Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
053958
Nº Convencional: JSTJ00008702
Relator: ROBERTO MARTINS
Descritores: SIMULAÇÃO
LEGITIMIDADE
UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ195005100539581
Data do Acordão: 05/10/1950
Votação: MAIORIA COM 2 VOT VENC
Referência de Publicação: DG IªS 23-05-1950; BMJ 19, 310;
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O PLENO.
Decisão: UNIFORMIZADA JURISPRUDÊNCIA
Indicações Eventuais: ASSENTO 3/1950
Área Temática: DIR CIV - TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: CCIV867 ARTIGO 671 N4 ARTIGO 692 PARUNICO ARTIGO 695 ARTIGO 696 ARTIGO 1030 ARTIGO 1031 PARUNICO ARTIGO 1542 N1 ARTIGO 1565.
CPC39 ARTIGO 564 ARTIGO 665 ARTIGO 778.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1915/02/09 IN COL OF ANO14 PAG92.
Sumário :
Os proprios simuladores podem invocar em juizo, um contra o outro, a simulação, embora fraudulenta.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal em secções reunidas:

Na comarca do Porto, intentaram A e esposa, esta acção com processo ordinario contra a "Sociedade B, Lda" e C e esposa, todos identificados nestes autos, pedindo que, julgada procedente e provada a acção, se julgasse nulo e de nenhum efeito o contrato de compra e venda e respectiva escritura de 18 de Dezembro de 1939 celebrada entre os autores como vendedores e a primeira re como compradora do predio referido no artigo 1 da petição inicial; que se julgasse nulo e de nenhum efeito o contrato e escritura de 6 de Novembro de 1940, consequencia daquela escritura; e que se ordenasse o cancelamento, na respectiva conservatoria do registo da simulada compra constante da escritura de 18 de Dezembro de 1939, assim como o registo feito com base na escritura de 6 de Novembro de 1940 e todos e quaisquer registos que porventura tivessem sido feitos posteriormente.


O fundamento da acção e que, no contrato titulado pela escritura de 18 de Dezembro de 1939, houve divergencia intencional entre a vontade real e a declarada, por acordo entre as partes - simulação inocente - e que tal contrato tem de ser havido como simulado e deve ser anulado e rescindido (Codigo Civil, artigo 1031 e seu paragrafo unico); e que os segundos reus são terceiros de ma-fe pois quando celebraram a escritura de 6 de Novembro de 1940 conheciam perfeitamente todos os factos referidos na petição inicial, não ignorando que a primeira re era mera adquirente ficticia do predio referido na escritura de 1939; que, assim, a escritura de
6 de Novembro de 1940 e nula e deve ser rescindida.


Contestando a acção a re "Sociedade B, Lda" deduziu a excepção dilatoria da ilegitimidade dos autores porque os autores são os proprios simuladores e porque, como confessam, nunca foram verdadeiros donos do terreno vendido mas sim seu filho e enteado D.


Os reus C e mulher tambem excepcionaram alegando a ilegitimidade dos autores.
Seguindo o processo seus termos regulares com replica e treplica, foi proferido o despacho saneador de folhas 86 que rejeitou as excepções deduzidas. Dele agravaram os reus.


A Relação do Porto, pelo seu acordão de folhas 206, confirmou inteiramente o despacho recorrido.


Em recurso de agravo, interposto para este Supremo Tribunal, foi o acordão da Relação inteiramente confirmado com o fundamento, alem do mais que, por agora, não interessa relatar, de que se tratava de uma simulação inocente e era jurisprudencia corrente que o simulador ainda que fraudulento pode intentar a acção de simulação; e com maioria de razão o pode desde que esteja demonstrado, como estava, que e simulador inocente porque então não se podem invocar o disposto no artigo 692 e outros do Codigo Civil.


Deste acordão proferido a folhas 297 e seguintes recorreu para o Tribunal Pleno a sociedade re por haver entre ele e o acordão de 9 de Fevereiro de 1915, publicado na Colecção Oficial, ano 14, a paginas 92, oposição sobre o mesmo ponto de direito, tendo sido ambos proferidos no dominio da mesma legislação.
Foi o recurso admitido e mandado seguir pelo acordão de folhas 327, porque o acordão recorrido resolveu que a simulação pode ser invocada pelo proprio simulador quer se trate de simulação inocente quer de simulador fraudulento, não tendo aplicação do artigo 692 do Codigo Civil e no acordão de 9 de Fevereiro resolveu-se que na simulação de um contrato não pode ser ouvido o contratante que nele interveio porque seria invocar a seu favor a propria torpeza, o que o direito não permite e expressamente o dispõe o artigo 692 do Codigo Civil, sendo assim manisfesta a contradição da doutrina entre esses dois acordãos.


A sociedade recorrente concluiu a sua alegação afirmando:


1 - Que a suposta simulação do contrato de compra e venda celebrado em 18 de Dezembro de 1939 e alegada por quem concorreu para a sua pratica e pelo direito positivo portugues não pode o simulador valer-se da propria simulação quando fraudulenta, em obediencia a velha regra de que nemo auditur turpitudinem propriam alegans, maxima esta consignada no artigo 692 do Codigo Civil que e de aplicação directa nos contratos simulados;
2 - Que ainda que, por absurdo, se não aceitasse tal conclusão, a verdade e que o artigo 692 representaria, pelo menos, a revelação de uma regra geral em que se inspira e baseia o sistema da nossa lei e da qual a 2 parte do artigo 695 e o n. 1 do artigo 1542 do Codigo Civil, bem como os artigos 564 e 778 e seguintes do Codigo de Processo Civil são outras tantas aplicações; que esta doutrina e sustentada pelos Professores Jose Tavares nos Principios Fundamentais do Direito Civil, volume 2, e Barbosa de Magalhães na Gazeta da Relação de Lisboa, ano 49, pagina 228 e Revista da Ordem dos Advogados, ano 3, pagina 60.


3 - Que esta e a doutrina consagrada nos acordãos deste Supremo Tribunal que invocou como opostos ao recorrido e a unica legal.


E, assim, diz, a simulação do contrato de 1939, se existisse, estaria abrangida na regra geral anunciada visto que, segundo resulta dos factos alegados, pelos autores e indubitavelmente fraudulenta tanto pela sua intima dependencia da simulação fraudulenta de 1938 cujo expediente aquela teria vindo assegurar e completar, como a propria simulação do contrato de 1939 (segundo a versão dos autores alias inocente, porque tal contrato não e simulado) visou a iludir o direito que a irmã do Floriano era reconhecido pelo artigo 1565 do Codigo Civil, cujo exercicio por esse meio se havia intentado e conseguido prejudicar.


Nestes termos, dizem, não podiam os autores demandar como fizeram, a re, sua suposta conivente, com fundamento em haverem todos praticado a mesma fraude, de onde resulta que os autores carecem de acção contra a re. E isto, significa que não tem interesse, juridicamente relevante, em demanda-la, o que provoca a sua ilegitimidade. E, assim, deve dar-se provimento ao recurso, revogando-se o acordão recorrido, julgando-se parte ilegitima os autores e tirando-se Assento com a doutrina sustentada na alegação.


Os recorridos sustentam a doutrina do acordão recorrido e pedem que se tire Assento por forma a permitir que o simulador possa invocar a propria simulação.
O digno Representante do Ministerio Publico na sua douta alegação ou resposta a folhas 355, sustentando a doutrina do acordão recorrido, afirma que se deve tirar Assento no sentido de que mesmo na simulação fraudulenta e permitido as proprias partes arguir o vicio da simulação. Tendo o processo corrido os vistos legais cumpre decidir.
A questão sub judice, visto ser a parte em que o acordão recorrido e o acordão invocado pelos recorrentes estão em oposição, consiste em se decidir se sim ou não os proprios simuladores podem invocar a simulação quer ela seja inocente quer seja fraudulenta.


A questão tem sido muito debatida.


Enquanto por um lado professores ilustres, como Jose Tavares e Barbosa de Magalhães, sustentam a tese negativa outros não menos ilustres, como Guilherme Moreira, Paulo Cunha, Beleza dos Santos, Galvão Teles e Pinto Coelho, sustentam que os proprios simuladores podem arguir em juizo a nulidade do acto simulado.


Divergente tem sido tambem a jurisprudencia dos Tribunais.
No entanto, pode afirmar-se que nos ultimos tempos e maior a corrente dos que sustentam a segunda tese.


Julgamos ser de fixar-se a doutrina de que os proprios simuladores, mesmo na simulação fraudulenta podem ser admitidos a arguir o vicio da simulação.
Vejamos.
Dispõe-se no artigo 692 do Codigo Civil que se o contrato tiver por causa ou fim algum facto criminoso ou reprovado em que ambos os contraentes sejam coniventes, nenhum deles sera ouvido em juizo acerca de tal contrato.
Com base neste preceito, que e, de facto, a consagração legal da maxima nemo auditur turpitudinem propriam alegans, pretende-se concluir, cingindo-se a sua letra, que proibe que os simuladores possam invocar em juizo a simulação.


Não e assim.


Para a boa interpretação do artigo 692, não basta, como escreve Cunha Gonçalves, ler somente esta primeira parte; e preciso ler tambem a segunda e o seu paragrafo unico de cujos textos se depreende que o legislador somente não consente que um dos contratantes de uma convenção criminosa ou reprovavel venha a juizo exigir ao outro quer a remuneração que este prometeu, quer a restituição do que ao outro dera, invocando, para isso, a propria torpeza.


No caso de rescisão do acto reputado simulado, não se exige o cumprimento do contrato ficticio, nem se pede a restituição do que se deu como remuneração.


O que se pretende e, unicamente, destruir a convenção.
Que se considere imoral ou reprovavel o pretender-se, em juizo, tirar proveito do acto simulado, compreende-se.


Mas a verdade e que, quando um simulador quase sempre arrependido e sem espirito de tirar qualquer lucro, pretende ver anular o acto simulado, não vemos que haja nisso qualquer imoralidade ou acto que a lei proiba ou deva proibir.


Na simulação não ha, de facto, um contrato real, mas simples aparencia.
Ora, como justamente doutrinam Beleza dos Santos e Cunha Gonçalves - o artigo 692 pressupõe a existencia de um contrato real.
Se o artigo 692 fosse aplicavel a simulação mal se compreenderia a sua segunda parte, por isso mesmo que, na simulação, ha sempre a ma-fe de ambas as partes, visto como a simulação pressupõe o concluio dos pactuantes para a celebração de um acto ficticio.


O não admitir-se o proprio simulador a alegar a nulidade do acto simulado, podia levar a permitir-se que um dos simuladores se locupletasse a custa do outro, como judiciosamente foca o Professor Paulo Cunha no seu douto estudo publicado no Direito, ano 76-77, a paginas 293.


O mesmo sustenta o Professor Beleza dos Santos quando escreve na Simulação, a paginas 378, que quando se adoptasse doutrina diversa para não ser ouvido em juizo o simulador, que quis praticar uma fraude, permitir-se-ia que em certos casos se cometesse uma fraude maior. E, assim, numa alienação aparente se a Lei não permitisse que o simulador alienante fizesse declarar a nulidade dessa alienação, tolerava que o ficticio adquirente cometesse a dupla torpeza de se associar a simulação e de ficar com o que lhe não pertencia, protegendo uma situação indigna de protecção legal.

Este simples exemplo mostra bem ao que podia levar a doutrina dos que sustentam que o simulador não pode em juizo requerer a rescisão do acto simulado.
Baseiam-se ainda os recorrentes no disposto no n. 1 do artigo 1542 do Codigo Civil, mas a verdade e que esse artigo não diz nada que possa justificar a conclusão de que os simuladores não podem arguir em juizo a simulação.
Regula apenas o caso especialissimo das dividas em jogo.
Tambem não tem a relevancia que lhe emprestam os recorrentes o argumento tirado do disposto no artigo 778 do Codigo de Processo Civil.
E que o facto de se dispor no artigo 778 que quando as partes se tenham servido do processo para praticar um acto simulado e o tribunal não tenha feito uso do poder que lhe confere o artigo 665, por se não ter apercebido da fraude, pode a sentença ser impugnada mediante o recurso de oposição de terceiro, se tiver sido proferido em prejuizo do recorrente, não implica por si so, a conclusão de que as proprias partes ficam inibidas de arguir a simulação.
Nada na lei obsta, como foca o mui digno representante do Ministerio Publico, a folhas 358, que as proprias partes ataquem a simulação numa acção declaratoria de simulação seguida de acção de revisão de sentença, solução esta sustentada como rigorosamente juridica pelo Professor Paulo Cunha no seu livro Simulação Processual e Anulação de Caso Julgado, a paginas 297.
Tambem não colhe o argumento invocado e que se funda no disposto no artigo 564 do Codigo de Processo Civil.
E que, como tambem foca o Ministerio Publico, a folhas 358, o depoimento da parte constitui um meio de prova e são coisas bem diversas a intervenção no processo como agentes de prova ou como autor ou reu, não sendo licito o confronto entre as duas situações juridicas.
Compreende-se, com efeito, que as partes não sejam forçadas a confessarem em juizo actos criminosos ou indignos.
Mas daqui se não deve nem pode concluir que, por esse facto, fiquem tambem inibidas de virem a juizo arguir a simulação de um contrato, em que intervieram como simuladores, para o ver anulado.
Pelo exposto, negam provimento ao recurso e confirmam o acordão recorrido, nas custas condenando o recorrente.
E em obediencia a lei tiram o seguinte Assento:
Os proprios simuladores podem invocar em juizo, um contra o outro, a simulação embora fraudulenta.


Lisboa 10 de Maio de 1950

Roberto Martins (Relator) - Mario de Vasconcelos - Artur A. Ribeiro - Pedro de Albuquerque - Rocha Ferreira - Raul Duque - A. Cruz Alvura - Campelo de Andrade - A. Bartolo -
- Alvaro Ponces - Jose de Abreu Coutinho - Bordalo e Sa. (Vencido, porque:
1 - O artigo 692 do Codigo Civil so pode ter a interpretação que ressalta das suas palavras; a doutrina do acordão corresponde a revogação daquela clara e terminante disposição legal.
De harmonia com ela esta, alem de outros, o artigo 1031 do citado Codigo, que admitindo apenas os terceiros lesados a pedir a anulação, nem essa disposição nem qualquer outra, admitem os proprios simuladores a faze-lo;
2 - E imoral que alguem alegue em juizo a propria torpeza para dai tirar proveito;
3 - O Codigo de Processo Civil (artigo 778) so a terceiros prejudicados faculta o recurso de oposição, quando se alegue e prove que as partes se serviram do processo para praticarem um acto simulado, e nada dispõe o Codigo, que autorize os proprios simuladores a conseguirem a anulação de um acto simulado.
4 - A simulação fraudulenta e um acto criminoso e, por isso, nos termos do artigo 564 do Codigo de Processo Civil, não e admissivel o depoimento dos proprios simuladores.
E, assim, por maioria de razão, não pode aceitar-se que estes sejam admitidos como autores a invocar o crime que praticaram.
5 - Se os simuladores podem invocar a simulação fraudulenta por eles praticada por maioria de razão passara a ser letra morta o que se dispõe, alias tão expressa, como claramente, no artigo 696 do Codigo Civil.
6 - O Assento, agora tirado, passara, salvo o devido respeito, a constituir um convite a simulação, mesmo a fraudulenta, embora a lei penal a considere um crime!).
Lencastre da Veiga (Vencido, principalmente em vista do que dispõem os artigos 671, n. 4, e 692 do Codigo Civil, sucedendo que o texto dos artigos 1030 e 1031 do mesmo diploma somente abrange terceiros a requerer a acção por simulação. A regra nemo auditur tem, pois, a nosso ver, consagração expressa na lei portuguesa; a recusa da acção em juizo com fundamento na propria indignidade ou torpeza).
Tem voto de conformidade dos Excelentissimos Juizes Conselheiros Jaime de Almeida Ribeiro e Antonio de Magalhães Barros que não assinam por não estarem presentes. Roberto Martins.