere privado, ou tratar-se-a apenas de um crime daquela natureza, mas menos grave?
O facto de a lei fazer a distinção indicada, parece, na verdade, conduzir a conclusão de que se trata, efectivamente, de dois tipos diferentes, e isto, a nosso ver, deriva da consideração de que o paragrafo
I, ao considerar a simples retenção como ofensa corporal, quis fazer uma distinção (que, como vimos, não se encontra em leis estrangeiras) entre a retenção, nos moldes escritos no corpo do artigo e a simples retenção, criando para esta um tipo de infracção diferente. Se assim não fosse, bastaria prescrever para a retenção por menos de 24 horas uma pena inferior a que vem indicada no corpo do artigo.

E isto e tanto mais certo que, como se viu, para o que considerou carcere privado estabeleceu penalidades diferentes, conforme a duração dele.
Quer isto dizer que a lei, ao prever a simples retenção por menos de 24 horas como constituindo uma infracção contra a liberdade das pessoas, não a considera como carcere privado, que, para existir, deve integrar todos os elementos do artigo 330.
Desta forma, e sabendo-se que se trata de ofensa corporal simples (artigo 359 do Codigo Penal) põe-se agora a questão de saber se se trata de crime particular, ou seja, se o exercicio da acção penal depende da acusação do ofendido.
A resposta, como alias se deduz do que foi dito anteriormente, tem de ser no sentido afirmativo.
Efectivamente, se a lei considera a simples a retenção como ofensa corporal, e esta tem a natureza de ofensa corporal simples (artigo 359), e a disposição legal que descreve esta que deve fazer-se apelo para a solução.
Ora aquela disposição exige, como pressuposto do exercicio da acção penal, a acusação do ofendido ou, se este for menor de 16 anos ou incapaz, a participação, ou denuncia, do mesmo ofendido ou do seu representante legal. Consequentemente, e de concluir não ter o Ministerio Publico legitimidade para o exercicio da acção penal quando não esteja verificado o pressuposto indicado no artigo 359 do Codigo Penal.
Nestes termos, acordamm em conferencia, no Supremo Tribunal de Justiça, em decidir o conflito de jurisprudencia existente pela forma seguinte:
E aplicavel ao crime previsto no artigo 330, paragrafo
I, do Codigo Penal, o regime estabelecido no artigo
359 do mesmo Codigo sobre legitimidade para o procedimento criminal.

Lisboa, 11 de Dezembro de 1974

Adriano Vera Jardim (Relator) - Eduardo Correia Guedes
- Jose Antonio Fernandes - João Moura - Rodrigues Bastos
- Daniel Ferreira - Manuel Arelo Ferreira Manso - Jose Garcia da Fonseca - Jose Montenegro - Arala Chaves (Vencido. Tenho por melhor entendimento que o paragrafo I do artigo 330 do Codigo Penal remete para a pena e não para as condições de procedibilidade do crime de ofensas corporais. Fundamento-me em que, permitindo a lei o entendimento que preconizo, e esse o mais ajustado com a gravidade da infracção, que constitui violação da garantia do artigo 8, n. 8, da Constituição Politica, e o que resulta imposto pelo elemento sistematico de interpretação, pois que constitui crime publico a detenção ou custodia praticada por empregado publico, sem que tenha poderes para prender ou fora dos casos em que tenha esse poder, nos termos do artigo 291 do Codigo Penal. Assim, não faz sentido que seja de diversa natureza, tratado como crime menos grave a detenção praticada por particular, e o caso concreto bem o revela. A doutrina e alguma jurisprudencia, alias dominante, repelem a tese aceite no acordão de que a infracção prevista no paragrafo
I do artigo 330 não constitui carcere privado).
Bruto da Costa (Vencido pelos mesmos fundamentos).
Abel de Campos (Vencido pelas razões invocadas atras, salientando ainda que as doutrinas das Ordenações,
Livro V, Titulo XCV, não parece ter sido modificada pelo actual Codigo Penal, que, na sua primeira redacção, considerava sempre crime publico o crime de ofensas corporais).
Albuquerque Bettencourt (Vencido pelas mesmas razões doutamente enunciadas nos precedentes votos).
Jose Joaquim de Almeida Borges (Vencido pelas mesmas razões justificativas do voto do excelentissimo Conselheiro Arala Chaves).
Oliveira Carvalho (Vencido pelas razões constantes do voto do excelentissimo Conselheiro Arala Chaves).