Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08B3485
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: CUSTÓDIO MONTES
Descritores: ESCAVAÇÕES
PROPRIETÁRIO
Nº do Documento: SJ200811130034857
Data do Acordão: 11/13/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :

1. A expressão contida no art. 1348.º, 2 do CC de que “os proprietários vizinhos serão indemnizados pelo autor delas” (obras feitas), significa que o autor delas é o proprietário do imóvel que não o seu autor material.
2. Mas esse proprietário é da data em que as obras foram efectuadas e não o actual.
3. De facto, muito embora acompanhem a coisa (o prédio) determinados ónus e algumas obrigações propter rem (só as ambulatórias), tal não acontece relativamente aos actos de natureza pessoal que o anterior dono tenha praticado, como acontece no caso de as escavações terem ocorrido sob o domínio do anterior proprietário.
4. Assim, o actual proprietário não é responsável pelos danos em prédios vizinhos originados por escavações feitas pelo anterior proprietário, a menos que se alegue e prove o condicionalismo do art. 1350.º do CC.
Decisão Texto Integral:
Acordam Supremo Tribunal de Justiça

Relatório

Construções AA, Lda

Intentou contra

BB Imobiliária, S.A.

Acção declarativa de condenação sob a forma ordinária

Pedindo

A condenação desta a pagar-lhe a quantia de €35.289,32 e juros de mora desde a citação, até integral pagamento, por danos (aluimentos de um anexo e a ruína de um muro, ocorridos em 25.3.2001) decorrentes de escavações que fez, em Março de 2001, no seu prédio, que identifica, contíguo ao da A., que também identifica, nos termos do art. 1348.º do CC.

Contestou a R. arguindo a sua ilegitimidade, por não ser proprietária do prédio onde decorreram as escavações.

Na réplica, a A. requer a intervenção principal de S. CC Imobiliária, S.A., como R., que foi admitida.

Esta, na sua contestação argúi a sua ilegitimidade, por, apesar ser a proprietária do terreno, ter a obra sido realizada por DD, Lda, que lhe vendeu o prédio já devidamente terraplanado; pediu a intervenção acessória desta para acautelar o seu eventual direito de regresso.

A A. replicou.

A DD, Lda. contestou, impugnando os factos alegados pela A.

No despacho saneador foram julgadas improcedentes as excepções de ilegitimidade deduzidas pelas RR. BB e S. CC, conhecendo-se do pedido formulado contra a BB, que dele foi absolvida.

Efectuado o julgamento, foi a acção julgada improcedente(1)

A A. apelou sem sucesso e agora pede revista, terminando as suas alegações com as seguintes

Conclusões

I. A responsabilidade prevista no art. 1348.° do CC é do proprietário (do titular do direito de propriedade qua tale) do terreno onde são feitas as escavações causadoras de prejuízos em prédio vizinho, independentemente de ter sido ele a realizar, ou a mandar realizar, as obras correspondentes.

11. Para o legislador é irrelevante a imputação ao proprietário de qualquer conduta que dê causa aos danos. O que importa é a conexão objectiva entre as escavações e os danos e que ele, o proprietário, seja vizinho do prédio onde se verificam os danos.

12. No caso dos autos a ré (S.CC,Lda), ora recorrida, é a proprietária do terreno onde se realizaram as escavações que, segundo os factos considerados provados, causaram os danos e o estado de ruína iminente verificados no prédio da recorrente - e era já proprietária quando tais danos e estado de ruína se produziram efectivamente no prédio da ora recorrente.

IV. Donde, a ré, ora recorrida, é responsável por todos os danos causados à recorrente, constituindo a sua absolvição uma flagrante violação do disposto no art. 1348.° do ec.

V. Sem prescindir, e para o caso de não procederem as conclusões anteriores, a sentença proferida na instância é nula, na medida em que culmina numa decisão que está em manifesta oposição com os fundamentos da decisão parcial proferida no despacho saneador e com a decisão do incidente de intervenção acessória (art. 668.º, 1, c).

Termina pedindo se conceda a revista, revogando a decisão recorrida e substituindo-a por outra que julgue inteiramente procedente a acção.

Não foram oferecidas contra alegações.

Corridos os vistos, cumpre decidir

Matéria de facto provada:

1. Na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, encontra-se descrito sob o n° ............., um prédio urbano sito à Rua ................... em Vila Nova de Gaia, com a inscrição da aquisição a favor da autora pela ap. 03/120 167 - certidão de fls. 12 a 14.

2. Na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, encontra-se descritos sob os n.ºs .....,....., .....,....., ....., ..... e....., de 18.12.96, por desanexação do prédio descrito sob o nº ................, 8 prédios urbanos identificados por Lotes C1, C2, C3, C4, C5, C6, C7 e C8, respectivamente, sitos à Rua ..................., em Vila Nova de Gaia, com a inscrição da aquisição (g-l), por compra a favor de "DD - Britagens e Construções, Lda", pelas apresentações nº 14 de 22-09-1987 e inscrição de aquisição (G-"), por compra, a favor da ré São CC pelas aps...........- Certidão de fls. 147 a 165.

3. Sob as aps. ........ dos prédios descritos sob os nºs.......2 e ..... e referidos em 2°), encontra-se inscrita a aquisição, por compra, a favor de EE de FF e marido GG.

4. O terreno que integra os prédios referidos em 2°) confronta, do seu lado nascente, com o prédio referido em 1°).

5. No terreno que integra os prédios referidos em 2°), foram realizados trabalhos de escavação e terraplanagem, com vista ao loteamento do mesmo.

6. Os trabalhos referidos em 5°) foram executados pela interveniente "DD-Britagens e Construções, Lda.".

7. Os trabalhos referidos em 5°) ocorreram em data indeterminada dos anos de 1997 a 2000.

8. Por força dos trabalhos referidos em 5°), o terreno objecto dos mesmos desceu a uma cota 4 metros, inferior à cota do terreno referido em 1°).

9. Como consequência dos trabalhos referidos em 5°), verificou-se, em 25.03.2001, o aluimento de um anexo existente no prédio referido em 1°).

10. E ruiu parte do muro divisório existente no prédio referido em 1°), desmoronando-se as terras que o mesmo sustentava.

11. Ainda como consequência dos trabalhos referidos em 5°), as construções e vedações integradas no prédio referido em 1°) ficaram em perigo iminente de ruína.

12. Entre as quais figurava a estação de bombagem de esgotos instalada no prédio referido em 1°).

13. Em consequência da instabilidade do prédio referido em 1°) provocada pelos trabalhos referidos em 5°), a EDP retirou um poste de suporte de condutores de alta tensão, transferindo-o para outro terreno.

14. Para evitar outras derrocadas, a autora procedeu à realização de obras de remoção de entulho e terras desmoronadas, reconstrução e levantamento do muro de sustentação.

15. O custo dos trabalhos referidos em 14°) ascendeu, pelo menos, a 9.720 Euros acrescidos de IV A a 17%.

16. Tal custo foi acrescido, pelo menos, da quantia de Escudos 147.420$00.

17. Tal custo foi acrescido, pelo menos, da quantia de euros 1.140,75 relativa a trabalhos de pintura.

18. Na execução dos trabalhos referidos em 5°) não se fez intervenção num espaço de vários metros de largura ao longo do muro divisório que existia entre os prédios, referidos em 1°) e 2°).

O direito

Nas suas conclusões(2), a recorrente suscita duas questões:

1. A acção baseia-se no art. 1348.º do CC que estabelece a responsabilidade do proprietário pelos danos nos prédios vizinhos, decorrentes de escavações feitas no seu prédio, independentemente de quem as tenham levado a cabo.

2. A sentença da 1.ª instância é nula por os seus fundamentos estarem em oposição com a decisão – art. 668.º, 1 c) do CPC.

Analisemos.

1. O recurso de revista vem interposto do acórdão da Relação do Porto e não da sentença da 1.ª instância.

Assim, como não é assacada nenhuma nulidade ao acórdão, não temos de curar das nulidades que foram arguidas à sentença da 1.ª instância.

Improcede, por isso, esta questão.

2. Quanto à primeira questão, porque o acórdão é bem claro na sua fundamentação, a merecer a nossa inteira concordância, nos termos do art. 713.º, 5 do CPC, apenas diremos o seguinte:

Estatui o art. 1348.º que

1. O proprietário tem a faculdade de abrir no seu prédio minas ou poços e fazer escavações, desde que não prive os prédios vizinhos do apoio necessário para evitar desmoronamentos ou deslocações de terras.

2. Logo que venham a padecer danos com as obras feitas, os proprietários vizinhos serão indemnizados pelo autor delas, mesmo que tenham sido tomadas as precauções julgadas necessárias.

Como já tivemos oportunidade de referir no acórdão do STJ, por nós relatado, em 31.1.2007, dgsi processo n.º 06B4762, depois de um percurso contraditório da nossa jurisprudência, veio a firmar-se o entendimento de que a lei, ao referir a expressão “pelo autor delas” quer aludir ao proprietário do prédio onde as obras são realizadas, que não ao seu autor material”.(3)

Essa responsabilidade para o “autor” das obras advém-lhe sempre, mesmo em termos objectivos, sem ilicitude nem culpa, porque o mencionado normativo enquadra um dos casos excepcionais de responsabilidade civil extracontratual, resultante de uma actividade lícita, que não exige culpa.

Na verdade, como ensina A. Varela,(4) a nossa lei, além de ter consagrado as duas formas de responsabilidade civil por fatos ilícitos (responsabilidade com base na culpa e responsabilidade com base no risco), aceitou também a responsabilidade por factos lícitos causadores de danos, como acontece nos arts. 1348.º e 1349.º do CC, para além de outras disposições legais “disseminadas pela legislação extravagante”, legitimando “a prática do acto susceptível de causar danos, com a protecção devida aos titulares dos bens atingidos”.

Por isso, mesmo que as obras sejam realizadas por outrem, é sempre o dono do terreno, onde se realizarem, o responsável pelos prejuízos que delas resultem para os donos dos prédios vizinhos.

Mas o responsável é o “autor delas” - das obras(5). -, como estatui o n.º 2 do art. 1348.º, não o actual proprietário do imóvel.

Muito embora acompanhem a coisa (o prédio) determinados ónus(6). e algumas(7) obrigações propter rem, no caso de transmissão, tal não acontece relativamente aos actos de natureza pessoal que o anterior dono tenha praticado(8): a obrigação de indemnizar o vizinho por danos decorrentes de escavações, no contexto do art. 1348.º são, não uma obrigação real “ambulatória”, mas uma obrigação autónoma de indemnização(9) que vinculam o seu autor (proprietário do imóvel à data das escavações).

E nisso também está de acordo a decisão recorrida ao mencionar que “para efeitos da responsabilidade consagrada no art. 1348.º do código Civil é saber quem era …. o proprietário do terreno em causa” no período temporal em que as escavações ocorreram – entre 1997 e 2000.

Mas nessa altura, a R. ainda não era proprietária, como se diz no acórdão recorrido, pois, vem demonstrado que apenas adquiriu o imóvel em 13.7.2000, conforme se vê do n.º 2 da matéria de facto ”inscrição de aquisição (G-"), por compra, a favor da ré São CC pelas aps. 26/130700- Certidão de fls. 147 a 165”.

Resulta até dessa matéria de facto - n.º 2 - que a propriedade do imóvel, aquando das escavações, estava inscrita em nome da DD – Britas e Construções, L.da, que não foi demandada nessa qualidade.

A R., quando muito, podia ser responsabilizada no contexto do art. 1350.º do CC(10)., se a acção assim viesse configurada e provados os pertinentes factos.

Deste modo, outra coisa não resta que confirmar a decisão recorrida que, como já se disse, nenhuma censura merece.

Decisão

Pelo exposto, nega-se a revista, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 13 de Novembro de 2008

Custódio Montes (Relator)
Mota Miranda
Alberto Sobrinho

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(1)- Foi também julgado improcedente o pedido reconvencional feito pela R. S. CC Imobiliária, S.A. contra a A. – que não interessa para a economia do recurso.

(2)- Que circunscrevem o âmbito do recurso – arts. 684.º, 3 e 690.º, 1 do CPC.
(3)- Ver, por exemplo, o Ac. deste STJ de 28.5.96, BMJ 457, 317, em que se analisa a questão em pormenor, quer em termos sistemáticos quer em termos da necessidade da redacção do preceito, quer em termos históricos, citando-se o art. 2323.º do CC/1876, que dispunha de forma semelhante e em que a doutrina nunca pôs em causa que o normativo se referisse ao proprietário do prédio onde as obras eram realizadas; mais recentemente, ver os Acs. do STJ de 30.30.06, dgsi.pt/jstj, proc. n.º 06B905, de 10.1.06, idem, proc. n.º 05A3331, onde se dá conta de que é esta a jurisprudência dominante.
(4)- Das Obrigações em Geral, Vol. I, 9.ª ed., pág. 541 e segts.
(5)- Na altura em que a sobras tiverem sido realizadas.
(6)- Como, por exemplo, a hipoteca, o arrendamento.
(7)-Pois há obrigações propter rem ambulatórias e não ambulatórias, Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 2.ª ed., pág 170 e 171.
(8)- Ele ou outrem.
(9)- Carvalho Fernandes, Ob. cit., pág. 169.
(10)- “Se qualquer edifício ou outra obra oferecer perigo de ruir, no todo ou em parte, e do desmoronamento puderem resultar danos para o prédio vizinho, é lícito ao dono deste exigir da pessoa responsável pelos danos, nos termos do art. 492.º as providências necessárias para eliminar o perigo”.