Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06P0807
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: HENRIQUES GASPAR
Descritores: ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
IMAGEM GLOBAL DO FACTO
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
MEDIDA DA PENA
PENA ÚNICA
Nº do Documento: SJ20060419008073
Data do Acordão: 04/19/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO
Decisão: REJEITADO O RECURSO
Sumário :
I - A manifesta improcedência constitui um fundamento de rejeição do recurso de natureza substancial, visando os casos em que os termos do recurso não permitem a cognição do tribunal ad quem, ou quando, versando sobre questão de direito, a pretensão não estiver minimamente fundamentada, ou for claro, simples, evidente e de primeira aparência que
não pode obter provimento. Será o caso típico de respeitar unicamente à medida da pena e não existir razão válida para alterar a que foi fixada pela decisão recorrida.
II - O crime continuado pressupõe, no plano externo, uma série de acções que integrem o mesmo tipo legal de crime ou tipos legais próximos que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, às quais presidiu e que foram determinadas por uma pluralidade de resoluções. O fundamento da diminuição da culpa que justifica a unidade está no momento exógeno das condutas e na disposição exterior das coisas para os factos.
III - Não se verificam os pressupostos do crime continuado se dos factos apurados resulta que em cada actuação integrada por um conjunto encadeado de factos, a recorrente não se limitou a aproveitar uma situação exterior que se lhe apresentasse e perante a qual revelasse imediatamente um «fracasso psíquico», mas, bem diversamente, renovou exponencialmente a intenção, e construiu, pensada e complexamente, por meio de vários actos, as plúrimas componentes de diversas situações, todas ex novo e diferentes (nas pessoas, nos procedimentos concretos, nos estabelecimentos bancários visados), de modo a revelar, não uma diminuição de culpa, mas o recentramento e um adensar da posição
subjectiva.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

1. No processo nº 195/02.9TAPVZ – 1º Juízo do tribunal da Póvoa de Varzim foram julgados AA e BB, identificados no processo, tendo a arguida sido condenada pela prática de um crime de burla informática, p. e p. pelo artigo 221º, nº 1 e 5, alínea a), com referência ao artigo 202º, alínea a), do Código Penal, na pena de três anos de prisão; por um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217º e 218º, nº 2, alínea a), com referência ao artigo 202º, nº 1, alínea b), do Código Penal, na pena de quatro anos de prisão e por um crime de burla informática, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 221º, nº 1, 22º, nº 1, alínea c) e 23º, todos do Código Penal, na pena de oito meses de prisão; em cúmulo jurídico foi condenada na pena única de cinco anos de prisão.
O arguido BB foi absolvido da prática dos crimes por que vinha acusado.
2. Não se conformando, a arguida AA recorre para o Supremo Tribunal, com os fundamentos constantes da motivação que apresentou, referidos no essencial à qualificação dos factos, apenas subsumíveis, em seu entender, a um único crime de «natureza continuada» nos termos do artigo 30º, nº 2 do Código Penal (conclusões 1ª a 6ª), e à medida das penas, parcelares e única, que considera excessivas, atendendo á confissão relevante para a descoberta da verdade, e à não valoração dos motivos, bem como à sua situação pessoal (conclusões 7ª e 8ª).
O magistrado do Ministério Público defende na resposta à motivação que o recurso não merece provimento.
3. Neste Supremo Tribunal, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta teve intervenção nos termos do artigo 416º do Código de Processo Penal.
Colhidos os vistos, o processo foi à conferência, cumprindo decidir.
4. 5. Dispõe o artigo 420°, n° l, do Código de Processo Penal, que o recurso é rejeitado sempre que for manifesta a improcedência.
A manifesta improcedência constitui um fundamento de rejeição do recurso de natureza substancial, visando os casos em que os termos do recurso não permitem a cognição do tribunal ad quem, ou quando, versando sobre questão de direito, a pretensão não estiver minimamente fundamentada, ou for claro, simples, evidente e de primeira aparência que não pode obter provimento. Será o caso típico de respeitar unicamente à medida da pena e não existir razão válida para alterar a que foi fixada pela decisão recorrida.
Vistos os termos de integração da noção de improcedência manifesta, os fundamentos invocados revelam-se imediatamente insubsistentes.
A começar pela subsunção na categoria de criem continuado.
Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada de forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente – artigo 30º, nº 2 do Código Penal.
No crime continuado – cujo conceito está, assim, normativamente densificado – o elemento verdadeiramente caracterizador, que justifica a unidade como “unidade jurídica de acção”, apesar da pluralidade de factos materiais ou naturalísticos (a “realização plúrima”), é a existência de uma mesma situação exterior que diminui consideravelmente a culpa do agente e que condiciona do agente no quadro da solicitação externa.
O crime continuado pressupõe, pois, no plano externo, uma série de acções que integrem o mesmo tipo legal de crime ou tipos legais próximos que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, às quais presidiu e que foram determinadas por uma pluralidade de resoluções. O fundamento de diminuição da culpa que justifica a unidade está no momento exógeno das condutas e na disposição exterior das coisas para o facto.
«Pressuposto da continuação criminosa será, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de fora, de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito» (cfr., Eduardo Correia, “Direito Criminal”, vol II, pág. 209).
Porém, no caso, os factos provados afastam imediatamente a verificação dos pressupostos da unidade jurídica que constitui o crime continuado.
Na verdade, em cada actuação integrada por um conjunto encadeado de factos, a recorrente não se limitou a aproveitar uma situação exterior que se lhe apresentasse e perante a qual revelasse imediatamente um «fracasso psíquico», mas, bem diversamente, renovou exponencialmente a intenção, e construiu, pensada e complexamente por meio de vários actos, as plúrimas componentes de diversas situações (factos 3 a 43; 44 a 59; 60 a 77), todas ex novo e diferentes, de modo a revelar, não uma diminuição de culpa, mas o recentramento e um adensar da posição subjectiva.
As situações exteriores não se lhe ofereceram; foram, ao contrário, construídas uma a uma, e cada uma, na singularidade própria, diferente da anterior, nas pessoas, nos procedimentos concretos, nos estabelecimentos bancários visados.
Falha, pois, manifestamente o elemento base do crime continuado.
5. No que respeita à medida das penas, e em diverso da invocação da recorrente, a decisão recorrida aceitou, expressa e relevantemente, a confissão, conferindo-lhe valor favorável por ter assumido relevância para a descoberta da verdade, e considerou os motivos da acção que, na circunstância, não valorou, como não poderia ter valorado, favoravelmente.
Também na fixação da pena foi ponderada a expressividade da conjugação dos factos e da sua natureza, com o específico valor que a decisão recorrida assumiu em termos de benefício da recorrente.
O recurso é, assim, manifestamente improcedente.
6. Nestes termos, por manifestamente improcedente, rejeita-se o recurso (artigo 420º, nº 1 do Código de Processo Penal).

Lisboa, 19 de Abril de 2006

Henriques Gaspar
Silva Flor
Soreto de Barros